Você está na página 1de 32

O engenhoso

fidalgo
Manuel Botelho
IVAN TEIXEIRA

de Oliveira

LEITORES DE BOTELHO

E
Como todo texto, este também pos-
sui sua história. O estímulo mais re-
moto partiu de conversa com Antô-
nio Medina Rodrigues, pelos corre-
scrita no apogeu da propagação da poesia
dores de uma escola em 1973,
quando o velho colega e amigo ex- seiscentista italiana e espanhola, mas publica-
pressou seu contagiante entusiasmo
pela mestria de um verso de Botelho da em 1705, quando já se consolidava a rea-
de Oliveira. Agora, em final e início
de milênio, tive oportunidade de ção ao estilo agudo e engenhoso, Música do
repetir três vezes o mesmo curso sobre
o poeta a alunos de graduação no
Departamento de Jornalismo e
Parnaso, de Manuel Botelho de Oliveira, apropria-se
Editoração da Escola de Comunica-
ções e Artes da Universidade de São deliberadamente do código poético instaurado por
Paulo. Muitos dentre eles contribuí-
ram com discussões e hipóteses Camões, Marino e Gôngora, entre outros. Não obstante,
interpretativas, dos quais destaco, a
título de homenagem exemplar, o poeta produz impressão de novidade, o que decorre
Tâmis Peixoto Parron e Renato Domith
Godinho. Depois de pronto, os co-
legas Paulo Giovani e Luciana Gama
não só da assimilação intrínseca daquele universo poé-
apresentaram sugestões. Finalmen-
te, João Adolfo Hansen, ex-orientador tico, mas sobretudo da ciência do idioma, o que, por si
e atual amigo, propôs ajuste
terminológico ao texto, que muito só, garantiria êxito às pulsações de seu livro. Botelho de
contribuiu para o acabamento com
que o apresento agora. Agradeço Oliveira, portanto, não será lido como poeta original
também a Murilo Marx e Maria Itá-
lia Cousim, diretor e bibliotecária do
IEB, pela prontidão com que auxili-
nem como inoperante imitador, mas como emulador da
aram na obtenção de fotos da pri-
meira edição de Música do Parnaso, tradição em que se inscreve. Esse é o primeiro pressu-
fraternalmente executadas pelo prof.
Atílio Avancini, do CJE-ECA. posto para a leitura do poeta baiano e também para sua

178 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


classificação, tomando-o, evidentemente, como um dos
momentos mais extraordinários de toda a poesia prati-
cada no Brasil, cujo desenvolvimento, aliás, seria im-
pensável sem o sistema de tópicas e técnicas apreendi-
das na Europa. Veja-se um fragmento do soneto VII da
primeira parte de Música do Parnaso, como exemplo
preliminar da eficácia de seu texto:

“A serpe, que adornando várias cores,


Com passos mais oblíquos que serenos,
Entre belos jardins, prados amenos,
É maio errante de torcidas flores”.

Ao descrever a serpente por meio da primavera, o


autor põe em prática a poética da obliqüidade metafó-
rica, o que se nota também no valor positivo atribuído
à sinuosidade – e não à placidez – dos movimentos do
animal, que, mais adiante no poema, funciona como
parte de surpreendente símile com o coração do poeta,
IVAN TEIXEIRA
entendido sempre como persona elocutória. Embora se
é professor de Literatura
percebam com muito relevo a agilidade sintática, a in- Brasileira do Departamento
de Jornalismo e Editoração
sinuação sonora e o soberbo cromatismo da estrofe, da ECA-USP e integrante do
corpo docente da primeira
tudo nela existe como suporte para exercício da metá- turma do Curso de
Humanidades da
fora, que se articula coerentemente com os demais pro- Universidade de São Paulo,
sob coordenação de Renato
cedimentos do texto. É sempre assim em Música do
Janine Ribeiro. É autor de,
Parnaso. Ao primeiro contato com seus poemas, perce- entre outros, Mecenato
Pombalino e Poesia
be-se que o autor era obcecado pela concentração se- Neoclássica (Edusp).

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 179


mântica, pelo equívoco dos vocábulos e pela Oliveira (1), que até hoje só foi reeditada
exploração das potencialidades sensoriais na íntegra uma vez, graças ao trabalho de
e intelectuais da imagem. Em certo senti- Antenor Nascentes, junto ao Instituto Na-
do, pode-se afirmar que a obra cristaliza cional do Livro, em 1953. Antes disso, em
uma investigação artística da apreensão sen- 1929 (?), Afrânio Peixoto editara apenas
sível do mundo, por reiterar à exaustão o os poemas em português do volume, pela
risco de dizer as coisas pelo avesso delas Academia Brasileira de Letras.
mesmas. A doutrina da imagem implícita Atualmente, Manuel Botelho de Olivei-
em Botelho integra um conjunto de técni- ra continua recebendo o desapreço dos crí-
cas que, aplicadas ao poema, constituem ticos: quer mediante condenação explícita,
singular modalidade de conhecimento do quer mediante sumárias apreciações, que
mundo, cuja dispersão se unifica por meio não revelam leitura específica, embora
da invenção sensorial das coisas. Partilha apresentem uma ou outra sugestão interes-
da concepção de poesia como imitação e sante. As grandes exceções encontram-se
trabalho de arte, em que paciência e estudo em dois estudiosos preocupados com a in-
convergem para o desenvolvimento de as- vestigação estilística do fenômeno literá-
suntos tradicionais que independem da psi- rio, Eugênio Gomes e Péricles Eugênio da
cologia do poeta. Não é sem causa que, em Silva Ramos, responsáveis por análises e
mais de uma ocasião, João Cabral de Melo notas capazes de desencadear a necessária
Neto declarou apreço pela consciência reavaliação do poeta, que, aliás, já se acha
artesanal de Botelho de Oliveira, lamen- em pleno andamento, como se pode notar
tando o ostracismo de seu livro. pelos recentes trabalhos de Carmelina Al-
Todavia, esses aspectos todos, sufici- meida, Leopoldo M. Bernucci e Enrique
entes para nobilitar qualquer poeta em qual- Rodrigues-Moura (2). Todavia, em março
quer literatura, levaram a crítica tradicio- de 1998, a Editora Humanitas, responsável
nal brasileira, de pressupostos romântico- por livros destinados ao circuito interno da
nacionalistas, a desprestigiar a poesia de Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Botelho de Oliveira, sob pretexto de que Humanas da Universidade de São Paulo,
lhe faltam singularidade expressiva e inte- editou o volume Iniciação à Literatura Bra-
gração com a realidade do país. Intérpretes sileira: Resumo para Iniciantes, do prof.
como Cônego Fernandes Pinheiro, Sílvio Antonio Candido, no qual se lê o seguinte
Romero, José Veríssimo e Ronald de Car- juízo crítico, citado aqui a partir de sua ter-
valho consideram-na fria, cerebral, mecâ- ceira edição (1999, p. 26):
nica, artificial e ridícula. Seu estilo e maté-
ria são interpretados como conseqüência “A esse espírito entre devoto e cortesão se
da frivolidade do espírito barroco. Herdei- vincula um escritor de certo interesse, Ma-
ros do Iluminismo português, que se opôs nuel Botelho de Oliveira, exemplo típico
à poesia seiscentista por entendê-la como do falseamento a que chegou o espírito
resultado da hegemonia espanhola sobre barroco nos seus aspectos menores, quan-
Portugal, esses críticos odeiam a poesia do a argúcia virou pedantismo e a sutileza
luso-brasileira do período, especialmente um mero exibicionismo, dando a impres-
em sua variante gongórica e, portanto, mais são de que a palavra rodava em falso, à
sensorial e vistosa. Pela perspectiva deles, procura de nada”.
a poesia seiscentista portuguesa não passa-
ria de encarnação da decadência política e Essa opinião, exposta com invejável
1 Além de Música do Parnaso, do mau gosto literário dominante no país, competência de escritor, decorre da con-
Botelho de Oliveira deixou iné- completamente entregue aos exageros da vicção de que a poesia seiscentista contri-
dito Lyra Sacra, editado por
Heitor Martins (São Paulo, imaginação desmedida, manifesta no culto bui para o mau gosto do leitor e para seu
Conselho Estadual de Cultura,
1971).
do trocadilho e da metáfora desproposita- afastamento da realidade imediata dos fe-
da. Essa visão acabou por determinar o des- nômenos dignos de imitação artística, que,
2 Cf. bibliografia no final do pre-
sente ensaio. tino editorial da obra capital de Botelho de basicamente, seriam a emoção pessoal, os

180 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


embates da vida em sociedade e a relação teressa ao presente. Muito comum na
do indivíduo com os valores responsáveis crítica oitocentista, essa perspectiva acaba
pela formação da nacionalidade. Trata-se por constituir um cânone restritivo e exclu-
de concepção que privilegia a função for- dente, em que domina o argumento evolu-
madora da literatura, vendo nela principal- cionista de que a história só existe como
mente os aspectos utilitários, que acabam justificativa do presente. As raízes do juízo
por se confundir com a noção de valor ar- de Sotero dos Reis, a cuja tradição se filia
tístico. Botelho, ao contrário, dava priori- Antonio Candido, são bem conhecidas.
dade ao prazer com as formas sutis de jogo Origina-se na própria reação do século
intelectual, que, embora também visasse à XVIII ao Seiscentismo, quando se tratou
educação da pessoa, não era concebido nos de acusar o absurdo de suas formas como
termos do século XIX, época em que se maneira de alicerçar um conjunto de prefe-
consolidou a concepção de literatura como rências estilísticas apropriadas ao ideário
expressão de verdades psíquicas e como da Ilustração, que, em favor da univocidade,
captação da essência nacional. Ocorre que instituiria como ideal artístico a clareza, a
Botelho não escreveu para a posteridade, e simplicidade e o equilíbrio. A partir daí, o
sim para o seu tempo, procurando na co- estilo engenhoso passou a se caracterizar
municação com os contemporâneos a ra- como obscuro, alambicado, excessivo e
zão social de sua produção. Isso nos obriga monstruoso. Desconsiderando o aspecto
a procurar em Música do Parnaso, não estratégico de programa da mentalidade
apenas uma possível identidade com o nos- iluminista, a crítica romântica adotou essa
so tempo, mas sobretudo a diferença com o visão como preceito absoluto e desenvolveu
nosso e a identidade com o dele, porque da verdadeiro horror às obliqüidades do estilo
percepção dessa diferença e dessa identi- agudo, por interpretá-lo como estagnação
dade é que nasce a integração do leitor com do progresso do espírito humano. Desde
a história, necessariamente impregnada então, os românticos fundaram seus crité-
pelas desiguais configurações dos tempos rios estéticos no binômio biografismo + na-
e das sociedades. cionalismo, de particular vitalidade na críti-
Para fundamentar a exclusão dos poe- ca brasileira subseqüente. No século XX,
tas seiscentistas de seu Curso de Literatura Mário de Andrade acolheu o princípio, pro-
Portuguesa e Brasileira (Maranhão, 1867), pagando a idéia de que era preciso evitar
Francisco Sotero dos Reis escreve: Gôngora. Enquanto isso, Garcia Lorca e
Dámaso Alonso, integrantes do primeiro
“Apreciar escrito de autores, que não só modernismo espanhol, cuidavam de restau-
não estão no caso de servir de modelo aos rar o autor de Soledades; um, em dimensão
que se propõem o estudo das boas letras, poética; outro, em dimensão ensaística.
mas cujo mau gosto deve ser evitado com
cuidado, seria perder tempo e trabalho inu-
tilmente, quando não resultasse daí perigo
POESIA ACADÊMICA
a algumas inteligências que começam a
desenvolver-se, e podem por isso mesmo Botelho de Oliveira tinha 69 anos quan-
deixar-se iludir com os falsos brilhantes que do editou o livro de sua vida. Isso nos faz
neles flamejam como fogo fátuo. Ainda bem supor que, antes de serem impressos em
que as poesias dos seiscentistas, cuja lição Lisboa por Miguel Manescal, seus textos
é prejudicial ao bom gosto, já se vão tor- tiveram circulação manuscrita e oral, con-
nando mui raras no Brasil”. forme o padrão dominante na sociedade
seiscentista da Bahia, regida por regras de
Aqui, o primado da função formadora comunicação das comunidades sem im-
da poesia como fundamento do juízo esté- prensa, nas quais a leitura pública se impu-
tico mal consegue disfarçar o projeto ideo- nha como forma corrente de veiculação de
lógico de proibir no passado o que não in- poesia, bem como de outras modalidades

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 181


À esquerda, página de rosto da Biblioteca Lusitana (tomo III), de Diogo Barbosa Machado,
1752, em que saíram os primeiros dados biográficos sobre Manuel Botelho de Oliveira.
À direita, verbete sobre Manuel Botelho de Oliveira no 3o tomo da Biblioteca Lusitana (1752),
de Diogo Barbosa Machado, de onde se extraíram os primeiros informes sobre o poeta

3 Como se verá adiante, Botelho


de Oliveira celebrou, em 1697, de escrituras. Essa condição histórica de- aguda e engenhosa do Seiscentismo, cha-
a morte do Pe. Antônio Vieira e terminou a criação de centros especializa- mada barroca a partir do século XIX (3).
a de seu irmão Bernardo Vieira
Ravasco; em 1699, celebrou a dos em que as pessoas se reuniam com o Francisco Leitão Ferreira, no primeiro
da rainha D. Maria Sofia Isabel,
esposa de D. Pedro II e mãe do propósito de partilhar da socialização da volume de sua Nova Arte de Conceitos
futuro D. João V. Custa crer que cultura. Sabe-se que a primeira agremiação (1718), livro que traduz e adapta o ideário
tais poemas, publicados apenas
em 1705, na primeira edição sistemática desse tipo no Brasil foi a Aca- poético de Emanuele Tesauro e Baltazar
de Música do Parnaso, não te-
nham sido divulgados por meio
demia Brasílica dos Esquecidos, inaugura- Gracián para o português, expõe os precei-
de leitura pública em exéquias da em 1724 na cidade de Salvador. Antes tos segundo os quais os acadêmicos de seu
ou em outra espécie de solenida-
de fúnebre, como era costume dela, houve inúmeras associações em Por- tempo deveriam se reunir, assim como
então. Em ambiente de socieda- tugal, à imitação das quais os letrados da defender os propósitos, os objetivos e os
de escribal, necessariamente não
se concebia o poema para pu- Bahia deviam se reunir em encontros me- assuntos das academias, tendo por princí-
blicação impressa, mas para so-
cialização pelos meios disponí- nos formais e menos sistemáticos para lei- pio geral a imitação dos jogos olímpicos da
veis. Da mesma forma, o manus- tura e crítica dos trabalhos, o que, por si só, Antigüidade, em que os atletas aprimora-
crito não era entendido como
estágio intermediário entre o pre- já conferia o estatuto de difusão sistêmica vam o domínio sobre o corpo como forma
sente e o futuro, mas como con-
dição definitiva e suficiente para
do fenômeno poético, sempre, é claro, con- de integração social. Emulando os
a difusão do texto no presente. forme as regras do período. Essa é, em sín- desportistas da Grécia antiga, os acadêmi-
Marcelo Moreira demonstra essa
premissa em sua tese de douto- tese, a poética da cultura das academias do cos seiscentistas e setecentistas buscavam
rado sobre o estatuto bibliográfi- tempo de Botelho de Oliveira, cuja confi- o exercício, já não do corpo, mas do espí-
co do corpus atribuído a Gre-
gório de Matos. guração estilística coincide com a poesia rito, aprimorando sua perspicácia em pe-

182 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


netrar na identidade dos assuntos e sua ver- primeiras das quais consistem no paralelo
satilidade em associar as semelhanças e as e na contraposição, de onde resulta a práti-
diferenças obtidas. Leitão Ferreira também ca da metáfora e da antítese como elemen-
compara as academias com os circos, com tos definidores da elocução acadêmica, que
as escolas e com os teatros, porque seus é também a chave do discurso poético pra-
integrantes deveriam imbuir-se do espírito ticado por Botelho de Oliveira.
de aprendizado, de encenação, de compe- O autor seleciona assunto estéril para
tição e de entretenimento. Conclui-se daí efetuar agudeza em seu desenvolvimento,
que a poesia não decorria daquele momen- aplicando a ele imagens alheias ao univer-
to quase religioso de recolhimento e de auto- so primeiro de seu significado. Decorre daí
investigação consagrado pelos românticos, a dominante metafórica e antitética no es-
mas sim de situação pública, em que se tilo de Botelho de Oliveira, que sempre es-
discutiam os princípios gerais da composi- creve por paralelos ou contrapostos, con-
ção poética, a partir de assuntos objetivos forme se pode exemplificar com o soneto
e comuns a todos, por meio dos quais cada “Ponderação do Rosto e Olhos de Anarda”:
um se empenhava em dar o melhor de seu
engenho e de sua técnica.
Na mesma lição, o retor fala dos con-
ceitos e dos assuntos acadêmicos, detendo-
se na explicação dos processos segundo os
quais aqueles são extraídos destes. O as-
sunto acadêmico é definido como uma bre-
ve proposição acerca de objeto bem deli-
mitado, da qual se deduza alguma reflexão
ou conclusão provável ou necessária. A poe-
sia prevista pelo código acadêmico, de que
Botelho é exímio usuário, resulta de opera-
ções lógicas do espírito dialético, ainda
quando entrem em jogo os acidentes sen-
soriais dos objetos. Apresentada a proposi-
ção, cabia ao poeta estabelecer as devidas
conexões entre seu sujeito e seu predicado,
associá-los a um terceiro elemento estra-
nho a ela e, por ilação, extrair conclusão
nova, sutil e maravilhosa, a que se chama- “Quando vejo de Anarda o rosto amado,
va propriamente conceito. Sempre tradu- Vejo ao Céu e ao jardim ser parecido;
zindo Tesauro, Leitão Ferreira divide o Porque, no assombro do primor luzido,
assunto acadêmico em simples e comple- Tem o Sol em seus olhos duplicado.
xo. O primeiro contém um único objeto; o
segundo, um objeto central intimamente Nas faces considero equivocado
associado a uma circunstância ou a outro De açucenas e rosas o vestido;
objeto. Ao assunto simples chama também Porque se vê, nas faces reduzido,
estéril; ao complexo, fértil. Assim, a pro- Todo o Império de Flora venerado.
posta de um cravo como assunto de poema
seria estéril; mas passaria a fértil se fosse Nos olhos e nas faces mais galharda,
adicionada a circunstância de o cravo estar Ao Céu prefere, quando inflama os raios;
na boca de uma ninfa, o que dividiria a aten- E prefere ao jardim, se as flores guarda:
ção do entendimento entre cravo e ninfa.
Depois dessas noções, o retor português Enfim, dando ao jardim e ao Céu desmaios,
concentra-se na enumeração analítica das O Céu ostenta um Sol; dous sóis Anarda;
regras de fertilização do assunto estéril, as Um Maio o jardim logra; ela, dous Maios”.

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 183


Em rigor, o poema desenvolve o assun- contínuas imagens de oposição especular,
to estéril do rosto de Anarda. Por operação desde o sol e as flores – que, apesar das
dialética do engenho, esse se multiplica em diferenças, refletem-se no rosto de Anarda
rosto e olhos, que, por sua vez, amplifi- – até o eco da rima final, proveniente da
cam-se, por associação com o céu e com a reverberação sonoro-visual entre des-
terra. Assim, a matéria inicial do rosto tor- maios e dous maios.
na-se complexa no retrato, porque o poeta
o compara com o céu e com o jardim (ter-
ra), a partir do que se apresentam os porme-
nores argumentativos: assim como o céu METÁFORA, AGUDEZA E ENGENHO
tem sol, Anarda tem olhos; da mesma for-
ma que o jardim tem flores, ela tem cores. O Conde Emanuele Tesauro define
Evidentemente, a novidade dessa sutileza metáfora como a mais aguda e engenhosa
consiste no contraposto do perto com o dis- conquista do entendimento humano, não
tante, do alto com o baixo, associados em só porque aproxima propriedades distantes
jardim e céu, que permitem a sobreposição das tópicas propostas, como também por-
de flores e faces, sol e olhos. O discurso que explica um conceito por meio de outro
poético preconizado pela Academia muito diverso. Penetrando nas coisas da
seiscentista deveria, pois, evidenciar a uni- invenção, o poeta extrai delas as mais re-
dade de matérias diversas, estabelecendo cônditas noções para as associar com ou-
conexões metafóricas nem sempre acessí- tras pertencentes a gêneros e espécies dife-
veis aos olhos do vulgo. Essa é uma das rentes. Como se vê, a metáfora seiscentista
razões pelas quais os preceptores aproxi- funda-se no princípio da analogia engenho-
mavam o poeta dos anjos, pois eram estes sa, pois, desencadeando associações impre-
que, em primeira instância, incumbiam-se vistas no juízo, promove a semelhança entre
de revelar aos homens a maravilha de Deus. assuntos distintos. Partilhando de convic-
Em favor do prodígio, a poesia de tradição ções de seu tempo, é evidente que a metá-
engenhosa consagrou essas imagens, com fora de Botelho de Oliveira prefere o pa-
as quais Botelho, pela reatualização de pro- drão da agudeza, segundo o qual deve ser
cedimentos da instituição retórica, opera apreciada. Francisco Leitão Ferreira, ao
com versatilidade, produzindo vivo efeito adaptar para o português idéias de Tesauro,
cromático, sem deixar de insinuar que a faz questão de preservar as propriedades
beleza particular da amada decorre da in- preconizadas por Aristóteles na metáfora,
tervenção do céu para fecundação da terra, afirmando que deve conter clareza, novi-
como a dizer que a beleza floresce da har- dade e brevidade. Por isso, acha apreciável
monia entre pólos contrastantes. No final, chamar águia ao girassol; ou pensamento
contra a expectativa do leitor inexperto, o do campo, ao veado. No primeiro caso, une-
poeta introduz uma diferença importante, se à beleza da flor a altivez da ave, aproxi-
que não desfaz a fusão dos opostos; antes a mando o reino vegetal ao animal, sem dei-
confirma, revelando que, embora resultan- xar de associar os olhos do pássaro com a
te da interação do céu com a terra, Anarda esfericidade da planta, que, de certa forma,
supera a ambos no sortilégio da beleza, paira, como ave, acima das demais flores
porque os reproduz duplicadamente. Eis aí do jardim. No segundo, associa-se a rapi-
o conceito ou a reflexão aguda que se extrai dez do animal com a velocidade do pensa-
do assunto proposto, momento em que o mento. Como se vê, os exemplos forneci-
elogio confirma a particularidade, que, não dos por Leitão Ferreira baseiam-se no prin-
obstante, é legitimada como decorrência cípio da analogia engenhosa, pois unem,
de idéia geral. Por outro lado, como pro- em linguagem, elementos díspares na na-
cesso de singularização engenhosa da be- tureza, o que decorre de operação fantásti-
leza, o poema opera sistematicamente por ca do entendimento.
equívoco de termos, que se equivalem em Francisco José Freire, em sua Arte Poéti-

184 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


ca ou Regras da Verdadeira Poesia (1748), do traduzir em termos teóricos os motivos
ao esboçar uma teoria adequada à Ilustra- da recusa. Contentam-se com o argumento
ção portuguesa – e, portanto, contrária ao de mau gosto e frivolidade, quando, em
estilo engenhoso do Seiscentismo –, não vê rigor, o que não aceitam é a ficcionalização
com bons olhos metáforas desse tipo, sem extremada do discurso poético. Querem-no
contudo condená-las completamente. To- como projeção psicológica ou tradução de
davia, considera inaceitáveis as operações posições práticas. Mas, em que consiste, pela
que, associando em poesia elementos des- perspectiva do presente ensaio, a
conexos na natureza, chegam ao extremo ficcionalização do discurso poético nesse
de projetar seus termos para o suposto poema? Primeiro, o poeta – sempre entendi-
mundo da realidade empírica, tal como se do como persona elocutória – alegoriza o
observa no exemplo em que, tendo o pastor empenho do sono em minimizar seu sofri-
uma chama amorosa no peito, oferece-a mento amoroso; depois, metaforiza a pre-
para que companheiros acendam nela suas sença de Anarda em farol, por associação
tochas. Algo semelhante se observa na com a luz de seus olhos. Até aí, a razão
décima “Sono Pouco Permanente”, de iluminista aceitaria o andamento do poema,
Botelho de Oliveira: embora talvez não o recomendasse. O que
não aceitaria nem recomendaria, antes con-
denaria como operação indesejável do juízo,
é a metáfora do farol de Anarda clarear o dia,
desfazendo a noite e obrigando o sono a se
refugiar em sua caverna sem luz.
Sobre a agudeza e o engenho, o que diz
a preceptiva seiscentista? Como se sabe,
Baltasar Gracián escreveu toda uma arte
para estimular e facilitar a conquista dessas
propriedades essenciais ao discurso poéti-
co do tempo. Todavia, é ainda no Conde
Emanuele Tesauro que se encontra a me-
lhor sistematização da matéria, em cujo Il
Cannocchiale Aristotélico (1654) a agude-
za é definida como resultado do engenho
aplicado às palavras, o que leva o autor a
considerá-la vestígio da divindade no espí-
rito humano. A agudeza não se deixa defi-
nir em termos absolutos, podendo assumir
“Quando, Anarda, o sono brando as mais variadas formas, desde a metáfora,
Quer suspender meus tormentos, o paradoxo, o equívoco sonoro até o
Condenando os sentimentos, silogismo sutil. Todavia, não se manifesta
Os desvelos embargando; somente no discurso verbal, mas também
Dura pouco, porque quando na pintura, na escultura e até nas ações
Cuido que em belo arrebol humanas. A agudeza pode se compor de
Estou vendo teu farol, simples palavras engenhosas, isto é, pala-
Foge o sono à cova fria; vras metafóricas ou figuradas; de proposi-
Porque lhe amanhece o dia, ções engenhosas, como as sentenças figu-
Porque lhe aparece o Sol”. radas e sutis; e de argumentos engenhosos
ou conceitos inesperados e surpreenden-
Fundados em pressupostos neoclássicos tes. Em sentido amplo, a agudeza será sem-
de Francisco José Freire, os críticos român- pre o vivo resultado de operação do enten-
ticos e seus seguidores no século XX rejei- dimento, que, em vez de se ater aos termos
tam composições dessa espécie, sem contu- próprios dos conceitos, os apreende e os

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 185


traduz por meio de nomes, frases ou ele- uma breve cena, uma concisa alegoria da
mentos fantásticos, evitando a expressão luz, cuja reduplicação decorre do juízo dos
comum em favor de expressões peregri- espelhos, que se animam no poema por de-
nas, adjetivo com que Leitão Ferreira ca- liberarem sobre a própria ação. Por fim, a
racteriza as novidades bizarras de vocábu- sobreposição de acidentes figurados con-
los distantes da esfera das coisas a que se duz a décima ao entimema urbano ou silo-
referem. No madrigal “Anarda Vendo-se a gismo engenhoso, considerado pela retóri-
um Espelho”, Botelho de Oliveira fornece ca seiscentista como a agudeza perfeita, por-
ágil exemplo de agudeza, obtida por meio que parte de premissas metafóricas e con-
de jogo entre espelhos: o espelho real, em duz a conclusões maravilhosas, processo
que Anarda se reflete; e o metafórico, que em que a fantasia opera sobre a realidade,
reproduz o espelho apresentado como real: como se observa no fato de o espelho me-
tafórico reproduzir o espelho dado como
real e iluminar o dia, fenômeno que tam-
bém se observa na décima “Sono Pouco
Permanente”.
Apresentado pela preceptiva seiscen-
tista como causa eficiente da agudeza, o
engenho é a força com que o entendimento
ou juízo acha, recolhe, penetra, une ou se-
para as propriedades dos conceitos, estabe-
lecendo, portanto, relações de semelhança
ou de diferença. Embora considerado vir-
tude natural do entendimento, o engenho
deixa-se assessorar por ramificações de sua
potência, tais como a perspicácia, a destre-
za e a argúcia, sujeitas ao aprimoramento
por exercício. Enquanto atributo do enten-
“Anarda, que se apura dimento, cabe ao engenho analisar, em
Como espelho gentil da fermosura, súbito ato de intelecção, os componentes
Num espelho se via, da realidade, procedendo conforme as dez
Dando dobrada luz ao claro dia; categorias ou predicamentos de Aristóteles,
De sorte que com próvido conselho que são: substância, quantidade, qualida-
Retrata-se um espelho noutro espelho”. de, relação, ação, paixão, lugar, modo,
duração e hábito. Caso um poeta considere
Cícero afirma que a agudeza é o gesto metaforicamente a rosa, como o faz Botelho
da frase, querendo dizer com isso que ela de Oliveira em texto analisado mais adian-
atribui visibilidade à abstração do concei- te no presente ensaio, ela constituirá a subs-
to. É o que se observa na situação instaura- tância temática do poema; ao passo que seu
da pelo poema: Anarda emite luz; o espe- tamanho, sua cor, seu perfume, sua hierar-
lho reflete luz; logo, quando se coloca dian- quia entre as flores comporão os acidentes
te do espelho, ela dobra a luz do dia. Além temáticos segundo os quais se forma a idéia
disso, observa-se: o espelho ilumina; Anar- de rosa. Conclui-se daí que a substância,
da também ilumina; logo, ela é espelho. A sendo insensível – pois é essência –, só se
argumentação do poema não é apresentada torna acessível por meio de acidentes, que
apenas como hipótese discursiva, mas como se deixam perceber pelos sentidos huma-
encenação da situação responsável pelos nos. Assim, o engenho poético será o res-
equívocos e espelhamentos, o que aproxima ponsável pela organização sensível do
o poema da metáfora de hipotipose, que mundo, dispondo-o por meio de tropos,
consiste em pôr diante dos olhos o objeto de figuras, silogismos e outras formas de
que se fala. Com isso, o madrigal compõe manifestação da agudeza.

186 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


aristotélica, segundo a qual a poética era
ESTRUTURA MUSICAL entendida como espécie de capítulo da re-
tórica. Praticava-se a poesia como modali-
Manuel Botelho de Oliveira não se li- dade verbal de imitação, cadenciada pela
mitou a escrever em português; entregou- métrica e especialmente ornada por tropos
se também a poemas em espanhol, em ita- e figuras, que falam pelo poeta. Como é
liano e latim. Longe de indicar exibicio- sabido, esse é o sistema internacional que
nismo, o plurilingüismo de seu livro decor- orientou a comunicação artística entre os
re antes do repertório coletivo da época e homens até mais ou menos a Revolução
da concepção de poesia do autor, que, além Francesa. Vivendo antes da invenção do eu
de se inscrever na prática dos poemas, pode psicológico e quando ainda não existiam as
ser abstraída de passagens da dedicatória e liberdades e as ideologias burguesas,
do prólogo do volume. Fiéis à sua função Botelho de Oliveira não podia, portanto,
de degrau ao argumento da obra, esses tex- pensar em autenticidade expressiva nem no
tos contêm uma pequena teoria poética, mito da singularidade nacionalista. Não
apresentada ora explícita ora implicitamen- obstante, isso foi causa de ser classificado
te (4). O poeta partilhava de um código for- como artificial e inoperante pela interpre-
mado pelos procedimentos consagrados na tação do período colonial maquinada pelos
tradição dos grandes poetas, de Homero e figurões do Instituto Histórico e Geográfi-
Virgílio até Marino, Gôngora e Camões. co Brasileiro, que, como se sabe, inventou
Independentemente das línguas, Botelho um Brasil-Colônia à imagem e semelhança D. Nuno
fiava-se no costume criado pela história da de Pedro II. Nesse particular, deve-se con- Álvares Pereira
composição verbal, subordinada à institui- siderar, ainda, que a crítica romântica leu o
de Melo
ção retórica e que ele aplica em seu livro. poemeto “À Ilha de Maré” como exceção
Essa história milenar, ele a traça em poucas nativista ou prenúncio de nacionalismo
linhas na dedicatória do volume: tendo nas- brasileiro, desconsiderando que o elogio
cido na Grécia, a poesia passou para Roma; da parte não passava de apologia do todo
depois, espalhou-se em língua vulgar pela do Império Português.
Itália, chegando à Espanha e a Portugal. Conforme a perspectiva que procura
Caberia a ele dar continuidade ao percurso, recriar as condições de produção e de re- 4 Em Delicioso Jardim da Retóri-
ca, Bartolomeu Alcáçar enten-
implantando-a e difundindo-a nas incultas cepção do texto artístico, é importante ter de a dedicatória como mani-
terras do Brasil, já então em processo de em mente que Música do Parnaso se apro- festação do gênero exornativo
de discurso, tomado como si-
civilização pela economia do açúcar. pria de certas constantes da atividade mu- nônimo de deliberativo ou
sical, disseminada em vários setores da epidítico, por meio do qual o
Tal visão sistêmica da poesia – que hoje orador louva ou vitupera a
se diria estrutural, fundada em procedimen- cultura portuguesa durante o reinado de D. matéria de sua invenção. As-
sim, pelos preceitos retóricos,
tos cristalizados, fórmulas reiteradas e tó- João IV (1640-56), rei dominado por espe- a dedicatória de um livro deve
picas consagradas – prende-se à tradição cial predileção pela música. Não foi à toa exaltar aquele que, com a au-
toridade de sua posição na
que o poeta definiu a poesia como modali- hierarquia do Estado, protege
a obra contra a malícia dos
dade de canto, o que se reflete não só no maus leitores. Botelho de Oli-
título da obra (Música Entoada por Ma- veira dedica seu livro a Dom
Nuno Álvares Pereira de Melo,
nuel Botelho de Oliveira), mas também na Duque de Cadaval. Membro
divisão do volume em quatro coros de ri- da primeira nobreza de Portu-
gal, Nuno Álvares nasceu em
mas, correspondendo cada qual a um dos 1638 e morreu em 1727 (com
pouca variação, esse é tam-
idiomas adotados. No soneto de abertura bém o tempo de vida de
ao cancioneiro de Anarda – um dos mais Botelho), tendo servido a qua-
tro monarcas portugueses: D.
coesos, sistemáticos e belos conjuntos de João IV, D. Afonso VI, D. Pedro
II e D. João V. Nesse sentido é
poemas de amor da literatura brasileira –, o que, como elemento integran-
poeta pondera que a amada, apesar de cru- te da disposição de Música de
Parnaso, essa dedicatória deve
el, acha-se em condições de conceder cul- ser entendida como degrau
tas flores a seu discurso (poético) e confe- para seu argumento, do qual
se destaca aqui a breve doutri-
rir doce harmonia à sua música (poética): na sobre poesia e sua história.

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 187


“Invoco agora Anarda lastimado cal quanto revelam o valor da agudeza nos
Do venturoso, esquivo sentimento: pressupostos elocutivos do poeta, que ex-
Que quem motiva as ânsias do tormento, trai os componentes básicos do livro da
É bem que explique as queixas do cuidado. constituição da própria musa, não obstante
ela seja invenção do mesmo livro. Ainda
Melhor Musa será no verso amado, aqui a ficcionalização da metáfora instaura
Dando para favor do sábio intento, o reflexo especular como fundamento do
Por Hipocrene, o lagrimoso alento; discurso engenhoso de Botelho, que não
E por louro, o cabelo venerado. entende Anarda senão como projeção da
idéia de poesia, de beleza e de perfeição.
Se a gentil fermosura em seus primores
Toda ornada de flores se avalia,
Se tem como harmonia seus candores;
LIRISMO AMOROSO
Bem pode dar agora Anarda impia
A meu rude discurso cultas flores; Os coros de rimas em português e em
A meu plectro feliz, doce harmonia”. espanhol (os demais ocupam pouco espaço
no livro) subdividem-se em poemas dedi-
Portanto, logo no primeiro poema do cados a Anarda, de pura idealização petrar-
livro, o poeta reitera o sentido do título da quista (exaltação da beleza absoluta); e em
obra, explicitando o propósito de fundir versos relacionados à vida social da Mo-
poesia e música, por meio do cultivo das narquia (exaltação dos modelos dignos de
flores eloqüentes, expressão com que os imitação). Ambas as modalidades são poe-
seiscentistas designavam os tropos e as fi- mas líricos, no sentido clássico de celebra-
guras do discurso poético, os quais tanto ção de noções abstratas em sua manifesta-
podiam ornar a linha da frase quanto adensar ção particular.
o significado do verso ou torná-lo melodio- No primeiro caso, celebram-se o amor,
so. Mas tais pormenores não aproximam a beleza, o recato, a prudência da amada e
tanto a estrutura do livro do discurso musi- a abnegação do amante diante de sua

188 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


inacessibilidade. A apreciação desses poe-
mas pressupõe a clara noção de que não se
trata de poesia amorosa no sentido român-
tico, em que o indivíduo simula ou supõe
viver uma paixão, construindo a emotivi-
dade como parte imprescindível do enun-
ciado poético. Trata-se, ao contrário, de
poemas celebrativos, em que a encenação
do elogio integra um todo conceitual, em
que cada parte apresenta aspecto ou dife-
rente prisma de um gênero retórico do dis-
curso, jamais esquecido pelo poeta e do qual
sempre deve se lembrar o leitor. Assim, a
crueldade e a indiferença de Anarda nada
mais são, conforme se insinuou anterior-
mente, do que particularização da perfei-
ção das idéias platônicas, completamente
inacessíveis ao sentido dos homens. Sua
proverbial indiferença não passa de alego-
ria pedagógica, no sentido de impor a con- “Colhe a neve a bela Anarda,
templação mística das formas essenciais e E nos peitos incendidos
condenar os impulsos sensoriais, dualidade Contra delitos de fogo
de que decorre o reiterado desencontro do Arma de neve castigos.
poeta com a musa, visto que este só sabe
abordá-la pela encenação encantatória da Na brancura, na tibieza
aparência. O eu lírico a ambiciona e a cor- Tem dous triunfos unidos;
teja em termos sensoriais. Por isso, ela se Vence a neve à mesma neve,
esquiva, como a luz do sol, que se pode Vence o frio ao mesmo frio.
sentir mas nunca tocar. Sendo pura inteli-
gibilidade, representa o eterno feminino, Congela-se e se derrete;
em sua multiplicidade de aspectos e cores: De sorte que em branco estilo
atormenta os sentidos, mas se protege com A um desdém se há congelado
a intangibilidade das formas essenciais. A dous sóis se há derretido”.
Imitando Gôngora, Botelho encena situa-
ções humildes, em que figura Anarda es- Na poesia aguda de Botelho não há as-
condida atrás de uma árvore, mirando-se suntos banais, porque a dialética do enge-
em espelho, passeando de barco, jogando nho transforma a matéria humilde em tema
cartas, etc. Todavia, o poeta trata tais situa- fértil, que tanto mais enriquece o poema
ções como sublimes, de onde a crítica ro- quanto mais possibilita o prazer com as
mântica, desconsiderando a tradição formas sensíveis do idioma, encarnadas so-
gongórica, extraiu o argumento da supos- bretudo nas sutilezas dos paralelos e dos
ta vacuidade temática de Música do contrapostos. Na primeira estrofe do exem-
Parnaso. Mas o contraposto entre a in- plo, Anarda, identificando-se com a neve,
venção do assunto e as formas de sua não só pela brancura mas também pela frie-
elocução em nada prejudica o retrato da za, combate o incêndio amoroso do desejo
musa, plenamente resguardada pelo idea- alheio com o gelo do desdém, operação
lismo petrarquista, que é, antes, realçado metafórica de que resulta o conceito enge-
pela oposição entre a abstração da beleza nhoso. Na segunda estrofe, o conceito de-
e a particularização sensível das situações, corre da agudeza de, ainda no processo
como se observa no início do romance metafórico, o termo próprio superar a qua-
“Anarda Colhendo Neve”: lidade do termo ideal, isto é, Anarda, sendo

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 189


comparada com a neve, supera a própria Se, no romance anterior, o poeta explo-
neve, não só em brancura mas também em ra o contraposto entre invenção e elocução,
frieza. Na última estrofe, a novidade sutil nesta décima, procede de maneira inversa,
consiste na descoberta de acidentes contra- simulando identidade entre a invenção e a
postos no mesmo sujeito, pois Anarda, por elocução da matéria, procedimento de que
ser fria e possuir olhos brilhantes, tanto pode resulta engenhosa construção poética, em
congelar quanto derreter a neve. que se reiteram vocábulos ou variações de
Via de regra, a celebração de Anarda vocábulos, com o propósito de promover a
dá-se por meio do constante paralelo de sua representação de um eco por meio da re-
beleza com o brilho do sol e com o colorido verberação das palavras. Esse eco, no poe-
das flores (rosa, lírio, açucena, cravo, jas- ma, reflete as negativas de Anarda, sem
mim), reiteração que se multiplica em con- deixar de refletir também as súplicas amo-
tínuas variações e reiterados espelha- rosas do poeta: ele chama Anarda; ela res-
mentos. Mas se a beleza imita o brilho do ponde Arda. Nos cinco primeiros versos, a
sol, do raio, da estrela, do diamante e do repetição anafórica da preposição suporta
cristal, o contraposto entre fogo e frio é a modalidade mais sutil de retomada, que
imagem preferida da perseverança do poe- consiste no uso de uma espécie de variante
ta e da indiferença da musa, cuja crueldade da anadiplose, que repete no início do ver-
alegórica se manifesta nos menores índi- so a última palavra do anterior. Aqui, para
ces dos encantos que a cercam, conforme promover a deformação do revérbero, não
se pode observar na décima “Eco de se repete o mesmo vocábulo no início do
Anarda”: verso seguinte, como seria em perfeita
anadiplose; mas se retoma, no meio, a ma-
triz cognata do vocábulo anterior, pois pri-
meiro surgem desvelados, constantes, cas-
tigados, amantes, chorados; depois, as for-
mas principais desvelos, constâncias, etc.,
como a sugerir que de Anarda emanam as
matrizes da condição do poeta, existindo nele
apenas como deformações perturbadoras.

ROSA METAFÍSICA
Mesmo considerando o prestígio de “À
Ilha de Maré”, cujo interesse é enorme,
talvez o mais representativo poema de
Botelho de Oliveira seja “À Rosa”, conjun-
to de doze oitavas em que se celebra a be-
leza de Anarda, por meio do contínuo para-
“Entre males desvelados, lelo com essa flor, que, depois de nascer
Entre desvelos constantes, por elevada conjuração de astros, conver-
Entre constâncias amantes, te-se metaforicamente em sol (3a estrofe),
Entre amores castigados, em deusa (4a estrofe), em ave (5a estrofe),
Entre castigos chorados, em amante (6a estrofe) e em lua (7a estrofe).
E choros que o peito guarda, A confluência reiterada dos tropos preten-
Chamo sempre a bela Anarda; de personificar a beleza absoluta de Anarda,
E logo a meu mal, fiel, para cujo perfil contribuem inúmeros ou-
Eco de Anarda cruel tros acessórios retóricos, resultando o poe-
Só responde ao peito que Arda”. ma em poderosa sugestão orquestral, em

190 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


que a variada harmonia das cores se mescla cujo significado depende de paciente ope-
com o inconstante encadeamento de meta- ração de associações entre elementos dis-
morfoses semânticas e reverberações so- tantes um do outro:
noras. Poucas vezes um poeta brasileiro de-
monstrou tão elevado domínio técnico so-
bre o verso. Não obstante, o poema excede
a absurda hipótese de exercício mecânico
de retórica, atingindo a condição de autên-
tica poesia engenhosa, em que, variante da
matriz gongórica, convergem a agudeza ra-
cional da construção e o equívoco insinu-
ante dos sentidos. Depois de edificar a ma-
ravilha da rosa, o poema, a partir da oitava
estrofe, introduz o lamento do carpe diem,
segundo o qual a brevidade do encanto deve
conduzir ao gozo do mesmo encanto, pois,
assim como o sol, a rosa e Anarda não bri-
lham mais que um instante, tópica desen-
volvida também no célebre soneto da tradi-
ção gregoriana “Nasce o sol e não dura mais
que um dia”. Como tudo em Música do
Parnaso, as oitavas de “À Rosa” partilham “Inundações floridas de Amaltéia
do princípio de que o poema deve ocultar Prodigamente Clóri derramava
sua agudeza, no sentido de torná-la objeto E, líquida em rocio, a sombra feia;
de procura atenta e igualmente aguda, tal No fraudulento Bruto, o Sol brilhava:
como se observa em sua primeira estrofe, Quando entre tanta flor que Abril semeia,
Fidalgamente a Rosa se adornava,
Ostentando por garbo repetido
De ouro o toucado; de âmbar, o vestido”.

A pontuação que o ensaio propõe para


a oitava resulta, em si mesma, de hipótese
interpretativa, tomando-a como cronografia
ou perífrase cronológica, por entender que
alude a determinado momento na evolução
do tempo, o que necessariamente envolve
referência à posição dos astros. A agudeza,
no caso, consiste em aludir à primavera
como inundações de flores da ninfa
Amaltéia, derramadas sobre a terra por meio
de sua auxiliar Clóri, que também derrama
a noite (sombra feia) convertida em orva-
lho (rocio). É aguda também a relação de
líquida com sombra feia, que se deve to-
mar como predicativo de objeto direto, e
não como adjunto adnominal. A perífrase
fraudulento Bruto está em lugar de touro,
chamado daquela maneira por ter servido
de instrumento ardiloso a Júpiter no rapto
de Europa; mais precisamente, a perífrase
designa constelação de touro, em cujo

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 191


âmbito deve estar o sol para que ocorra a ção vitoriosa são Os Lusíadas, em cuja
primavera. Assim, a oitava pode ser resu- fatura, acredita-se, Camões superou o mo-
mida pela idéia de que era primavera, quan- delo de A Eneida. Já não se pode dizer o
do a rosa nascia e ostentava seus encantos mesmo de Botelho de Oliveira com relação
coloridos, matizada pelas irradiações do sol, à estrofe em questão, mas não parecerá
que lhe acrescentavam tons de ouro e de exagero admitir que, longe de imitação
mel ao vermelho das pétalas e ao verde das escrava, praticou emulação singular e efi-
folhas. Há inúmeras cronografias dessas em caz. Além disso, deve-se levar em conta
Os Lusíadas, de onde Góngora extraiu o que a estrofe mistura o registro camoniano
soberbo início das Soledades. Todavia, é com o de Góngora, o que a caracteriza como
possível precisar um pouco mais a fonte de decorrência de apropriação do estilo asiá-
Botelho, que deve ter sido a estrofe 72 do tico (artificioso, perifrástico, alusivo), por
Canto II do poema camoniano, cujos qua- cujas regras deve ser lida. Essa questão é
tro primeiros versos são os seguintes: essencial para a leitura de Manuel Botelho
de Oliveira, pois, em sua época, entendia-
“Era no tempo alegre, quando entrava se por bom poeta aquele que fosse capaz de
No roubador de Europa a Luz Febéia, dar vida à imitação da obra tomada como
Quando um e outro corno lhe aquentava, modelo, observando tanto a generalidade
E Flora derramava o de Amaltéia”. quanto a particularidade dela. A idéia de
generalidade incluía os aspectos associa-
Como é sabido, a poética antiga consi- dos ao gênero e à tradição normativa da
dera duas espécies de imitação: a livre e a obra; e a de particularidade, os componen-
servil. Tomada em sentido aristotélico, a tes pessoais do estilo e das idéias aplicados
primeira prescinde de modelo, pois parte pelo autor àquela obra em particular. Logo,
da própria sugestão dos afetos, ainda que não há por que condenar um autor que pro-
para isso o poeta deva obedecer ao artifício duz por tal critério, que era, enfim, o único
dos gêneros e das normas. Embora apre- corrente na Europa nesse tempo. Assim, ao
sentado pelos preceptistas como modo su- se apropriar de padrões e tópicas de um dos
perior de invenção, esse processo não pas- maiores períodos da poesia européia,
sa de hipótese que jamais se realiza, pois Botelho de Oliveira acabou por produzir
consta que até Homero se fundou em dis- um livro de grande interesse no processo
cursos míticos, históricos e poéticos pree- de implantação da língua poética no Brasil,
xistentes. Assim, na prática, a chamada em que as oitavas de “À Rosa” se destacam
imitação servil, cuja designação não pos- por sua singular qualidade.
sui conotação pejorativa, explica-se unica- Evidentemente, a leitura desse poema
mente porque o autor que a realiza se deixa deverá contar com o exame da presença da
orientar por um discurso específico e rosa como metáfora de beleza e efemeridade
deliberadamente escolhido, podendo o re- na tópica do carpe diem, combinação que
sultado ficar aquém, à altura ou acima do surge e ressurge em inúmeros poetas
modelo. Servis propriamente ditos seriam seiscentistas da Europa em geral e de Por-
apenas os textos que, demasiado presos ao tugal em particular. Apenas para esboçar
original imitado, não adquirem feição pró- uma mínima relação dessa série, lembre-se
pria, de onde Francisco Leitão Ferreira do célebre fragmento dedicado ao assunto
conclui que há autores que possuem uma no poema Adone de Giambattista Marino,
corrente no pé, e não o pé corrente. Os aliás muito bem traduzido entre nós por
demais casos de imitação servil classifi- Augusto de Campos. Na Fênix Renascida,
cam-se todos como emulação, desejável e há espantosa quantidade de poemas que
inevitável, no sentido de o autor necessa- incorporam essa metáfora, sendo que D.
riamente ter de achar uma obra como estí- Simão Cardoso empenhou-se na composi-
mulo para a invenção pessoal. ção de um cancioneiro completo, com
O mais consagrado exemplo de emula- dezesseis sonetos e um madrigal, intitula-

192 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


do Roseira Poética, cuja abertura se com- imitará o mais singular, sutil e engenhoso
põe, tal como o poema de Botelho de Oli- deles, reduzindo a tais regras a sua imita-
veira, de doze oitavas camonianas, também ção, que não pareça que trasladou ou tradu-
em estilo gongórico (tomo II, pp. 242-62, ziu, senão que, competindo com o imitado,
1717). Jerônimo Bahia seguiu o mesmo o igualou ou o excedeu”.
padrão e a mesma extensão em suas oitavas
“A Uma Rosa” (tomo IV, pp. 34-8, 1721). Com esse critério por guia, vale a pena
Merece especial destaque a glosa anônima esboçar um exercício de comparação para
ao soneto de Góngora “Vana Rosa” (“Ayer apreciar o espantoso domínio dos poetas
nasciste, y moriràs mañana”), cujas oita- sobre os procedimentos da língua poética
vas terminam, todas, pela repetição de um de então, tomando Góngora e Marino como
dos versos do soneto (tomo III, pp. 268-73, autoridades. Por enquanto, o presente en-
1718). Há ainda o conhecidíssimo e sem- saio propõe apenas o exame da décima
pre magnífico soneto atribuído a Gregório estrofe de Botelho de Oliveira, em compa-
de Matos “É a vaidade, Fábio, nesta vida ração com a correspondente de Jerônimo
Rosa”, com a mesma elocução aguda e Bahia:
engenhosa que se percebe nas demais com-
posições da série. O próprio Francisco
Leitão Ferreira não deixou de estampar,
com propósito didático, uma dissertação
sobre os encantos da rosa no primeiro vo-
lume da Nova Arte de Conceitos (1718, pp.
298-310), o que, por fim, ratifica a circula-
ção da tópica no Seiscentismo europeu.
Tal recorrência em nada diminui a ne-
cessidade de atenção ao encanto das oita-
vas de Botelho de Oliveira, da mesma for-
ma que a semelhança entre as diversas ca-
tedrais góticas da assim chamada Baixa
Idade Média não dispensa a apreciação de
cada uma em particular; assim como, tam-
bém, a vertiginosa reincidência, digamos,
do arquétipo da madona com o menino na “Se abre a Rosa pomposo nascimento,
história da arte não torna a pintura sacra Se bebe a Rosa nacarada morte,
européia menos digna de interesse entre os Se foi Sol no purpúreo luzimento,
séculos XIII e XVI. De qualquer modo, a Também se iguala Sol na breve sorte:
similitude entre tais poemas deve, hoje, ser Se o Sol nasce e padece o fim violento,
entendida pelos termos da época, quando Nasce a Rosa e padece o golpe forte;
Francisco Leitão Ferreira chegou a compa- De sorte que, por morta e por luzente,
rar o poeta à abelha, que, extraindo o néctar No Ocaso ocaso tem; no Oriente, oriente”.
de várias flores, forma o próprio mel (Nova
Arte de Conceitos, vol. I, 1718, pp. 179 e *
183-4):
“Púrpura mostra, ostenta brilhadora
“Assim como a abelha não tece o doce favo Luzido centro em círculo rosado,
do suco de quaisquer flores, mas procura o Do radiante Sol, da roxa Aurora
pasto das mais fragrantes; da mesma sorte, Retrato lindo, singular traslado:
o bom imitador não se deve servir, para sua Ele no seu brilhante centro mora,
imitação, de quaisquer figuras, frases e con- Ela mora em seu círculo encarnado,
ceitos, mas, lendo e observando os escritos Trazendo assi, com duplicado adorno,
de melhor nota no gênero de obra que fizer, Um Sol em meio e uma Aurora em torno”.

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 193


Cada uma das estrofes ocupa a mesma Jerônimo Bahia e Botelho de Oliveira
posição na argumentação do tema da estruturaram seus poemas em doze oitavas
vanitas. No entanto, elas apresentam varie- camonianas, sendo certo que o Anônimo
dade. É o que ensina Horácio na Arte Poé- da glosa de Góngora, determinado pelo
tica, quando recomenda que, em lugar de propósito de multiplicar por oito os versos
inventar novos caracteres, o poeta deve li- de um soneto, teve de adicionar duas estro-
mitar-se aos consagrados pelo costume, fes àquele número. Qual seria o motivo da
porque, além de evitar a dificuldade, terá uniformidade de tal procedimento? Uma
assim garantida a compreensão da audiên- resposta possível acha-se em Serão Políti-
cia, que, diante da identidade, poderá con- co, Abuso Emendado (1723), de Felix da
fortavelmente admirar a novidade de sua Castanheira Turacem, mais conhecido por
variação. Trata-se, portanto, de preservar a Frei Lucas de Santa Catarina, um dos pri-
estrutura por meio da liberdade de seus meiros autores portugueses a recusar, por
elementos, em procedimento tão matemá- modo engenhoso, a poesia gongórica, que,
tico quanto musical. além de ridícula, ele considera culta. Lê-se
A exemplo de Marino, ambos os poetas no livro a afirmação de que os antigos pin-
comparam a rosa com o sol e com a aurora, tavam o sol coroado por doze raios, sendo
tal como o fazem também Simão Cardoso que nem todos fecundavam a terra, senão
e o Anônimo da glosa de Góngora, referi- aqueles correspondentes aos meses da pri-
dos acima. Todavia, enquanto Jerônimo mavera e do outono. Por aí se vê que o
Bahia limita-se a relacionar o brilho e a cor número doze possui função aguda nesses
dos três elementos, Botelho de Oliveira lhes poemas, pois o carpe diem, além de elogio
adiciona a idéia de efemeridade, em sucin- à beleza ou convite amoroso, é sempre alerta
ta superposição de aspectos: tal como o sol, sobre a passagem do tempo, conforme se
que surge com luz forte e se põe com luz vê na penúltima oitava do poema de Botelho
difusa, a rosa nasce em pompa e morre em de Oliveira, que corresponde à ascensão do
nácar. Por esses termos, é possível traduzir inverno da beleza:
a antanáclase final da seguinte maneira: tal
como o sol ao surgir (Oriente), a rosa ga-
nha brilho ao nascer (oriente); tal como o
sol ao se pôr (Ocidente), a rosa perde o
brilho ao morrer (ocidente). Além desse
admirável jogo de cor e sentido, o verso
mantém estreita correlação com o antece-
dente: a rosa tem oriente porque nasce; a
rosa tem ocaso porque morre. Mas a corre-
lação não pára aí; antes, retroage em cadeia
até o início: Oriente está para luzente, que
está para luzimento, que está para sol nas-
ce, que está para pomposo nascimento;
assim como Ocaso está para morta, que
está para golpe forte, que está para fim vio-
lento, que está para breve sorte, que está
para nacarada morte. Como se vê, a estro- “Se, Anarda, vibras na beleza ingrata
fe é circular, já que seu sentido só se revela Raios de esquiva, de fermosa raios,
por meio da releitura, que impõe nova lei- Adverte, adverte, que um rigor maltrata
tura, sugerindo uma vez mais o breve e Adulação de Abris, primor de Maios:
reiterado circuito do sol e da rosa, por meio Ouve na flor, que desenganos trata,
do qual o poeta demonstra para Anarda a As mudas vozes dos gentis desmaios;
força do tempo sobre os homens. Atente enfim teu néscio desvario
Como se viu acima, Simão Cardoso, Que a fermosura é flor; o tempo, Estio”.

194 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


Se o poema começou em Abril, o que se finais glosam a tópica estóica de que o ho-
ratifica pela presença metonímica desse mem é cadáver adiado, que, eco da poesia
vocábulo no quinto verso de sua primeira aguda européia, também surge e ressurge
estrofe (transcrita anteriormente), nesta dé- na Fênix Renascida e no Postilhão de Apolo,
cima primeira só poderíamos estar em ple- vindo se aclimatar genialmente no poema
no domínio dos meses frios, visto que a “A D. Sebastião, Rei de Portugal”, em
última menciona dezembro em seu verso Mensagem, de Fernando Pessoa. O poema
final, imediatamente antes de repetir Abril, figura sua própria poética, como se vê no
com que se encerra o texto e onde o sol verso final, que revela o jogo alegórico da
recomeça o ciclo do ano, em sua eterna significação cromática, associando coral a
reinvenção do tempo. Pelo calendário das esplendor; e ouro, a declínio. Além disso,
flores, o mundo começa em abril; por isso, aí, a justaposição de contrapostos, que,
os efeitos de dezembro, janeiro, fevereiro e apenas insinuada no início, intensifica-se
março insinuam-se no poema a partir da com o andamento da estrofe e patenteia-se
oitava estrofe, quando tem início o alerta no final como essência do paradoxo da vida
sobre a precariedade da beleza, que se es- – a idéia de o fim está no começo.
vai com a chegada do vazio gelado dos Conforme a teologia seiscentista, tudo
meses em que o sol inexiste como elemen- é efeito e signo de Deus; o mundo é um
to fecundante: enorme conjunto de metáforas da luz divi-
na, que ordena tudo como espelho de sua
perfeição. Alegorias do absoluto, as coisas
têm sentido em si mesmas como coisas,
mas também são indicadoras da Verdade
que as causa e que elas representam. O tex-
to seiscentista imita a hierarquia desse
enigmático mundo de sinais e, ao repro-
duzir em sua trama a natureza alegórica
das coisas, constitui-se como alegoria de
alegoria. Por essa razão, a rosa de Botelho,
nascendo do sol, torna-se pássaro, lua,
estrela, de novo sol, esmeralda, rubi –
porque tudo se relaciona na lógica unitá-
ria da grande metáfora de Deus. Por isso,
Anarda deve aprender a interpretar as coi-
sas como manifestação da ordem cósmi-
“Mas ai, quão brevemente se assegura ca: é o que dizem os versos quinto e sexto,
A flor purpúrea no primor luzido! ao insistirem em que ela ouça as mudas
Que não logre isenções a fermosura! vozes da flor, que fala (trata) de desenga-
Que a morte de ua flor rompa o vestido! nos. Da mesma maneira, a formosura e o
Oh da Rosa gentil mortal ventura! tempo figuram também a efemeridade e a
Que logo morta está, quando há nascido, destruição: flor e estio, respectivamente.
Sendo o toucado do infeliz tesouro Logo, a metáfora aguda da poesia seis-
Em berço de coral sepulcro de ouro”. centista indicia também o espelhamento
de um mundo cujo sentido só se realiza
Se os dois primeiros versos da estrofe plenamente em sua Causa.
lamentam a brevidade da beleza, os dois A estrofe final, que termina por Dezem-
seguintes impõem a aceitação da mobili- bro e recomeça por Abril, tenta persuadir
dade das coisas: que a formosura, portanto, Anarda sobre a harmonia das coisas, que
não aspire a privilégios em Khrónos e que pressupõe a corrupção da carne em favor
o desfalecimento da rosa desfaça o engano da alma que aspira ao Todo, movido pelo
da aparência (vestido)! Os quatro versos eterno jogo de auto-espelhamento:

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 195


impõe retorno paradigmático às palavras-
chaves da estrofe, localizadas, agora, na
extremidade das rimas: rosto está para gen-
tileza, que está para beleza, que está para
riqueza; assim como desgosto está para
desengano, que está para dano, que está
para engano. Observe-se, por fim, que, em
comparação com os poemas da Fênix aqui
considerados, o de Botelho é o único em
que a luta do tempo contra a vaidade termi-
na em convite amoroso, ainda que de ma-
neira discreta, sobretudo quando compara-
do com os poemas congêneres de Góngora,
Quevedo e da tradição de Gregório de
“Não queiras, não, perder, com cego engano, Matos, em que o convite é ostensivo. A
Dessas flores que logras a riqueza; sutileza do convite em Botelho decorre do
Vê pois que cada idade, por teu dano, pressuposto de que o gozo sugerido, assim
É sucessivo Inverno da beleza; como a vaidade, não deve aspirar à supera-
Aprende cedo, Anarda, o desengano ção dos limites impostos ao homem pelo
Desta ufana, já morta gentileza; projeto divino.
Não queiras, não, perder em teu desgosto
Do Dezembro da idade o Abril do rosto”.

O sentido geral de atenção para o tempo LIRISMO E SOCIEDADE


é bastante claro na estrofe. Mas há nuanças
sutis no desenvolvimento da idéia de que o Observou-se acima que, além de versos
indivíduo é criação do tempo, razão pela de exaltação da beleza, há em Música do
qual Anarda não deve se iludir com a falsa Parnaso poemas voltados para a celebra-
idéia de incomunicabilidade ou de ção dos modelos dignos de imitação nas
autocontemplação, porque isso é exclusi- relações históricas da Monarquia. Esses são
vidade de Deus, que faz girar o sol e é a os poemas encomiásticos, que dominam o
única criatura igual a si mesma, porque segundo coro do livro, cuja abertura se dá
inclui tudo e não admite diferenças. Enfim, pelo soneto “À Morte Felicíssima de um
o engano (artifício que conduz ao erro) de Javali pelo Tiro que nele Fez ua Infanta de
Anarda consiste na vaidade de considerar a Portugal”. Com nítida função de proêmio
beleza como condição suficiente para se aos textos celebrativos que vêm a seguir,
colocar acima do tempo e dos homens, con- esse soneto apresenta e desenvolve a tópi-
tra o que se coloca o dano (estrago) do ca da construção da eternidade por meio
mesmo tempo, produzindo sucessivos das letras, que é, como se sabe, o núcleo
declínios (invernos) na formosura. Por isso, semântico dessa espécie de poesia. De
o conhecimento do desengano (desilusão) maneira quase absoluta, a crítica tradicional
não é apenas a meta da vida, mas também não deu por ela, contentado-se em acusar o
da doutrina do poema, que ensina que é poeta de indiferença social ou de bajulação
pela vivência desse estado que se desfazem aos poderosos. Pela perspectiva do presente
os enganos da vaidade e da presunção. Os ensaio, os poemas encomiásticos serão vis-
dois versos finais repetem o núcleo temático tos como manifestação do desejo de inte-
dos dois primeiros, especificando um pou- gração social, pois celebram a virtude civil,
co mais a noção de que não se deve trocar particularizada no rei, em homens de gênio
o prazer da juventude (Abril do rosto) pelo e em agentes da nobreza, das letras, do clero,
desprazer da velhice (desgosto do Dezem- e das armas. Ao elogiar o rei e aqueles que
bro da idade). Mais uma vez, a releitura contribuem diretamente para a boa

196 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


governação dos povos, o poeta procura in- pois, além da concentração do tiro ao alvo
cluir-se como membro hipotético do conse- em movimento, implicava exercício de
lho de Sua Majestade, cuja razão requer a equitação, que pressupunha o domínio do
prudência do apoio para que a cabeça coor- espírito sobre o corpo. A singularidade do
dene com eqüidade os membros do corpo soneto decorre da inversão metonímica de
místico do Estado (5): celebrar o javali como forma de exaltar a

“Não sei se diga (ó bruto) que viveste jovem que o matou, D. Isabel Luísa Josefa,
Ou se alcançaste morte venturosa; filha única de D. Pedro II com a rainha Maria
Pois morrendo da destra valerosa, Francisca Isabel de Sabóia. Nesse sentido,
Melhor vida na morte mereceste. trata-se de poema irônico, pois afirma uma
coisa por meio de outra. Há também um
Esse tiro fatal de que morreste contraposto que contribui para o efeito
Em ti fez ua ação tão generosa, equívoco do texto, o qual consiste no con-
Que entre o fogo da pólvora ditosa fronto da bela com a fera ou, por outra, no
Da nobre glória o fogo recebeste. paralelo entre as linhas ideais do perfil de
uma princesa e o volume informe do corpo
Deves agradecer essa ferida, de um javali (ó bruto). O efeito artístico do
Quando esse tiro o coração te inflama, poema depende, ainda, do jogo ambivalen-
Pois à maior grandeza te convida: te entre o sentido próprio da expressão fogo
da pólvora e de sua acepção metafórica fogo
De sorte que te abriu do golpe a chama da glória, pois se o primeiro provoca a
Uma porta perpétua para a vida, morte, o segundo conduz à vida eterna da
Ua boca sonora para a fama”. fama, cuja boca divulgaria para sempre o
privilégio de morrer pela mão de uma
Trata-se de um poema venatório, espé- mulher que se destinava ao trono de Portu-
cie epidítica com que se celebravam as gal (caso a morte prematura não a impedis-
5 Trato do assunto com mais de-
caçadas da nobreza no Antigo Regime. se de se tornar rainha). Todavia, por mais talhe em Mecenato Pombalino
Dentre as folganças preferidas, essa ativi- razões que se aduzam à análise do poema, e Poesia Neoclássica (São
Paulo, Edusp/Fapesp, 1999,
dade era encarada com muita distinção, ele será sempre celebração lírica da caça, pp. 406-11).

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 197


entendendo, com Horácio, o gênero lírico A questão central do poema é a con-
como forma de louvor de manifestações da quista da imortalidade da fama pelo mérito
vida prática, como são os amores, os ban- da vida, que, no caso de Vieira, notabili-
quetes, os atletas, os cavalos vencedores zou-se pela aplicação do engenho à inter-
nas corridas, etc. (6). pretação da Sagrada Escritura, por meio
Nos poemas encomiásticos de Música da oratória escrita (pena). Respeitado em
do Parnaso, há mais três recorrências da vida, o orador tem direito também à eterni-
tópica da morte como início da vida, dentre dade, porque a alma dele renasce a cada
as quais se destaca a glorificação do Pe. leitura de seus textos. A agudeza básica do
Antônio Vieira, cujo falecimento o poeta, soneto consiste no conceito paradoxal que
a exemplo de outros da Fênix Renascida, dispõe que é preciso morrer para viver,
celebrou em belíssimo soneto, que em nada assim como, para esse tipo de ressurreição,
fica devendo ao texto de Fernando Pessoa quem vive não deve viver para si, mas por
sobre o mesmo escritor, resguardados os uma causa, tal como se deu com Santo
respectivos horizontes de cada poeta: Agostinho, que fornece o elemento parale-
lo ao poema, que o estende depois para os
continentes da África e da Europa, como a
sugerir a universalidade do Cristianismo e
o poder de ambos os propagadores. Pela
lógica do argumento, vive muito quem vive
pouco, pois, entregando-se (embebido) à
palavra de Deus, Vieira renunciou à vida
pessoal para dedicar-se ao trabalho de ora-
dor, de onde decorre o prodígio da eterni-
dade. Dentre os vocábulos importantes do
poema, deve-se dar atenção àqueles que
mais a merecem, tais como assombro, por-
tento e seus respectivos qualificadores (ve-
nerado e esclarecido), que indicam a con-
cepção segundo a qual se deu a invenção do
poema, que é a do milagre, do assombro, da
maravilha, efeitos previstos tanto pela poé-
tica dos Sermões de Vieira quanto pela de
Música do Parnaso.
“Fostes, Vieira, engenho tão subido, A julgar por esses sonetos, pode-se afir-
Tão singular e tão avantejado, mar que a integração social observada na
Que nunca sereis mais de outro imitado, poesia de Botelho de Oliveira dá-se pela
6 Embora em outra perspectiva,
Bem que sejais de todos aplaudido. fórmula horaciana, segundo a qual a arte
Eugênio Gomes fornece subsí-
dios úteis para a leitura do so- deve se empenhar na busca da utilidade, do
neto de Botelho de Oliveira,
no pequeno ensaio “A Infanta Nas sacras Escrituras embebido, prazer e dos afetos persuasivos, sendo cer-
e o Javali”, no qual se aprende Qual Agostinho, fostes celebrado;
que, no século XVII, foi
to que o poeta privilegiou a noção de pra-
Góngora quem colocou em Ele de África assombro venerado, zer, por meio do encantamento dos senti-
moda a celebração do animal
que tem a fortuna de morrer Vós de Europa portento esclarecido. dos e da diversão do intelecto. Se se parti-
por mão de soberano. Depois, cularizar um pouco mais essa idéia, chega-
a tópica passou para Portugal,
tendo inspirado poemas a Morrestes; porém não; que o Mundo atroa se ao gênero do discurso conhecido por
Jerônimo Bahia, ao Pe. Antô-
nio Vieira e a seu irmão
Vossa pena, que aplausos multiplica, epidítico ou demonstrativo, que, conforme
Bernardo Vieira Ravasco, que Com que de eterna vida vos coroa; os ensinamentos de Aristóteles, manifesta-
a aplicaram ao caso particu-
lar da mesma infanta de se no louvor ou na censura, correspondendo
Botelho de Oliveira.
E quando imortalmente se publica, respectivamente às modalidades do
7 Cf. Ivan Teixeira, Mecenato Em cada rasgo seu a fama voa, encômio e da sátira (7). Em nome do utili-
Pombalino e Poesia Neoclássi-
ca, op. cit., pp. 271 e 450-7. Em cada escrito seu ua alma fica”. tarismo das artes, a sátira condena, em esti-

198 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


Reis sob os quais viveu
Manuel Botelho de
Oliveira. Extraídos de
Historia del Reyno de
Portugal, Manuel de Faria
y Sousa, 3a edição,
Bruxelas, 1730

D. Filipe III (1621-40) D. João IV (1640-56)

D. Afonso VI (1656-83) D. Pedro II (1683-1706) D. João V (1706-50)

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 199


lo baixo, os vícios praticados contra a so- dos, para ao menos ser o primeiro filho do
ciedade, idealmente concebida. Outra face Brasil, que faça pública a suavidade do
da mesma moeda, o encômio elogia, em metro, já que o não sou em merecer outros
estilo sublime, as virtudes sociais que mo- maiores créditos na Poesia”.
delam a pessoa. Em ambos os casos, o
leitor é juiz de uma elocução que se apre- Assim, há, no mínimo, dois modos
senta como espetáculo edificante no pre- complementares de ler Música do
sente: no primeiro, o texto deve conven- Parnaso: primeiro, como manifestação
cer pelo riso; no segundo, pela elevação lúdica do engenho; segundo, como índice
do exemplo encenado. Da aplicação sin- de incorporação da América ao jogo civi-
gular do engenho decorrerá o grau de agu- lizado praticado na Europa. Concebido
deza do texto, que determinará o nível de apenas como categorias críticas de leitu-
sua eficácia. Embora a tradição tenha con- ra, tais aspectos não se dissociam na prá-
sagrado Gregório de Matos pela sátira, não tica dos poemas, como se pode perceber
lhe nega também poemas encomiásticos, pela maravilhosa canção dedicada à mor-
ao passo que Botelho de Oliveira preferiu te da rainha Maria Sofia Isabel, segunda
as situações elevadas do louvor, embora esposa de D. Pedro II e mãe de D. João V,
tenha deixado algumas composições em ocorrida em 1699. O poema consta de vin-
estilo jocoso, dentre as quais se contam te e seis sextilhas e uma coda, nas quais se
seis romances do primeiro coro de rimas e simulam lamentos de todos os elementos
os poemas dramáticos situados na parte do cosmos, sugerindo que a morte da rai-
final de Música do Parnaso (8). Aristóteles nha sensibilizou desde o máximo até o
pensa que o louvor deve se restringir ao mínimo. Trata-se de poema prismático
que é honesto; Quintiliano julga que se que, captando os suspiros das partes, com-
aplica também ao útil. Botelho de Olivei- põe um coro universal de gemidos e cho-
ra funde a honestidade com a utilidade, ros muito convincente como composição
praticando o encômio de maneira singu- destinada a encenar a perda de um emble-
larmente lúdica. Na dedicatória de seu li- ma que se supunha essencial à unidade
vro, manifesta a convicção de que dessa mística do corpo do Estado: primeiro,
atividade resulta o aprimoramento inte- lamuriam-se as nações cultas do mundo;
lectual da pessoa, que é luzimento da so- depois, os astros, as plantas e, por fim, os
ciedade, pois, sendo exercício do entendi- integrantes do Reino, começando pelo rei
mento, a poesia é também agente de civi- até as pessoas mais humildes do povo. Tal
lização: como “À Ilha de Maré”, o poema segue a
estrutura da silva, não só por mesclar ver-
“Nesta América, inculta habitação antiga- sos decassílabos com hexassílabos, mas
mente de Bárbaros índios, mal se podia es- também por se basear na enumeração en-
perar que as Musas se fizessem brasileiras; genhosa de aspectos diversos de um mes-
contudo quiseram também passar-se a este mo campo semântico. Cada estrofe possui
empório, aonde, como a doçura do açúcar autonomia de significado e é animada pela
é tão simpática com a suavidade do seu singularidade de conter uma ou duas agu-
canto, acharam muitos engenhos, que, imi- dezas, constituídas por trocadilho, metá-
tando aos poetas de Itália e Espanha, se fora imprevista, brevidade eloqüente, re-
aplicassem a tão discreto entretenimento, petição organizada, clareza precisa ou con-
para que se não queixasse esta última parte ceito engenhoso, sendo certo que o artifí-
do mundo que, assim como Apolo lhe co- cio básico do todo decorre da singeleza
munica os raios para os dias, lhe negasse as das partes, que se revestem do cuidado de
luzes para os entendimentos. Ao meu, pos- explorar moderadamente as argúcias de
8 Os poemas dramáticos são Hay to que inferior aos de que é tão fértil este linguagem, exceto a primeira estrofe, em
Amigo para Amigo e Amor, país, ditaram as Musas as presentes rimas, que se concentram diversos ornatos da
Engaños e Celos, escritos em
espanhol. que me resolvi expor à publicidade de to- elocução seiscentista:

200 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


D. Maria Sofia
Isabel de
Neuburgo
“Que pavor, que crueza? da na metáfora hiperbólica e na hipérbole (1666-99),
Que pena, que desdita a Lísia enluta! metafórica, que se harmonizam na elocução
Já do pranto a tristeza,
segunda
aguda e engenhosa. Além disso, não pode
Como mar lagrimoso, ao mar tributa; ser posta em questão a eficácia da reiteração mulher de D.
Vendo Netuno, para novo espanto, do vocábulo mar, distribuído estrategica- Pedro II.
Que tem dous mares, quando corre o pranto”. mente ao longo dos versos e com projeções
especulares em pranto e Netuno. A brevida- Extraído de
Como tudo em Música do Parnaso, a de da estrofe resulta da agilidade com que se Rainhas de
estrofe funda-se no artifício e no cálculo, passa da noção do choro de Portugal para o
Portugal,
que são correlatos da perspicácia e da des- da precipitação de dois mares em direção ao
treza, das quais procede a novidade da com- mar. A clareza decorre da imediata figura- Fonseca
posição, que se obtém não por inspiração, ção dos olhos de Lísia como dois fecundos Benevides,
mas por exercício. O efeito almejado é a mananciais. Acrescente-se a isso o equívo-
sublimidade da dor coletiva, sintetizada no co sonoro do sintagma Lísia enluta, que tan-
Lisboa, 1874
pranto da pátria, que se confunde com o to pode soar como Lísia de luto quanto Lísia
mar. Ainda que a metáfora do pranto como em combate. Enfim, domina essa estrofe a
rio seja corrente na poesia seiscentista, nem força das construções condensadas, que mais
por isso deixa de promover o efeito de agu- tarde reapareceriam nas Odes Pindáricas,
deza, porque, como se viu, a variedade pres- de Antônio Dinis da Cruz e Silva, e nos
supõe a uniformidade. O motivo principal poemas celebrativos de Mensagem, de Fer-
da surpresa artística na estrofe consiste em nando Pessoa, nos quais também se observa
que o pranto, antes de ser rio tributário do a presença do panegírico como modalidade
mar, é já um mar de lágrimas, que conduz de exaltação das virtudes cívicas da Monar-
suas águas ao mesmo mar, de onde, em quia Lusitana.
espanto, Netuno admira o tumulto de dois Examine-se outra estrofe da mesma
mares que surgem dos olhos de Portugal canção, escolhida desta vez pelo critério da
(Lísia) e se precipitam em sua direção. Essa representatividade da economia dos artifí-
sobreposição de imagens ratifica a idéia de cios de elocução, marcados pela singeleza
que o núcleo da poética de Botelho se fun- e moderação:

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 201


“A América sentida “Também padece a Lua
Faz tanta estimação da dor, que ordena, Desta mágoa infeliz o desalento;
Que desejara a vida E, quando mais flutua
Eterna, para ser eterna a pena; No inconstante noturno luzimento,
E quando no tormento mais se alarga, Minguante e cheia está, se a dor se estréia:
O doce açúcar troca em pena amarga”. Minguante em glórias, de desditas cheia”.

A estrofe apóia-se, apenas, em duas Assim como os demais astros evocados


agudezas de médio alcance. A primeira con- na canção, a lua desfalece, perdendo o bri-
siste na simulação do desejo de os brasilei- lho por causa da dor. Ainda aqui, persiste a
ros (América é sinédoque personificada de animação alegórica, como de resto em todo
americanos, que equivale a súditos do Bra- o poema. No singular momento de tristeza,
sil) viverem eternamente, para jamais ces- a lua ostenta dupla condição astronômica,
sar a homenagem à rainha, por meio da com diferentes correlatos afetivos, porque
expressão contínua do sofrimento. Em ri- ela é, enfim, astro humanizado: como min-
gor, o texto afirma que a vida é curta para guante, carece de orgulho, de vaidade ou
tamanha pena (padecimento, expiação, de beleza (glórias); como cheia, excede em
perda), conceito engenhoso de origem infortúnio (desditas). A natureza equívoca
estilonovista que se projeta sobre o parado- dessa agudeza associa-se particularmente
xo de que a dor é querida, apesar de aos vocábulos flutua e inconstante, que
subjugadora (que ordena), visto associar- também oscilam em sua significação. Mui-
se com o objeto do encômio. A segunda to adequada ao afeto da tristeza, a elocução
agudeza manifesta-se na conversão da pro- da estrofe, mais que moderada, é discreta,
priedade básica do açúcar em condição no sentido de acusar sabedoria no ajuste dos
afetiva do luto, aludindo ironicamente à vocábulos e dos ornatos ao decoro da queixa
economia baiana e à possível constituição própria da elegia, espécie poética que, con-
poética de um caráter pátrio local. Como a forme os antigos, pode ser traduzida pela
estrofe anterior, esta raciocina por meio da expressão ai de mim! Isso explica a adoção
alegoria, movimentando nuanças oblíquas do estilo médio na canção, que não se eleva
de significação hipotética, sempre fundada nem se abaixa, porque pretende encenar a
na expressão peregrina, que, viu-se, os fala de um cortesão abatido, mas que, como
seiscentistas identificavam com a elocução discreto, será sempre detentor de sabedoria
rara e surpreendente. retórica ou eficiência elocutiva. Tendo em
Tão moderada quanto esta é a nona es- vista o poema como um todo, essa é a con-
trofe da canção, tomada aqui como modelo clusão mais importante que se tira: como
de unidade em que opera, já não duas, mas elegia ou epicédio, a canção, ao eleger o
uma única agudeza: tema do lamento pela morte da rainha, ins-

202 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


titui uma audiência específica, os galantes com o costume. O epíteto com que se glo-
freqüentadores da Corte, a cujo espírito o rifica o Marquês, Aquiles Lusitano, decor-
poeta, enquanto persona encomiástica, deve re também do poema camoniano (X,12),
ajustar sua fala, produzindo-a conforme as assim como todo o vocabulário da estrofe
leis do decoro ou adequação. Nisso consiste (rude, canto, fama, mavórcio, espanto, gló-
a discrição geral do texto. ria, Hipocrene, mundo), pois pertence an-
tes ao repertório da poesia heróica do que
propriamente a Camões. Logo, o primeiro
princípio para a leitura do panegírico de
PANEGÍRICO E CORRELAÇÕES Botelho é entendê-lo como emulação – não
só de Camões, mas também do gênero épi-
O tom da elocução altera-se completa- co e de todo o universo cavalheiresco da
mente quando o artista compõe poemas em epopéia renascentista. Mas a disposição da
louvor à guerra, tal como se observa no matéria, e particularmente dos vocábulos
panegírico ao Marquês de Marialva. O es- na estrofe, pertence inteiramente à poética
tilo, então, torna-se festivo e elevado, pois, gongórica e, portanto, ao próprio poeta.
como se sabe, o panegírico baseia-se na Poucas vezes a agudeza atingiu tamanha
fusão do gênero épico com o histórico, de eficácia em língua portuguesa. Observe-se
onde nasce a euforia bélica dessa espécie a elegante horizontalidade arquitetônica do
poética, cujas manifestações singulares primeiro verso, em que os advérbios exter-
podem ser lidas como se fossem episódios nos centralizam a alusão perifrástica ao
soltos de epopéia inconclusa. Todavia, o homenageado: agora, Aquiles lusitano,
tom desse poema não é propriamente de agora, como a sugerir que a existência do
elevação heróica, mas de heroísmo galante, Marquês antecede em muito o momento do
com gestos mais adequados à corte que ao canto. Essa estrutura reiterativa repete-se
campo de batalha. Diga-se, então, que se no verso seguinte, em que a ordem do ad-
trata de reminiscência estilizada da guerra, vérbio se alterna conforme o esquema do
filtrada pela tópica da declamação palacia- quiasmo. Se, aqui, o fluxo sintático segue,
na. Esse é o efeito produzido pelas 34 oita- conforme a natureza da língua, a disposi-
vas do encômio, cujo virtuosismo as reco- ção horizontal dos vocábulos, nos três últi-
menda como exemplo de singular eficácia mos versos, contrariamente à natureza da
poética. O poema abre-se com a seguinte língua, o fluxo sintático orienta-se para
estrofe, de extraordinário recorte artístico: baixo, em franco declínio vertical, graças
ao esquema da correlação entre os termos
“Agora, Aquiles lusitano, agora, da oração, isto é, os sintagmas iniciais dos
Se tanto concedeis, se aspiro a tanto, três versos, cujo limite é marcado por vír-
Deponde um pouco a lança vencedora, gula, forma uma frase, assim como os três
Inclinai vossa fronte ao rude canto: sintagmas restantes dos mesmos versos
Se minha veia vossa fama adora, formam outra frase, verticalmente (9):
Corra em Mavórcio, corra em sábio espanto,
Cheia de glória, de Hipocrene cheia, a) corra em Mavórcio (domínio de
No mundo a fama, no discurso a veia”. Marte), cheia de glória, a fama no mundo;
b) corra em sábio espanto, cheia de
A construção lembra Camões, sem ser Hipocrene (inspiração) a veia no discurso.
propriamente camoniana. O terceiro e o
quarto versos são apropriações de aspectos Espantosamente, esse artifício em co-
específicos da oitava estrofe de Os Lusía- lunas, insinuando a fachada de um templo 9 Em termos atuais, poder-se-ia
das, a cuja inflexão o poeta baiano impri- ou altar para a apoteose do homenageado, dizer que a primeira leitura
segue a diretriz do eixo
me tonalidade inteiramente nova, produ- não prejudica o ritmo nem a leitura sintagmático; a segunda, sem
zindo o que a preceptiva chama de emula- seqüencial; antes, possibilita harmonica- deixar de ser um sintagma,
imita a idéia do eixo para-
ção original, resultante de íntimo convívio mente ambas as hipóteses, em procedimen- digmático.

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 203


to muito ajustado às preferências equívocas em 1640, tendo liderado, como general, as
do poeta. Ressalte-se, por fim, que Aquiles célebres batalhas das Linhas de Elvas e de
Lusitano é epíteto com que Camões saúda Montes Claros, já no reinado de Afonso VI,
Duarte Pacheco Pereira, também chamado quando ao título de Conde de Cantanhede
fortíssimo, guerreiro que, no século XVI, acrescentou o de Marquês de Marialva.
destacou-se nas lutas portuguesas do extre- O sistema de versos correlativos, ob-
mo Oriente. Assim, a filiação de Marialva servado no final da estrofe, Botelho de Oli-
(D. Antônio Luís de Meneses) à tradição de veira deve tê-lo apreendido em Gôngora,
guerreiros homéricos e camonianos consti- que o incorpora como um dos processos
tui-se em traço galante de mitificação poé- sintáticos mais típicos de sua poesia (10). É
tica da personagem, que, ao tempo da também muito freqüente em Música do
elocução, revestia-se ainda de nítida condi- Parnaso e aparece de maneira persistente
ção histórica, aliás muito apreciada por seus no soneto “A um Grande Sujeito Invejado
compatriotas, pois foi um dos principais in- e Aplaudido”, que pode, em toda a exten-
tegrantes do movimento de restauração da são, ser lido tanto em direção horizontal
independência contra o domínio de Espanha quanto em direção vertical:

“Temerária, soberba, confiada, Esta cai, morre aquele, este não dura,
Por altiva, por densa, por lustrosa, Que em vós logra, em vós acha, em vós venera,
A exalação, a Névoa, a Mariposa, Claro Sol, dia cândido, luz pura”.
Sobe ao Sol, cobre o dia, a luz lhe enfada.
Percebe-se, de imediato, que se trata de
Castigada, desfeita, malograda, símile distendido ou comparação alegóri-
Por ousada, por débil, por briosa, ca, cujos termos se associam por justaposi-
Ao raio, ao resplandor, à luz fermosa, ção assindética. Os termos ideais dominam
Cai triste, fica vã, morre abrasada. os quartetos; os reais, os tercetos: assim
como as fracas manifestações da natureza
10 Cf. Damaso Alonso, “La
Correlación em la Poesía de Contra vós solicita, empenha, altera, (exalação, névoa, mariposa) são derrota-
Góngora”, in Estudios y Ensayos Vil afeto, ira cega, ação perjura, das por manifestações fortes (sol, dia, luz),
Gongorinos. Madri, Editorial
Gredos, 1960. Forte ódio, rumor falso, inveja fera. os baixos sentimentos do homem (vil afeto,

204 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


ira cega, ação perjura) serão destruídos por maravilhoso da leitura de Música do
disposições elevadas do indivíduo, revela- Parnaso não decorre apenas da variedade
das metaforicamente, no último verso, em dos procedimentos, mas também do acú-
sol, dia e luz, por meio da recolha de pala- mulo deles no mesmo poema, bem como
vras disseminadas no primeiro quarteto. de sua contínua reiteração em poemas dife-
Conseqüência da eleição ternária dos ter- rentes e de seu interminável movimento de
mos comparativos, todos os versos se divi- insinuações e negaceios semânticos, a que
dem em três membros sintáticos, cuja or- não falta igualmente dissertação conceitual,
dem se mantém inalterada até o fim, razão em franca integração com a dominante sen-
pela qual seu processo construtivo recebe o sorial das composições.
nome específico de correlação progressiva, Encerre-se, então, o ensaio com o rápi-
com versos trimembres. Alguns classifica- do exame de “Cravo na Boca de Anarda”,
rão o soneto de ocioso e mecânico, mas é um dos momentos mais equívocos de Mú-
também possível entendê-lo como manifes- sica do Parnaso, entendendo-se por equí-
tação do conceito de poesia enquanto artifí- voco o contínuo jogo entre ser e parecer, de
cio engenhoso do entendimento, perspecti- que tanto gosta o poeta:
va em que o texto ganha força e passa a exibir
notável plasticidade em sua urdidura. “Quando a púrpura fermosa
Desse cravo, Anarda bela,
Em teu céu se jacta estrela,
Senão luzente, olorosa;
ELOGIO FINAL Equivoca-se lustrosa,
(Por não receber o agravo
Em Música do Parnaso, tanto nos poe- De ser nessa boca escravo)
mas de elogio da amada quanto nos de Pois é quando o cravo a toca,
exaltação de virtudes cívicas, observa-se a O cravo, cravo da boca;
mesma exuberância de procedimentos es- A boca, boca de cravo”.
tilísticos, resultantes de soberbo domínio
sobre o sistêmico universo da retórica neo- No soneto “Ponderação do Rosto e
aristotélica. Na esfera dos tropos, predo- Olhos de Anarda”, comentado no início do
minam a metáfora antitética e a hipérbole presente ensaio, o sujeito da enunciação,
metafórica, quase sempre fundidas no típi- conturbado pelos encantos da musa, consi-
co processo gongórico de aproximar as di- dera-se equivocado, afirmando com isso
ferenças e ampliar os afetos. Além disso, que se acha dividido entre o rosto da amada
nenhum outro poeta brasileiro dedicou-se e os efeitos que provoca em seu juízo, que
tanto à exploração equívoca dos vocábulos se confunde e acaba tomando um por ou-
quanto Botelho de Oliveira, seja por meio tro, de onde nasce a expressão equívoca,
do trocadilho, seja por meio da calculada que se consubstancia na metáfora engenho-
polissemia da frase, seja por meio da inves- sa e em seus correlatos agudos, tal como a
tigação de efeitos da luz e das cores sobre paronomásia, o trocadilho e a antanáclase.
os afetos. No âmbito das figuras, distin- O vocábulo equivocado aparece também
guem-se as inversões agudas dos termos na no soneto XV do cancioneiro de Anarda,
oração e as repetições simétricas de pala- em posição ainda mais estratégica:
vras ou de unidades maiores do período.
No plano fônico do verso, o poeta justapõe “Quer esculpir artífice engenhoso
harmonias e dissonâncias, privilegiando as Ua estátua de bronze fabricada,
dificuldades sonoras, com efeito de verda- Da natureza forma equivocada,
deiros trocadilhos, que mobilizam paro- Da natureza imitador famoso”.
nomásias, justaposição de vocábulos propa-
roxítonos, rimas imperfeitas, rimas toantes Pelo sistema de correlações entre os
e jogos de termos homônimos. O efeito versos, vê-se que forma equivocada da na-

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 205


tureza qualifica estátua, assim como imi- não consegue explicar o que entende, que
tador famoso da natureza qualifica artífi- vê mas não sabe exatamente o que vê –
ce. Lida pelo viés da preceptiva, a estrofe condição que se estende a boa parte dos
determina o princípio de que arte é imita- poemas de Música do Parnaso –, isso por-
ção equivocada da natureza, no sentido de que a atribuição metafórica dos termos não
resultar do artifício e do engenho, tomados se fixa com estabilidade, deixando a im-
como instrumentos aptos a engendrar rea- pressão de grande mobilidade semântica, a
lidades ilusivas e polimórficas, cuja essên- qual oscila ao sabor do jogo reiterativo dos
cia consiste em tomar o ser pelo parecer e vocábulos. Mas talvez seja possível fixar
vice-versa, donde resulta o primado da um sentido para a décima, partindo da se-
metáfora como pressuposto básico de cons- guinte base de intelecção: Quando, Anarda,
trução poética, conforme o ensaio procura colocas o cravo na boca, ele, querendo os-
demonstrar desde sua primeira página. tentar ares de estrela no céu de teu rosto –
Na décima em questão, ocorre algo se- senão pelo brilho, com certeza pelo perfu-
melhante. Em seu quinto verso, surge a for- me –, vê-se subitamente obrigado a camu-
ma verbal equivoca-se, empregada como flar-se em tua boca, para evitar a vergonha
sinônimo de fundir-se a, cujo sujeito é púr- de ser inferiorizado, pois, ao tocar a boca,
pura fermosa, que, ao atingir o rosto (céu) ele assume a aparência dela e ela assume a
de Anarda, mistura-se a seus encantos cro- aparência dele. Por decorrência lógica, a
máticos. Essa é a chave do poema, inteira- seqüência cravo da boca é metáfora de flor,
mente fundado na astúcia camaleônica das assim como boca de cravo é metáfora de
aparências. Por outro lado, não se pode es- boca. Em rigor, a primeira metáfora afirma
quecer que equívoco, em retórica, significa que a flor, ao contato da boca, assume apa-
trocadilho, entendido como jogo entre as rência de lábios; a segunda afirma que os
várias significações de uma mesma palavra. lábios assumem aparência de flor. Em
De fato, quando o poema diz púrpura ambos os casos, os fatores de semelhança
fermosa, entende-se cravo; quando diz céu, entre os termos da imagem são a cor, o
entende-se rosto; quando diz estrela, enten- brilho, o formato, o perfume, o som e o
de-se cravo com pretensões de estrela; quan- efeito de prisão – cravo pode ser também
do diz escravo, entende-se inferior; quando prego e instrumento musical (12) –, sendo
diz boca, entende-se cravo; quando diz cra- certo que tais propriedades são imanentes
vo entende-se boca, etc. Jerônimo Soares à boca de Anarda, independentemente da
Barbosa, em nota à sua tradução das Insti- aproximação do cravo. Este serve como
tuições Oratórias de Quintiliano (11), defi- elemento de realce da beleza da ninfa, pois
ne paronomásia como a modalidade de equí- todos os cravos possuem tais atributos, ao
voco que une vocábulos de significação di- passo que ela os possui como fator de dis-
ferente por meio da semelhança física, pro- tinção entre todas as musas, razão pela qual
11 Jeronymo Soares Barbosa, vocando identidade semântica entre os mes- o cravo sai vencido quando posto em para-
Instituiçoens Oratórias de M. mos, tal como se nota na relação entre os lelo com ela; por isso, sem pertencer ao
Fabio Quintiliano , Vol. II,
Coimbra, na Imprensa Real da termos escravo e cravo, que se ligam tanto reino vegetal, a musa supera um de seus
Universidade, 1790, pp. 274-
7.
pela forma quanto pelo significado, porque mais estimados espécimes. Assim, o cra-
o segundo se incrusta fisicamente no pri- vo, funcionando como elemento fecundante
12 Péricles Eugênio da Silva Ra-
mos levanta a hipótese de que meiro, de modo a sugerir sua inferioridade de assunto estéril (beleza de Anarda), a
a segunda ocorrência de cra-
vo no nono verso da composi- diante de Anarda. Outra modalidade de equí- distingue entre as musas, ao mesmo tempo
ção associa-se a prego, no voco muito conhecida, e já referida pelo em que é reduzido à uniformidade genérica
sentido de que a boca, sendo
cravo, prende e tiraniza a flor. ensaio, é a antanáclase, que consiste na ado- de sua espécie. Outro motivo da impressão
João Adolfo Hansen sugere que
a segunda ocorrência do vo-
ção alternada de significados diferentes de equívoca da décima consiste no quiasmo
cábulo no décimo verso pode um mesmo vocábulo, de que se tem exem- dos dois últimos versos, constituídos, basi-
associar-se ao instrumento
musical, em alusão, superposta plo canônico nos versos finais desta décima. camente, pelos substantivos cravo e boca,
a outras, de que a fala de que se espelham em reverberações sono-
O que mais espanta na composição é o
Anarda é harmoniosa como o
som do cravo. efeito provocado no leitor, que entende mas ras, visuais, olfativas e semânticas.

206 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


Rosto da primeira edição de Música do Parnaso, de 1705, exemplar do IEB

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 207


BIBLIOGRAFIA

A FENIS RENASCIDA: ou Obras Poeticas dos Melhores Engenhos Portugueses. Dedicadas ao Excellentissimo Senhor D.
Joseph de Portugal Conde de Vimioso, &c. Primogenito do Excellentissimo Senhor D. Francisco de Portugal Marquez
de Valença. I. Tomo. Publica-o Mathias Pereyra da Sylva. [5 vols.] Lisboa Occidental, na Officina de Joseph Lopes
Ferreya, Impressor da Sereníssima Rainha nossa Senhora. Anno de 1717, 1718,1721, 1727.
ALCAÇAR, Padre Bartholomeo. “Das Especies, Invençam, e Disposiçam das Orações, que Pertecem ao Gênero
Exornativo”, in Delicioso Jardim da Rhetorica [etc]. 2a ed. Lisboa, na Officina de Manoel Coelho Amado, 1750.
ALMEIDA, Carmelina. O Marinismo de Botelho. Tese apresentada ao Instituto de Letras da Universidade Federal da
Bahia para concurso de Professor Assistente do Departamento de Letras Românicas. Salvador, 1975.
ALONSO, Damaso. Estudios y Ensayos Gongorinos. 2a ed. Madri, Editorial Gredos, 1960.
CAMPOS, Augusto de. “A Rosa de Marino”, in Verso, Reverso, Controverso. São Paulo, Perspectiva, 1978.
CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira – Resumo para Iniciantes. São Paulo, FFLCH, Humanitas, 1998.
CORBETT, Edward P. J. (ed.). Rhetorical Analyses of Literary Works. New York, London, Toronto, Oxford University
Press, 1969.
BERNUCCI, Leopoldo M. “Disfarces Gongorinos en Manuel Botelho de Oliveira”, in Revista de Occidente, no 570,
decienbre, Madrid, 1997.
ECCOS QUE O CLARIM DA FAMA DÁ POSTILHÃO DE APOLLO. Montado no Pegazo, Girando o Universo, para divulgar
ao Orbe literario as peregrinas flores da Poezia Portugueza, com que vistosamente se esmaltão os jardins das Musas
do Parnazo. Academia Universal. Em a qual se recolhem os crystaes mais puros, que os famigerados Engenhos
Lusitanos beberão nas fontes de Hipocrene, Helicona, e Aganipe. Dedicado ao Nosso Fidelíssimo Monarca D. Joseph I.
Por Joseph Maregelo de Osan. [2 vols] Lisboa, na Oficc. De Francisco Borges de Souza. Anno de 1761 e 1762.
FERREIRA, Francisco Leitão. Nova Arte de Conceitos que com o Titulo de Licções Academicas na Publica Academia dos
Anonymos de Lisboa, Dictava, e Explicava o Beneficiado […], Acadêmico Anonymo, Primeyra Parte [etc]. Lisboa
Occidental, na Officina de Antonio Pedrozo Galram, Anno de 1718.
FIGUEIREDO, Antonio Pereira de. Elogios dos Reis de Portugal, em Latim, em portuguez, Illustrados de Notas
Historicas e Criticas. Lisboa, na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1785.
GOMES, Eugênio. Visões e Revisões. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura/Instituto Nacional do Livro, 1958.
________. “O Mito do Ufanismo”, in A Literatura no Brasil. Vol I. Direção de Afrânio Coutinho. 2a ed. Rio de
Janeiro, Editorial Sul Americana, 1968.
GRACIÁN, Baltasar. Agudeza y Arte de Ingenio. Madri, Espasa-Calpe, 1957.
HANSEN, João Adolfo. “A Razão de Estado”, in Adauto Novaes (org.), A Crise da Razão. São Paulo/Brasília/Rio de
Janeiro, Companhia das Letras/MINC-Funart, 1996.
________. “Pós-Moderno e Barroco”, in Cadernos do Mestrado, Rio de Janeiro, UERJ, Departamento de Letras, 1992.
HORACIO FLACCO, Quintus. Arte Poetica. Traduzida, e illustrada em portuguez por Candido Lusiano. Lisboa, na Offcina
Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1758.
MENESES, Sebastião César de. Suma Política. Oferecida ao Príncipe D. Theodosio de Portugal. [Edição fac-similar
s.l.], 1650.
MOREIRA, Marcelo. Critica Textualis In Caelum Revocata? – Prolegômenos para uma Edição Crítica do Corpus Poético

208 REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001


Colonial Seiscentista e Setecentista Atribuído a Gregório de Matos Guerra. Tese de Doutorado orientada de João
Adolfo Hansen. São Paulo, Universidade de São Paulo/Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, 2001.
OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Musica do Parnaso Dividida em Quatro Coros de Rimas Portuguesas, Castelhanas,
Italianas & Latinas. Com seu Descante Comico redusido em duas Comedias, Offerecida ao Excellentissimo Senhor
Dom Nuno Alvares Pereyra de Mello, Duque do Cadaval, &c. e Entoada pelo Capitam Mor Manoel Botelho de
Oliveyra, Fidalgo da Caza de Sua Magestade. Lisboa. Na Officina de Miguel Manescal, Impressor do Santo Officio.
Anno de 1705.
________. Música do Parnaso. 2 vols. Prefácio e organização do texto por Antenor Nascentes. Rio de Janeiro,
Ministério da Educação e Cultura/Instituto Nacional do Livro, 1953.
________. Musica do Parnaso – Ilha de Maré. Apresentação de Afrânio Peixoto e estudos de Xavier Marques e
Manoel de Sousa Pinto. Rio de Janeiro, Álvaro Pinto Editor (Annuario do Brasil), s/d.
________. Lyra Sacra. Leitura Paleográfica de Heitor Martins. São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1971.
RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Poesia Barroca – Antologia. Introdução, seleção e notas. 2a ed. São Paulo,
Melhoramentos, 1977.
REIS, Francisco Sotero dos. Curso de Literatura Brazileira e Portugueza Professado por Francisco Sotero dos Reis no
Instituto de Humanidade da Ponvincia do Maranhão. 3o tomo. Maranhão, 1867.
RODRIGUES-MOURA, Enrique. “Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711). Un Poeta, Dos Continentes, Cuatro
Idiomas”. Texto lido no 50o Congresso Internacional de Americanistas, em julho de 2000, em Varsóvia.
TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica: Basílio da Gama e a Poética do Encômio. São Paulo
Edusp/Fapesp, 1999.
THESAURO, Conde Don Manuel. Cannocchiale Aristotélico: Esto es, Anteojo de Larga Vista, o Idea de la Agudeza, e
Ingeniosa Locucion, que Sirve a Toda Arte Oratoria, Lapidaria, y Simbolica, Examinada com los Principios del Divino
Aristoteles. […] [2 vols.] Traducido al Espanhol por el R. P. M. Fr. Miguèl de Sequeyros. Madrid, por Antonio
Martin, 1741.
TURACEM, Felix da Castanheyra (Frei Luca de Santa Catarina). Seram Político, Abuso Emendado, Divido em Três
Noytes para Divertimento dos Curiosos (etc.). Lisboa Occidental, na Officina de Bernardo da Costa, Impressor do
Serenissimo Senhor Infante. Anno 1723.

REVISTA USP, São Paulo, n.50, p. 178-209, junho/agosto 2001 209

Você também pode gostar