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DE RE PUBLICA, DE CÍCERO – Juvino Alves Maia Junior - ISBN 978-85-463-0086-0 2

DE RE PUBLICA,
de cícero

juvino Alves maia junior

Ideia
João Pessoa
2016

SUMÁRIO
DE RE PUBLICA, DE CÍCERO – Juvino Alves Maia Junior - ISBN 978-85-463-0086-0 3

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA


Centro de Ciências Humanas Letras e Artes
COORDENAÇÃO DE LETRAS CLÁSSICAS
Prof. Dr. Juvino Alves Maia Junior

Conselho Editoral

Arturo Gouveia – UFPB


Milton Marques – UFPB
Marcos Nicolau – UFPB
Roseane Feitosa – UFPB (Litoral Norte)
Dermeval da hora – Proling/UFPB
Rosanne Araújo – UFRN
Elri Bandeira – UFCG
Helder Pinheiro – UFCG

___________________________________________
M217d Maia Junior, Juvino Alves.
De Re Publica, de Cícero / Juvino Alves Maia Junior. João
Pessoa: Ideia, 2016.
215 p.
ISBN 978-85-463-0086-0
1. Língua grega
CDU: 807.1

___________________________________________

EDITORA LTDA.
www.ideiaeditora.com.br

Foi feito o depósito legal


Impresso no Brasil

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Sumário

I. 1- História ................................................................................................................... 5

I. 2- O momento histórico da narrativa ..................................................................... 6

I. 3- História do texto .................................................................................................... 7

I. 4- A situação de Cícero em Roma ........................................................................... 8

I. 5- A estrutura da narrativa ..................................................................................... 15

II- Cícero Leitor de Platão ......................................................................................... 38

III- Marcas de Aristóteles .......................................................................................... 69

DE RE PUBLICA ....................................................................................................... 121

LIVRO PRIMEIRO ................................................................................................... 121

LIVRO SEGUNDO .................................................................................................. 158

LIVRO TERCEIRO ................................................................................................... 185

LIVRO QUARTO ..................................................................................................... 197

LIVRO QUINTO ...................................................................................................... 199

Referências ................................................................................................................. 210

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I. 1- História

Cícero começou a trabalhar no De Re Publica em 54 a.C., como atesta


uma de suas cartas a Ático (IV, 14,1): “Velim domum ad te scribas, ut mihi tui libri
pateant non secus ac si ipse adesses, cum ceteri, tum Varronis. Est enim mihi utendum
quibusdam rebus ex his libris ad eos quos in manibus habeo; quos, ut spero, tibi ualde
probabo” (Gostaria que escrevesses a tua casa, para que me sejam dispostos teus
livros, não de outro modo como se tu mesmo estivesses presente, tanto os
demais quanto especialmente os de Varrão. Devo utilizar algumas coisas destes
livros para os que estou elaborando, aos quais, como espero, obterei de ti inteira
aprovação.)
De fato, o período da composição da obra (54 – 51 a. C.), conturbado por
diversas agitações políticas, foi especialmente difícil para Cícero. Tendo sido
responsabilizado pela execução dos sequazes de Catilina em dezembro de 62,
após o discurso da quarta catilinária em que atenuava os efeitos do discurso de
César que era contra a execução, para não permitir que adversários políticos se
aproveitassem desse fato para futuros processos e condenações, Cícero foi
condenado em 58 ao exílio exatamente por isso. Tendo-se Públio Clódio feito
adotar por um plebeu, elegeu-se tribuno da plebe e conseguiu uma rogatio, pela
qual condenava-se ao exílio o que tivesse condenado um cidadão romano à
pena capital, sem julgamento.
Na sua volta a Roma em 57, não cessam os ataques de Clódio que alcança
a edilidade em 56 com o apoio de César. Aos poucos Cícero sente-se isolado
politicamente. Durante esse eclipse de sua atividade política, Cícero volta-se
para si mesmo, como atesta este trecho da carta ao irmão Quinto (III, 5, 5): Valde

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me ad otium pacemque conuerto (Volto-me bastante à tranqüilidade e à paz), e


compõe o De Oratore em 55, começando em seguida o De Re Publica.
Logo no início da obra, cujas primeiras páginas se perderam, Cícero
justifica e dedica o tratado a alguém, que por dedução entende-se que seja seu
irmão Quinto (I, 8): “unius aetatis clarissimorum ac sapientissimorum nostrae
ciuitatis uirorum disputatio repetenda memoria est, quae mihi tibique quondam
adulescentulo est a P. Rutilio Rufo, Smyrnae cum simul essemus compluris dies,
exposita, in qua nihil fere quod magno opere ad rationes omnium rerum pertineret
praetermissum puto” (Deve-se retomar um debate dos homens de nossa cidade
mais ilustres e sábios de uma só geração, que foi exposto a mim e a ti, então
mocinho, por Públio Rutílio Rufo, em Esmirna, quando juntamente estávamos
vários dias, no qual imagino que quase nada que pertencesse grandemente às
razões de todas as coisas foi deixado passar).

Cícero viajara à Grécia e à Ásia entre 79 – 77 para restabelecer


sua saúde e estudar eloqüência com os mestres gregos mais conhecidos,
como Mólon de Rodes e Antíoco que dirigia a famosa Academia de
Platão. Na verdade, parece que Cícero se refugiara nesses lugares para
abrigar-se de Sila, morto em 78, pois empreendeu essa viagem depois de
ter defendido Roscius num processo contra Crisógono, liberto de Sila.
Em Esmirna, visita Públio Rutílio Rufo, que era exilado, e diz ter
ouvido deste o que vai narrar no De Re Publica.

I. 2- O momento histórico da narrativa

O diálogo se dá durante três dias – as férias latinas – em 129 a. C., entre


Cipião Emiliano, Lélio, Filo, Manílio, Quinto Tuberão, Fânio, Cévola e Espúrio
Múmio, em seis livros, sendo dois dias de debate para cada livro. As feriae
latinae eram dias feriados (dies festi) que não tinham data fixa (indictivae) no
calendário romano, que deviam ser celebradas em data marcada por um
magistrado, tendo o imperium. Eram celebradas em parte no Capitólio, por

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corridas de carros, em parte no monte Albano, por um sacrifício de bois brancos


em honra de Iuppiter Latiaris. Antes de partir para uma expedição, os cônsules
deviam ter celebrado as feriae latinae no monte Albano. O tempo da narrativa é
recuado três quartos de século da data em que Cícero escreve a obra, há poucos
dias da morte de Cipião. Nota-se um paralelo entre a situação política da Roma
de Cipião e dos Gracos e a Roma de César e de Cícero; a situação de Cipião na
obra e na história então recente tende a sugerir a própria situação política de
Cícero em sua luta pela tradição da República de Roma. Será possível
comprovar que as idéias defendidas nos discursos de Cipião, de Lélio, além das
questões levantadas pelos demais, reforçam sempre a posição que Cícero
defende contra adversários muito poderosos.

I. 3- História do texto

Convém explicar a referência ao final do palimpsesto classificado como


“Vaticanus lat. 5757”, que foi descoberto por Ângelo Mai, nomeado em 1819
prefeito da biblioteca Vaticana, códice em pergaminho, presenteado ao papa
Paulo V em 1618 por monges de Bóbio, em cuja biblioteca do convento,
fundado em 614 por São Columbano, estava o texto do comentário de Santo
Agostinho aos Salmos 119 – 140. Como tivesse percebido que se tratava de um
palimpsesto, Mai pôde decifrar e transcrever o que jazia sob o texto de Santo
Agostinho, a saber, o que restava dos Livros I, II, III, IV e V do De Re Publica
de Cícero, em duas colunas regulares, formadas por quinze linhas cada uma, de
aproximadamente dez palavras. É importante notar que Santo Agostinho no
século V lia o texto integral do De Re Publica, e mesmo Isidoro de Sevilha no
final do século VI e início do VII; somente o final da obra, o Sonho de Cipião,
fora transmitido à modernidade. Esse manuscrito foi copiado no final do IV
século e desfeito por volta do ano 700, por alguém, desdenhoso ou ignorante do
texto de Cícero, que queria copiar o texto de Santo Agostinho; para isso, desfez
o códice, lavou folha por folha e retomou-as ao azar, desprezando a ordem em
que se encontravam, de modo que terá utilizado apenas menos de um quarto

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do manuscrito original. Ângelo Mai, através de reativos químicos, danosos ao


pergaminho, pôde reler essas folhas, reenumerando-as pelo que ainda se podia
ler, e publicou-as em 1822 simultaneamente em Roma, Stuttgart e Tübingen,
juntando o Sonho de Cipião, proveniente de outro arquétipo.

I. 4- A situação de Cícero em Roma

Em 55, Pompeu é cônsul pela segunda vez e tem como colega Crasso.
Todos os movimentos políticos do Senado acabam por restringir Cícero em sua
atuação na política romana, já que ele recusara uma delegação a Alexandria,
para reordenar a política romana no Egito, e outra à sua própria província,
ambas oferecidas por César, que assim estaria afastando-o de um meio cada vez
mais hostil a ele, desde a adoção de Clódio por Fonteio em 60. Nesse mesmo
ano, Pompeu queria aprovar a Lex Cornelia, que previa a distribuição de terras
pelas províncias da Itália, tendo como conseqüência um remanejamento da
população da Urbe para o campo. De fato, esse era o fato político dominante
nessa época; essa distribuição, já prevista pelos Gracos e até por Sila, envolvia
interesses óbvios de influência e poder que um e outro lado disputavam havia
no mínimo um século.
Nesse momento César tentava neutralizar e isolar politicamente a
influência de Cícero, que, propondo uma rogatio, ou seja, uma modificação
dessa mesma lei, fazia aumentar o peso da influência de Pompeu. Cícero parece
ter bem definida sua posição nesse jogo de poder, pois seu primeiro discurso
político como pretor, em 66, foi Oratio de imperio Cn. Pompei. Apesar de ter
construído sua carreira política com sua oratória nos tribunais, Cícero não
poderia desprezar, para sua candidatura ao consulado de 63, o valor político de
uma aliança com Pompeu, que se destacava como um grande condutor político
e militar tal qual Cipião Emiliano, principal força representativa na República
romana, na geração anterior.

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Com isso o afastamento de Cícero era estratégico para César, que através
de Servílio Rulo impetrava outra rogatio para a mesma lei agrária, em que a
decisão caberia a dez varões nomeados por Rulo.
É evidente que qualquer dos lados que detivesse tal poder de
distribuição de terras do Estado estaria em posição de superioridade.
Os objetivos imediatos desse programa de distribuição eram primeiro
aliviar a Urbe do excesso populacional e segundo dar direito de propriedade
aos que detinham concessão de terras distribuídas por Sila. Isso fazia que as
cidades da Campânia se enchessem de sequazes, fazendo de Cápua uma
eventual fortaleza para o que viria a acontecer na conjuração de Catilina.
A questão passa a se desenvolver num jogo político em que se sentia a
necessidade de repovoar a Itália, sem invadir posses alheias; porém tais
interesses coletivos apenas velavam os interesses privados.
Esse momento político pode ser avaliado segundo outro ponto de vista
na monografia de Salústio, sobre a conjuração de Catilina, em que se demonstra
que a corrupção política e moral da sociedade desse tempo tem como
conseqüência a dissolução dos valores morais e éticos demonstrados nessa
mesma sociedade em um passado muito recente (Conj. de Cat. X):
“Ambitio multos mortales falsos fieri subegit, aliud clausum in pectore aliud in
lingua promptum habere, amicitias inimicitasque non ex re sed ex commodo aestumare
magisque uoltum quam ingenium bonum habere. Haec primo paulatim crescere,
interdum uindicari; post, ubi contagio quasi pestilentia inuasit, ciuitas inmutata,
imperium ex iustissumo atque optumo crudele intolerandumque factum.”
(A ambição subjugou muitos mortais a tornarem-se falsos: a ter algo
oculto no peito e algo pronto na língua, a estimar amizades e inimizades não de
fato mas de comodidade, a ter antes bom aspecto do que boa alma. Estas coisas
primeiro começam a crescer paulatinamente, de quando em quando punidas;
depois, quando o contágio como que pestilência invadiu, a cidade foi
transmutada: de justíssimo e ótimo o mando fez-se cruel e difícil de tolerar.)
Para Cícero, o período crítico de sua vida política, que coincide com o
processo de dissolução da República, é de 62 a 49, quando ele parte para o

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campo de Pompeu. Terminado o consulado de Cícero, César, eleito pretor, L.


Calpúrnio Béstia e Quinto Metelo Nepos, tribunos, tentam impedi-lo de
discursar conforme a tradição:

“(Plut. Cic. XXIII, 1, 2)


(Contudo havia os que estavam prontos a falar sobre isso e a agir mal em
relação a Cícero, sendo principais dentre os magistrados para o ano vindouro
César, pretor, Metelo1 e Béstia2, tribunos. Esses, que tomaram o poder estando
Cícero ainda por poucos dias no poder, não o deixavam discursar, e pondo
assentos sobre os rostros da tribuna não concediam nem permitiam-lhe falar, e
ordenavam, se quisesse, unicamente tendo prestado juramento sobre o governo,
descer.)
Aceitando-se o testemunho de Plutarco, pode-se pensar que essa
tendência de Cícero de considerar que Pompeu deveria ser o rector rei publicae
era já conhecida publicamente, sendo tal tendência é a reiteração de um
pensamento, coerente nesse aspecto, segundo o qual a história ia-se repetindo e
a geração de homens políticos, guardiães da cidade com seus conceitos
instituídos, se prolongava na linha de tempo e se reproduzia de forma
especular seguindo a geração anterior. Assim Cícero parecia ver em Pompeu,
homo nouus, como ele próprio, o que vira em Mário, na geração anterior; assim
também faz-se a relação de comparação com César: Sila.

1 Filho homônimo do cônsul de 98 a.C. Quinto Cecílio Metelo Nepos. Foi pretor em 60, cônsul
em 57 e procônsul na Espanha.
2 Lúcio Calpúrnio Béstia, defendido por Cícero, foi absolvido da acusação de falsificação em sua

eleição a edil para o ano de 56, apesar do principal da acusação se basear na Lex Tullia de
ambitu, do próprio Cícero.

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Se é provável que os homens demonstram suas ações públicas ou


privadas de acordo com sua experiência no meio em que atuam, pode-se buscar
uma proximidade entre autor e obra principalmente quando a obra remete a
um mundo idêntico e paralelo ao que vive seu autor. O De Re Publica é o
sonho realizável da Politéia no mundo ideal; Cícero será o conselheiro do rector
rei publicae tal qual Lélio o foi de Cipião. Porém o jogo político envolve
múltiplos interesses particulares que redirecionam a vida pública. Com o
processo movido por Clódio, a formação do primeiro triunvirato, o consulado
de César e as agitações públicas, Cícero é afastado do meio que tornaria
possível o princípio de realização desse sonho político.
Em 58, Clódio apresenta uma lei “anticiceroniana”, pela qual quem
tivesse justiçado um cidadão romano sem processo regular era condenado ao
exílio; culparam-se Catão e Cícero. Além deles baniram-se também os que
tivessem buscado defendê-los ou sustentá-los politicamente, como o cavaleiro
L. Lâmia, banido pelo cônsul Gabínio. Uma outra lei, do mesmo Clódio,
impedia Cícero de avizinhar-se da Itália mais de quatrocentas milhas.
Esse exílio poderia sinalizar o princípio da dissolução da República.
Essas ações de política interna devem ter tido desdobramentos na vida
da cidade como ações de bando a favor de uma ou de outra facção, chegando
mesmo à violência como no episódio da fuga – por ajuda do bando de Clódio –
de Tigrane, conduzido a Roma prisioneiro de Pompeu.
Pelo lado de Cícero também houve ações idênticas, pois o senado tentou
obter o consentimento do retorno dele em 57, procurando Clódio fazer tudo
para obstruir, desde exceção constitucional até violência de rua. Milão e Sêstio,
tribunos em 57, também organizaram um bando com os mesmos princípios e
ações violentas.
Por fim, os comícios centuriados conseguem decretar a volta do orador;
mas a disputa política prossegue no campo jurídico: no final de 57, Milão
consegue impedir a eleição de Clódio à edilidade, processando-o por violência.

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O fim do exílio é quase um prêmio de consolação para Cícero, que passa


a assistir à dissolução da República através de um jogo de partilha do poder
público.
No congresso de Luca, final de março de 56, dividem-se por território o
poder de atuação de cada triúnviro, em que mais cinco anos de governo da
Gália são concedidos a César, com apoio de Pompeu e Cícero.
Pouco depois, em 55, ano em que escreveu o De Oratore, tentando
restabelecer sua dignidade política, Cícero fazia invectivas contra Pisão e
Gabínio, pedia a Luceio que celebrasse sua atuação na conjuração de Catilina e
exaltava a si mesmo no poema De Temporibus Suis. De 54 a 51, prepara o De
Re Publica, pronta reação à inércia política de seu tempo, última importante
manifestação política de Cícero. Através dessa obra pode-se compreender o
conceito de moderator ou rector rei publicae na mente de seu autor; Pompeu fora
eleito em 52 consul sine collega, depois da morte de Clódio por Milão em janeiro
desse ano. Para Cícero, o princeps deve salvar a república, não como alguém de
posição excepcional, mas como alguém que consiga aglutinar em si o conjunto
de virtudes morais e políticas que o possibilitasse atingir um conceito de justiça,
claro para todos, em uma forma mista de governo, tal como no seu De Re
Publica. Segundo Tácito, Pompeu foi eleito cônsul, terceira vez, para que
reformasse os costumes, mas o remédio foi pior do que o mal, e ele mesmo
violou as leis de que era autor (Ann. III, 28).
Uma lei de 52 parece ser a contrapartida de César para afastar Cícero
novamente de Roma; por ironia do destino, Pompeu fez aprovar essa lei,
segundo a qual os procônsules e propretores não poderiam assumir o governo
de uma província antes de transcorridos cinco anos de seu consulado ou
pretura. Assim Cícero, que não tinha exercido o imperium proconsular quando
deixara o consulado, teve de aceitar o governo da Cilícia, em março de 51 pela
Lex Pompeia, não sendo possível passá-lo a outro. Enquanto isso, dá-se a guerra
civil em Roma: Pompeu dizia que estava em jogo a constituição. Logo teve de
retirar-se a Brindisi e depois à Grécia. Parece que Pompeu queria sublevar o

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Oriente contra Roma, para instaurar uma ditadura conservadora, pelo modelo
de Sila.
A situação política de Cícero torna-se extremamente complexa, pois ficar
seria uma vergonhosa deserção, partir, uma ingenuidade e imprudência (Ad
Att. VIII, 15, 2):
Cautior certe est mansio, honestior existimatur traiectio.
(Mais cauteloso certamente é permanecer, mais honrado considera-se
atravessar [o mar]).
Em uma carta pouco posterior, Cícero reforça estilisticamente sua
decisão de ajudar Pompeu (Ad Att. IX, 5, 3):
Ego igitur sicut ille apud Homerum cui et mater et dea dixisset
,
matri ipse respondit

Quid si non solum sed etiam adde tali uiro talem


causam agenti?
(Pois eu, como aquele em Homero [Il. XVIII, 96 – 99] a quem a mãe e
deusa teria dito:
- Logo a ti, depois de Heitor, o destino está pronto,
à mãe ele respondeu:
- Logo possa eu morrer, quando não for socorrer um companheiro que é
morto.
Acrescenta o que a tal homem, se não somente a um amigo, mas ainda a
um benfeitor, que executa tal causa?)
Aconselhado por Ático, ele fica na Itália, conservando-se neutro, quanto
possível (VIII, 14, 2), mas sente-se isolado em terra inimiga (IX, 18). Os seus
queriam que ele ficasse, César e Antônio o proibiam de partir; mesmo
permanecendo em Roma, Cícero partiu para o campo de Pompeu, pois preferia
ser vencido com este a vencer com seus adversários.

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Cícero parte então para o campo republicano, como Anfiarao, sabedor do


destino dos que participariam da expedição contra Tebas, lançara-se no abismo,
forçado por juramento a cumprir uma decisão alheia (Ad Fam. VI, 6, 6):
Itaque uel officio uel fama bonorum uel pudore uictus ut in fabulis Amphiaraus
sic ego
“... prudens et sciens
ad pestem ante oculos positam ...”
sum profectus. Quo in bello nihil adversi accidit non praedicente me.
(E assim, seja pelo ofício seja pela fama dos bons seja pelo pudor, vencido
como nas fábulas Anfiarau, assim eu
“... prudente e ciente
à ruína posta ante os olhos ...”
parti. Nessa guerra nada adverso aconteceu que eu não predissesse.)
Sua ocupação passa a ser o trabalho intelectual: Brutus, nos primeiros
meses de 46, Pro Marcello, Elogio de Catão, Orator, os cinco livros das
Tusculanarum Disputationum, De Finibus, De Natura Deorum, tradução do
Timeu de Platão, em setembro de 45, Cato Maior antes dos idus de março, e
após, De Fato, depois dos funerais de César, Laelius, De Gloria e Topica, em
viagem à Grécia, em 44.
Cícero deixara de temer a morte desde fevereiro de 45, com a morte de
Túlia, fato que só agravou sua desilusão pela primeira vitória de César contra
concidadãos, em Tapso, em 46. A vitória de César em Munda, na Espanha, em
novembro de 46, põe fim à esperança de restauração da República. De fato,
parece não haver nem temor nem esperança, por uma carta de maio de 45 (Ad
Att. XIII, 28, 3):
Abiit illud quod tum me stimulabat quum tibi dabam
. Multo mehercule magis nunc opto casum illum quem tum
timebam uel quem libebit.
(Falta aquilo que então me estimulava, quando te dava um problema de
Arquimedes. Por Hércules, muito mais agora desejo esse caso que então eu
temia, ou ainda o que quer que seja.)

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Após a morte de César, Cícero engaja-se na luta contra Antônio, em 44 e


43, com as Filípicas, o que culminou com seu fim em sete de dezembro aos
sessenta e quatro anos.

I. 5- A estrutura da narrativa

Apesar de fragmentária, a obra, que durou mais de três anos para se


concluir, é considerada como uma das principais de Cícero, devido à natureza
do assunto de interesse comum e ao esforço por desenvolvê-lo. O próprio autor
reconhece essa importância que viria a adquirir sua obra em uma carta a Ático
de julho de 54 (IV, 16, 2): “Rem enim, quod te non fugit, magnam complexus sum et
grauem et plurimi otii, quo ego maxime egeo” (De fato, eu abracei algo, coisa que te
não escapa, grande, grave e de muito tempo de tranqüilidade, do que mais
careço).
Nos três anos de composição da obra, Cícero pôde aprimorar sua
linguagem e seu estilo, para que todos que a viessem a ler pudessem usufruir
de sua capacidade de desenvolver um tema tão romano e repleto de fatos
políticos, históricos e de temas filosóficos da mais pura tradição clássica.
No livro I, perderam-se as trinta e quatro páginas do início e mais duas
na seqüência, das sessenta e duas do preâmbulo, em que Cícero terá feito a
dedicatória ao irmão Quinto (Cicéron, 1989), querendo provar que nada deve
afastar o cidadão de seu dever cívico, mesmo em época tão conturbada, em que
até mesmo sua vida corre grande risco pelas intrigas dos homens mais
ambiciosos. Na seqüência do texto que nos resta, Cícero empreende afastar as
hesitações e dúvidas dos que fogem do dever de defender a pátria a qualquer
custo, atacando certos filósofos epicuristas, explicando que não é suficiente ter
virtude, é preciso exercê-la, porque a virtude não é como uma arte que se tem,
mesmo sem se fazer uso dela. Essa referência sugere uma oposição a dois
grupos contrários: os que procuram o prazer como bem supremo e os que se
retiram para o ócio dos filósofos e sábios; a esses dois grupos deve-se referir a
expressão blandimenta uoluptatis otiique no final do primeiro capítulo, que

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retoma a oposição entre (vida contemplativa) e

(vida prática). Com isso, Cícero procura provar que o


homem de Estado é superior ao filósofo, isto é, que a virtude do homem está
toda em sua aplicação, como diz Platão no Mênon 71e:

“ (Primeiro, se queres virtude do


homem, é fácil: essa virtude do homem é ser capaz de exercer os assuntos da
cidade).
Essa preeminência dos políticos sobre os filósofos é idéia essencialmente
romana; nesse ponto o próprio Cícero serve de parâmetro para os mais jovens,
já que, como Platão e Aristóteles, conseguiu conciliar suas atividades políticas
com o seu ócio, como o prova toda a sua produção intelectual. A justificativa
para conciliar atividades políticas e filosóficas não falta nos filósofos que lhe
servem de fonte de conhecimento, como Aristóteles na Ética a Nicômaco 10, 8,
6:

”.
(O que contempla não tem a utilidade de nenhuma dessas tais coisas –
‘escolha e atos’- para a atividade, mas, por assim
dizer, são mesmo impedimentos para a contemplação; com ela
( ‘utilidade’) o homem é e convive com os mais, escolherá praticar as
coisas segundo a virtude; haverá então necessidade de tais coisas (escolha e
atos) para o comportar-se como ser humano).
Apesar dessa experiência adquirida por Cícero, não foi ele que a
organizou com engenho, pois diz ter ouvido de Públio Rutílio Rufo, que teria
lembrado um debate entre os homens mais ilustres e sábios de uma só geração e
narrado a ele e a seu irmão Quinto, em Esmirna.

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No livro II, narra-se a história da organização política em Roma, desde


sua criação por Rômulo até as Leis das XII Tábuas, redigidas pelos decênviros, e
os fatos que se seguiram. Numerosas lacunas (trinta e oito páginas) impedem o
conhecimento do modo como se expuseram certas passagens, mas pode-se
conjeturar a seqüência do texto que restou pelas referências históricas
conhecidas. Todas as referências passam a ser essencialmente romanas; Cipião
explica que a constituição romana não foi produto de um só, mas desenvolveu-
se pouco a pouco, organizada por legisladores ao longo do tempo, o que se
diferencia das outras constituições das cidades mais conhecidas. Além disso, a
constituição que Cipião vai descrever é real, diferente daquela de Platão. Este
fato sempre é sublinhado, seja por Lélio seja por Manílio, o que favorece a idéia
de que o Estado Romano nasce e cresce e torna-se adulto de forma original e
única, fazendo-se eco a Políbio, seu mestre e amigo. As formas de
desenvolvimento político tomadas de culturas estrangeiras foram melhoradas,
segundo o modo de vida romano. Mesmo na descrição da constituição da
monarquia, nota-se um esboço da futura constituição republicana na criação de
um conselho real quasi senatus (II, 9) no reinado de Rômulo, antecipando os
cônsules à frente do senado, além de instituir a religião nacional, com a criação
dos áugures. É evidente que Cipião procurará em cada rei as virtudes que
deverão ser achadas no verdadeiro guardião da cidade, figura de Platão que
vai-se ajustando às figuras dos reis de Roma, que têm suas características
descritas de modo a satisfazer não só ao paradigma de Platão, mas também ao
modelo romano de virtude adequado à grandeza da cidade.
Por causa de um só – Tarqüínio - o nome de rei passou a significar tirano,
para os romanos; para os gregos esse nome aplica-se ao rei injusto (II, 27).
Contrapondo-se à figura de Tarqüínio, Cipião terá descrito, na lacuna de doze
páginas entre os capítulos vinte e nove e trinta, a figura do guardião - filósofo,
pelo modelo de Platão, mas não dentro de um modelo de cidade utópica; o
guardião da cidade real de Cipião será o tutor e procurador da república, hábil
e sábio na função e cargo civil (II, 29). Depois de duzentos e quarenta anos, o

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povo que lamentou o desaparecimento de Rômulo a ponto de não poder passar


sem rei não pode nem ouvir o nome de rei (II, 30).
A descrição da instauração da República perdeu-se na lacuna de
dezesseis páginas do manuscrito, todo um caderno, em que Cipião terá descrito
a criação dos dois cônsules anuais e os doze litores que herdaram do rei os
poderes e as insígnias (segundo Tito Lívio I, 60, e II, 1). Dez anos depois cria-se
a figura do ditador, que substitui os cônsules em situações críticas, o povo
obtém que lhe sejam perdoadas as dívidas, causas de escravidão, e consegue
eleger dois tribunos; nomeiam-se então os decênviros, encarregados de redigir
as leis, cuja magistratura é sem apelo, exercendo todos os poderes durante um
ano. Os decênviros do segundo ano recusam-se a ser substituídos e constituem
um caso de tirania aristocrática, o que provoca uma nova secessão – agora do
exército -, que marca o fim da oligarquia com o episódio de Virgínia, como o
episódio de Lucrécia marcara o fim da monarquia. Na seqüência, a lacuna de
oito páginas terá relatado a restauração das magistraturas republicanas e da lei
de apelo contra qualquer magistratura, que na queda da monarquia tinha sido
instituída por Públio Valério, cônsul colega de Bruto. Com a interrupção de
Tuberão (II, 64), marca-se um ponto de reflexão sobre o próprio discurso, pois
Lélio havia interrogado Cipião sobre constituição de um modo geral, e foi-lhe
descrita a constituição romana; para demonstrar a superioridade da monarquia,
no Livro I, Cipião recorrera à comparação da natureza, que é ordenada e
dirigida por uma só inteligência; agora ele recorre de novo a uma imagem da
natureza: o cornaca, que é comparado à parte hegemônica da alma, que é a
mente humana.
Apesar das enormes lacunas do final do livro, pode-se conjeturar que o
discurso volta-se ao argumento em favor da realeza, para manter a ordem no
Estado. Para isso é necessário que o guardião nunca se afaste de instruir e
observar a si mesmo, invocando os outros a imitá-lo, sendo espelho pelo
esplendor de seu ânimo (II, 42). A harmonia e a concórdia são as atribuições
principais para esse guardião, que à comparação de um coro de vozes deve
compor o melhor estatuto da república, misturando os princípios dos regimes

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puros com equilíbrio, através do sentimento de justiça ( ), que será o


tema do Livro III.
O Livro III começa com um preâmbulo de trinta páginas das quais
restam oito. Santo Agostinho (Contra Iulianum IV, 12) citando o terceiro livro,
menciona a fragilidade do gênero humano, lançado à vida indefeso e nu, tendo
a natureza não como mãe, mas como madrasta. Esse trecho devia fazer parte do
preâmbulo e lembra Lucrécio (De Rerum Natura V, 223 – 225):
Tum porro puer, ut saeuis proiectus ab undis
Nauita, nudus humi iacet, infans, indigus omni
Vitali auxilio ...
(Então o menino, arremessado por cruéis ondas
Como um navegante, nu, jaz no solo, sem falar, privado de todo
Vital auxílio ...)
Além disso, a referência mais forte é mesmo Platão (Protágoras 321c3–
c6):

(Estando ele – Epimeteu – em apuros, vem Prometeu para inspecionar a


partilha e vê que os outros viventes têm harmoniosamente de tudo e que o
homem é nu e descalço e sem coberta e inerme.)
Parece que se discorria sobre os desenvolvimentos técnicos, pois o texto
inicia-se com referência a veículos; mas, como passa-se a falar da linguagem, da
escrita e do cálculo, conjetura-se que o sujeito de todo o período seja mens
‘inteligência’. Antes de outra lacuna, faz-se referência aos astros, antecipando-se
a narrativa do Livro VI. Este proêmio termina no capítulo IV, e nele Cícero
parece ter feito o elogio da justiça, já que Filo foi encarregado de fazer o elogio
da injustiça.

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O discurso de Filo, porém, fica para o segundo dia de debate. Como no


preâmbulo, há ainda muitas lacunas; Santo Agostinho faz um resumo dos
capítulos oito a quarenta e cinco (Cidade de Deus II, 21), ou seja, do discurso de
Filo pela injustiça, de acordo com o discurso de Carnéades em 155, em Roma,
por ocasião de uma embaixada por Atenas, do discurso de Lélio que defende a
tese oposta e do discurso de Cipião, que retoma a definição de res publica e de
populus. Cícero atualiza fatos conhecidos de todos, já que os próprios
interlocutores assistiram a Carnéades (Cipião teria uns trinta anos); isso remete
a Platão (Politéia IV, 443b7):

(Cumpriu-se-nos então a visão perfeita que dizíamos: suspeitar que,


começando logo a fundar a cidade, segundo algum deus, arriscamo-nos a
chegar ao princípio e a algum tipo de sentimento de justiça.)
Além das referências a Platão, há também referências a Aristóteles, nos
quatro livros , hoje perdidos (Bel. Let. III, 8, 12, 3). Para
Platão, a justiça consiste naquilo com que a natureza dotou cada homem: uma
aptidão especial; para Carnéades, a justiça e o direito nada têm com a natureza,
uma vez que os costumes religiosos, morais e jurídicos mudam conforme a
cultura de determinado povo. Na verdade, esse é o tema do primeiro livro da
Politéia, de Platão, também chamado Trasímaco. Segundo este último, a justiça
não é mais do que sua própria procura por cada povo e por cada um que
governa um povo, sendo então um termo absolutamente relativo. Sob esse
ponto de vista, as formas de poder mascaram a procura de vantagens para o
que as represente, com nomes respeitáveis como monarquia, aristocracia e
democracia; é isso que impulsiona os indivíduos e cada povo a formar como
que um contrato social, segundo o qual sejam arbitradas as causas da forma
mais conveniente possível. Cipião vai rebater essa idéia diferenciando o
conceito de justiça do de sabedoria, pelo qual Roma tornou-se senhora do

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mundo, pois a justiça se caracteriza por ser uma virtude que se aplica a todos
indistintamente, ao contrário da sabedoria, que se aplica individualmente. Filo,
como Carnéades e Trasímaco, passa a argumentar sobre o indivíduo que
prefere ir contra o conceito de justiça e obter vantagens, que serão reconhecidas
por todos como honestas, a ser justo e, por um erro de julgamento, ser visto
como vil; para isso recorre a fatos ocorridos em seu próprio consulado, em 136,
por ocasião da guerra da Numância (III, 18). Talvez, no final perdido do
discurso de Filo, tenha-se feito um ajuste entre justiça política, relacionada à
sabedoria, e justiça natural, relacionada ao sentimento de justiça, conforme
Lactâncio (Inst. V, 17):
Transcendebat ergo ad maiora, in quibus nemo posset sine periculo uitae iustus
esse; dicebat enim: Nempe iustitia est hominem non occidere, alienum prorsus non
attingere. Quid ergo iustus faciet, si forte naufragium fecerit et aliquis inbecillior
uiribus tabulam ceperit? Nonne illum tabula deturbabit, ut ipse conscendat eaque nixus
euadat, maxime cum sit nullus medio mari testis? Si sapiens est, faciet: ipsi enim
pereundum est, nisi fecerit; si autem mori maluerit quam manus inferre alteri, iam
iustus ille, sed stultus est qui uitae suae non parcat, dum parcit alienae. Item si acie
suorum fusa hostes insequi coeperint et iustus ille nanctus fuerit aliquem saucium equo
insidentem, eine parcet ut ipse occidatur an deiciet ex equo ut ipse hostem possit
effugere? Quod si fecerit, sapiens sed idem malus; si non fecerit, iustus sed idem stultus
sit necesse est. Ita ergo iustitiam cum in duas partes diuisisset, alteram ciuilem esse
dicens, alteram naturalem, utramque subuertit, quod illa ciuilis sapientia sit quidem,
sed iustitia non sit, naturalis autem illa iustitia sit quidem, sed non sit sapientia.
(Transcendia portanto as maiores coisas, nas quais ninguém podia ser
justo sem perigo de vida; dizia então: “Sem dúvida, justiça é não matar homem,
não tocar absolutamente o alheio. Que fará portanto o justo, se por acaso tiver
ocorrido um naufrágio, e alguém mais fraco de forças tiver tomado uma tábua?
Acaso não o derrubará da tábua, para que ele mesmo suba e apoiado nela
escape, sobretudo quando nenhuma testemunha haja no meio do mar? Se é
sábio, fará; devendo perecer, se não o fizer. Se ele preferir morrer a levar as
mãos contra outro, então ele é justo, mas é estulto o que não poupa sua vida,

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enquanto poupa a alheia. O mesmo acontece, se, confundida a linha de batalha


dos seus, os inimigos começarem a persegui-lo, e esse justo tenha topado com
algum ferido que se assenta em um cavalo. Por acaso ele poupará esse ferido
para que ele mesmo seja morto, ou lançá-lo-á do cavalo para que ele mesmo
possa fugir ao inimigo? Se o fizer, é sábio, mas o mesmo é mau; se não fizer, é
justo, mas é necessário que ele mesmo seja estulto. Assim, portanto, como
tivesse dividido a justiça em duas partes, dizendo que uma é civil e outra
natural, subverteu uma e outra, porque aquela civil é na verdade sabedoria,
mas não é justiça; e aquela natural é na verdade justiça, mas não é sabedoria.”)
Perdeu-se o discurso de Lélio em resposta a Filo, equivalente ao de
Sócrates na Politéia (368c); supõe-se que deva ter sido muito eloqüente e
persuasivo, especialmente pelo que diz o próprio Cipião (III, 30):
- Multas tu quidem, inquit, Laeli, saepe causas ita defendisti ut ego non modo
tecum Seruium Galbam, collegam nostrum, quem tu quoad uixit omnibus anteponebas,
uerum ne Atticorum quidem oratorum quemquam aut suauitate ...
(Na verdade tu, Lélio, diz, defendeste freqüentemente muitas causas, de
modo que eu não só [pensaria que se deve comparar] contigo Sérvio Galba,
nosso colega, que tu antepunhas a todos até onde viveu, mas nenhum dos
oradores áticos ou por suavidade ...)
Muitas são as referências a esse discurso de Lélio, todas de forma
indireta: Lactâncio, Santo Agostinho, Nônio, Prisciano, Isidoro de Sevilha; o
próprio Cícero faz-lhe alguma referência (Laelius VII, 25):
- Tum magis id diceres, Fanni, si nuper in hortis Scipionis, cum est de re publica
disputatum, adfuisses. Qualis tum patronus iustitiae fuit contra accuratam orationem
Phili!
(Mais dirias então, Fânio, se há pouco tivesses estado nos jardins de
Cipião, quando se discutiu sobre a república. Qual patrono da justiça foi então
contra o acurado discurso de Filo!)
Apesar de superficial, é válida a referência ao discurso de Lélio; singular
é a indicação da ausência de Fânio na discussão sobre a república. Trata-se com
certeza de algum equívoco, pois ambos os genros de Lélio estiveram presente.

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Cipião, após o discurso de Lélio, retoma as definições que ele dera no


primeiro dia do discurso: res publica e populus, segundo Santo Agostinho (Cid.
II, 21), confrontando essas definições com o que Lélio acaba de defender. Como
exemplo de tirania, Cipião cita Siracusa, sob a tirania de um só, Atenas e Roma,
quando dominadas por uns poucos ou pelo povo; neste ponto reforça-se
sempre que falta iuris consensus “consenso de direito”. O exemplo de verdadeira
república é Rodes, em que os cidadãos revezavam-se nos cargos públicos, lugar
que Cipião visitara em 140.
Neste ponto há a maior lacuna, quarenta cadernos ou seiscentas e
quarenta páginas (Bel. Let. III, 25, 48, 4), em que Cipião terá retomado o gênero
misto de constituição como o melhor, sob o princípio da ética, que conduz ao
tema do Livro IV: costumes e instituições da melhor República.
Pouco resta do Livro IV, de modo que se torna difícil reconstituir sua
narrativa pela tradição indireta, pois as citações ocorrem sem ser estabelecida
uma ordem no contexto. Assim, não se sabe como terá sido respondida a
pergunta de Tuberão a Cipião sobre educação, costumes e leis.
Antes disso, no entanto, Cipião terá tratado da constituição do corpo e da
alma, segundo uma referência de Lactâncio, dizendo que Cícero desenvolveu
melhor esse tema no De natura deorum II, 53, 133 – 61, 153; Cícero mesmo
indica (De Leg. I, 9, 27) que Cipião resumiu essa passagem. Então pode-se
seguir o fio do discurso conjeturando a parte perdida: a dupla natureza do
homem composta de corpo e alma; um constituído pela natureza, outra
recebida dos deuses, a qual por conhecê-los é fonte de toda piedade e à qual se
juntam todas as virtudes, especialmente a justiça. O tema é na verdade uma
antecipação do Livro VI, que irá desenvolvê-lo através da narrativa de um
sonho. Essa forma de exemplificar o tema que se debateu é tomada de Platão,
que ilustra as idéias desenvolvidas pela dialética de Sócrates com a narração de
um mito.
Em seguida, Cipião opõe os valores culturais romanos aos gregos. Os
valores discutidos para a constituição ideal da cidade são os mesmos que Platão
discutira na Politéia: disciplina e educação. Porém o conceito moral

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fundamental para os romanos é uerecundia “pudor”. Com esse conceito


criticam-se alguns costumes dos gregos como a prática da ginástica por jovens
nus; mas deve-se exaltar os costumes romanos de instruir os jovens, costumes
recebidos mesmo por Cipião, que os defende (IV, 3) da censura feita por Políbio
de não terem sido fixados como lei.
A última fala restante do Livro IV é de Lélio, que provoca Cipião por ter
criticado o sistema de educação nos povos mais famosos e não ter tocado em
seu “querido” Platão (IV, 4), no que se refere à comunidade dos jovens e
mulheres. Em Lactâncio há uma referência a essa parte (Epitome 33 [38],1-5):
Huius (Socratis) auditor Plato ... in libris ciuilibus omnia omnibus uoluit esse
communia. De patrimoniis tolerabile est, licet sit iniustum; nec enim aut obesse
cuiquam debet, si sua industria plus habet, aut prodesse, si sua culpa minus; sed, ut
dixi, potest aliquo modo ferri. Etiamne coniuges, etiamne liberi communes erunt? Non
erit sanguinis ulla distinctio, nec genus certum, nec familiae nec cognationes nec
adfinitates, sed sicut in gregibus pecudum confusa et indiscreta omnia? Nulla erit in
uiris continentia, nulla in feminis pudicitia? Quis esse in utrisque amor coniugalis
potest, in quibus non est certus aut proprius affectus? Quis erit in patrem pius,
ignorans unde sit natus? Quis filium diliget quem putabit alienum? Quin etiam
feminis curiam reseruauit, militiam et magistratus et imperia permisit. Quanta erit
infelicitas urbis illius in qua uirorum officia mulieres occupabunt!
(Platão, ouvinte deste (Sócrates), nos livros civis (da Politéia) quis que
tudo fosse comum a todos. Acerca dos patrimônios, isso é tolerável, ainda que
seja injusto, portanto nem se deve ser contrário a alguém, se por sua atividade
tem mais, nem útil, se por sua culpa tem menos. Mas, como disse, por algum
modo pode ser suportado. Mesmo os cônjuges, mesmo os filhos serão comuns?
Não haverá distinção alguma de sangue, nem raça certa, nem famílias nem
parentescos nem afinidades, mas como nos rebanhos de gados tudo confuso e
indistinto? Nenhuma continência haverá nos homens, nenhuma pudicícia nas
mulheres? Que amor conjugal pode haver em um e outro, nos quais não há
afeto certo ou próprio? Quem será pio para um pai, ignorando de onde tenha
nascido? Quem amará um filho que pense ser alheio? Ainda mais, mesmo às

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mulheres reservou a cúria, permitiu o serviço militar, a magistratura e os


comandos. Quanta será a infelicidade daquela urbe em que as mulheres
ocuparão os deveres dos homens!)
Fica clara a diferença do ponto de vista entre o autor da Politéia e o rétor
africano convertido ao cristianismo, que toma Cícero como campeão da causa
cristã no início do século IV. De fato, o que cumpre notar é a referência ao IV
Livro do De Re Publica de Cícero, que vem preencher de modo indireto essa
lacuna e permitir a seqüência da narrativa, mesmo que só quanto ao sentido.
Um século depois, Santo Agostinho, sob o mesmo ponto de vista de
Lactâncio, escreve (Epistolae 91, 3):
Intuere, obsecro te, et cerne quantis ibi (scilicet en libris de re publica) laudibus
frugalitas et continentia praedicetur et erga coniugale uinculum fides, castique honesti
ac probi mores.
(Observa, te suplico, e distingue com quantos louvores ali (a saber, nos
livros do De Re Publica) a moderação e a continência são elogiadas e com
relação ao vínculo conjugal, a confiança, os costumes castos, honestos e probos.)
Em seguida Cipião passa aos costumes, revendo ou reforçando o
conceito de uerecundia “pejo, pudor”, fundamental no espírito romano para
explicar a reserva no tratamento das mulheres, principalmente em relação à
visão de Platão na Politéia. Do indivíduo, passa-se ao coletivo na discussão dos
costumes romanos, como o discurso dialético de Sócrates o levara a ampliar o
âmbito em que atua a justiça, para que se pudesse compreendê-la melhor, pois
no Livro II da Politéia começara-se a criar uma cidade para que se visse melhor
do que em um só indivíduo aquilo que se considera o conceito de justiça.
Inevitável teria sido o assunto das artes, especialmente da música e da
poesia lírica e trágica. Como Platão, Cícero conduz esse assunto ao debate, mas
em Cícero o tratamento dessas artes é bem diferente, seja com relação ao
indivíduo seja com relação à coletividade, pois em Cícero esse tema sempre é
acompanhado da uerecundia, que deve regular o comportamento dos músicos e
principalmente dos poetas líricos e trágicos. Os censores romanos cuidavam
que nenhum cidadão eminente fosse caluniado ou ridicularizado particular ou

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publicamente por algum poeta, o que seria crime prescrito em lei, que poderia
chegar à pena capital. Os gregos tinham outro ponto de vista em relação aos
poetas: atribuíam-lhes cargos de honra na cidade, de que não faltam exemplos
como Ésquines, Aristodemo e tantos outros que ocuparam importantes cargos
administrativos e diplomáticos nas cidades gregas. É claro que Platão apresenta
um tratamento próprio às artes, censurando o que não fosse conveniente à
educação dos guardiães da cidade; nesse ponto Cícero pode ter criticado o
modo liberal da visão dos gregos em relação aos poetas, reforçando o
sentimento de pudor romano, que faz parte do conceito de uerecundia. Santo
Agostinho, procurando outro fim para o mesmo tema, cita essa passagem do
De Re Publica na Cidade de Deus II, 9:
Quid autem hinc senserint Romani ueteres, Cicero testatur in libris quos de re
publica scripsit, ubi Scipio disputans ait:
- Numquam comoediae, nisi consuetudo uitae pateretur, probare sua theatris
flagitia potuissent.
Et Graeci quidem antiquiores uitiosae opinionis quandam conuenientiam
seruauerunt, apud quos fuit etiam lege concessum ut, quod uellet comoedia, de quo
uellet nominatim diceret. Itaque, sicut in eisdem libris loquitur Africanus:
- Quem illa non adtigit uel potius quem non uexauit? Cui pepercit? Esto,
populares homines inprobos, in re publica seditiosos, Cleonem, Cleophontem,
Hyperbolum laesit. Patiamur, inquit, etsi eiusmodi ciues a censore melius est quam a
poeta notari. Sed Periclen, cum iam suae ciuitati maxima auctoritate plurimos annos
domi et belli praefuisset, uiolare uersibus et eos agi in scaena non plus decuit quam si
Plautus, inquit, noster uoluisset aut Naeuius Publio et Gnaeo Scipioni aut Caecilius
Marco Catoni maledicere.
Dein paulo post:
- Nostrae, inquit, contra duodecim tabulae cum perpaucas res capite sanxissent,
in his hanc quoque sanciendam putauerunt, si quis occentauisset siue carmen
condidisset quod infamiam faceret flagitiumue alteri. Praeclare; iudiciis enim
magistratuum, disceptationibus legitimis propositam uitam, non poetarum ingeniis
habere debemus, nec probum audire nisi ea lege ut respondere liceat et iudicio defendere.

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Haec ex Ciceronis quarto de re publica libro ad uerbum excerpenda arbitratus


sum, nonnullis, propter faciliorem intellectum, uel praetermissis uel paululum
commutatis. Multum enim ad rem pertinent, quam molior explicare, si potero. Dicit
deinde alia et sic concludit hunc locum ut ostendat ueteribus displicuisse Romanis uel
laudari quemquam in scaena uiuum hominem uel uituperari.
(O que terão sentido os antigos romanos, neste ponto, Cícero atesta nos
livros que escreveu sobre a república, onde Cipião debatendo diz:
- Nunca as comédias teriam podido aprovar seus escândalos nos teatros,
se o costume da vida não estivesse patente.
E mesmo os gregos mais antigos conservaram alguma conveniência de
sua opinião viciosa, já que houve entre eles uma concessão mesmo por lei que
aquilo que desejasse a comédia dissesse nomeadamente sobre o que desejasse.
Assim como nesses livros fala o Africano:
- A quem ela não atingiu, ou antes a quem não vexou? A quem poupou?
Seja que feriu homens ímprobos demagogos, sediciosos na república: Cleon,
Cleofonte, Hipérbolo. Suportamos, diz, embora seja melhor que tais cidadãos
sejam criticados por um censor do que por um poeta. Mas, como já estivesse à
frente com máxima autoridade da sua cidade por muitos anos na paz e na
guerra, não foi conveniente Péricles ser maltratado por versos e eles tê-lo levado
à cena mais do que se nosso Plauto, diz, tivesse desejado, ou Névio, dizer mal
de Públio e Gneu Cipião, ou Cecílio, de Marco Catão.
Então, pouco depois diz:
- As nossas doze tábuas, ao contrário, como tivessem sancionado muito
poucas penas capitais, entre outras consideraram que esta devia ser sancionada,
se alguém tivesse cantado ou tivesse composto um canção que causasse infâmia
ou escândalo a um outro. Foi perfeito; de fato, aos juízos dos magistrados, às
questões legítimas devemos ter proposta a vida, não aos engenhos dos poetas, e
nem ouvir o opróbrio, senão por uma lei, para que seja permitido responder e
defender em juízo.
Pensei que estas coisas deviam ser extraídas à letra do quarto livro do De
Republica de Cícero; tendo sido algumas ou deixadas ou muito pouco

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mudadas, para melhor entendimento. Vêm muito ao caso que me empenho por
explicar, se eu puder. Diz depois outras coisas e conclui este ponto de modo que
mostra ter desagradado aos antigos romanos ou louvar ou vituperar algum
homem vivo, em cena.)
A educação dos guardiães da cidade em Platão passa também pela arte
da música (398c – 400e); Cícero terá abordado também o tema da música,
segundo atesta Aristides Quintiliano, autor grego do terceiro século, que
compôs um tratado sobre a música, , publicado em 1652 por
Marcus Meibomius, cap. II, p.69 – 71:

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(Nem todo prazer é algo censurável ou algum objetivo da música, mas


por acaso há a sedução da alma: escopo que se apresenta como socorro para a
virtude. Isso mesmo a muitos e diferentes escapou, também ao que discursa no
De Re Publica de Cícero, o de Roma, em relação às coisas da música; pois eu
mesmo não poderia dizer àquele que as tais coisas foram ditas. Pois como
alguém poderia se esforçar por isto: insultar a música e dirigir-se a ela como vil,
sendo arte de harmonias e de ritmos e que distingue virtudes e maldades? Este
Cícero, em relação a um homem, Róscio, o bailarino, que então se exibia com
esses ritmos únicos, tanto ignóbeis quanto vis, ficava maravilhado a ponto de
dizer que esse bailarino chegou aos homens por previdência de deuses. E se
alguma pessoa dissesse que ele diz espontaneamente umas coisas, que escreveu
no De Re Publica, e outras, a respeito de Róscio, por causa do fundamento
apresentado (para a defesa de Róscio), nada impedirá que também nós
invertamos o mesmo argumento. Mas, no entanto, mesmo essa pessoa deixaria
isso de lado, antes por desprezar o orador, quanto ao exame presente (acerca da
música), do que por se unir a ele. Pois indigno de fé para achar a verdade ou o
justo juízo é o que se submete às opiniões segundo o recinto ou segundo a
proposição de si mesmo, mas não se submete às opiniões segundo o que é.
Creio que não censurava essa mesma retórica pelos que são corrompidos dos
oradores. Assim também, se alguns dos artistas cantam as coisas ignóbeis pelo
satisfazer à maioria, a imputação não é da arte. Mas também a pátria dele tinha
os que eram educados em música, uns no tempo de Numa e outros um pouco
depois deste, ainda que se achando mais selvagens, segundo o que ele mesmo
diz, com a música própria que celebra os mistérios, seja em banquetes em
comum seja em todas as suas iniciações.)
Com isso nota-se que Cícero também tratou da música mais ou menos do
mesmo modo como Platão o fizera. No entanto, não se pode estabelecer quem

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argumentara contra a música no De Re Publica. Além de tudo, pode-se pensar


que a polêmica sobre a poesia e os poetas também tivera lugar nesse debate.
Como isso foi feito e com que fundamentos e conceitos se estabeleceu o debate
acerca desse assunto são questões que poderiam elucidar grande parte das
dúvidas suscitadas e discutidas por filósofos e críticos literários há tanto tempo.
Do Livro V restam menos folhas do palimpsesto do que restam do Livro
IV: três folhas ou seis páginas, entre as quais há lacunas de várias folhas e de
cadernos inteiros. Os dois últimos livros eram precedidos de um preâmbulo,
como no início do primeiro dia de debate, referente aos Livros I e II, e no início
do segundo dia, referente aos Livros III e IV; esse último dia, portanto, terceiro
dia das férias latinas, refere-se aos Livros V e VI. Santo Agostinho constitui a
principal fonte indireta do Livro V, citando uma parte do preâmbulo em que se
discute o passado de Roma, na Cidade de Deus II, 21:
Quando ergo res publica Romana talis erat qualem illam describit Sallustius,
non iam pessima ac flagitiosissima, sicut ipse ait, sed omnino nulla erat secundum
istam rationem quam disputatio de re publica inter magnos eius tum principes habita
patefecit; sicut etiam ipse Tullius non Scipionis nec cuiusquam alterius sed suo sermone
loquens in principio quinti libri, commemorato prius Enni poetae uersu quo dixerat:
“Moribus antiquis res stat Romana uirisque”.
Quem quidem ille uersum, inquit, uel breuitate uel ueritate tamquam ex oraculo
quodam mihi esse effatus uidetur. Nam neque uiri, nisi ita morata ciuitas fuisset, neque
mores, nisi hi uiri praefuissent, aut fundare aut tam diu tenere potuissent tantam et
tam fuse lateque imperantem rem publicam. Itaque ante nostram memoriam et mos ipse
patrius praestantes uiros adhibebat et ueterem morem ac maiorum instituta retinebant
excellentes uiri. Nostra uero aetas, cum rem publicam sicut picturam accepisset
egregiam, sed iam euanescentem uetustate, non modo eam coloribus isdem quibus fuerat
renouare neclexit, sed ne id quidem curauit ut formam saltem eius et extrema tamquam
lineamenta seruaret. Quid enim manet ex antiquis moribus quibus ille dixit rem stare
Romanam? Quos ita obliuione obsoletos uidemus ut non modo non colantur, sed iam
ignorentur. Nam de uiris quid dicam? Mores enim ipsi interierunt uirorum penuria,
cuius tanti mali non modo reddenda ratio nobis, sed etiam tamquam reis capitis quodam

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modo dicenda causa est. Nostris enim uitiis, non casu aliquo, rem publicam uerbo
retinemus, re ipsa uero iam pridem amisimus.
(Então a república romana era tal qual Salústio a descreve, não a pior e a
mais escandalosa, como ele mesmo diz, mas de forma nenhuma segundo essa
razão que o debate havido sobre a república entre os grandes, então seus
principais cidadãos, revelou; assim também o diz o próprio Túlio falando, não
por fala de Cipião nem de algum outro, no princípio do quinto livro, lembrado
antes um verso do poeta Ênio, pelo qual dissera: “É pelos antigos costumes e
homens que a república mantém-se”.
Parece-me, diz ele, que esse verso, ou por brevidade ou pela verdade, foi
pronunciado como por algum oráculo. Pois nem os homens, se a cidade não
tivesse sido assim acostumada, nem os costumes, se estes homens não tivessem
estado à frente, teriam podido ou fundar ou manter por tanto tempo uma
república tão grande e que comanda tão difundida e amplamente. E assim,
antes de nosso tempo, tanto o próprio costume ancestral convocava os homens
que estavam à frente, quanto os excelentes homens retinham o antigo costume e
as instituições dos mais velhos.
Mas nossa época, como tivesse recebido a república como uma pintura
excelente, mas já desbotada por antigüidade, não só negligenciou renová-la com
aquelas mesmas cores que tivera, mas nem sequer preocupou-se por isto: que
preservasse ao menos sua forma e os últimos como que delineamentos. Que
então permanece dos antigos costumes, pelos quais aquele disse que a república
romana se mantém? Nós os vemos obsoletos por olvido assim que não só não se
cultuam, mas já se ignoram. E dos homens, que direi? De fato os próprios
costumes pereceram pela penúria dos homens, e desse mal tão grande não só
devemos dar conta, mas também de algum modo devemo-nos defender como
réus de pena capital. De fato, pelos nossos vícios, não por algum acaso,
conservamos a república no nome, mas na realidade já há muito a perdemos.)
Essa citação de Santo Agostinho sobre a conservação da república só de
nome, não de fato, encontra-se também em uma carta de outubro de 54 a.C. de
Cícero a Ático (4, 18,2):

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Amisimus, mi Pomponi, omnem non modo sucum et sanguinem sed etiam


colorem et speciem pristinam ciuitatis.
(Perdemos, caro Pompônio, tudo, não só sumo e sangue, mas também
cor e aspecto primitivo da cidade.)
É evidente que Cícero procura reforçar a idéia de se ocupar dos deveres
públicos, fazendo referência ao que fora debatido até então e lembrando os
costumes antigos. O tema do preâmbulo aponta para o assunto dos últimos
livros: a tradição e os homens; os homens devem ser os que governam a
república com justiça, através de uma ética baseada nos costumes morais, cujo
modelo é Cipião. Tendo-se delineado a educação formal do futuro guardião,
resta definir a educação moral desse quasi tutor et gubernator rei publicae, nas
palavras de Cipião (II, 29).
O que restou do Livro V permite determinar duas partes: os deveres do
futuro guardião e a educação necessária para cumprir esses deveres. No
diálogo, Cipião parece falar com Manílio, especialista em direito, acerca do
conhecimento necessário desse estudo que um dirigente deve ter para exercer o
domínio em sua cidade. Mencionam-se reis da Grécia e de Roma, especialmente
Numa, cujo reinado foi de paz, favorável ao direito e à religião, além de
estabelecer importantes leis, que foram compiladas pelo próprio Manílio a
partir dos annales maximi. Segue-se uma lacuna em que se define (Cic., 1989)
que esse dirigente não precisa ser especialista em direito, mas deve ter um
conhecimento geral sobre as leis e o direto, que lhe permita desempenhar seu
dever para o bem comum; assim ele se assemelha a um pater familias, que sabe
um pouco de cada arte que possa ser útil a si e aos outros, como um piloto
experimentado nos astros ou um médico nas ciências naturais contribuem para
o bem um do outro. Após nova lacuna, não se sabe de quantas páginas, fala-se
das instituições que estabelecem pudor e medo aos cidadãos, com o fim de
afastá-los dos delitos, e quando se começa a falar da vida privada termina o
palimpsesto. A segunda parte, sobre a educação moral do futuro guardião,
ficou apenas na tradição indireta. Para a formação moral de um cidadão-
dirigente, Cícero terá proposto as mesmas qualidades morais e eloqüência que

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propôs no De Oratore: a ciência do direito e o conhecimento da literatura grega,


sendo tudo como que temperado pela uerecundia. Grillius (Cic., 1989) dá um
exemplo disso na sua Ciceronis Rhetorica I, 4:
In Politia sua dicit Tullius rei publicae rectorem summum uirum et
doctissimum esse debere ita ut sapiens sit et iustus et temperans et eloquens, ut possit
facile currente eloquentia animi secreta ad regendam plebem exprimere. Scire etiam
debet ius, Graecas nosse litteras, quod Catonis facto probatur qui in summa senectute
Graecis litteris operam dans indicauit quantum utilitatis haberent.
(Em sua Política, diz Túlio que o dirigente da república deve ser o mais
elevado e douto homem de modo que seja sábio, justo, moderado e eloqüente,
para que possa facilmente pela eloqüência corrente exprimir os segredos da
alma para reger a plebe. Deve também saber direito, ter conhecido literatura
grega, que se comprova pelo feito de Catão, o qual na extrema velhice
dedicando-se à literatura grega indicou quanto tinha de proveito.)
Do Livro VI, só restou a narrativa do sonho de Cipião. A tradição legou
apenas breves fragmentos de difícil ordenação antes da narrativa; em uma carta
a Ático (7, 3, 2; Budé V, p. 54), Cícero diz que este livro tratava do rector rei
publicae. De fato, pode-se conjeturar facilmente esse tema, seguindo-se o método
de explicação da Politéia de Platão, que ilustra a teoria das idéias com uma
narrativa mítica de mesmo assunto. Como o sonho de Cipião trata do destino
dos guardiães da cidade, entende-se que o tema da discussão anterior era
justamente este: o destino dos principais cidadãos. Os fragmentos transmitidos
por Nônio (Cic., 1989) tratam das qualidades necessárias ao guardião em caso
de uma sedição, com exemplos de costumes ancestrais e cidadãos que se
destacaram, como Cipião Nasica, matador de Tibério Graco. Macróbio, no início
do século V, escreveu Commentarii in Somnium Scipionis, que comentam e
reproduzem algumas passagens do sonho de Cipião. A tradição manuscrita, no
entanto, legou à modernidade o texto integral do Somnium Scipionis junto do
comentário de Macróbio, não se sabendo quem ou em que circunstância
aconteceu essa adição do texto ao comentário. De fato, o texto comentado por
Macróbio apresenta lições que divergem do texto integral do sonho; se

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Macróbio tivesse juntado ao seu comentário esse texto, certamente não haveria
as variantes, como em VI, 24, no texto do comentário: tu non is es quem exterior
figura designat, sed mens cuiusque id est quisque, no texto integral: nec enim tu is
quem forma ista declarat, sed mens cuiusque is est quisque. Macróbio deve ter
seguido a tradição do texto das Tusculanas, em que Cícero diz ter retomado no
Livro VI do De Re Publica o que Sócrates explicara no Fedro, de Platão:
... ex quo illa ratio nata est Platonis, quae a Socrate est in Phaedro explicata, a
me autem posita est in sexto libro de re publica.
(... a partir do que nasceu aquela razão de Platão, a qual foi explicada por
Sócrates no Fedro, e por mim posta no sexto livro do De Re Publica.)
Daí as diferenças entre o comentário de Macróbio e o texto integral do
sonho.
Em uma carta a Ático (VI, 2, 3),50 a.C., Cícero diz ter corrigido phliuntios
por phliasios, em II, 4, seguindo a correção do próprio Ático, e sugere que Ático
corrija a sua cópia. O arquétipo do palimpsesto dos cinco primeiros livros traz a
lição phliuntios, indicando que provavelmente as únicas versões corrigidas, de
Cícero e de Ático, não foram transmitidas pela tradição dos manuscritos. Ao
que parece restam apenas duas tradições do texto do De Re Publica: uma
utilizada por Macróbio no seu comentário, corrigida pela passagem sobre a
imortalidade da alma nos cinco livros das Disputationum Tusculanarum, outra
que remonta ao arquétipo do palimpsesto e que traz o texto integral do
Somnium Scipionis. O texto do sonho teve uma fortuna crítica bem diferente do
restante da obra, por circunstâncias várias de cultura e política; chegou a ser
traduzido para o grego com o comentário de Macróbio nos séculos XIII, XIV e
XV.
Do comentário de Macróbio (1, 4, 2-3; apud Cic. 1989), há uma parte que
serve de introdução à narrativa do sonho no Livro VI:
Nam Scipionem ipsum haec occasio ad narrandum somnium prouocauit, quod
longo tempore se testatus est silentio condidisse. Cum enim Laelius quereretur nullas
Nasicae statuas in publico interfecti tyranni remunerationem locatas, respondit Scipio
post alia in haec uerba:

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- Sed quamquam sapientibus conscientia ipsa factorum egregiorum


amplissimum uirtutis est praemium, tamen illa diuina uirtus non statuas plumbo
inhaerentes nec triumphos arescentibus laureis, sed stabiliora quaedam et uiridiora
praemiorum genera desiderat.
- Quae tandem ista sunt? inquit Laelius.
Tum Scipio:
- Patimini me, inquit, quoniam tertium diem iam feriati sumus ...
Et cetera quibus ad narrationem somni uenit, docens illa esse stabiliora et
uiridiora praemiorum genera quae ipse uidisset in caelo bonis rerum publicarum
seruata rectoribus.
(Pois esta ocasião provocou o próprio Cipião a narrar o sonho que por
longo tempo testemunhou ter guardado em silêncio. Como então Lélio
lamentasse que nenhumas estátuas de Nasica fossem colocadas em público em
recompensa de ter matado um tirano, responde Cipião depois de outras nestas
palavras:
- Mas, ainda que a própria consciência dos feitos ilustres é prêmio
muitíssimo amplo de virtude, contudo aquela divina virtude não deseja
estátuas que são presas por chumbo nem triunfos com coroas de louros que se
ressecam, mas algumas coisas mais estáveis e gêneros mais verdejantes de
prêmios.
- Que afinal são essas coisas? diz Lélio.
Então Cipião:
- Permiti-me, diz, já que estamos em férias já no terceiro dia ...
E outras coisas com que chega à narração do sonho, ensinando que
aqueles eram gêneros mais estáveis e mais verdejantes de prêmios que ele
mesmo tinha visto no céu reservados aos bons dirigentes das repúblicas.)
Na narrativa do sonho de Cipião, Cícero retoma todos os motivos do
diálogo e dos preâmbulos anteriores assim como Platão costuma ilustrar a
dialética socrática com os mitos. Neste caso, o mito correspondente na Politéia é
o de Er, no Livro X, que procura justificar o que ficara determinado no debate,
como um arremate ilustrativo de todos os conceitos filosóficos debatidos na

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obra. O sonho de Cipião e o mito de Er possuem uma mesma estrutura


narrativa, de característica protréptica, ou seja, exortativo-impulsiva, postos no
final da obra, revelando a recompensa da alma dos justos no além e propondo
uma visão do universo. Porém a narrativa de um sonho não é exatamente fazer
um mito, , ou seja, as relações entre o pensamento debatido na busca
de um conceito e a narrativa que ilustra esse pensamento não são semelhantes,
pois a resultante mítica na obra de Platão, , apresenta uma
verossimilhança conceptual com o debate, isto é, não traça um paralelo entre as
personagens do debate – Sócrates, Trasímaco, Adimanto etc – e as da narrativa
mítica de Er; estas reportam-se a todos os homens em todas as épocas, como um
apólogo, aquelas estão inseridas num contexto histórico, o que determina que
apenas se delimitem conceitos filosóficos. No sonho de Cipião, as personagens
principais do debate estão presentes; e a narrativa reforça não só o que fora
estabelecido nos três dias de debate, mas também o caráter e a formação da
figura central da obra – Cipião Emiliano. De fato, a lembrança daquele sonho de
vinte anos atrás terá modificado sua vida política, de modo a redirecioná-la de
acordo com as principais idéias de comportamento moral estabelecidas no
debate. Podem-se fazer ainda referências políticas que ligam a narrativa do
sonho aos fatos gravíssimos que preocupam tanto Cipião como as outras
personagens na Roma de seu tempo, que se assemelham muito à situação
política da Roma de Cícero, enquanto ele escrevia o De Re Publica. Diante
disso, pode-se pensar nos romanos da época de Cícero como os verdadeiros
interlocutores do debate. Todo o conteúdo da exortação inicial confirma-se na
narrativa final, em que o destino da cidade deve prevalecer sobre todas as
circunstâncias pessoais. O caráter romano mostra-se ampliado na narrativa do
sonho, quem deve enfrentar o destino é o próprio Cipião; Er apresenta-se como
espectador do mito narrado. Cipião é sem dúvida um herói romano, porém isso
não basta para dar autenticidade à narrativa de um sonho; faz-se necessário que
os ancestrais deste herói o ensinem a direcionar sua vida para o que há de mais
sublime: Cipião Africano e Paulo Emílio. O primeiro, seu grande pai adotivo,

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herói com todas as glórias, o segundo, seu pai, vencedor da batalha de Pidna;
ambos representam a formação moral e familiar que as letras gregas não
poderiam suprir no futuro guardião da cidade. A raiz desse sonho também está
no mito: na Eneida (VI, 755-892), Anquises mostra a Enéias o futuro de sua
geração com toda a glória do futuro. Com isso, a narrativa de Cícero modela-se
na de Platão, mas toma seu próprio rumo; talvez possa-se pensar que ao
modelo de Platão Cícero juntou o método de Aristóteles, conseguindo um
resultado menos filosófico do que demonstram as idéias de Platão e mais
adequado às necessidades de sua época e circunstância política.

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II- Cícero Leitor de Platão

Pela tradução que Cícero apresenta (I, 43) de um trecho de Platão na


Politéia (562c7 – 563e), pode-se avaliar melhor ou mais concretamente a visão
de Cícero com relação à obra e às idéias de Platão. Cícero faz Cipião dar a
seguinte tradução:
“Cum enim, inquit, inexplebiles populi fauces exaruerunt libertatis siti
malisque usus ille ministris non modice temperatam sed nimis meracam libertatem
sitiens hausit, tum magistratus et princepes, nisi ualde lenes et remissi sint et large sibi
libertatem ministrent, insequitur, insimulat, arguit, praepotentes, reges, tyrannos
uocat”. Puto enim tibi haec esse nota.
- Vero mihi, inquit ille (Laelius), notissima.
- Ergo illa sequuntur: “Eos qui pareant principibus agitari ab eo populo et
seruos uoluntarios appelari; eos autem qui in magistratu priuatorum similes esse uelint
eosque priuatos qui efficiant ne quid inter priuatum et magistratum differat, ferunt
laudibus et mactant honoribus, ut necesse sit in eius modi re publica plena libertatis
esse omnia, ut et priuata domus omnis uacet dominatione et hoc malum usque ad
bestias perueniat, denique ut pater filium metuat, filius patrem neclegat, absit omnis
pudor, ut plane liberi sint, nihil intersit ciuis sit an peregrinus, magister ut discipulos
metuat et iis blandiatur spernantque discipuli magistros, adulescentes ut senum sibi
pondus adsumant, senes autem ad ludum adulescentium descendant, ne sint iis odiosi
et graues; ex quo fit ut etiam serui se liberius gerant, uxores eodem iure sint quo uiri,
quin [in] tanta libertate canes etiam et equi, aselli denique liberi [sint] sic incurrant ut
iis de uia decedendum sit. Ergo ex hac infinita, inquit, licentia haec summa cogitur, ut
ita fastidiosae mollesque mentes euadant ciuium ut, si minima uis adhibeatur imperi,
irascantur et perferre nequeant; ex quo leges quoque incipiunt neclegere, ut plane sine
ullo domino sint.”
(“Pois, diz, quando as goelas insaciáveis do povo secaram de sede de
liberdade, e ele servido de maus serventes hauriu, sedento, liberdade não

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moderadamente preparada mas demasiado pura, então a magistrados e


principais, caso não sejam muito brandos e permissivos e lhe sirvam largamente
a liberdade, persegue, censura, repreende, chama-os prepotentes, reis, tiranos”.
Penso de fato que estas coisas te são conhecidas.
- Na verdade, diz ele (Lélio), me são muitíssimo conhecidas.
- Logo elas seguem: “Os que obedeçam aos principais são atormentados
por esse povo e são chamados de escravos voluntários; os que na magistratura
queiram ser semelhantes aos particulares e os particulares que façam que nada
difira entre o particular e o magistrado, a esses dão louvores e glorificam com
honras, para que seja necessário em um governo desse modo tudo estar pleno
de liberdade, assim também toda casa particular esteja livre de domínio e este
mal chegue até os animais, enfim que pai tema filho, filho desdenhe do pai,
esteja longe todo pudor, que sejam absolutamente livres, nada diferencie seja
cidadão ou estrangeiro, mestre que tema os discípulos e seja complacente com
eles, e os discípulos desprezem os mestres, adolescentes que assumam para si a
gravidade dos velhos, velhos se rebaixem à brincadeira dos adolescentes, para
que não lhes sejam odiosos e graves. A partir disso acontece que mesmo os
escravos se portem muito livremente, as esposas com o mesmo direito estejam
que os maridos, e além disso em tamanha liberdade cães mesmo e cavalos,
jumentos sejam afinal livres, assim passeiem que se lhes deva afastar do
caminho. Logo, diz, a partir desta infinita liberdade acumula-se esta suma
licença, que assim fastidiosas e moles acabem as mentes dos cidadãos, de modo
que, se se apliquar uma mínima força de comando, se irritam e não podem
suportar. A partir do que, começam também a desdenhar das leis, para que
estejam absolutamente sem senhor algum”.)
O texto traduzido da Politéia (562c7 – 563e) é o seguinte:

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(Quando uma cidade se democratiza, tendo tido sede de liberdade,


encontre por acaso maus escanções servindo mais do que é preciso e ela esteja
embriagada dessa liberdade não misturada, creio então que ela castiga os
governantes, caso não sejam muito gentis nem concedam a liberdade em
demasia, acusando-os de impuros e oligárquicos.
- Fazem isso, disse.
E, disse eu, ela insulta os que escutam os governantes como escravos por
vontade e que de nada são, e os que governam louva e honra como semelhantes
aos que são governados e os que são governados, semelhantes aos que
governam. Então não é necessidade em tal cidade a liberdade chegar a tudo?
- Como não?

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E, disse eu, ser imersa, ó meu caro, nas próprias casas e terminar com a
anarquia sendo infundida até entre os brutos.
- Como, disse ele, dizemos algo desse tipo?
De tal forma a, disse eu, o pai estar habituado a tornar-se semelhante à
criança e temer os filhos, e o filho, semelhante ao pai, e nem se envergonhar
nem venerar os genitores, para que seja livre; e o meteco tornar-se igual ao
citadino, e o citadino, igual ao meteco, e o estrangeiro dessa mesma forma.
- Acontece assim, disse ele.
E estas coisas, disse eu, acontecem, e outras pequenas deste tipo: mestre
nessa situação teme e adula discípulos, e discípulos fazem pouco de mestres,
assim também de instrutores; e em suma, os jovens são paradigmas aos mais
velhos e disputam tanto em palavras quanto em ações, e os anciãos,
condescendentes com os jovens, enchem-se de facécia e graça imitando os
jovens, para que não pareçam ser desagradáveis nem despóticos.
- Acontecem muito, disse.
E o extremo, ó meu caro, da liberdade da massa, qual acontece nessa tal
cidade, quando os que compram e as que compram sejam em nada menos livres
do que os que foram comprados. E nas mulheres em relação aos homens e nos
homens em relação às mulheres, tamanha torna-se a paridade e liberdade por
pouco esquecemos de dizer.
- Então, disse ele, falaremos, como Ésquilo, o que agora vem à boca!
Completamente, disse eu; e eu mesmo assim digo. De fato, o extremo de
liberdade dos brutos submissos aos homens, de quanto mais liberdade há ali do
que em outra parte alguém inexperiente não se convenceria. Pois,
simplesmente, segundo o provérbio, as cadelas, tais as donas, e então mesmo
cavalos e até asnos ficam acostumados a caminhar muito livre e solenemente,
lançam-se pelos caminhos sempre contra o que vem, caso este não se afaste. E
quanto às outras coisas todas, acontecem assim plenas de liberdade.
- O meu sonho, disse, contas-me; pois eu mesmo, caminhando ao campo,
freqüentemente sofro isso mesmo.

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Consideras então o ponto capital de todas essas coisas agrupadas: faz


mole a alma dos cidadãos, de modo que, se alguém aplique qualquer coisa de
servidão, começa a irritar-se e a não agüentar, pois, acabando eles em algum
lugar, sabes que nem se preocupam com as leis escritas ou não escritas, a fim de
que de modo algum nenhuma seja-lhes senhora.
- Sei muito bem, disse.)
Ao argumentar no De Re Publica (I,43) sobre a degradação do sistema
democrático em relação à monarquia e à aristocracia, Cícero faz Cipião citar
esse longo trecho da Politéia de Platão (562c7 – 563e). Até então Cipião discutia
com Lélio sobre as formas de governo, revelando sua preferência pessoal pela
monarquia em primeiro lugar, pela aristocracia em segundo lugar e por último
pela democracia, se fosse necessário escolher uma delas de forma pura; ou seja,
para ele a melhor forma de governo seria aquela forjada a partir de todas (I,35).
Para justificar sua opinião, Cipião faz um histórico dos reis de Roma, desde a
fundação da Urbe por Rômulo até Tarqüínio, o Soberbo, expulso da cidade com
toda família por causa do estupro de Lucrécia. Antes desse fato os reis eram
considerados guardiães da pátria, pais de todos os cidadãos e até mesmo
deuses, segundo os versos de Ênio citados em I,41. Por causa de um só, ou seja,
o último rei de Roma, o nome de rei tornou-se odioso ao povo (I,40). A partir
daí, houve a mudança da monarquia para a democracia: do melhor sistema
para o pior, sendo que o povo passa a gerir a coisa pública através da violência
(I,42). Cipião passa a conjeturar uma hipótese sobre a república baseado no que
teria realmente acontecido em Roma há 400 anos da data desse debate (129
a.C.). Segundo essa hipótese, se o povo praticou violência contra o rei (attulit
uim), despojou-o de seu reino (spolauit regno) ou degustou o sangue dos
aristocratas (gustauit sanguinem optimatium), não se pense que mar ou chama
seja mais fácil de acalmar, do que a multidão desenfreada pela insolência
(multitudo ecfrenata insolentia). Como o debate com Lélio assumisse um aspecto
sombrio e tenebroso, Cipião, ou melhor, Cícero não pôde evitar que essa visão
de horror se espalhasse e ultrapassasse os limites de sua fala no discurso. Por
isso, quando chama Platão como sua testemunha, dizendo que apesar de difícil

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de fazer tentaria exprimir em latim como pudesse, mantém o mesmo aspecto


sombrio da narrativa que vinha desenvolvendo.
A expressão inexplebiles fauces não tem correspondência no texto de
Platão, que usa o termo com o significado que vem mantido desde o
início da Politéia. Não se pode atribuir esse desvio de sentido à falta de cuidado
na tradução em latim dos conceitos gregos, pois Cícero mantém a mesma
estrutura sintática do texto que ele traduz: oração subordinada adverbial
temporal no início cum/ , com uso de ablativo (malis ministris) para traduzir

o genitivo equivalente , seguida de oração


subordinada adverbial condicional (nisi ... ministrent) traduzindo o subjuntivo
eventual , antecedida do complemento do verbo da
oração principal, que fecha o período, magistratus et principes, com que Cícero
traduz ; a criatividade da tradução de Cícero fica por conta da
substituição dos particípios presentes por orações coordenadas, preservando o
sentido de simultaneidade desses na equivalência gramatical destas: malisque
usus ille ministris/ ; insequitur insimulat arguit/ . Além
disso, Cícero cria um estilo de tradução, multiplicando as palavras em latim,
quando sente necessidade de reforçar ou explicar melhor um conceito:
magistratus et principes/ ; insequitur insimulat arguit/ ;

praepotentes, reges, tyrannos uocat/

. Tudo que parece exagero é na verdade um reforço ou


ênfase que cabe bem no contexto do De Re Publica, mas não poderia estar no
da Politéia.
O particípio presente foi substituído por algo que
traduzia melhor um conceito latino em contexto político e cultural na obra de
Cícero. Basta verificar o sentido de fauces “goela; garganta, desfiladeiro”,
relacionado sempre à noção de estreitamento metafórico ou real, para perceber
a intenção do tradutor de justificar a seqüência de seu próprio texto com um
longo trecho da obra de Platão equivalente à sua. O adjetivo inexplebiles reforça

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ainda mais esse conceito relativo ao povo (populi) da falta que jamais é suprida,
por ser como um abismo sem fundo e misterioso, portanto insaciável.
Para Platão, esse termo também é depreciativo, pois
após retomar o que ficara estabelecido no debate sobre a comunidade das
mulheres e dos filhos, educação, filosofia, moradia e bens dos guardiães,
cidades com suas formas de governo e indivíduos semelhantes a elas, Sócrates
passa a debater sobre quatro formas de governo: monarquia, oligarquia,
democracia e tirania (544c), retomando a questão no ponto em que fora
interrompido por Adimanto e Polemarco em 449a.
Como o tema do debate é o conceito de justiça, analisado no homem
individualmente e depois ampliado para a cidade, faz-se a relação entre a alma
do indivíduo e a forma de governo da cidade. Fala-se da aristocracia e
oligarquia fundamentando-se o valor na alma dos homens como timocracia ou
timarquia – - (545b7), para caracterizar o governo

ou poder das honrarias – -, que corresponde a um indivíduo chamado de

, na falta de um nome mais adequado.


Segundo a linha de pensamento de Platão, essa timocracia origina-se da
aristocracia, como que uma degeneração de forma e sentido; um grupo toma o
poder por sedição – (545d2). Esses homens são ávidos de riquezas, o

que caracteriza a oligarquia, chamados de (548b4) “avaros


de riquezas” e passam a viver somente pela aquisição de bens esquecendo-se da
virtude:

(550e5)
(... quanto mais precioso considerem isso, tanto mais desprezada a
virtude.)
Segundo esse mesmo pensamento, como não é possível ser rico e
prudente ao mesmo tempo, chega-se a outro grau de decadência: a democracia;
pois quem foi destituído de seus bens revolta-se contra os que estão no poder,
incendiando a população mais pobre com a revolução:

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(557a)
(Democracia, creio, acontece quando os pobres, tendo vencido, a uns de
ambos –governantes e governados- matem, a outros expulsem, aos restantes,
por igual, façam participar da república e dos cargos, e assim na maior parte,
por sorteio, os cargos acontecem nela.)
Esse sentimento de degradação política e moral continua até o
estabelecimento da tirania; esta costuma surgir de um exagero na procura da
liberdade. Como a democracia propicia o ambiente natural ao exagero de
liberdade, nasce a tirania gerada na democracia. Como o bem supremo na
oligarquia, a riqueza, é causa de sua degeneração, assim a liberdade é causa de
degeneração na democracia (562b2 – b8):

(Acaso por algum modo, o mesmo, surge democracia a partir de


oligarquia, e a partir de democracia, tirania?

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Como?
O que foi proposto, disse eu, como bem, e pelo que a oligarquia era
estabelecida – isso era riqueza demais; não era?
Sim.
A insaciabilidade então de riqueza e a negligência das outras coisas, pelo
haver, perdia-a.
Verdade, disse.
Acaso tanto a democracia delimita um bem, quanto a insaciabilidade
dele a desfaz?
Dizes, o que a delimita?
A liberdade, disse eu.)
Como o excesso costuma ser correspondido por uma mudança radical,
no sentido oposto, o excesso de liberdade leva à escravidão em excesso. Esse é o
processo natural de evolução política que está na Politéia, portanto pode ser
justificada a maneira de tradução de Cícero, entendendo-se sua metáfora –
inexplebiles fauces- dentro do contexto político discutido em ambas as obras. O
mesmo Platão justifica essa teoria de exageros, depois do exemplo dado, em
564a:

(Pois a liberdade excessiva parece mudar-se para nada mais do que


escravidão excessiva, tanto no indivíduo quanto na cidade.)
Daí o conceito escolhido por Cícero para traduzir
parecer despropositado e exagerado, pois o aparente
desatino não está na tradução, e sim nas circunstâncias em que se encontra uma
cidade prestes a ter o comando e os cargos públicos nas mãos do povo. Para
Cícero, pareceu insuficiente uma expressão como popularis ciuitas, mesmo
depois de toda a exposição de Cipião sobre a história de Roma, no episódio de
Tarqüínio, o Soberbo. Sem se levar em conta o que está envolvido no processo

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político de ambas narrativas, causa estranheza a fórmula latina escolhida, como


se houvesse uma arbitrariedade patente do tradutor.
É evidente que a questão da tradução surge aqui, como é vista
atualmente. Muitos estudiosos procuraram razões ou que justificassem o modo
de tradução de Cícero ou que pelo menos atenuassem o efeito de uma leitura
pontual, ou seja, considerando-se apenas o trecho em destaque.
Poncelet (1947) acredita que as divergências observadas não podem
proceder de uma redação negligente, devido à preocupação artística que
caracteriza o De Re Publica em seu conjunto. Contudo, sua visão política
parece impedir que se entenda como plausível a tradução latina; assim lê-se o
texto grego como uma forma de desacreditar o sistema político da democracia:
Le mouvement du texte grec consiste uniquement à déployer la logique interne
de l’idée de démocratie, en prenant bien garde de ne pas conférer la responsabilité à um
groupe determiné de citoyens ...
(O movimento do texto grego consiste unicamente em desdobrar a lógica
interna da idéia de democracia, tomando cuidado de não conferir a
responsabilidade a um grupo determinado de cidadãos ...)
Lido assim, aparece o resultado de todo o processo narrativo na Politéia,
muito discutível, porque não considera o processo que levou a esse fim. Então
Cícero não teria êxito em traduzir qualquer trecho escolhido na obra de Platão,
pois nunca poderia contentar nem mesmo o leitor de sua época. Nessa linha de
pensamento, pode-se concluir, com Poncelet:
Il y a là un effort d’élaboration abstraite dont le latin se révèle incapable.
(Há um esforço de elaboração abstrata, de que o latim se revela incapaz.)
Na verdade, o resultado da tradução de Cícero mostra um processo de
escolha caracterizado pela preocupação artística dentro de todo o contexto da
obra; não se trata de incapacidade ou impossibilidade de traduzir os conceitos
ou idéias de Platão, cujo plano de obra leva o leitor a entender o termo
escolhido por Sócrates para caracterizar a cidade nessa determinada situação.
Como Cícero segue esse mesmo plano, sua obra manifesta um mesmo
padrão estético com diferenças de conteúdo, graças à particularidade de espaço

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e tempo; Cipião chega a um ponto da narrativa que corresponde à convergência


de tempo e espaço em ambas as obras.
A julgar pelos comentaristas de Cícero de tradição direta e indireta, não
há outro ponto em que os textos se cruzam, não só por se tratar de citação quase
que literal da obra de Platão, mas também por retratar o mesmo ambiente
político e cultural no contexto de uma e de outra obra.
Esse ponto de cruzamento foi tomado por Cícero que se aproveitou da
proximidade das estruturas narrativas, para formar essa ponte literária entre
ambiente e espaço tão diferentes; porém Cícero narra através de Cipião a
história de sua própria República, deixando claras as diferenças entre um e
outro contexto, mas seguindo o mesmo padrão de narrativa da obra de Platão.
Por isso a escolha de Cícero é plenamente justificável, pois não só
demonstra capacidade de seguir o mesmo padrão literário em circunstâncias
tão diferentes, mas também revela pleno entendimento dos conceitos
empregados no exemplo seguido.
Não se trata portanto de incapacidade de tradução, nem do latim nem de
Cícero; os conceitos estão todos em uma e em outra obra, mas talvez justifica-se
a crítica quanto à intensidade de aplicação de alguns conceitos:
de Platão revela um estado de liberdade que se manifesta e
avança a partir de certo ponto na narrativa em que o estado oligárquico político
e individual começa a se degradar. Há uma tendência que surge
gradativamente, como que um surto entre a população; daí esse estado passa a
agravar-se até um ponto de revolução popular.
Esse ponto está expresso no De Re Publica, mas não o seu processo; não
se percebe uma tentativa de mostrar a deflagração dessa “doença política”na
obra de Cícero. Em Platão, Sócrates vai conduzindo o discurso de modo a
evidenciar não só o resultado final de uma degradação moral e política, mas
também todo o processo pelo qual se dá esse resultado. Porém Platão propôs-se
analisar não apenas o sistema político na cidade, como também a alma no
indivíduo que habita essa cidade; o que não ocorre na obra de Cícero. Portanto
esse processo de análise da alma do indivíduo ligado à análise do sistema

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político da cidade é um fator obrigatório na obra de Platão, mas não está nem
mesmo mencionado na obra de Cícero.
A partir disso pode-se avaliar menos duramente a redução da tradução
latina do restante do trecho antes indicado.
A segunda fala em ambos os textos corresponde ao interlocutor que na
obra de Platão é levado a responder de acordo com o direcionamento dado por
Sócrates; Glauco apenas reitera o que foi direcionado e às vezes permite a
continuidade da idéia com uma pergunta curta.
O interlocutor de Cipião, no texto de Cícero, só intervém uma vez nesse
trecho, diferente de Glauco, que interveio oito vezes, permitindo que Sócrates
desenvolvesse esse exemplo bem mais amplamente. Lélio só intervém nessa
segunda fala, para concordar com Cipião, que o interpelara sobre seu
conhecimento do texto de Platão. Essa é a única coincidência do discurso direto
entre os textos: o grego mantém o sujeito do primeiro parágrafo – - na
segunda fala de Sócrates, mudando-o na conclusão com oração infinitiva:
; o latino apresenta os verbos principais no
infinitivo com sujeito no acusativo, seguindo a forma indicada por Cipião: -
Ergo illa sequuntur...
Porém os verbos passam à voz passiva com agente ab eo populo; nesse
ponto o tradutor latino parece criar o maior hiato entre os textos, pois Platão
criara uma cidade na qual havia de estabelecer habitantes com características
determinadas pelos que debatiam; Cícero tende a apresentar um povo, que
pode muito bem ser o romano, sem a preocupação de definir os conceitos de
virtude ou justiça nele. Esse povo passa de agente de revolução, por sede de
liberdade, a agente da passiva estilisticamente marcado, quase como
instrumental: agitari, appelari ... ab eo populo.
Tanto não se estabelece correspondência formal entre os predicativos
e seruos uoluntarios, como o verbo ativo

fica duplicado: agitari/appelari; a partir desse ponto o texto de

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Cícero ganha identidade própria, apesar de estar inserido em uma citação literal
de Platão.
A segunda parte do período mantém praticamente as mesmas diferenças,
sendo que no texto latino passa-se a usar o verbo no indicativo plural –ferunt-,
deixando-se indeterminado o sujeito. A estrutura gramatical em latim é mais
complexa do que em grego, que se utiliza de particípios presentes ativos e
passivos, o que dá maior versatilidade no emprego dos conceitos.
A conclusão dessa segunda parte é uma pergunta, que iniciada por
–partícula interrogativa e conclusiva- só deixa lugar para que Glauco concorde,
permitindo a Sócrates a complementação de sua própria conclusão
interrogativa.
Em latim, não há conclusão nem interrogação; há apenas finalidade –ut
necesse sit, que semanticamente corresponde a ; porém esta expressão
serve de predicativo aos pontos principais restantes do trecho citado, que se
desenvolve em quatro partes iniciadas pelo artigo neutro singular :

, “o que é próprio da liberdade”, com verbos no infinitivo,

com desdobramento de outras coisas menores – - com

verbos no indicativo, , com verbos no indicativo,

, com verbos no optativo e indicativo,

, com verbo no indicativo. Essas partes funcionam como pontos


principais na fala de Sócrates, que mantêm ligação sintática de sujeito com
, como predicativo pré-anunciado de todos os parágrafos seguintes.
Estilisticamente, a necessidade domina o sentido geral do texto, que se
desenvolve enumerando as coisas obrigatoriamente forçadas pelas condições
propostas, até o ponto capital que justifica os anteriores: faz mole a alma dos
cidadãos. Este é o ponto principal da narrativa de Platão.
Em latim, há a aproximação semântica do termo principal de Platão –
- com a expressão ut necesse sit; porém não há o destaque
correspondente ao texto grego, pois Cícero emprega esse termo central e
determinante do texto de Platão como termo subordinado, conseqüência de

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algo anteriormente dito. Além disso, o texto latino não divide o diálogo nos
pontos principais, alinhando-os todos em um só período subordinados a ut,
com verbos no subjuntivo.
Em parte, pode-se conceder a Poncelet (1947) certa razão, quando diz que
Cícero fica obrigado a acumular sua tradução de subjuntivos devido à rica
variação dos particípios em grego, sem equivalentes em latim: particípios
ativos, médios e passivos, de aspectos inacabados, pontuais e acabados, nos
gêneros masculino, feminino e neutro, singular, plural e dual. Resolve-se esse
problema em latim e nas línguas latinas com orações relativas, que tornam o
período estilisticamente mais pesado, talvez mais apropriado à oratória. Isso
torna-se claro no seguinte passo:
... eos autem qui in magistratu
priuatorum similes esse uelint, eosque
priuatos, qui efficiant, ne quid inter
priuatum et magistratum differat,
ferunt laudibus et mactant honoribus.

É evidente que o tradutor latino poderia dispor seu texto de outro modo,
como a tradução latina em Platonis opera, Firmin-Didot (1930):
... magistratus autem subditis pares et subditos pares magistratibus priuatim et
publice laudat atque honorat.
Nesta tradução, há um rigor de fidelidade ao texto original, que muitas
vezes não é alcançado em traduções consideradas exemplares. Tanto o sujeito
gramatical de laudat atque honorat é o distante termo popularis ciuitas, quanto o
de é equidistantemente .
Atualmente nota-se uma forte tendência a considerar servil uma
tradução que seja quase justalinear; porém o ofício do tradutor é traduzir –
trans-ducere -, isto é, reproduzir o que já está escrito, e não recriar o texto
original da maneira que lhe convém, ainda que esta maneira seja melhor do que
aquela.

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A intenção de Cícero, nota-se, não é a tradução do texto de Platão, mas


sua recriação em outra época e circunstância. Porém, o modo de introduzir o
trecho citado de Platão leva o leitor a pensar que Cipião está citando Platão:
... tum fit illud quod apud Platonem est luculente dictum, si modo id exprimere
Latine potuero; difficile factu est, sed conabor tamen. (De Re Publica I, 42)
(... então acontece aquilo que em Platão foi dito claramente, se agora eu
puder exprimir isso em latim; é difícil de fazer, mas tentarei contudo.)
Esta é a fala de Cipião, figura central na obra de Cícero tanto quanto o foi
Sócrates no texto de Platão; daí a expectativa do leitor em relação à tentativa de
alguém incomparavelmente capaz, posto em posição da maior relevância em
assuntos importantes pelo próprio Cícero.
Poncelet tende a achar que o modo de tradução de Cícero se deve, em
primeiro lugar, à inexistência dos mesmos particípios gregos na língua latina:
“L’absence d’un participe présent à la voix passive l’empêchait de placer
“similes”comme en facteur commun”.
(A ausência de um particípio presente na voz passiva o impedia de pôr
“similes”como como fator comum.)
Porém o texto da edição Firmin-Didot apresenta pares, não como fator
comum, mas repetido por obter maior clareza: magistratus pares; subditos pares.
Neste caso, se o tradutor quisesse isolar pares obteria o mesmo efeito estilístico
do texto de Platão, com .
Portanto, não houve impedimento para seguir a estrutura gramatical do
grego devido à falta do particípio. É claro que essa característica da língua
grega a faz mais versátil na expressão do pensamento; para confirmação disso,
pode-se citar a gramática de grego de E. Ragon, 363:
Grâce à sa richesse en participes, le grec en fait un usage beaucoup plus étendu
que le français ou le latin, pour exprimer avec concision les actions secondaires plus ou
moins étroitement liées à l’action principale.
(Graças à sua riqueza em particípios, o grego faz deles um uso muito
mais extenso do que o françês ou o latim, para exprimir com concisão as ações
secundárias mais ou menos estreitamente ligadas à ação principal.)

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Considerando-se apenas a falta de tal ou qual particípio em latim, não se


pode justificar a escolha estilística de Cícero para sua tradução. Com isso pode-
se entender que Cipião cita antes o próprio Cícero, do que Sócrates ou Platão.
As diferenças conceptuais entre os dois textos se revelam mais nessa
segunda parte, do que no início, pois Cícero parece ter esquecido que seu
personagem estava traduzindo Platão, e deixa falar Cipião como que autor
mesmo das idéias contidas nesse trecho. Onde há um poder de abstração entre
as relações sociais no texto grego, Cícero apresenta um quadro, concretamente
fundado na realidade social romana; exemplifica-se:
... ex quo fit ut etiam serui se
liberius gerant.

Essas relações sociais que Platão procura evidenciar como os que são
comprados, as que são compradas e os que compram desaparecem no texto
latino, que apresenta apenas escravos, não relacionados entre si nem com os
patrões; apresenta-se apenas um quadro inquestionável.
Outro fator marcante de diferença entre a língua grega e a latina é a
presença do artigo naquela e sua ausência nesta. De fato, no texto grego a
argumentação se desenvolve a partir de uma estrutura gramatical simples: o
artigo neutro singular , que junto a um substantivo declinado no genitivo traz
uma abstração do conceito representado por esse substantivo:

. Estes três elementos chegam a um ponto capital -

- que conclui a idéia


subjacente desde o início do trecho citado de Platão: a liberdade em excesso
causa um desvio nas mentes dos cidadãos; então estes passam a não aceitar
nenhuma regra, o que gerará a tirania.
Tanto a falta de particípios, quanto a de artigo não impossibilita uma
tradução do grego em latim ou em outras línguas. Essas expressões se traduzem
em latim por expressões equivalentes, sem artigo: peruenire libertatem (diferente

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da tradução de Cícero – libertatis esse omnia); extremum libertatis uulgi;[extremum]


bestiarum. O texto de Cícero tem seu próprio modo de dizer tais coisas;
seguindo a mesma ordem dos tópicos usados como exemplo por Platão, Cipião
emprega seu próprio modo de falar, fazendo como que uma glosa ao texto de
Platão. Nesse aspecto, Cícero deixa que se perceba sua visão particular sobre a
tradução desse trecho de Platão, que não se percebe só a Politéia, mas na maior
parte de tradução de que se tenha servido nos seus escritos. A maneira de
Cícero trabalhar as idéias e os conceitos gregos é autenticamente latina e
pessoal, não há preocupação de mostrar como ou porque tal conceito se traduz
desse ou daquele modo; a preocupação estilística está em primeiro plano, pois
uma tradução ou um comentário às obras de Platão não deveriam ser vistos
apenas por um ponto de vista da língua e cultura gregas. Estas deveriam
apresentar-se autênticas, mas adequadas ao estilo do autor-tradutor, que
deveria ser capaz de expor de modo pessoal um tema filosófico dentro de uma
obra pessoal e latina.
Nesse pequeno trecho da obra de Cícero pode-se perceber a capacidade
de um autor latino em mencionar idéias alheias dentro de uma obra
autenticamente latina, pois o De Re Publica é tão autenticamente latino quanto
a Politéia é autenticamente grega, isto é, ambas refletem idéias e argumentos
pertinentes à língua e à cultura de que provêm.
Não é justo fazer a crítica ao texto de Cícero tomando como parâmetro o
texto de Platão; pois este pode ser criticado segundo as idéias que se encerram
nele mesmo, ou seja, não se busca um padrão externo para servir-lhe de
modelo, aquele só é visto através deste, o que o condena a seguir um padrão
estranho à sua característica lingüística e cultural. É claro que um é tradução –
real ou pretendida – do outro, mas análise de um texto literário deve privilegiar
os padrões estilísticos desse texto, ou ele será marginalizado pela crítica por não
possuir as características estéticas inerentes em um texto literário.
A crítica de Poncelet (1947) limita-se a corrigir o texto de Cícero pelo de
Platão, como um professor costuma corrigir um aluno que tenta fazer uma
tradução de algum texto clássico. As obras de Platão tiveram grande fortuna

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crítica e literária e foram traduzidas ao latim mais de uma vez; porém nenhuma
tradução foi tão comentada quanto a de Cícero, embora dificilmente algum
professor a tenha passado aos alunos como modelo de tradução. Cícero parece
ter alcançado um grau de tradução nesse trecho ainda não compreendido nem
aplicável a um padrão de tradução tradicional, pois seu texto não é uma
tradução de Platão nem pertence a outro autor que não Cícero; este não é aluno
daquele, e pode-se dizer que nem mesmo o seguiu de perto.
Conquanto seja mais fácil determinar um ponto de partida para uma
análise crítico-literária, não se pode restringir a crítica do texto de Cícero ao
texto de Platão, ainda que se diga convencionalmente tradução, pois
evidenciam-se as particularidades de cada um tanto na gramática, quanto na
estilística. Assim faz-se uma separação dos textos, e cada um terá sua crítica,
que se encerrará no conjunto da obra.
O que se pode questionar antes de tudo é o conceito de tradução literária,
que parece ter aparecido exatamente nessa época, em que os autores romanos
tinham de citar alguma fonte grega, sem deixar de ser autores. Mas não se pode
seguir essa questão aqui; o que se pode fazer é permitir que um texto literário
inserido em uma obra literária e filosófica tenha sua própria crítica,
desvinculada do texto que contenha as mesmas idéias em época e cultura
diferentes.
Uma visão mais clara disso se dá quando se faz a relação entre o texto
traduzido do grego e um trecho das Tusculanarum Disputationum V,6:
Quid uero? illum, quem libidinibus inflammatum et furentem uidemus, omnia
rabide appetentem cum inexplebili cupiditate, quoque affluentius uoluptates undique
hauriat, eo grauius ardentiusque sitientem, nonne recte miserrimum dixeris?
(Mas quê? aquele que vemos inflamado e que endoidece de desejos, que
acomete tudo impetuosamente com cobiça insaciável, sedento, tanto mais
copiosamente quanto mais grave e ardentemente esgote os desejos de todo
lado, por acaso não poderias dizê-lo corretamente muitíssimo infeliz?)
A proximidade do vocabulário dá uma idéia de cumplicidade literária
em relação à imagem do homem democrático de Platão; porém neste trecho o

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autor emprega suas próprias idéias, sem preocupação de seguir, traduzindo ou


glosando, um outro texto que o obrigue a manter certa estrutura gramatical.
Essa liberdade na expressão das idéias só pode ocorrer quando o texto não for
uma tradução de algum texto grego. Ainda que Cícero mantenha certa
independência em suas traduções, não se pode esperar que suas citações sejam
ao mesmo tempo fiéis e independentes de idéias alheias, já que isto apresenta
contradição em si. Cícero não trocaria sua forma independente de expressão por
um rigor formal na tradução, por isso sua obra filosófica apresenta livre
reelaboração do que aprendera com os filósofos gregos.
Segundo Brignoli (1957), na tradução das palavras Cícero segue três
critérios: decalque, que consiste em traduzir por uma palavra latina que reflita
fielmente a grega, pela qual se cria uma linguagem científica de que Cícero foi
pioneiro; hendíadis, coordenação de dois termos para um só sentido; perífrase,
expressão mais ou menos longa para alcançar o conceito.
O processo de decalque requer uma consciência histórica da linguagem,
pois uma palavra que se apresenta como uma unidade é na verdade composta
de vários elementos que a constituem, sendo necessário um exercício de análise
e entendimento dessas partes e posteriormente sua recomposição com
elementos novos que reflitam a mesma idéia que a palavra original. Pode-se
exemplificar isso nas seguintes obras (apud Brignoli, 1957):
- no Lucullus 10, 30: “... istam quam ut dixi uerbum e uerbo

exprimentes comprehensionem dicemus ...” (... essa que, como disse,


exprimindo uma palavra a partir de outra, dizemos o ato de tomar ...);
- em Topica VIII, 35: “... Graeci appellant, id est uerbum ex

uerbo ueriloquium”(... os gregos chamam , isto é, etimologia: uma

palavra a partir de outra) e “Itaque hoc quidem Aristoteles appellat quod

Latine est nota”(E assim Aristóteles chama o que em latim é marca);


- em De Finibus III, 9, 32: “Sed in ceteris artibus cum dicitur artificiose,
posterum quodam modo et consequens putandum est, quod illi
appellant; cum autem in quo sapienter dicimus, id a primo rectissime dicitur.”(Mas

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nas restantes artes quando se diz artificiosamente, deve-se considerar de algum


modo também um sentido subseqüente, que aqueles [estóicos] chamam
; quando porém em algo dizemos sapientemente, diz-se isso
muitíssimo corretamente desde o princípio.);
- ibidem III, 5, 17: “Rerum autem cognitiones (quas uel comprehensiones uel
perceptiones uel, si haec uerba aut minus placent aut minus intelleguntur,
apellemus licet) ...”(e as concepções das coisas – que ora
compreensões ora percepções, se estas palavras ou agradam menos ou são
menos entendidas, é lícito chamemos )

[ perceptio (ação de colher; percepção)];


- ibidem III, 6, 20: “... quod aliquod pondus habeat dignum aestimatione, quam
illi uocant, contraque inaestimabile quod sit superiori contrarium.”(... o que

tenha algum peso digno de apreciação, que aqueles [estóicos] nomeiam ,


e ao contrário digno de nenhum apreço o que seja contrário a algo anterior.);
- ibidem III, 15,51: “Hinc est illud exortum quod Zeno , contraque

quod nominauit, cum uteretur in lingua copiosa factis tamen


nominibus ac nouis, quod nobis in hac inopi lingua non conceditur; quamquam tu hanc
copiosiorem etiam soles dicere...“ (Daqui é aquela derivação que Zenão denominou
e contrariamente , como usasse, contudo, de
nomes refeitos e inovados na copiosa língua grega, o que a nós não se concede
nesta pobre língua; apesar de que tu costumas dizer ser esta até mais copiosa ...)
[ “o que está à frente”– particípio perfeito de “guio”];
- ibidem III, 16, 53: “...idque ita definimus, quod sit indiferens cum
aestimatione mediocri; quod enim illi dicunt, id mihi ita occurrit ut
indifferens dicerem.” (... e assim definimos isso que é indiferente com mediana
apreciação; então o que aqueles dizem ocorreu-me como que
dissesse indiferente.);
- em Academica I, 11: “... quam ille , nos uisum appellemus licet,
et teramus hoc uerbum quidem, erit enim utendum in reliquo sermone saepius.”(... que

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aquele [Zenão] chama , nós, é lícito, chamemos visão e gastemos


esta palavra de fato, pois haverá de ser usada em nosso discurso mais
freqüentemente), e “Att. - Quonam enim modo diceres? Varro – Sed,
cum acceptum iam et approbatum esset, comprehensionem appellabat, similem iis rebus,
quae manu prenderentur ...”(Ático – Então de que modo dirias ?
Varrão – Mas, como já tivesse sido aceito e aprovado, chamava o que se pode
apreender, semelhante a essas coisas que se tomem com a mão);
- em De Natura Deorum III, 11: “Illa uero cohaeret et permanet naturae
uiribus, non deorum; estque in ea iste quasi consensus, quam Graeci
uocant, sed ea quo sua sponte maior est, eo minus diuina ratione fieri existimanda
est.”(Essa na verdade é coesa e permanece pelas forças da natureza, não dos
deuses; e há nela esse quase consenso, que os gregos chamam , mas
tanto ela é maior espontaneamente, quanto menos deve-se estimar que acontece
por uma razão divina.);
- no Orator XIX, 61: “... non enim inuentor aut compositor aut actor qui haec
complexus est omnia, sed et Graece ab eloquendo et Latine eloquens dictus est
...” (... de fato, não é inventor ou compositor ou ator o que abraçou estas coisas
todas, mas tanto em grego, a partir de falar, é dito quanto em latim,
eloqüente ...);
- ibidem LXI, 204: “... sequitur usus, de quo est accuratius disputandum. In quo
quaesitum est in totone circuitu illo orationis, quem Graeci , nos tum
ambitum, tum circuitum, tum comprehensionem aut continuationem aut
circumscriptionem dicimus ...”(...segue-se um uso de que se deve debater mais
acuradamente em que é questionado: em todo aquele período de discurso, que
os gregos dizem , nós ora circunlóquio ora período ora compreensão
ou continuação ou circunscrição ...);
- em Tusculanarum Disputationum III, 8, 16: “Veri etiam simile illud est
qui sit temperans, - quem Graeci appellant eamque uirtutem
uocant, quam soleo equidem tum temperantiam, tum moderationem appelare, non
nunquam etiam modestiam, sed haud scio an recte ea uirtus frugalitas appellari possit,

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quod angustius apud Graecos ualet, qui frugi homines apppellant, id est,
tantum modo utiles; at illud est latius; omnis enim abstinentia, omnis innocentia – quae
apud Graecos usitatum nomen nullum habet, sed habere potest : nam est
innocentia adfectio talis animi, quae noceat nemini – reliquas etiam uirtutes frugalitas
continet; quae nisi tanta esset et si iis angustiis, quibus plerique putant, teneretur,
nunquam esset L. Pisonis cognomen tanto opere laudatum.”(Também isto é
semelhante ao verdadeiro: o que seja temperante, - que os gregos chamam
e denominam essa virtude , que costumo então chamar
ora temperança ora moderação alguma vez até modéstia, mas não sei se
corretamente essa virtude possa ser chamada frugalidade, o que junto aos
gregos vale mais estritamente, os quais chamam homens frugais ,
isto é, tão somente úteis; mas isso é mais amplo, pois toda abstinência, toda
inocência – que junto aos gregos nenhum nome usado há, mas pode haver
: pois inocência é afecção de tal ânimo, que a ninguém prejudique –
frugalidade contém também as restantes virtudes, que se não fosse tamanha e
se nessas estreitezas3 com que muitos pensam se contivesse, nunca teria sido
louvado tanto o cognome de Lúcio Pisão4.).
Quando Cícero sente que a palavra latina não é suficiente para expressar
o conceito grego, ajunta-lhe uma outra, que ajuda a explicar:
- em De Natura Deorum, II, 18, 47: “Cumque duae formae praestantissimae
sint ex solidis, globus – sic enim interpretari placet – ex planis autem

circulus aut orbis, qui graece dicitur, ...” (e como sejam duas figuras

notabilíssimas dos sólidos, globo – pois assim agrada explicar – e dos

planos círculo ou órbita, que em grego se diz , ...);


- em ibidem II, 22, 38: “Talis igitur mens mundi cum sit ob eamque causam uel
prudentia uel prouidentia appellari recte possit (graece enim dicitur)
...”(Portanto como é tal a mente do mundo, e por essa causa pode-se

3 Sentido estrito de “econômico”, como em Horácio, Sat. 1, 3, 49: “Parcius hic uiuit, frugi
dicatur”(Vive este mais mesquinhamente, diga-se moderado).
4 Lucius Calpurnius Piso, que ganhou o cognome de Frugi, foi cônsul em 133 a.C.

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corretamente chamar ou prudência ou previdência - pois em grego se diz


- ...);
- em De Finibus III, 6, 21: “... simul autem cepit intelligentiam uel notionem
potius, quam appellant illi, ...”(e ao mesmo tempo concebeu inteligência

ou antes noção, que aqueles [os estóicos] chamam ...);

- no Timaeus 4, 13: “... id optime adsequitur quae Graece , Latine –


audendum est enim, quoniam haec primum a nobis nouantur – comparatio proportioue
dici potest.” (... segue isso que em grego se diz muito bem , em latim –
pois deve-se ousar, já que primeiro estas coisas são inovadas por nós – pode-se
dizer comparação ou proporção.);
- no Lucullus VI, 17: “... propterea quod nihil esset clarius (sic), ut
Graeci; perspicuitatem aut euidentiam nos, si placet, nominemus fabricemurque, si opus
erit, uerba; ...” (... por isso que nada seria mais claro que , como dizem
os gregos; nós, transparência ou evidência, se agrada, denominemos e forjemos,
se necessário for, palavras; ...).
Algumas dessas duplas formam verdadeiras hendíadis, como:
- no Timaeus 8, 27: “... animus autem oculorum effugit optutum, est autem
unus ex omnibus rationis concentionisque, quae Graece, sempiternarum
rerum et sub intellegentiam cadentium compos et particeps; ...” (a alma evita a visão
dos olhos e é única de todos senhora e partícipe de razão e harmonia, que em
grego se diz , das coisas eternas e que caem sob a inteligência);
- no De Diuinatione I, 55, 125: “Fatum autem id appello quod Graeci
, id est ordinem seriemque causarum, cum causa causae nexa rem ex se

gignat.” (Chamo destino o que os gregos chamam , isto é, ordem e


série das causas, quando uma causa conexa à outra gere de si um fato.).
Há perífrases que se formam com substantivo e genitivo:
- no De Officiis I, 40, 142: “ Deinceps de ordine rerum et de opportunitate
temporum dicendum est. Haec autem scientia continentur ea, quam Graeci
nominant, non hanc, quam interpretamur modestiam, quo in uerbo modus

inest, sed illa est , in qua intellegitur ordinis conseruatio.” (Em seguida

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deve-se falar de ordem das coisas e de ocasião favorável. Estas são contidas por
aquela ciência que os gregos denominam , não esta que interpretamos
como moderação, palavra em que está presente modo “medida”, mas
é aquela em que se entende conservação da ordem.);

- no Lucullus 8, 26: “Itaque argumenti conclusio, quae est graece ,


ita definitur: ratio quae ex rebus perceptis ad id quod non percipiebatur adducit.” (E
assim a conclusão do argumento, que em grego é , assim se define:
razão que das coisas percebidas conduz ao que não era percebido.);
- no Orator 3, 10: “Has rerum formas appellat ille non intellegendi
solum sed etiam dicendi grauissimus auctor et magister Plato, ...” (Estes modelos
chama não só de entender, mas também de dizer, aquele seríssimo autor
e mestre Platão, ... );
- no De Finibus V, 8, 25: “Democriti autem securitas, quae est animi
tranquilitas, quam appellauit , eo separanda fuit ab hac disputatione, quia
ista animi tranquilitas ea est ipsa beata uita; ...” (A segurança de Demócrito, que
está na tranqüilidade da alma, que chamou , até teve de ser afastada
desta discussão, porque essa tranqüilidade da alma é aquela mesma vida feliz;
... );
- no De Diuinatione I, 41, 90: “... qui et naturae rationem, quam
Graeci appellant, notam esse sibi profitebatur et partim auguriis, partim
coniectura, quae essent futura, dicebat.” (... que tanto a razão da natureza, que os
gregos chamam , confessava que conhecia, quanto uma parte por
augúrios, outra parte por conjectura, dizia quais coisas haveriam de acontecer.).
Algumas perífrases se formam com substantivo e adjetivo:
- no De Finibus III, 17, 57: “De bona autem fama – quam enim appellant
aptius est bonam famam hoc loco appellare quam gloriam - ...” (Da boa

fama – que chamam [os estóicos] é melhor chamar boa fama neste
ponto do que glória - ...);

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- ibidem III, 14, 45: “... sic recta effectio – enim ita appello,

quoniam rectum factum - ...” (... assim uma correta ação – pois assim

chamo , já que um correto feito é - ...);


- no De Diuinatione II, 42, 89: “Vim quamdam esse aiunt signifero in orbe,
qui graece dicitur, ...” (Dizem que há uma certa força no curso dos

astros, que em grego se diz , ...);


- no De Natura Deorum III, 6, 15: “Consilium illud imperatorium fuit, quod
Graeci appellant, sed eorum imperatorum, qui patriae consulerent, uitae
non parcerent; ...” (Aquela foi uma deliberação de comando, que os gregos
chamam , mas daqueles comandantes que atendiam à patria, não
poupavam a vida.);
- ibidem I, 20, 33: “Hinc uobis exstitit primum illa fatalis necessitas, quam
dicitis, ut, quidquid accidat, id ex aeterna ueritate causarumque
continuatione fluxisse dicatis.” (Aqui vos sobressai primeiro aquela fatal
necessidade, que dizeis [particípio perfeito de ;

: o que é designado pelo destino], de modo que, o que quer


que aconteça, possais dizer ter decorrido da verdade eterna e da continuação
das causas.);
- no De Officiis I, 3, 8: “Perfectum officium rectum, opinor, uocemus,
quoniam Graeci , hoc autem commune officium uocant.”
(Denominemos correto dever perfeito, creio, já que os gregos denominam
, e este dever comum .).
Há ainda perífrases constituídas de proposição relativa:
- no Lucullus 6, 18: “Cum enim ita negaret quidquam esse, quod comprehendi
posset – id enim uolumus esse -, ...” (Pois como negasse assim
existir o que quer que fosse que pudesse ser compreendido – pois queremos
que isso seja - ...);
- ibidem 12, 38: “Nam, quo modo non potest animal ullum non appetere id, quod
accommodatum ad naturam appareat – Graeci id appellant -, sic non potest

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obiectam rem perspicuam non approbare.” (Pois, de que modo não pode algum
animal não procurar o que se mostre ajustado à natureza – os gregos a isso
chamam -, assim não é não possível aprovar algo diáfano proposto.);
- no Orator 36, 126: “Quicquid est enim illud, in quo quasi certamen est
controuersiae, quod Graece dicitur, ...” (De fato o que quer que seja
aquilo em que há como que uma contenda em disputa, que em grego se diz
, ...);
- nos Topica XXIV, 95: “Sed quae ex statu contentio efficitur, eam Graeci
uocant; mihi placet id, quoniam quidem ad te scribo, qua de re agitur
uocari.” (Mas a contenda que se faz a partir de posição, a ela os gregos chamam
; a mim, já que a ti escrevo, agrada que isto se chame “do que se
trata”.);
- nos Paradoxa Stoicorum, Proemium, 4: “Quae quia sunt admirabilia
contraque opinionem – ab ipisis etiam paradoxa appellantur -, temptare uolui possentne
proferri in luce, id est in forum ...” (Coisas que como são admiráveis e há opinião
contra – por eles mesmos também são chamadas paradoxa -, quis ver se
poderiam ser trazidas à luz, isto é ao foro ...);
- no De Finibus III, 10, 33: “Id autem sequens illud etiam quod prodesset –
enim sic appellemus – motum aut statum esse dixit e natura absoluto.” (E

seguindo isso, o que também fosse útil – pois assim chamemos –


disse [Diógenes] ser movido ou estabelecido a partir da natureza
perfeitamente.).
Além disso não faltam as definições construídas segundo os princípios
da lógica:
- no Orator 38, 125: “... et quasi actuosae partes duae: quarum alteram in
uniuersi generis quaestione pono, quam, ut supra dixi, Graeci appellant , alteram

in augendis amplificandisque rebus, quae ab isdem est nominata.” (... e


como que duas partes agentes, uma das quais ponho em questão de ordem
geral, que, como disse acima, os gregos chamam , outra nas coisas a ser

aumentadas e amplificadas, que pelos mesmos foi denominada .);

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- no De Finibus I, 7, 22: “Iam in altera philosophiae parte, quae est quaerendi


ac disserendi, quae dicitur, iste uester plane, ut mihi quidem uidetur, inermis
ac nudus est.” (Já em outra parte da filosofia que é de procurar [Método] e
debater [Dialética], que se diz , esse vosso [Demócrito], como na
verdade me parece, é exatamente inerme e nu.);
- no De Natura Deorum I, 11, 28: “Nam Parmenides commenticium quiddam
coronae similitudine efficit appellat continentem ardore lucis orbem, qui
cingit caelum, quem appellat deum.” (Pois Parmênides produz algo imaginado em
semelhança de coroa – ele o chama - que contém com ardor da luz o
orbe, que cinge o céu, que chama deus.).
Há portanto um critério constante e uniforme que Cícero emprega para
traduzir palavras gregas, na sua obra filosófica. Nas obras consideradas
políticas (De Re Publica e De Legibus), não há palavras gregas em caracteres
gregos; só no De Oratore elas aparecem pela primeira vez. Quanto à expressão
(as coisas comuns dos amigos e
cara igualdade) que se lê em algumas edições do De Legibus, depois das
palavras unde enim illa Pythagorea vox de amicitia? ... (I, 12, 34), é uma inserção de
Aldo, o Velho, para completar uma lacuna dos códices (dois Vossianos e um
Heinsiano) mais importantes que derivam de um arquétipo perdido5, segundo
Brignoli (1957). Há ainda (II, 13, 32) devido ao texto corrompido e
inserida sem muito comprometimento semântico no texto: “Egone? divinationem,
quam Graeci appellant, esse sentio, et huius hanc ipsam partem, quae est in
auibus cetrisque signis, quod disciplinae nostrae.” (Eu? adivinhação que os gregos
chamam , sinto que existe, e que é esta mesma parte dela, que está nas
aves e nos restantes sinais, o que é da nossa disciplina.) Parece haver um
propósito muito claro a esse respeito na composição das obras que poderiam ter
importância maior na representação da cultura latina como elemento vetor do
conhecimento helênico para as futuras gerações.

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É evidente que as obras filosóficas de Cícero possuem sua própria


importância na tradição literária latina, mas não carregam em si o dever de
representar lingüisticamente somente caracteres latinos; elas tratam de assuntos
pertinentes aos romanos em particular, mas partem de um pressuposto geral.
Assim, a Oratória, a Filosofia, os conceitos de virtude são assunto já debatido e
exposto na cultura helênica. Um novo enfoque foi dado por Cícero e seus
contemporâneos a esses temas em uma sociedade que procura apresentar-se
como a nova realidade, não inferior a qualquer cultura anterior.
Essas obras filosóficas vão buscar na origem os conceitos e as palavras
que representam os valores que antes eram dos gregos, e então passam aos
romanos; por isso as palavras gregas em caracteres gregos permitem que um
autor como Cícero, representante da nova elite cultural, dê autenticidade a suas
idéias que partiram de algo já estabelecido, mas não adequado ao modo de
pensar desse novo tempo. Com as obras políticas, especificamente o De Re
Publica, isso não deve acontecer, pois o mundo romano deve apresentar seu
próprio caminho, independente de outros já batidos e conhecidos. Essa
preocupação passa pela escolha do vocabulário, específico sob este ponto de
vista, que traduz e substitui as fórmulas e os termos gregos da obra que traz o
pensamento original.
Também é evidente que só essa busca do modo de expressão próprio não
justifica certos desvios literários admitidos por Cícero em suas citações da obra
de Platão, pois muitos outros também traduziram e continuam a traduzir as
obras gregas com precisão.
Em suma, Cícero traz a seu tempo uma polêmica filosófica e política
tratada com certa parcialidade, pois as poucas imagens sugeridas no texto
traduzido, ou citado, da Politéia não reproduzem certamente as idéias que
estão no texto de Platão. O ponto de vista latino procura o real e cria imagens
que comovem, o grego também procura o real, mas parece tão distante quanto

5cf. Aug. Krauss Emend. In Cic. Libros de legg. Neustettin 1841. Há outra variante:
“as coisas comuns dos amigos” e “o amigo é
um outro ele mesmo”, cf. Porphirius, De Vita Pythag., 33.

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se possa compreender hoje; as imagens de Platão estão em um plano fora dos


sentidos, que Cícero não poderia aplicar em sua República de 150 a.C. É difícil
aceitar que esses romanos da geração anterior à de Cícero pudessem debater
considerando dialeticamente o processo de entendimento percorrido por
Sócrates, com as idéias de Platão. Esse processo descrito por Platão também
busca o real, apesar de imperceptível aos sentidos físicos, mas esse real é muito
diferente daquele de Cícero, que o busca com a praticidade que se pode aplicar
ao pensamento filosófico. Ambos parecem estar na mesma linha em sentido
contrário, o plano estabelecido é o mesmo, a busca do real e verdadeiro através
do debate de idéias se distanciam quando há a tentativa de aplicação desse
pensamento à vida da cidade. O pensamento de Cícero, persuasivo e preciso,
traduz o processo dialético de Platão propondo sua própria representação do
conhecimento, com meios dispostos pela teorização da prosa latina, exercida
por Cícero na oratória e na eloqüência, que prescrevem a forma de apresentação
de um texto, seja filosófico seja político; essa apresentação retórica se sobrepõe
ao processo de entendimento que Platão faz vigorar acima de tudo, como um
caminho próprio para alcançar o estágio superior do conhecimento.
A maior transgressão de Cícero com relação às idéias de Platão não são
de Cícero, e sim do meio pelo que essas idéias deveriam ser filtradas, que para
ser aceitável formalmente inverte os conceitos e as relações, altera as
perspectivas, reveste os modelos ideais de uma aparência reconhecível pelos
sentidos, produzindo uma arte apaixonada por si mesma que detém os critérios
basilares de uma nova ciência da expressão.
As formas estruturais da obra de Cícero impõem-se como pressupostos
básicos antes de tudo que se queira exprimir. Desse ponto de vista, sua lógica
parece encadeada principalmente quando se procura alcançar algo que esteja
fora ou além dos sentidos naturais, pois uma perspectiva que se mantém
apenas pelo raciocínio lógico e que somente com ele pode alcançar o fim
desejado passa a segundo plano quando se lhe impõe uma estrutura ou veículo
de expressão que requer arte e conhecimento voltados para si. Essa estrutura
retórica se sobrepõe a tudo que ela expressar, de instrumento passa a essência,

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de elemento condutor passa a elemento veiculado, deixando em evidência o


que for necessário para a melhor apresentação, mesmo que não haja muito para
se apresentar. Como este não deve ser o caso de Cícero, especificamente no De
Re Publica e no trecho traduzido da Politéia, pode-se imaginar que, além das
dificuldades de entendimento de idéias tão incomuns ao mundo dos sentidos,
ele tenha buscado a melhor forma sem ocultar as idéias para o leitor de sua
época, sabendo que a estética textual seria apreciada antes de tudo.
Para o trecho em questão pode haver muitas traduções que dão a lição
não só da língua e da cultura gregas, mas também do conhecimento que elas
encerram; dessas muitas traduções, a de Cícero deve-se considerar em
destaque, pois se primeiro ensina o modo artístico de expressão caro à sua
época passa a seguir sua visão própria do fato descrito, que não pode ser
desprezada. De fato, Cícero emprega sua arte, percorrendo o caminho de
Platão, como alguém que tem entendidas todas as partes de um todo, mas as
apresenta envolvidas em seu próprio pensamento, deixando a totalidade não
mais ideal, mas mais distante dos que a buscarem em sua obra.

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III- Marcas de Aristóteles

Para Cícero, o filtro principal das idéias de Platão veio a ser Aristóteles,
com seu modo epistemológico de visão do mundo e da natureza humana.
Quem procura alcançar o mundo das idéias através de um raciocínio lógico
aplicável à natureza das coisas, sendo forçado a remeter-se a uma praticidade
inerente à época e à cultura romana do século I a. C., deve ter-se visto às voltas
com graves dificuldades não só de entendimento, mas ainda de expressão para
transmissão dessas idéias. Somando-se a isso, a obra de Aristóteles torna-se
referência básica, influenciando as futuras gerações que teriam de conviver dali
em diante com essas duas referências da história da filosofia e da política.
O que torna grave esse processo de entendimento é que Aristóteles,
tendo sido discípulo de Platão, não procura a forma de conhecimento através
de um raciocínio dialético; antes propõe uma nova visão, pela qual o mundo se
apresenta como modelo a ser imitado, que o homem deve compreender
desenvolvendo novos modelos através da arte. O que pode parecer uma
contrafação, isto é, imitação fraudulenta, talvez seja parte do processo de
entendimento para ambos, que se perdera naquela transição por que passara a
forma de conhecimento: mudança do que se conhece hoje como clássico ao
mundo helenístico, até a época de Cícero.
Sabe-se hoje muito pouco do que teria escrito Aristóteles, apesar da
magnitude de sua obra; tem-se como certo que, com exceção da Constituição de
Atenas, seus escritos são formas de anotação de aulas, coligidos por seus
discípulos e preservados para futuras publicações.
Da mesma maneira que Platão na Politéia, Aristólteles entretece na sua
Política os elementos de assunto político com elementos de assunto educativo.

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Fica claro que para Cícero foi inevitável o esforço de conciliação de ambos, com
um ponto a ser alcançado no primeiro, passando pelo segundo.
Resta verificar se Cícero, ao ler a obra política de Aristóteles, passou a
traduzi-la da mesma forma que fizera com a de Platão, isto é, revestindo de
força retórica as idéias da Politéia, ou se apenas empregou as palavras de
Aristóteles tal como as encontrou, atribuindo-lhe um contexto necessário em
cada momento, já que os escritos de Aristóteles são de natureza estilística
diferente, ou seja, prescindem de forma literária.
O que talvez possa facilitar a resolução do problema de leitura e
interpretação de Aristóteles é saber que Cícero não terá lido os escritos sobre
política e ética tais quais chegaram à atualidade, pois o que se sabe da tradição
dos textos de Aristóteles permite conjeturar que o que houver de comum em
um e em outro deve permanecer na visão de conceito, isto é, expressão de um
pensamento traduzido em palavra isolada de contexto. Diante disso, apresenta-
se a dificuldade intransponível da falta do texto original, que revelaria de modo
inequívoco o modo de leitura e de traduzir empregado por Cícero, conforme
cogitado no capítulo anterior, com relação a Platão. Paradoxalmente, pode-se
avaliar a presença das idéias de Aristóteles na obra de Cícero através da
utilização de conceitos utilizados por este na obra ético-política daquele, já que
as anotações a que se reduz a obra de Aristóteles ressaltam os pontos principais
a ser desenvolvidos em debates e palestras em forma de aula.
Nesse ponto, as marcas de Aristóteles em Cícero apresentam-se no
recorrente tema do princeps ciceroniano, e as indicações disso estão em uma
carta a seu irmão Quinto (III, 5, 1), datada em Túsculo, saindo o mês de outubro
ou entrando o de novembro de 54 a.C., ano em que começara a pesquisar os
livros necessários para escrever o De Re Publica:
“Aristotelem denique quae de re publica et praestanti uiro scribat ipsum loqui.”
(Aristóteles, afinal, as coisas que escreve sobre a república e o excelente
varão, ele mesmo fala.)
Essa referência permite pensar que Cícero examinava a obra política de
Aristóteles, não necessariamente na forma como se edita atualmente.

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Desse assunto, todos os que se dedicam à investigação das fontes do De


Re Publica sabem, principalmente porque no De Finibus (V, 4, 11) Cícero, dez
anos depois de concluída aquela obra, enfatiza o parecer de Aristóteles:
“Cumque uterque eorum docuisset qualem in re publica principem esse
conueniret, ...”
(E como um e outro [Aristóteles e Teofrasto] tivesse ensinado qual
cidadão convinha ser principal na república, ...)
Não é claro até aqui quanto da obra política de Aristóteles estaria na obra
de Cícero, sobre esse principal cidadão, já que tanto a obra de um como a de
outro encontram-se muito fragmentadas. No entanto, Júlio Lippert editou em
1891 a tradução latina de uma carta em árabe, tradução da que se diz ter sido
enviada de Aristóteles a Alexandre Magno, de um códice único do Vaticano
(Arab. 408), que despertou muita polêmica acerca de sua origem, credibilidade
e realização, mas que teve o acordo da crítica quanto à fonte grega vertida ao
árabe e quanto à proveniência de fontes aristotélicas (Plezia: 1966). Feitas essas
observações, perde importância a dúvida sobre sua autoria, se do próprio
Aristóteles ou de algum erudito familiarizado com sua obra e doutrina; o mais
importante é que a fonte de fato é Aristóteles, direta ou indiretamente. A
importância dessa carta para provar a influência de Aristóteles resume-se a
alguns termos empregados por Cícero no De Re Publica que parecem
concordar ou se aproximar bastante do conteúdo dessa carta e que podem ser
relacionados à obra política de Aristóteles.
No entanto, deve-se observar mais uma vez que não é provável que
Cícero tenha conhecido essa carta assim como a própria obra política de
Aristóteles da forma como se estabelece atualmente.
Retomando-se o tema do principal cidadão na cidade, cita-se no De Re
Publica o Livro II, 29, 51:
“Sit huic (i.e. Tarquinio tyranno) oppositus alter, bonus et sapiens et peritus
utilitatis dignitatisque ciuilis, quasi tutor et procurator rei publicae; sic enim
appeletur quicumque erit rector et gubernator ciuitatis. Quem uirum facite ut
adgnoscatis; iste est enim qui consilio et opera ciuitatem tueri potest. Quod quoniam

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nomen minus est adhuc tritum sermone nostro saepiusque genus eius hominis erit in
reliqua nobis oratione tractandum ...”
(Seja a este [isto é, Tarqüínio, o tirano] oposto um outro, bom, tanto
sábio quanto hábil em função e cargo civil, como que tutor e procurador da
república. Assim será chamado quem quer que venha a ser dirigente e piloto da
cidade. Fazei por reconhecer tal homem, pois esse é que pode guardar a cidade
por conselho e obras. Já que esse conceito até aqui foi menos usado em nossa
fala, e freqüentemente o gênero desse homem deverá ser tratado por nós no
restante discurso ...)
Em que pese a mutilação do texto de Cícero, neste ponto perderam-se
doze páginas na seqüência, deve-se observar que a expressão tutor e procurador
da república é a tradução latina de , já que o nome de
rei fora excluído pelos gregos e depois pelos latinos, conforme um trecho
anterior à última citação, II, 27, 49:
“Habetis igitur primum ortum tyranni; nam hoc nomen Graeci regis iniusti esse
uoluerunt; ...”
(Tendes então a origem primeira do tirano; pois os gregos quiseram que
este nome fosse do rei injusto, ...)
Na verdade, o termo tutor aplica-se ao que mantém e sustém órfãos, por
direito de lei; procurador aplica-se ao que foi constituído por lei vicário de direito
alheio. Ambos os termos são técnicos da área do direito. Ainda no século I esses
termos possuíam o mesmo valor, o que se atesta com o seguinte trecho da
Epístola de S. Paulo aos Gálatas, 4, 1-2:

(E digo: por quanto tempo o herdeiro é infante, em nada difere de


escravo, sendo senhor de todos; mas está sob tutores e procuradores até a data
fixada pelo pai.)

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Não é preciso mais exemplos para a constatação do sentido da expressão


usada por Cícero para o principal cidadão, já que até hoje esses termos guardam
o mesmo sentido. Contudo, é preciso estabelecer uma ligação dessa expressão
com a carta citada, traduzida do árabe por Júlio Lippert (Plezia: 1966, p. 141):
“Quiete uero et tranquillitate perfrui non est eiusmodi, quod quilibet sciat [...]
etenim si hoc ita esset, patres deberent bona sua filiis possidenda tradere inde a prima
eorum pueritia. Sed sicut nullo modo fieri potest, ut rei familiaris regimen
commendetur pueris, ita fieri nequit, ut tradatur ciuitatis regimen populo, cum sint
mores populi similes puerorum moribus, quorum utrumque genus desiderat custodes
et rectores.”
(Mas de quietude e tranqüilidade não é possível usufruir desse modo,
porque o que quer que saiba [...] porquanto se isto assim fosse, pais deviam
transmitir seus bens para ser possuídos pelos filhos daí, desde a primeira
infância deles. Mas como de nenhum modo pode acontecer que o regime da
coisa familiar seja recomendado às crianças, assim não pode acontecer que o
regime da cidade seja transmitido ao povo, quando os costumes do povo sejam
semelhantes aos costumes das crianças, cujo um e outro gênero requer guardas e
dirigentes.)
A versão latina de Lippert para , custodes et
rectores, não destoa da tradução de Cícero: tutor et procurator; antes enfatiza o
mesmo sentido em ambos os textos. Parece, por essa versão, que se pode provar
a presença de uma razão aristotélica, através do emprego da mesma expressão
para o principal cidadão na obra política de Aristóteles, já que este tinha o
hábito de comparar a constituição da família com a constituição da cidade,
como por exemplo em Política A 12 (1260 b14-21):

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(... pois já que toda família é parte da cidade, e essas coisas [perseguir o
bem e evitar o mal] são parte da família, é preciso ver que a virtude da parte
esteja em relação com a do todo, sendo necessário que os que vêem a virtude
em relação à cidade eduquem as crianças e as mulheres, se é que isso faz
diferença para ser zelosa a cidade, as crianças e as mulheres. Necessário é que
faça diferença; pois as mulheres são metade da população livre, e das crianças
surgem os companheiros da constituição.);
- na Ética a Eudemo H 9 (1241 b25-33):

(As outras associações são parte das associações da cidade, tal como a
associação de irmandade ou de ritos secretos ou as associações de negócios [ou
ainda de constituições]. Todas as constituições coexistem nas famílias, tanto as
diretas como as derivações – pois dá-se o mesmo com as harmonias e nas
constituições - , a monarquia do que é pai, a aristocracia do marido e mulher, a
constituição democrática dos irmãos, delas é derivação tirania, oligarquia,
democracia; também as formas de justiça são tantas.);
- na Ética a Nicômaco 12 (1160 b20-30):

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(Sobretudo mudam-se assim as constituições, pois muito pouco e muito


facilmente mudam-se. Alguém tomaria modelos muitíssimo semelhantes a elas,
por exemplo nas famílias. De fato, a associação do pai com relação aos filhos
tem esquema de monarquia, pois o pai cuida dos filhos; daí, mesmo Homero
saúda Zeus como pai. De fato, a monarquia quer ser governo hereditário. Entre
os persas, há o governo tirânico do pai, pois usam dos filhos como escravos.
Tirânico também é o governo do senhor em relação ao escravo, pois o interesse
do senhor faz-se no próprio governo tirânico.)
É também comum encontrar-se em Aristóteles relação entre o povo –
- e as crianças, o que enfatiza a tendência de aproximação de termos
usados na designação de família com os termos usados na designação de
política e de sistemas políticos; assim na Ética a Nicômaco 1. 1095a:

(Por isso o jovem não é ouvinte familiarizado à ciência política, pois é


inexperiente dos fatos da vida, e os discursos desses são também acerca
daquela; e ainda, sendo seguidor das paixões, ouvirá em vão e inutilmente, já
que seu objetivo não é conhecimento, mas ação. Em nada difere jovem na idade
ou no hábito juvenil, pois não do tempo é a falta, mas pelo viver por paixão e
perseguir cada coisa.)
Essa relação ética entre o jovem em geral e a multidão ou vulgo exprime
de modo claro o grau de aproximação por comparação da vida política e da

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vida cotidiana, pois se o povo tende a manter comportamento ético e político


guiado por ações práticas e imediatas, não exigindo nem esperando nada além
do que se apresenta como vantagem no momento, o jovem parece demonstrar
esse mesmo comportamento com relação à própria vida, procurando o que
pareça mais fácil e imediato e que lhe traga algum prazer, sem indagar sobre
suas conseqüências próximas ou distantes. Pode-se mais facilmente criticar tal
comportamento bastante comum na juventude; assim, ao aproximá-lo do
comportamento semelhante no povo em relação à ética e à política, o filósofo
estabelece de modo palpável a relação de inferioridade do sistema político
democrático, que é uma corrupção ou desvio – - da timocracia, a
pior das três formas de governo. Essa tendência mostra-se muito eficaz
retoricamente, já que um comportamento notoriamente conhecido é
aproximado de outro mais difícil de se reconhecer, fazendo-os paralelos pelo
que se reconhece como reprovável no comportamento juvenil; assim o que se
pode reprovar em um entende-se no outro, ou seja, o sistema democrático
justifica-se como o pior, porque é um desvio da timocracia, que não é senão a
terceira forma de governo, depois da monarquia e da aristocracia. Por esse
exercício de aproximação, Aristóteles demonstra seu pensamento político de
forma simples, já que não se pode desconhecer as relações básicas de família e
convívio social.
Com isso determina-se o ponto a que Aristóteles quer chegar pelas
comparações aproximativas: o povo, assim como o jovem, deve temer, já que o
argumento não é suficiente para fazê-los procurar o saber, e não o prazer.
Assim, na Ética à Nicômaco encontra-se:
- (1179b7)

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(E agora [os argumentos] parecem ser fortes para exortar e estimular os


jovens que são livres, e poderiam formar hábito generoso e verdadeiramente
amante do belo, penhorado da virtude...)
Continua-se aqui a relação de comparação, enfatizando a dificuldade que
a maior parte do povo tem de reconhecer o que é belo e bom, pois os
argumentos são capazes de evidenciar o que é melhor a cada um pelo raciocínio
lógico inerente ao ser humano, desde que tenha havido uma preparação para
que esses argumentos possam persuadir com vigor, isto é, uma educação
apropriada à importância do conhecimento. Isso manifesta-se muito bem na
mesma obra em:
-(1179b14)

(Pois vivendo pela paixão, perseguem os prazeres familiares e como os


terão, e evitam os sofrimentos contrapostos, e não têm noção do belo e
verdadeiramente agradável, como quem nunca experimentou.)
Fica muito claro o pensamento de Aristóteles nesse trecho, que revela o
ponto a que chega a condição da maioria em relação aos melhores cidadãos e
principalmente em relação a um primeiro cidadão, o principal.
Não se deve inferir porém que esses argumentos sejam absolutamente
exclusivos, pois há um meio de fugir a essa situação dentro de uma
comunidade, o hábito estabelecido por leis; somente assim pode-se redimir a
cidade da condição de igorância e decadência. Isso pode acontecer se houver
leis que se apliquem com a devida força na educação dos jovens:
- (1179b30)

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(É preciso antecipar o hábito como familiar da virtude, amante do belo e


desaprovando o vergonhoso. Desde jovem topar com uma correta condução
para a virtude é difícil, não tendo sido nutrido por tais leis; pois viver com
moderação e paciência não é agradável à maioria, sobretudo aos jovens. Por isso
é preciso ter-se disposto por leis a criação e as ocupações.)
- (1128b15)

(Nem com toda idade a paixão {acerca do pudor} combina, mas com a
juventude. Pois achamos ser preciso os que são de tal idade envergonhar-se
porque, vivendo pela paixão, erram muito e são impedidos pelo pudor.)
- (1156a30)

(A amizade dos jovens parece ser pelo prazer; pois estes vivem segundo
a paixão, e sobretudo perseguem o prazer para si mesmos e o que se apresenta.
Decaindo a idade, também os prazeres tornam-se outros.)
Por tais exemplos, pode-se constatar que sempre que Aristóteles
comparar a criança ou o jovem a alguma categoria política haverá uma
desqualificação, devido às desvantagens características da idade com relação ao
conhecimento e à virtude. Então, caracterizando o vulgo ou o povo como
criança, fica evidente a correlação de inferioridade nas virtudes políticas, e não
de inocência, carência ou qualquer outro sentimento que se possa atribuir ao
jovem e à criança.
Com isso comprova-se também o hábito de aproximação das categorias
familiares e políticas, de acordo com a idéia a ser debatida em um discurso. O

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fato é que Aristóteles se utilizara dos termos referidos do mesmo modo como
Cícero o fez no De Re Publica, aproveitando a mesma idéia política em seu
texto, a saber . Na Política, Aristóteles emprega essa
expressão freqüentemente:
- ( 10. 1258a31)

(Depois, ou é próprio do chefe de família e do governante também saber


acerca da saúde, ou não saber, ...)
- ( 11. 1314b7)

(Pois assim alguém que administra pareceria ser um chefe de família, não
um tirano, e não é preciso temer que alguma vez tenha precisão de recursos,
sendo senhor da cidade; ...)
- ( 11. 1314b38)

(Pois é preciso equipar e adornar a cidade, como sendo curador, e não


tirano ...)
- (1315a42)

(Pois o escopo é claro: é preciso não parecer tirânico aos governados, mas
chefe de família e principesco, e nem usurpador, mas curador, e perseguir as
coisas mais moderadas da vida, e não as excessivas ...)
Parece conveniente que Cícero tenha empregado esses termos
correspondentes à forma com que Aristóteles tratou os que deveriam governar,

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para designar o governante no De Re Publica, principalmente depois de ter


pintado a tirania de Tarqüínio, o Soberbo.
No Livro V do De Re Publica, Cícero parece acompanhar de perto o
conceito que Aristóteles desenvolve sobre o moderador da república,
mantendo-se essa mesma linha de aproximação comparativa, que terá
influenciado o autor romano em sua obra política. De fato, Aristóteles entende
que o governo é algo comum a quem governa e a quem é governado, devendo
haver o reconhecimento do poder de ambas as partes; assim o governante é
visto como um moderador e curador dos interesses dos que são governados.
Pode-se verificar isso mesmo na Política ( 1278b 38):

(O governo das crianças e da mulher [e de toda a casa, que chamamos


economia] certamente ou é em favor dos que são governados ou é em favor de
algo comum a ambos - isto é, em favor do que governa e dos que são
governados – e por isso mesmo, dos que são governados, como vemos também
em relação aos outros ofícios, como medicina e ginástica; eventualmente
também é em favor desses – isto é, do médico e do treinador.)
Em uma carta a Ático (VIII, 11), escrita em Fórmias nas calendas de
março de 49 a.C., Cícero refere-se ao dirigente da cidade que se tinha
representado nas obras políticas de forma bastante diligente, lembrando que
Cipião tinha falado assim, no quinto livro do De Re Publica (V, 4, 6):
Consumo igitur omne tempus considerans quanta uis sit illius uiri quem nostris
libris satis diligenter, ut tibi quidem uidemur, expressimus. Tenesne igitur
moderatorem illum rei publicae quo referre uelimus omnis? Nam sic quinto, ut opinor,
in libro loquitur Scipio:
- Ut enim gubernatori cursus secundus, medico salus, imperatori uictoria, sic
huic moderatori rei publicae beata ciuium uita proposita est, ut opibus firma, copiis

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locuples, gloria ampla, uirtute honesta sit; huius enim operis maximi inter homines
atque optimi illum esse perfectorem uolo.
(Consumo então todo o tempo considerando quão grande seja a força
daquele homem que retratamos bastante diligentemente em nossos livros, como
te parecemos ter feito. Tens, então, esse moderador da república ao qual
queremos relacionar tudo? Pois assim, segundo creio, no quinto livro fala
Cipião:
- Como ao piloto o curso a ser seguido, ao médico a saúde, ao
comandante a vitória, assim a este moderador da república a vida feliz dos
cidadãos foi proposta, para que seja firme nos recursos, rica em bens, de ampla
glória, de honesta virtude; e desta obra, a maior e a melhor entre os homens,
quero que esse seja o executor.)
O próprio Cícero faz essa referência à sua obra política, e ela torna-se
importante como fonte indireta, mas de mesmo autor, para suprir em parte a
lacuna que ficou no quinto livro.
Santo Agostinho também ajuda a suprir essa lacuna em uma de suas
cartas (Epistulae 104, 7):
Et ubi est quod et uestrae litterae illum laudant patriae rectorem qui populi
utilitati magis consulat quam uoluntati?
(E onde é que também vossa literatura louva o dirigente da pátria, que
atenda mais ao proveito do que à vontade do povo?)
Esse deverá ter sido o tema do quinto livro, em que Cícero seguiu mais
de perto Aristóteles, especificamente a Política e a Ética a Nicômaco, como
pode-se perceber pelos trechos traduzidos.
Porém, é preciso determinar como Cícero terá visto a questão da
aplicação das leis, para que o interesse comum prevaleça sobre vontades
individuais e sobre a força da maioria.
Segundo Júlio Lippert (Plezia, 1966), o autor da carta árabe afirma que
são necessárias duas coisas: uerecundia nimirum atque timor, (respeito e
certamente temor):

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Quae cum ita sint, opus est ciuitati legibus bene constitutis atque rectore, qui
earum curam gerat hominesque ad honestam uiuendi normam adducat, uiles quidem et
ignobilis naturae timore, nobiles autem indolisque egregiae uerecundia.
(Sendo assim, são necessárias à cidade leis bem constituídas e dirigente
que cuide delas e conduza os homens à norma de viver honesta, os vis e de
ignóbil natureza pelo temor, os nobres e de índole notável pelo pudor.)
Deve haver algum ponto na obra de Aristóteles em que essas mesmas
coisas sejam ditas, ou pelo menos de modo semelhante, pois assim se
restabelece a conexão entre o discutível autor da carta, editada por Lippert, e a
obra de Aristóteles, porque essa referência deve bastar para a constatação de
que Cícero utiliza essa nomenclatura de Aristóteles. Pode-se verificar isso nos
seguintes trechos da Ética a Nicômaco:
- (1179 b10) –

(É impossível que a maioria se volte ao belo e bom; pois não é afeita a


obedecer ao pudor, mas ao temor ...)
- (1179 b26) –

(Pois o que vive segundo a paixão não daria ouvido ao argumento que a
evite, nem mesmo o compreenderia; como é possível persuadir a mudar o que
assim está? Em geral, a paixão não parece ceder ao argumento, mas à força.)
- (1180 a4) –

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(Pois a maioria obedece mais à necessidade do que ao argumento, e mais


às penas do que ao belo. Por isso alguns acham que é preciso os legisladores
exortá-los à virtude e predispô-los em favor do belo, havendo assim de dar
ouvidos os que são conduzidos convenientemente pelos hábitos, e aos que são
desobedientes e mais ineptos impor castigos e punições, e expulsar
completamente os incorrigíveis; e acham ainda que o que é conveniente,
vivendo para o belo, obedecerá ao argumento, e que o ordinário, propenso ao
prazer, deve ser castigado com dor, como uma besta de carga.)
Parece que Aristóteles se refere a Platão, quando diz “alguns”; mas com
certeza esses pontos da Ética a Nicômaco aparecem ratificados no Livro V, 6, 8,
no De Re Publica:
- (Scipio): ... ciuitatibus in quibus expetunt laudem optumi et decus,
ignominiam fugiunt ac dedecus. Nec uero tam metu poenaque terrentur quae est
constituta legibus, quam uerecundia quam natura homini dedit quasi quendam
uituperationis non iniustae timorem. Hanc ille rector rerum publicarum auxit
opinionibus perfecitque institutis et disciplinis, ut pudor ciuis non minus a delictis
arceret quam metus. Atque haec quidem ad laudem pertinent quae dici latius
uberiusque potuerunt.
[Cipião]:
(...às cidades em que os melhores procuram o louvor e o decoro e evitam
a ignomínia e desonra. E nem são aterrorizados tanto por medo e por pena -
que é constituída por leis - quanto por vergonha, que a natureza deu ao homem
um como que um certo temor de censura não injusta. Esta aquele dirigente das
repúblicas aumentou com opiniões e concluiu pelas instituições e disciplinas, de
modo que o pudor afastasse os cidadãos dos delitos não menos do que o medo.
Mas estas coisas que pertencem certamente ao louvor poderiam ter sido ditas
mais ampla e abundantemente.)
Infelizmente, o Quinto Livro é muito fragmentado para se fundamentar
com outros exemplos essa relação entre lei e pena reiterada por Aristóteles em

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sua obra, especificamente nos trechos apontados antes. Mas a esse respeito há
um fragmento, aposto ao Livro Sexto, que retoma essa questão sob o ponto de
vista do dirigente da república:
Quam ob rem se comparet hic ciuis ita necesse est ut sit contra haec quae statum
ciuitatis permouent semper armatus. (Nonius, 256, 27)
(Por isso é preciso que este cidadão se prepare, para que seja contra estas
coisas que abalem o estatuto da cidade, sempre armado.)
Certamente essa questão terá sido tratada no Quinto Livro e em parte no
Sexto, além da referida carta árabe traduzida por Lippert (apud Plezia, p. 144):
Talis enim uir efficere potest, ut in ciuitatibus boni mores maneant pellanturque
ab eis delicta. Oportet autem hunc uirum esse insignem atque perfectum, non solum
beneficiis, iustitia, diuersisque uirtutum generibus, uerum etiam potentia et belli
apparatu praestantem, ut continere populum atque ad obsequendum legi adducere
queat.
(Tal varão pode fazer que nas cidades os bons costumes permaneçam e
sejam afastados delas os delitos. Convém que este varão seja insigne e perfeito,
não só por benefícios, justiça e diversos gêneros de virtudes, mas também
superior em poder e em aparato de guerra, para que possa conter o povo e
conduzi-lo a obedecer à lei.)
Esse tema da carta manifesta duas razões de se manter um governo
firme, que claramente estão incluídos na obra política e ética de Aristóteles, não
importando que essa carta tenha ou não tenha sido escrita por ele próprio. O
fato é que Cícero, provavelmente não tendo conhecimento dessa carta, revela o
mesmo pensamento político, um pouco alterado em alguns pontos, mas
essencialmente reprodutor das idéias políticas contidas na obra de Aristóteles.
A questão então é centrada em como o poder sobre um povo ou cidade
deveria ser estabelecido, de acordo com a experiência política dos antigos. De
fato, para Aristóteles não importa a condição do governante, seja rei seja
primeiro cidadão, em nada diferindo o ponto em questão, como proposto no
Livro III da Política (15, 12 86 b.28):

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(E há uma aporia também acerca do poder: ou é preciso que o que vai


reinar tenha uma força acerca de si mesmo, com que poderá forçar os que não
queiram obedecer? ou como é possível administrar o governo? pois se é senhor
também pela lei, nada fazendo segundo sua própria vontade contra a lei,
contudo é necessário que lhe caiba um poder, com que guardará as leis. Talvez
não seja difícil delimitar isso acerca do tal rei; pois é preciso que ele tenha uma
força, e que ela seja tão grande, que seja superior a de cada um indivíduo e a
muitos, e inferior à multidão ...)
Não é preciso muito esforço para verificar que o dirigente da república,
idealizado por Cícero, fundamenta-se essencialmente em Aristóteles,
principalmente em sua obra política e ética, como indicam esses trechos
destacados. Tudo que se procurar com relação ao modo como deve comportar-
se um dirigente de uma república na obra de Cícero pode-se encontrar nesses
escritos de Aristóteles, cujo empenho em configurar um cidadão digno de tal
poder possibilita a diferença fundamental para o pensamento romano entre o
dirigente – tutor et procurator – e o rei, ou mais especificamente o tirano.
Isto posto, o De Re Publica estabelece uma ponte entre as obras ético-
políticas de Aristóteles e a tal carta árabe editada por Lippert, em que a
designação para dirigente – em árabe mudabbir – cede lugar a comandante e rei,
conforme o caso; essa designação concorda exatamente com o dirigente da
república presente na obra de Cícero, apesar da fragmentação dos livros
justamente em que se devia debater o assunto.

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A crítica atual estabelece que Aristóteles elabora uma concepção


do comando ou poder na cidade não como algo único, ou pertencente a uma
forma ideal, modificando por uma variação múltipla a teoria das Idéias de
Platão, que estabelecera uma fonte única de poder e de tudo que se pudesse
relacionar a uma ordem racional do universo. Portanto o comando de um
Estado, ou de uma família, não teria um só padrão, mas vários padrões
determinantes a cada tipo de comunidade a ser dirigida.
Do mesmo modo deveria haver um diferente padrão para o conceito de
justiça e para o conceito de amizade, de modo que o real observável não
poderia ser conduzido a uma única forma de representação da realidade. Sendo
múltiplo, esse modelo deveria caracterizar-se pela natureza diferente de
autoridade, de amizade, de justiça e de virtude.
Como isso determina um tratamento diferente em Platão e Aristóteles,
pode-se verificar o tratamento que Cícero procura dar ao mesmo tema em sua
obra, delimitando certas noções em relação a um e a outro, sem adotar nem
admitir uma ou outra tendência, mas aplicando conceitos estabelecidos,
devidamente recortados, a uma realidade em que ele procura sua afirmação
política, ética e filosófica. É evidente que Cícero se utilizou de fontes de ambos
autores, às vezes por via indireta, com a de Aristóteles, às vezes aproveitando o
fundamento da idéia, mas modificando a forma de apresentação teórica,
devidamente arranjada para uma síntese livre o suficiente para marcar sua
própria presença na aplicação de um conceito estabelecido teoricamente por
Platão ou Aristóteles.
Já se disse acerca dos problemas das edições da obra de Aristóteles, mas
é preciso acrescentar que o seu mais longo escrito político, equivalente à
Politéia de Platão, é considerado perdido, apesar dos esforços de muitos
especialistas em determinar os caminhos que teriam tomado esses manuscritos,
que se sabe ter tido grande influência nesse assunto entre os estóicos, que
formaram politicamente as gerações posteriores, inclusive a de Cícero.
Os vários trechos assinalados antes indicam uma clara influência no
modo de articulação de conceitos cuja fonte é a obra ético-política de

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Aristóteles; além disso, o próprio Aristóteles afirma algumas vezes que


determinado assunto tratado em sua Política já fora tratado antes em seus
:

(Pol. , 6, 1278 b30-32) -

(Contudo, é fácil distinguir os modos ditos de governo; pois muitas vezes


definimos acerca deles nos discursos exotéricos.)
Esses discursos exotéricos eram destinados ao público e foram
justamente os que se perderam sem deixar vestígios, senão por via indireta ou
em outra obra do mesmo autor, como neste caso.
Nesses discursos, Aristóteles tratava das formas múltiplas que deveriam
revestir conceitos como autoridade, justiça e amizade, conforme as
circunstâncias em que se realizassem. Porém muito se discute sobre o sentido
exato da expressão , que tanto pode significar “os modos
já falados” das formas de governo quanto “os modos que são falados neste
momento”. Na primeira hipótese, reforça-se a tese de que esses discursos estão
entre os escritos perdidos de Aristóteles; na segunda, há ênfase da idéia de que
esses modos de governo estão sendo tratados de forma ampla, como tema
comum à maioria dos homens capazes de debater sobre tal assunto.
O que possibilita uma tomada de posição tendendo à primeira
interpretação é o emprego do verbo , primeira pessoa do plural, na
voz média, que indica o envolvimento de quem escreve ou fala com quem lê ou
ouve, entendendo-se que esse assunto foi debatido por Aristóteles, tendo em
vista o seu público, discípulos e colaboradores. Outro problema é que não se
sabe muito da natureza desses debates, que podem ter sido orais; mas isso não
alteraria o resultado da interpretação, apenas dificulta o modo de comprovação.
Como quer que sejam as dificuldades de estabelecimento das provas
desses discursos perdidos de Aristóteles, há indícios deles onde houver
referência ao mesmo tema retomado por outro autor, como no De Re Publica,

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em cujo Livro III, Carnéades faz uma demonstração de argumentos a favor e


sucessivamente contrários ao conceito de justiça, que se devia procurar no
indivíduo e na cidade.
De fato, Carnéades de Cirene (214 – 128 a. C.), fundador da Nova
Academia e iniciador do ceticismo, veio a Roma em 156 – 155 com o estóico
Diógenes de Babilônia e o peripatético Clitomarco para recorrer de uma multa
aplicada pelo Senado a Atenas pela destruição de Oropo. Entre seus discursos,
fez particular impressão sobre os romanos aquele de dois dias sucessivos,
dissertando no primeiro sobre a existência da justiça, e no segundo, a tese
oposta, com argumentos que deviam recordar aqueles de Trasímaco, no Livro I
da Politéia, de Platão.
Segundo Lactâncio (Inst. V, 16, 2 – 4), o segundo discurso de Carnéades
resumia-se ao seguinte:
Carneades ergo, quoniam erant infirma quae a philosophis adserebantur,
sumpsit audaciam refellendi, quia refelli posse intellexit. Eius disputationis summa haec
fuit: iura sibi homines pro utilitate sanxisse, scilicet uaria pro moribus et apud eosdem
pro temporibus saepe mutata, ius autem naturale esse nullum; omnes et homines et
alias animantes ad utilitates suas natura ducenti ferri; proinde aut nullam esse
iustitiam, aut, si sit aliqua, summam esse stultitiam quoniam sibi noceret alienis
commodis consulens. Et inferebat haec argumenta: omnibus populis qui florerent
imperio et Romanis quoque ipsis qui totius orbis potirentur, si iusti uelint esse, hoc est
si aliena restituant, ad casas esse redeundum et in egestate ac miseris iacendum.
(Carnéades então, já que eram fracas as coisas que eram afirmadas pelos
filósofos, assumiu a audácia de refutar, porque entendeu que podiam ser
refutadas. A suma de seu debate foi esta: que os homens sancionaram os
direitos em favor de seu proveito, a saber, variados segundo o costume e
mudados freqüentemente junto aos mesmos segundo os tempos; nenhum
direito natural há. Todos, homens e viventes, a natureza conduzindo, são
levados aos proveitos. Daí, ou nenhuma justiça há ou, se houver alguma, é a
maior estultícia, já que prejudicaria a si ocupando-se de vantagens alheias. E
apresentava estes argumentos: todos os povos que floresciam com o mando, até

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mesmo os próprios romanos, que tinham posse de todo mundo, se quisessem


ser justos, isto é, caso restituam as coisas alheias, deviam retornar às cabanas e
jazer em necessidade e misérias.)
Parece claro que Cícero tomara conhecimento dessas questões de
Aristóteles através dos estóicos, que deveriam trazer referidos certos temas que
o Estagirita tratara em uma obra perdida atualmente, mas que talvez Cícero
tivesse conhecido, direta ou indiretamente.
O capítulo VIII do Livro III do De Re Publica inicia-se com Filo
concluindo um raciocínio em que há referência a essa obra de Aristóteles:
- ... et reperiret et tueretur, alter autem de ipsa iustitia quattuor impleuit sane
grandis libros.
(... tanto encontrasse quanto guardasse, o outro encheu por certo quatro
grandes livros sobre a mesma justiça.)
É evidente que o assunto neste ponto é a justiça e que Filo faz alusão a
um – Platão -, que debatera sobre o tema em Politéia, , e a outro –

Aristóteles -, que em sua obra correspondente à do mestre, ,


debatera sobre o mesmo tema em quatro livros.
Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles dá um tratamento especial ao tema
no Livro V, como que refletindo o desenvolvimento do mesmo tema por seu
mestre. Fazendo esse reflexo, ao dizer que eram verdadeiras as palavras de
Bias, um dos chamados sete sábios da Grécia: (o poder
revela o homem), Aristóteles ressalta que somente a justiça entre todas as
virtudes é o bem de um outro:
(1130 a3)

(Por isso mesmo somente a justiça dentre as virtudes parece ser um bem
alheio, pois é em favor do outro.)
De fato, a referência ao mestre parece ser à fala de Trasímaco, no Livro I
da Politéia (343c2):

SUMÁRIO
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(... a justiça e o justo é um bem alheio por natureza ...)


Na verdade pode-se inferir que esse tema paralelo entre Platão e
Aristóteles tenha sido desenvolvido nessa obra perdida de Aristóteles, de forma
sistemática, como faz pensar o tratamento que Cícero deu ao tema em sua
própria obra, além do paralelismo notado entre os dois primeiros, tomando-se
por base a Politéia de Platão. Em sua Política, Aristóteles faz uma crítica a
Platão que parece ser retomada ou repetida de alguma outra obra, como os
quatro Livros de .
Diferentemente de Platão, Aristóteles estabelece no Livro III da Política
que as formas de governo dependem da natureza da comunidade em que esse
governo será exercido; por exemplo, o governo despótico – – se

exerce na relação entre senhor e escravo, o governo familiar – - se


exerce na relação entre o pai e os filhos, mulher e toda família, os governos
políticos – - se exerce com relação a cidadãos, fundamentado
sobre sua igualdade e direito:
(1279 a8) –

(Por isso, em relação aos cargos políticos, quando o poder esteja


constituído segundo a igualdade e semelhança dos cidadãos, acham digno
exercer o poder por turno ...)
Aristóteles estabelece a relação entre dois temas: o poder ( ) e a

justiça ( ), ampliando a teoria das formas de governo, de acordo


com a comunidade a que se aplicasse. No Livro I da Política, há uma crítica que
parece se dirigir a Platão, com relação ao modo como este não reconhece a
diferença entre as diversas formas de poder: político, real, familiar e despótico:
(1252 a7) –

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(Quantos acham que é o mesmo o governo político, de rei, de pai de


família e de senhor de escravos não dizem bem. Pois consideram que esses
diferem pelo maior ou menor número, mas não [acham] que cada um desses
diferem pela forma; por exemplo, se [o governo for] sobre poucos, é de senhor
de escravos, se sobre mais, de chefe de família, se ainda sobre mais, político ou
de rei, em nada diferindo assim uma grande família de uma pequena cidade.
Quanto ao governo político e de rei, consideram que, quando um mesmo
institua, é de rei, e é político, quando segundo as normas de tal ciência em parte
é o que governa e em parte é o que é governado. Essas coisas não são
verdadeiras.)
Neste ponto, a crítica cabe tão bem a Platão quanto a Cícero, já que este
tende a unificar a idéia básica de governo, seguindo o raciocínio daquele,
explicitamente no Político, 258E – 259C:

(Então, poremos [o governo] político e de rei e de senhor de escravos e


ainda de chefe de família como um só, dirigindo-nos a todas essas coisas, ou
podemos dizer que tantas são essas artes quantas são chamadas pelos nomes?)
A conclusão a que o jovem Sócrates é levado é que não há diferença entre
o poder exercido por um rei, por um político, por um senhor de escravos ou por
um chefe de família, admitindo-se que há uma só ciência para todas essas
habilidades.

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Por isso, pode-se explicar a forma com que Aristóteles, no Livro III da
Política, apresentou o mesmo assunto, criticando o ponto de vista de Platão e
dos platônicos quanto à idéia concebida de governo como única.
Seguindo essa análise do pensamento de Aristóteles, Moraux (1957, p.
28) procura estabelecer o elo perdido entre essa crítica do discípulo ao mestre
com os traços da obra perdida , ressaltando a referência aos

, como discussões de inspiração aristotélica que


apresentavam as críticas que Aristóteles dirigia ao mestre.
Para Aristóteles, esse tema que envolve a forma de governo – - se
desenvolve até um outro ponto, que diz respeito às relações que determinadas
comunidades – – estabelecem entre subordinantes e subordinados,

que devem ser vistas sob o ponto de vista da justiça – – e da

amizade – - , já que ambas formas de relação entre cidadãos e familiares


são comparadas entre si, de forma sistemática. Essa ligação temática torna-se
evidente quando se considera o grau de aproximação antes indicado nos
trechos expostos da Ética a Nicômaco e da Política, em que Aristóteles
estabelece a comparação entre governantes e governados, comparando-os no
âmbito da cidade e da família; quer dizer, a relação de poder em uma cidade ou
reino é uma extensão do poder exercido pelo pai em relação aos filhos e aos
escravos e à esposa. Ainda como extensão da forma de poder, a justiça entre os
cidadãos se dá conforme a igualdade de condições sociais, ou seja, entre iguais,
daí a importância do conceito de amizade entre os iguais, tema também
explorado por Cícero em sua obra filosófica. Portanto, dentro da ordem social, a
justiça se aplica conforme circunstância natural dos interessados, sejam iguais
sejam desiguais, proporcionalmente.
Como o tema principal no estudo político sempre se revela na natureza
humana, tanto os estudos de Platão como os de Aristóteles procuram cada um a
seu modo estabelecer um fator preponderante nos estudos da Ética e da
Filosofia, de modo que o resultado reflita as afecções humanas em toda sua
extensão. Seguindo esses modelos, Cícero torna evidente a importância desses

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estudos em sua época, através do tratamento desse tema principal e da forma


escolhida por ele para apresentar suas idéias.
Dentre todas as circunstâncias que modificam o comportamento
humano, o conceito que se tem de justiça é o mais determinante nas relações
entre os homens, pois só ele pode condicionar todo um conjunto associado a
algumas normas constituídas, de caráter moral ou religioso, não demonstrando
fatores aparentes de preferência. Assim, há em todas essas posições mais ou
menos variáveis um certo grau de valor antropológico, que passa a direcionar
alguns detalhes da visão de um ou de outro autor.
Portanto, se um autor dimensiona as relações de um Estado com as
particularidades de uma família, ele tende a procurar um padrão de medida no
próprio indivíduo, considerando-o isoladamente. Parece que a partir daí surge
uma dificuldade que se exprime na tomada de um indivíduo como padrão, em
que se procura determinados conceitos como justiça e amizade; mas, ao se
tomar um modelo realizável para todos, perde-se a referência do grupo, já que
esses conceitos somente se verificam em uma realidade social. Talvez o cerne da
questão entre um posicionamento de Platão e outro de Aristóteles seja
justamente o distanciamento exigido em uma e em outra obra do indivíduo em
relação ao conjunto que se passa a analisar, uma vez que o conceito seja relativo
ao grupo de que o modelo tenha sido tirado. Nesse sentido, a antropologia e a
sociologia inseridas no exame desses estudos tenta reaproximar esse modelo de
seu conjunto, para diminuir as diversas diferenças no posicionamento de cada
autor. Cícero torna-se então um elemento intermediário entre as duas
concepções para sua época, de muitas maneiras vigentes até a atualidade.
Apesar dessas questões de pontos de vista, é evidente que o modelo da
Política, de Aristóteles, é a Politéia, de Platão, com todas as diferenças que se
podem apontar diante da leitura de uma e de outra; dessa mesma maneira,
entende-se o De Re Publica, de Cícero, cujo modelo é o mesmo que o de
Aristóteles, acrescentando-se que este também o influencia, como se verifica em
certas considerações da fragmentada obra de Cícero.

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Para estabelecer formalmente um limite para o conceito de justiça, Platão


emprega sua dialética num processo de ampliação de uma realidade em que a
justiça se apresenta e passa do indivíduo à cidade, modelo criado precisamente
para esse determinado fim. Mesmo ampliado, o modelo não revela claramente o
que se esperava, pois percebe-se que só pela dialética pode-se alcançar
intelectivamente um resultado para o problema. Na passagem de volta, a
dificuldade se renova, pois os modelos de justiça da cidade devem-se refletir
nos modelos de alma deduzidos da primeira análise, sendo necessárias novas
aplicações da teoria política, que envolve inevitavelmente padrões éticos e
sociais. Nisso mesmo desenvolve-se o pensamento de Aristóteles, completando
e redefinindo novas formas de comportamento ético e social, demonstrando
paralelamente suas relações no campo da política e da vida cotidiana, unidas
indissoluvelmente à alma do ser humano. Essa movimentação intelectual na
tentativa de definições de padrões humanos em conceitos de virtude estabelece
a referência básica da obra de um e de outro autor, em que a síntese das
diversas disciplinas abordadas é a mesma. Sem dúvida, Cícero terá tirado
proveito desse fato, já que os problemas de política se inserem na alma do
cidadão, revelando-se socialmente, traduzidos e ampliados.
Em sua obra, Cícero se apropria desses conceitos considerados
imprescindíveis para se estabelecer uma associação ou grupo em que a justiça
se aplique no conjunto e individualmente. Para se estabelecer o que há de
Aristóteles e o que há de Platão no De Re Publica de Cícero, deve-se constatar o
paralelismo existente entre os dois primeiros, não só em relação a essas idéias
analisadas, mas também no conjunto da obra de um e de outro. Fica claro que
apenas serão indicadas as prováveis referências de um em relação ao outro,
para que se possa seguir a mesma idéia que terá orientado Cícero quanto à sua
escolha.
Não é difícil perceber que o caminho dialético da Politéia é seguido por
Aristóteles em seus escritos sobre ética e política, de modo que se pode
estabelecer que Platão tem seu equivalente na obra de seu discípulo. De fato,
Platão teve a intuição de estudar a justiça em um âmbito mais amplo, como

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uma cidade, para depois transpor sua conclusão possível a um plano


individual, estabelecendo-se uma ponte de relações entre o comportamento do
indivíduo, analisado pela Ética, e o comportamento de uma cidade, analisado
pela Política. Dessa análise política, surgem as classes de Estado que por
analogia comparam-se às classes da alma dos indivíduos. Essa tentativa de
análise ético-política também se encontra em Aristóteles, como se procurou
indicar pelos excertos da obra deste último que, apesar das diferenças que
evidentemente se apresentam, traçou um paralelo entre essas relações
observadas em um grupo – na cidade ou na família – e em um indivíduo,
considerando-se a composição de sua alma.
Em suma, as questões observadas em um e em outro, assim como no
grupo e no indivíduo, mostram-se as mesmas, diferenciando-se pelo grau de
aproximação em relação a quem observa.
Sendo a justiça o conceito principal em um e em outro autor, ela se
manifesta em determinadas partes de um composto: sociedade, homem e alma;
na relação dessas partes entre si e entre suas subdivisões se estabelece esse
conceito principal. A respeito da alma, Platão estabelece as relações de
comando, subdividindo-a em três partes: – a parte racional que

deve comandar; – a parte que deve obedecer; – a sede


das paixões, que é dirigida pelas duas partes anteriores. Aristóteles, por sua
vez, estabelece uma divisão binária para a alma, conforme a divisão corpo e
alma: – a parte racional; – a parte referente aos desejos. Isto torna-
se claro pelo seguinte exemplo:
(Política I, 1254b5) –

(Pois a alma governa o corpo pelo governo do senhor, o intelecto


governa o desejo pelo governo político e real.)
Neste ponto, Cícero parece se aproximar mais de Aristóteles do que de
Platão, segundo um argumento de Cipião, no Segundo Livro do De Re Publica,

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em que se procura justificar a escolha da melhor constituição para uma cidade


através do exemplo da natureza – note-se o paralelismo do pensamento do
autor com o de Aristóteles -; Cipião lembra-se que em África vira um homem
dominar um enorme elefante com simples comandos, aos quais a fera obedecia
docilmente:
(II, 40, 67) – [Scipio] – Ergo ille Indus aut Poenus unam coercet beluam et eam
docilem et humanis moribus adsuetam; at uero ea quae latet in animis hominum
quaeque pars animi mens uocatur non unam aut facilem ad subigendum frenat et domat
[beluam], si quando id efficit, quod perraro potest. Namque et illa tenenda est ferox [...]
(- Então aquele indiano ou púnico domina uma só besta tanto dócil como
habituada aos costumes humanos; mas no entanto aquela parte que se oculta
nas ânimos dos homens e que, parte do ânimo, se chama mente não freia e
doma uma besta única ou fácil de submeter, caso alguma vez faz isso, que
muito raramente consegue. De fato, também essa besta feroz deve ser contida
...)
A comparação feita por Cipião relaciona-se ao cornaca e seu elefante, e a
aproximação entre indiano e púnico ou cartaginês se dá pela concepção dos
antigos, segundo a qual a Índia começava ao sul do Egito, estendendo-se até a
Índia atual; daí, a identificação do indiano com o etíope, que por tradição
poética é, como o cartaginês, um africano. Pode-se constatar isso com os versos
284 – 286 das Suplicantes de Ésquilo:

(Ouço que há indianas nômades, que cavalgam em camelos com selas,


que habitam a região junto aos etíopes.)
A alusão de Cipião deve ser entendida como referindo-se às duas partes
da alma, conforme a divisão de Aristóteles, e não conforme a divisão de Platão,
na Politéia IV, 440e6:

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(Será então algo diferente disso ou alguma forma de razão, assim não
três, mas deve haver duas formas na alma: racional e concupiscente? Ou como
na cidade três gêneros a compunham: financeiro, auxiliar e deliberativo, assim
também na alma é esse terceiro: o impetuoso, que é auxiliar do racional por
natureza, caso não se tenha corrompido por uma má educação? – É necessário
que haja um terceiro.)
Na verdade, Glauco, o interlocutor de Sócrates, apenas reitera a idéia já
direcionada para esse fim, disposto pelo exercício dialético determinante nos
diálogos de Platão. O terceiro gênero torna-se a conclusão lógica necessária,
exigida pela racionalidade do discurso.
A alusão de Cipião aos princípios que regem a alma, comparando-os no
indivíduo e na cidade, reafirma a disposição de Cícero em seguir de perto o
pensamento de Aristóteles, que vê na alma humana duas partes, como está dito
acima: e . Neste ponto do De Re Publica, há uma lacuna de quatro
páginas em que Cipião desenvolvia o tema das paixões que acometem a alma,
fazendo a aproximação com as paixões que acometem o povo, quando carente
de um senhor que os domine e os guie, segundo padrões estabelecidos pela
ética vigente nessa cidade. Se isso não acontecer, graves conseqüências hão de
sobrevir à cidade, como acontece na alma do indivíduo, quando o princípio
“pensante”- /animus – não atua dominando as paixões e impondo um
padrão de comportamento adequado. A fera, enorme e selvagem, está para o
povo assim como os desejos incontroláveis estão para esse tal indivíduo. Em um
dos fragmentos que se ajustam a esse ponto da narrativa de Cipião há um que
faz referência a um quarto gênero de paixão que pode afetar a alma:

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... quartaque anxitudo prona ad luctum et maerens semperque ipsa se sollicitans


...(Nonius 72, 34)
(... e quarta, a ansiedade, inclinada ao luto, triste e sempre ela
atormentando-se a si mesma ...)
Há outros que se aplicam, conforme o sentido, ao mesmo tema:
Cupido autem et expetenti et lubidinoso et uolutabundo in uoluptatibus ...(idem
491, 16)
(Ao cúpido, que cobiça, e ao libidinoso, que se revolve nas volúpias ...)
... est igitur quiddam turbulentum in hominibus singulis, quod uel exultat
uoluptate uel molestia frangitur. (idem 301, 5)
(... há então algo turbulento em cada homem, que exulta de volúpia ou se
quebranta de moléstia.)
... ut auriga indoctus e curru trahitur, opteritur, laniatur, eliditur ...(idem 292,
38)
(... como um auriga inepto é arrastado do carro, é moído, rasgado,
esmagado ...)
Esses excertos ajudam a entender o direcionamento que teria tomado o
discurso de Cipião, evocando os quatro gêneros de paixões que os estóicos
passaram à geração de Cícero. Zenão, de acordo com Diógenes Laércio (VII,
110), enumerava as quatro paixões que afetavam a alma desta forma:
, que Cícero traduz como aegritudo, metus,
cupiditas, uoluptas, nas Tusculanarum Disputationum III, 24 –25:
XI. [24 ] Est igitur causa omnis in opinione, nec vero aegritudinis solum, sed
etiam reliquarum omnium perturbationum, quae sunt genere quattuor, partibus plures.
Nam cum omnis perturbatio sit animi motus vel rationis expers vel rationem aspernans
vel rationi non oboediens, isque motus aut boni aut mali opinione citetur bifariam,
quattuor perturbationes aequaliter distributae sunt. Nam duae sunt ex opinione boni;
quarum altera, voluptas gestiens, id est praeter modum elata laetitia, opinione
praesentis magni alicuius boni altera, cupiditas , quae recte vel libido dici potest, quae
est inmoderata adpetitio opinati magni boni rationi non obtemperans,

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[25] - ergo haec duo genera, voluptas gestiens et libido, bonorum opinione turbantur, ut
duo reliqua, metus et aegritudo, malorum. Nam et m e t u s opinio magni mali
inpendentis et aegritudo est opinio magni mali praesentis ...
([24] De fato, a causa inteira está na suposição de que isso não é só
verdadeiramente da tristeza, mas também de todas as restantes perturbações,
que são de quatro gêneros, numerosos em partes. Pois, como toda perturbação
deva ser movimento do espírito, quer privado de razão quer desprezando a
razão quer não obedecendo à razão, e como esse movimento deva ser
provocado de dois modos: ou por boa ou por má suposição, quatro
perturbações foram distribuídas igualmente. Pois duas são da suposição de um
bem; um dos quais é o prazer que exulta, isto é, alegria elevada além da
medida, por suposição de algo presente como um grande bem; outro, o desejo,
que até pode ser dito libido, que é apetite imoderado de um imaginado grande
bem não moderado pela razão.
[25] Logo estes dois gêneros, prazer que exulta e libido, perturbam-se por
suposição de bens, como os dois restantes, medo e tristeza, por suposição de
males. Pois tanto medo é suposição de um grande mal pendente quanto tristeza
é suposição de um grande mal presente ...)
A correspondência dos termos gregos em Cícero não atende muitas vezes
à expectativa do que segue atentamente uma tradição mais etimológica dos
termos filosóficos, pois tanto é traduzido por laetitia quanto por uoluptas,
dependendo do sentido exigido pelo contexto em que se inserem esses termos.
Além disso, em outro ponto, (ibidem III, 10, 35), formido e libido empregam-se por
e . Cada um desses termos assume numerosas características e
até subdivisões, mas todos nascem da intemperança, conforme se afirma mais
adiante (ibidem IV, 9, 22):
Omnium autem perturbationum fontem esse dicunt intemperantiam, quae est a
tota mente defectio, sic auersa a praescriptione rationis, ut nullo modo appetitiones
animi nec regi nec contineri queant.
(E dizem que a fonte de todas as perturbações é a intemperança, que é a
deserção de toda inteligência, desviada assim da prescrição da razão, de modo

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que de nenhum modo os apetites do espírito sejam capazes nem de ser regidos
nem de ser contidos.)
Nota-se assim que Cícero não só aproveita a contribuição de Aristóteles
com relação à divisão da alma, mas também introduz seu próprio pensamento,
definindo e subdividindo as diversas afecções da alma de acordo com a
tradição apresentada pelos estóicos. Pode-se considerar que Platão seja a
inspiração primeira para a elaboração da obra, mas ao se formalizar alguns
conceitos filosóficos a influência direta ou indireta é Aristóteles.
Do mesmo modo Aristóteles nos seus escritos sobre a justiça toma como
fundamento a Politéia de Platão, obra em que o âmbito da justiça se amplia
para uma melhor definição, para que se pudesse vê-la melhor no plano da ética
individual. Essa passagem do plano coletivo em diferentes Estados e sociedades
para o plano individual caracteriza o plano da obra de Aristóteles, como se
pode constatar pelos exemplos apontados; quer dizer, os problemas políticos e
sociais do indivíduo podem-se ler com letras bem maiores em uma cidade ou
Estado.
Mas isso não constitui o ponto de maior proximidade entre os dois
mestres, fontes de Cícero. Na verdade, a tentativa de definição e compreensão
da justiça é o fundamento para as obras daqueles autores. Apesar das
diferenças de tratamento em algumas concepções filosóficas, como a divisão da
alma e suas afecções, pode-se considerar que a obra de ambos tem mais em
comum do que em discordância, já que o que difere no pensamento de um e de
outro é muitas vezes o grau de aproximação ou afastamento em relação ao
ponto considerado, como por exemplo na tripartição da alma para Platão e na
bipartição para Aristóteles; em um e em outro há a relação de comandante e
comandado, em que se inserem algumas subdivisões. Verdade é que tal
aproximação se verifica mais em relação à natureza dos problemas estudados
do que ao conteúdo doutrinal pretendido pelos autores. Essa aproximação é
notada também em outros escritos que parecem paralelos, quanto à natureza
dos problemas abordados, como o Fédon e a Ética a Eudemo, os fragmentos do
Gryllos e o Górgias, o De Caelo e o Timeu, temas que se interseccionam

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diversas vezes de maneira muito clara, além do fragmento do


(Moraux, p. 59) que narra a história de Euríbates, um ladrão
que consegue evadir-se nas mais difíceis situações continuando impune, que se
aproxima bastante do mito de Giges, contado no Segundo Livro da Politéia.
Com relação à natureza dos problemas estudados, chama a atenção o
fato de que o antigo título da Politéia seja , o que reforça a
tendência de aproximação entre esta obra e aquela de Aristóteles, cujos quatro
Livros se perderam, . Plutarco refere em diversos pontos do

que Crisipo atacava tanto a Politéia de Platão

quanto o de Aristóteles:

(E Platão falando da injustiça como sendo diferença e revolução da alma,


não reconhece a capacidade nesses que a têm, mas acumula-o em si mesmo e
agita o mal. Crisipo imputando-o diz que o ser injusto foi discutido de modo
insólito, pois a injustiça está em relação ao outro e não a si mesmo. E, tendo-se
esquecido por sua vez dessas coisas nas demonstrações sobre a justiça
[ , diz que o que é injusto sofre injustiça por si mesmo e ele
mesmo faz injustiça, quando for injusto com um outro, tornando-se causador da
transgressão contra si mesmo e o que se prejudica em relação a sua dignidade.)
Assim como Crisipo, Carnéades faz o mesmo tentando demonstrar a
inconsistência da tese dos defensores da justiça, como claramente mostram os
excertos de Lactâncio que compõem o Livro terceiro do De Re Publica:

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VI. Eam disputationem qua iustitia euertitur apud Ciceronem Lucius Furius
recordatur, credo, quoniam de re publica disserebat, ut defensionem laudationemque
eius induceret sine qua putabat regi non posse rem publicam. Carneades autem ut
Aristotelem ac Platonem, iustitiae patronos, prima illa disputatione collegit ea omnia
quae pro iustitia dicebantur, ut posset illa, sicut fecit, euertere. (Lactâncio, Diuinae
Institutiones V, 14, 5)
(Em Cícero, Lúcio Fúrio recorda aquele debate, pelo qual a justiça é
derrotada, creio, já que discursava sobre a república, para que induzisse sua
defesa e louvor, sem a qual [justiça] achava que a república não podia ser
administrada. Carnéades, para que refutasse Aristóteles e Platão, patronos da
justiça, reuniu naquele primeiro debate todas aquelas coisas que se diziam em
favor da justiça, para que pudesse, como o fez, revertê-las.)
Segundo Cícero, o argumento de Carnéades torna-se mais forte tanto
quanta for a importância nesse assunto de Platão e Aristóteles, com referência
às obras específicas sobre a justiça de um e de outro. Pode-se concluir com isso
que essas obras mantêm um grau de aproximação suficiente para que se
possam comparar constantemente, considerando-se o tema da justiça.
Não se pode deixar de ressaltar prova alguma que reforce esse
argumento da aproximação em paralelo da Politéia e do ,
uma vez que esta obra é perdida, atualmente. É ainda Lactâncio quem faz
referência ao episódio de Carnéades e comenta sobre a justiça, lembrando
sempre Platão e Aristóteles:
VII. 10- Plurimi quidem philosophorum, sed maxime Plato et Aristoteles, de
iustitia multa dixerunt adserentes et extollentes eam summa laude uirtutem, quod
suum cuique tribuat, quod aequitatem in omnibus seruet; et cum ceterae uirtutes quasi
tacitae sint et intus inclusae, solam esse iustitiam quae nec sibi tantum conciliata sit
nec occulta sed foras tota promineat et ad bene faciendum prona sit, ut quam plurimis
prosit ...
11- Sed quia ignorabant quid esset, unde proflueret, quid operis haberet,
summam illam uirtutem, id est commune omnium bonum, paucis tribuerunt eamque
nullas utilitates proprias aucupari, sed alienis tantum commodis studere dixerunt. Nec

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inmerito extitit Carneades, homo summo ingenio et acumine, qui reffeleret istorum
orationem et iustitiam quae fundamentum stabile non habebat euerteret, non quia
uituperandam esse iustitiam sentiebat, sed ut illos defensores eius ostenderet nihil certi,
nihil firmi de iustitia disputare. (Idem, Epitome 50 [55], 5 – 8)
(10- Certamente muitos dos filósofos, mas sobretudo Platão e Aristóteles,
disseram muitas coisas sobre a justiça afirmando e exaltando essa virtude com o
maior louvor, visto que atribui a cada um o seu e que preserva a eqüidade em
todos; e [disseram que], como as outras virtudes fossem como que tácitas e
fechadas para dentro, somente a justiça era a que nem era conciliada tanto a si
nem oculta, mas salientava-se toda para fora e era inclinada a bem-fazer, para
que fosse mais útil a muitos ...
11- Mas, porque ignoravam o que fosse, de onde emanasse, que função
tivesse, atribuíram aquela suma virtude, isto é, o bem comum de todos, a
poucos, e disseram que ela não visava a proveitos próprios nenhuns, mas
esforçava-se somente pelas vantagens alheias. Não sem razão Carnéades
sobressaiu-se, homem de sumo e agudo engenho, que refutava o discurso
desses e revertia a justiça, que não tinha fundamento estável, não porque sentia
que a justiça devia ser vituperada, mas para que mostrasse que aqueles seus
defensores debatiam nada certo, nada firme sobre a justiça.)
A relação entre Platão e Aristóteles é explícita, não se permitindo
duvidar de que estes autores estabeleceram o modelo de análise da justiça
seguido por todos aqueles que buscaram fundamento para prática da justiça no
âmbito social e individual.
Contudo, Cícero busca fundamentar sua teoria política não exatamente
com as teorias tiradas diretamente de Platão e Aristóteles, mas com essas
mesmas teorias filtradas pelos estóicos no tempo que se interpôs,
acrescentando-se que a forma de expor as idéias tomaram novo formato, mais
adequado ao pensamento romano de Cícero.
Nem por isso deixa-se de reforçar certos traços cuja fonte é
comprovadamente Aristóteles. Como se vê pelos trechos de Lactâncio que
suprem de certo modo as lacunas deixadas no manuscrito do Livro Terceiro do

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De Re Publica, o discurso de Filo não permite nenhuma ligação formal com


Platão ou Aristóteles, senão pela própria citação dos nomes e pelo tema
desenvolvido ao contrário, ou seja, a defesa da injustiça. Cícero inverte a ordem
dos discursos de Carnéades, fazendo Filo argumentar contra a injustiça, não por
vontade própria, como se afirma no ponto em questão, para depois permitir
que Lélio possa redimir a idéia de uma justiça natural e igual em todos os
lugares e tempos. Não se sabe se a fonte dos discursos de Carnéades foi direta
ou indireta, mas essa inversão de ordem dos discursos estabelecem uma
disposição a enfatizar um valor de antilogia na defesa da justiça, reservada a
Lélio, que se deveria favorecer pela própria disposição de contra-ataque,
desfazendo a costura dos argumentos de Filo em favor da injustiça, contrários a
Platão e Aristóteles. A idéia de que a justiça seja apenas convenção, sem ligação
com direito natural, era justificada pela constatação da existência de diferentes
povos e diferentes culturas com concepções morais e religiosas tão diferentes
que seria impossível estabelecer entre elas qualquer semelhança por traços de
racionalidade. É verdade que Lactâncio poderá ter interferido no texto a que
teve acesso para justificar de modo mais adequado à sua fé a derrota do
argumento contra a justiça, mas o fato é que a idéia principal revela-se pela
própria citação e referência ao texto de Cícero. A conclusão tirada dessas
citações é que o Estado perfeitamente justo seria arruinado pela sua própria
conduta, dando-se como exemplo Roma, que deveria devolver tudo que foi
conquistado e retornar à sua origem de tristeza e miséria. O que subjaz a esse
argumento é que o sucesso e a felicidade não considera a condição alheia, de
modo que seria contrária a disposição da justiça, que considera em primeiro
lugar o outro e o que é alheio. Além disso, o indivíduo que quiser ser justo
acabará destruindo os elementos vitais de sua sobrevivência, pois nunca poderá
pensar antes em si em uma situação de perigo ou de emergência. Nisso é que
Filo fundamenta seu argumento principal, porque Carnéades também o terá
feito. Para contrapor uma defesa com tendência mais moral que filosófica, Lélio
tenta justificar a questão-chave em sua antilogia: a conciliação do justo ao
aproveitável ou útil; é possível afirmar então que a defesa empreendida por

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Lélio não reproduz o primeiro discurso de Carnéades, quando este fez o elogio
da justiça. Isso leva a crer que os argumentos de Lélio teriam sido aqueles, cujos
autores foram atacados no discurso anterior, pois seus argumentos procuram
reforçar que a justiça se estabelece conforme as exigências da lei natural,
universal e imutável.
Felizmente há testemunho suficiente para que isso se fundamente
objetivamente sobre a tradição de autores que recorreram a essas mesmas
idéias, ainda que para fins diferentes. Lactâncio parece referir-se a esse
problema em suas Diuinae Institutiones VI, 8, 6 - 9, no ponto em que Cipião –
De Rep. III, 33 - se recusa a dar resposta aos argumentos de Filo e cobra de
Lélio a promessa de um discurso feita no dia anterior:
[Laelius] - Est quidem uera lex recta ratio, naturae congruens, diffusa in omnis,
constans, sempiterna, quae uocet ad officium iubendo, uectando a fraude deterreat, quae
tamen neque probos frustra iubet aut uetat, nec inprobos iubendo aut uetando mouet.
Huic legi nec obrogari fas est, neque derogari aliquid ex hac licet, neque tota abrogari
potest, nec uero aut per senatum aut per populum solui hac lege possumus, neque est
quaerendus explanator aut interpres Sextus Aelius, nec erit alia lex Romae, alia
Athenis, alia nunc, alia posthac, sed et omnes gentes et omni tempore una lex et
sempiterna et inmutabilis continebit unusque erit communis quasi magister et
imperator omnium deus: ille legis huius inuentor, disceptator, lator; cui qui non
parebit, ipse se fugiet ac naturam hominis aspernatus hoc ipso luet maximas poenas,
etiamsi cetera supplicia quae putantur effugerit.
([Lélio] – Existe, na verdade, uma verdadeira lei: a razão correta,
congruente com a natureza, difundida em todos, constante, eterna, que chama
ao dever ordenando, vetando afasta da fraude, que contudo aos probos nem
ordena em vão ou veta, nem aos ímprobos comove ordenando ou vetando. A
esta lei nem é permitido ser ob-rogada, nem é lícito ser derrogado algo a partir
dela, nem é possível ser toda ab-rogada, e nem na verdade, seja pelo senado seja
pelo povo, podemo-nos desligar desta lei, nem se deve procurar um Sexto Élio6

6Aelius Sextus Paetus Catus, cônsul em 198 a.C., redigiu o primeiro livro de direito: Ius
Aelianum e um comentário das Leis das XII Tábuas: Tripertita.

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como intérprete ou comentador, nem haverá uma lei em Roma, outra em


Atenas, uma agora, outra depois, mas uma só lei eterna e imutável conterá
todas as gentes e em todo o tempo, e haverá um só e comum deus de todos,
como que mestre e comandante: esse autor desta lei, analista e portador; quem
não obedecer a esse fugirá de si mesmo e, tendo desprezado a natureza do
homem, por isto mesmo expiará as máximas penas, ainda que tenha fugido às
restantes penas que se consideram suplícios.)
O texto de Lactâncio não só refuta os argumentos de Filo, reprodução do
discurso de Carnéades, como estabelece uma conduta universal e onipresente
que prepara a descrição do sonho de Cipião no Livro Sexto. Essa disposição da
antilogia de Lélio ressalta o paralelismo com a Politéia, não precisando expor os
princípios da mesma maneira, pois os três anos de trabalho nos seis livros sobre
esse tema deram a Cícero a possibilidade de aprimorar sua linguagem e
pensamento, de modo que o conhecimento obtido pelas leituras de Platão e
Aristóteles, transmitidos muitas vezes pelos estóicos ou por fontes relacionadas
a estes, fica encoberto pela reflexão e aplicação desses pensamentos em uma
obra que deveria ficar como padrão da política e da filosofia romanas.
Esse aperfeiçoamento da forma impossibilita o reconhecimento das
fontes diretamente utilizadas por Cícero na composição do De Re Publica; isto
leva a crítica da literatura romana e especificamente de Cícero a classificar essa
obra como estóica, como se apenas a idéia de compor a obra sobre esse tema
fosse devida a Platão, pois é inegável o grau de proximidade e correspondência
entre uma obra e outra, devido principalmente às suas características formais
de composição. Se, por um lado, isso não carece de argumentos que o provem,
uma vez que são evidentes essas características, por outro lado, não parece fácil
comprovar objetivamente que Cícero tenha-se influenciado por este ou aquele
autor, de forma direta ou indireta. Como se disse, isto é devido não só à
fragmentação da obra, mas sobretudo ao zelo com que seu autor a compôs,
mostrando assim que não se tratava apenas de exercício de retórica, mas
tratava-se de fundamentação de pensamentos de filosofia na política.

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Assim, pode-se entender que Cícero é portador de conhecimentos que


lhe chegaram através de vetores intelectuais com que pôde estabelecer uma
relação entre o que havia em sua época e o que se conhecia das fontes
principais: Platão e Aristóteles, de modo que ele mesmo é veículo dessas idéias
que viajam num plano temporal; sua função é a fundamentação delas em sua
cultura, de modo que haja possibilidade de aplicação e transmissão dessas
idéias. Não há necessidade que elas sejam de Cícero, senão em sua própria
época e no momento em que ele se vê como veículo delas.
Por mais de dois séculos esse conhecimento manteve-se e renovou-se de
forma mais ou menos fiel à sua fonte. Cícero é a grande última referência de
que esse conhecimento se transmitiu evoluindo; mas há uma forte tendência,
até meados do século XX, de considerar a obra de Cícero produto do
pensamento estóico, estabelecendo-se como fontes principais do autor em suas
obras filosóficas alguns autores, florescentes na geração anterior à de Cícero,
ligados aos estudos da filosofia do Pórtico – -, ou seja, dos estóicos.
Os principais nomes indicados são Panécio de Rodes (180 – 110 a. C.),
que acompanhou Cipião em suas expedições e freqüentou o que se passou a
chamar de Círculo dos Cipiões em Roma, e Políbio de Megalópoles (202 – 120 a.
C.), que esteve com Cipião em Cartago (146) e em Numância (133) e que
também freqüentava o Círculo. A influência de um e de outro é clara e
manifesta pelo próprio autor do De Re Publica I, 21, 34:
- [Laelius] ... Non solum ob eam causam fieri uolui quod erat aequum de re
publica potissimum principem rei publica dicere, sed etiam quod memineram persaepe te
cum Panaetio disserere solitum coram Polybio, duobus Graecis uel peritissimis rerum
ciuilium, multaque colligere ac docere optimum longe statum ciuitatis esse eum quem
maiores nostri nobis reliquissent.
(- [Lélio] ... não só por essa causa: que era justo que da república falasse o
mais importante senador da república, quis que acontecesse, mas também
porque me lembrei de que muito freqüentemente dissertavas com Panécio, de
sólito em presença de Políbio, dois gregos realmente muito expertos nas coisas

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civis, e reunia muitas coisas e ensinava que de longe o melhor estatuto da


cidade era aquele que nossos antepassados nos tinham deixado.)
No entanto, esse episódio da narrativa justifica muito mais a condição de
Cipião Emiliano no trato com a coisa pública, do que a influência sobre Cícero
direta e única do filósofo e do historiador. Parece claro que uma narrativa
histórica deva apresentar fatos relacionados com a realidade que confirmem a
condição assumida por certa personagem. O fato é que a crítica admite muito
facilmente certos pressupostos que passam a ter valor de lei, em certos aspectos.
Alguns desses pressupostos inserem-se na obra de autores que alcançaram,
talvez por isso, grande porte intelectual como Max Pohlenz, que acaba
influenciando outras importantes obras como a Ética Estóica em Cícero, de
Mílton Valente, em que se afirma na página 459:
Em todo caso, a influência de Políbio não podia ultrapassar a matéria histórica.
Onde, pois, foi Cícero beber a sua filosofia política? Afastados Platão e Aristóteles, da
maneira como dissemos, os únicos teóricos políticos possíveis são os estóicos.
Como comprovação disso, apresenta-se uma definição de Cipião para
povo (De Re Pub. I, 25, 39):
Est igitur, inquit Africanus, res publica res populi, populus autem non omnis
hominum coetus quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis iuris consensu et
utilitatis communione sociatus.
(Então, diz Africano, a república é coisa do povo, contudo povo não é
todo ajuntamento de homens congregado de qualquer modo, mas ajuntamento
do vulgo associado por consenso do direito e por comunhão de interesse.)
Essa definição aproxima-se bastante da definição dada pelos estóicos
para (Dion Chrysost., Or., XXXVI, 20):

(Quantidade de gente que habita o mesmo lugar administrada por lei.)


No entanto, essa definição se encontra também em Aristóteles, na
Política 7, 1328 b16:

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(Pois a cidade é quantidade não ao acaso, mas para uma vida auto-
suficiente.)
Parece que a citação de Cipião assemelha-se mais à de Aristóteles do que
à dos estóicos, pois a expressão non omnis hominum coetus quoquo modo
congregatus corresponde formalmente mais a de

Aristóteles, do que a , dos

estóicos; nesta falta o elemento do acaso – -, presente na de Aristóteles


e na de Cipião – quoquo modo.
Apesar disso, não se pode ignorar a influência dos estóicos em Cícero,
através de Panécio, que se demonstra pela mesma citação acima, pelo acréscimo
do consenso jurídico, sem o qual não poderia haver cidade. Dessa forma, Cícero
confirma a tradição e reforça a verossimilhança em sua narrativa, de acordo
com as características devidas a uma personagem como Cipião Emiliano.
Esse acréscimo não só evidencia a presença dos estóicos na formação
cultural vigente no tempo histórico, mas também possibilita verificar que
Cícero interfere em citações expressas em sua obra de maneira particular,
conforme a circunstância o exija. O iuris consensus corresponde ao
dos estóicos, ausente na citação de Aristóteles, embora nesse ponto o tema fosse
o necessário para uma comunidade já constituída bem viver; daí pode-se
compreender que não há ausência do elemento jurídico ou das leis, pois ele é
um pressuposto fundamental para a formação de uma comunidade. É claro que
Aristóteles, já no Sétimo Livro, vê-se desobrigado da referência do elemento
jurídico, ainda que falasse de magistraturas e funções públicas que deveriam
ser exercidas pelos cidadãos de modo alternado numa democracia. Desse
pressuposto nem Platão se esqueceu, fazendo dele elemento indispensável em
qualquer comunidade, além da procedência divina:

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(Protágoras 322c)
(Então Zeus, tendo temido pela nossa raça, que não se perdesse toda,
envia Hermes conduzindo aos homens pudor e justiça, para que fossem
ornamentos das cidades e vínculos de amizade unificadores.)
Portanto, não se pode aceitar que o elemento jurídico da citação de
Cipião seja criação de estóicos, nem que ele tenha sido esquecido por
Aristóteles, por não se expressar em sua citação no mesmo ponto. Bastaria
prosseguir nesse mesmo ponto indicado, para verificar-se que esse elemento
indispensável não faltou, mesmo não sendo o tema proposto:

(... como dizemos, caso alguma dessas [funções] se encontre omitida,


simplesmente é impossível que essa associação seja auto-suficiente. Então é
necessário que a cidade esteja estabelecida segundo essas atividades.)
Essas atividades se expressam a seguir: agricultores, artesãos, militares,
ricos, sacerdotes e juízes que cuidem do que exige a necessidade, entendendo-se
as matérias de direito, e do que exigem as circunstâncias, ou seja, os interesses e
as vantagens. Isso remete logo à citação de Cipião de iuris consensu e utilitatis
communione, como fatores importantes na manutenção de uma associação
comunitária em que os interesses comuns são direcionados por um consenso de
direito, isto é, os interesses se regulam de acordo com normas estabelecidas
pelo grupo, visando às vantagens decorrentes a cada um.
Como de costume, Cícero se utiliza da idéia alheia, dando-lhe
configuração própria, como se pode constatar de sua traduções de Platão, em
que aparece algum elemento resultante de sua intervenção que, onde não se diz
que pertence a um ou outro autor, pode gerar dificuldade de identificação do
texto que originou o comentário ou citação. Esta característica de Cícero faz de

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sua obra o elemento vetor da tradição político-filosófica de Platão e Aristóteles


tanto quanto o foram os mesmos estóicos, que de algum modo veicularam essas
idéias permeadas de uma ou outra doutrina particular, mas sempre originárias
das conhecidas e reconhecidas fontes do pensamento helênico clássico.
No caso da citação de iuris consensu e utilitatis communione, o que
geralmente é compreendido como contribuição particular de Cícero,
principalmente com relação à vantagem comum, não é senão o
desenvolvimento do pensamento de Aristóteles encontrado no Livro Sétimo da
Política e, quem sabe, em sua obra perdida: .
Portanto, o fato de Cícero ter-se utilizado de pensamento identificado
como estóico se deve mais à personagem de Cipião no De Re Publica, cuja
proximidade com Panécio acentua-lhe verossimilhança, do que à pressuposta
tendência político-filosófica predominante no pensamento do autor. Convivem
assim essas idéias de ética e de política com a noção exata de sua proveniência.
Essa proveniência revela-se também pela tradição indireta dos que
comentaram ou citaram a obra de Cícero. Na edição de Ziegler (1969/ 1974), há
dois fragmentos, acrescentados ao Livro Terceiro do De Re Publica, de
localização original incerta, que faz referência a Aristóteles:
Sardanapallus ille uitiis quam nomine ipso deformior. (Schol. in Iuuen., ad sat.
10, 362)
(Aquele Sardanapalo muito mais disforme pelos vícios do que pelo
próprio nome)
Haec habeo, quae edi quaeque exsaturata libido hausit; at illa iacent multa et
praeclara relicta.
(Tenho as coisas que comi e as que a libido plenamente saturada hauriu;
mas jazem deixadas aquelas muitas e brilhantes coisas.)
Esse excerto encontra-se também nos Libri Quinque Tusculanarum
Disputationum, V, 35, 101:
Quo modo igitur iucunda vita potest esse, a qua absit prudentia, absit moderatio?
Ex quo Sardanapalli, opulentissimi Syriae regis, error adgnoscitur, qui incidi iussit in
busto:

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'Haec habeo, quae edi, quaeque exsaturata libido


Hausit; at illa iacent multa et praeclara relicta.'

'Quid aliud' inquit Aristoteles 'in bovis, non in regis sepulcro inscriberes?’
(Por que modo, então, pode ser agradável a vida, da qual esteja afastada a
prudência e a moderação? A partir disso se reconhece o erro de Sardanapalo,
opulentíssimo rei da Síria, que ordenou que se gravasse em seu túmulo:
‘Tenho o que comi, e o que a libido plenamente saturada
‘Hauriu; mas jazem deixadas aquelas muitas e brilhantes coisas.’
Que outra coisa, diz Aristóteles, inscreverias no sepulcro de um boi, não
de um rei?)
Essa referência a Sardanapalo, último rei dos assírios, a quem foi
atribúída uma vida de prazeres, ocorre em Aristóteles na Ética a Nicômaco I, 5,
1095b, em que se discute sobre a felicidade e o tipo de homem que escolhe uma
vida de prazeres – -:

(A maioria parece completamente servil, preferindo uma vida de gado, e


encontram razão por a maioria nas posições de autoridade ter os mesmos
sentimentos de Sardanapalo.)
Esse é o contraste proposto por Aristóteles para uma vida cujo fim
principal é a política e que se fundamenta pela honra.
Há ainda outras fontes que citando Aristóteles reproduzem a inscrição
utilizada por Cícero, para repudiar esse tipo de vida voltado aos prazeres, como
Estrabão ( 63 a. C. – 25 d. C.) [apud Cicéron – Tusculanes, notes: 554]:

(Tenho aquelas coisas quantas comi, fui insolente e dos parazeres


do amor gozei; todas as coisas numerosas e valiosas deixei.)

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Além dessas há numerosas versões do epitáfio de Sardanapalo no


mundo antigo, todas mais ou menos semelhantes; daí pode-se confirmar que a
citação de Cícero nas Tusculanae e a conjectura de Ziegler no De Re Publica
tenham procedência de alguma obra de Aristóteles, hoje perdida, mas
confirmada pela tradição indireta e pelo próprio Aristóteles.
No entanto, o que faz maior eco da obra de Aristóteles no De Re Publica
é o resumo que Santo Agostinho faz de parte do argumento de Lélio, no
Terceiro Livro, em que se justificava a existência da escravidão, pois que muitos
homens, tendo capacidade física, mas não tendo capacidade intelectual, se
beneficiariam servindo aos que lhes poderiam oferecer vantagens de civilização
que jamais poderiam alcançar em seu próprio meio, apesar de livres.
Santo Agostinho resume assim, na Cidade de Deus, XIX, 21:
Disputatur certe acerrime atque fortissime in eisdem ipsis de re publica libris
aduersus iniustitiam pro iustitia. Et quoniam, cum prius ageretur pro iniustitiae
partibus contra iustitiam et diceretur nisi per iniustitiam rem publicam stare augerique
non posse, hoc ueluti ualidissimum positum erat, iniustum esse, ut homines hominibus
dominantibus seruiant; quam tamen iniustitiam nisi sequatur imperiosa ciuitas, cuius
est magna res publica, non eam posse prouinciis imperare: responsum est a parte
iustitiae ideo iustum esse, quod talibus hominibus sit utilis seruitus, et pro utilitate
eorum fieri, cum recte fit, id est cum improbis aufertur iniuriarum licentia, et domiti
melius se habebunt, quia indomiti deterius se habuerunt ... [De Rep. III, 38]
(Debate-se, na verdade, acérrima e fortissimamente nesses mesmos livros
sobre a república contra a injustiça e a favor da justiça. E, como antes se tratasse
dos partidários em favor da injustiça e contra a justiça e se dissesse que a
república não poderia permanecer e ser aumentada senão pela injustiça, já que
se tinha posto como o mais válido isto: ser injusto, de modo que os homens
sirvam aos que dominam; a essa injustiça, afinal, caso uma cidade poderosa,
cuja república é grande, não siga, não poderá dominar as províncias.
Respondeu-se da parte da justiça que era justo por isto: que a servidão era
vantajosa a tais homens e que acontecia para vantagem deles, quando acontece

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corretamente, isto é, quando aos ímprobos é tirada a possibilidade de injustiças,


e dominados manter-se-ão melhor, porque desenfreados se mantiveram pior ...)
É claro que Santo Agostinho visa a outro fim que a comprovação de que
em certas circunstâncias pode-se justificar a servidão humana, mas o seu
testemunho reforça a certeza da presença desse argumento no Livro Terceiro do
De Re Publica, servindo de argumento em favor da justiça, que Lélio deveria
tecer para responder aos argumentos de Filo.
O argumento de Lélio tem procedência a partir de Aristóteles, que
sustentava que a escravidão seria legítima em certas circunstâncias, isto é,
quando algum homem seja limitado intelectualmente, já que essa faculdade
estabelece a diferença entre os seres brutos e humanos, assim a mesma
faculdade entre os humanos deve estabelecer a diferença entre eles, de modo
que o homem limitado nesse aspecto, ainda que fisicamente capaz, deve ser
dirigido e submetido a um intelectualmente superior.

(Arist. Política A, 1254 a23)


(Pois o dominar e ser dominado não é só das coisas necessárias, mas
também das úteis; alguns gêneros estão dispostos logo desde o nascimento: uns
para o ser dominado, outros para o dominar.)
Aristóteles justifica essa disposição ou tendência de dominar e ser
dominado através da própria natureza, pois como a alma domina e governa o
corpo, assim a sede racional da alma deve dominar e governar a sede dos
desejos; essas são relações que se repetem em toda natureza, como o homem
que domina uma fera estabelece uma relação de servidão necessária e útil a
ambos, pois se o animal irracional se vê na condição de servidão em relação ao
homem ele também deve usufruir de alguma forma em relação à sua própria
condição de irracional. Desse mesmo modo o homem que serve a outro,
intelectualmente superior, tem vantagens que dificilmente ele conseguiria
alcançar fora dessa relação de servidão.

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Esse tema, caro a Aristóteles, deve ter sido muito mais amplamente
desenvolvido no , pois logo em seguida há uma referência a
um lugar específico para esse debate que não é o da Política.
(Pol. A 1254
a33)
(Mas talvez essas coisas sejam de um exame mais exotérico.)
O exame mais exotérico deve-se referir a escritos destinados a um
público mais amplo e diferente dos seus habituais discípulos. Essa referência
reforça a conjectura da obra perdida, cujo tema era a justiça.
Seja como for, esse modo de justificar a servidão parece apropriado para
o contra-ataque ao argumento de Filo, que se afirmava sobre a impossibilidade
de se manter justo em uma cidade como Roma, em que havia a necessidade de
dominação de muitos outros povos, devendo assim manter-se injusta ou
devolver tudo a todos e voltar à condição de um simples povoado.
Lélio deve ter usado o mesmo argumento de Aristóteles, talvez da
mesma obra que se encontra hoje perdida, já que esta foi mencionada por Filo
um pouco antes; assim Santo Agostinho, querendo chegar a um fim diferente,
comprova a fonte de Cícero, já que este deveria fundamentar sua teoria política
e filosófica com o que houvesse de superior nessa matéria.
Para Aristóteles, essa justificativa da servidão natural resulta em algo
positivo devido ao equilíbrio obtido entre o ser que é dominado e o que é
dominante; este não poderia conseguir nada sem aquele, que por sua vez não
poderia alcançar nem mesmo o entendimento das coisas mais elementares.
Esse tema mantém até hoje uma polêmica acerca da condição da
escravidão, não só devida às diferenças sociais, mas sobretudo devida às
conseqüências de uma mudança de visão do mundo antigo para uma visão do
universo judaico-cristão; isso tem impedido um exame mais isento sobre o
assunto, já que a atualidade carrega um fardo muito constrangedor do
estabelecimento da vida social e de civilização tal como hoje se encontra.

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Como se pode observar pelo testemunho de Santo Agostinho, Cícero


procura na justificativa de Aristóteles não uma conjunção de atos e efeitos
naturais que trazem bem-estar e felicidade à vida, mas uma conjunção de
efeitos políticos que justifique moralmente sua própria condição de cidadão da
república romana. Esse desvio justifica-se pela forma de exposição da realidade
no mundo romano e pela forma pessoal com que Cícero se utiliza de suas
fontes, modificando-as segundo as conveniências de seu texto. Da mesma forma
como o texto de Platão toma aspectos diferentes e inexistentes no original,
assim também as idéias políticas e filosóficas de Aristóteles adquirem certas
conotações necessárias ao contexto de Cícero.
Contudo, não se pode negar nem ignorar a influência de Aristóteles na
obra de Cícero, e sobretudo o conhecimento que este tinha da obra perdida
daquele sobre a justiça, tal como afirma Moraux, em Le dialogue “Sur la
Justice”, 1957, p. 71:
... il est indéniable que Cicéron a connu, soit directement, soit por un
intermédiaire, les thèses maîtresses du plus grand des dialogues d’Aristote.
(... é inegável que Cícero conheceu, seja diretamente, seja por um
intermediário, as teses principais do maior dos diálogos de Aristóteles.)
No entanto, pode-se apontar uma diferença de conceito na visão de
Cícero, em relação a Aristóteles: Cícero considera as relações de poder segundo
uma concepção mais adequada ao seu próprio mundo, como se pode perceber
pelos desvios de suas traduções ou de seus desenvolvimentos de idéias, sejam
de Platão sejam de Aristóteles; segundo sua concepção, que se pode considerar
mais próxima do Pórtico, isto é, dos estóicos, a alma exerce o domínio sobre o
corpo, não como Aristóteles estabelecera em sua obra, isto é, a parte racional
domina as paixões e o desejo assim como um rei domina seus súditos e um pai
seus filhos, com autoridade e respeito em relação à condição deles, mas
segundo uma concepção moral vigente e necessária a seu modo de pensar, a
razão domina as paixões e o desejo como um senhor de escravos domina seus
escravos, isto é, a alma deve refreá-los custe o que custar, não importando as
conseqüências disso, mas visando unicamente ao domínio da parte superior.

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Não se pode atribuir esse desvio, ou adaptação, unicamente à doutrina estóica,


uma vez que esse desvio parece estampar claramente o resultado de reflexões
morais do mundo romano, muito diferente do contexto ético e político do
mundo de Aristóteles. Para Cícero, os apetites não se submetem docilmente ao
domínio da razão, antes procuram prevalecer sobre esta de modo devastador
para o homem comum, esquecendo-se de que Aristóteles ressalta que essa
análise deve ser dirigida em um homem são, isto é, conforme a natureza:

(Pol. A, 1254 a36)


(É preciso examinar antes o [que domina e o que é dominado] por
natureza, nas coisas que estão dispostas segundo a natureza, e não nas coisas
degradadas.)
Para Cícero, a ordem natural deve ser procurada dentro de seu próprio
sistema, o homem a incorpora e deve manter todos de modo semelhante a ele
mesmo. Santo Agostinho relata um trecho do De Re Publica, em que se discutia
as formas de domínio, fazendo essa relação invertida:
Nonne Cicero in libris de re publica, cum de imperiorum differentia disputaret et
huius rei similitudinem ex natura hominis assumeret, ut filiis dixit imperari corporis
membris propter oboediendi facilitatem, uitiosas uero animi partes ut seruos asperiore
imperio coerceri?
(Por acaso Cícero, nos libros sobre a república, como debatesse sobre a
diferença de dominações e como tomasse a semelhança disto da natureza
humana, não disse que como aos filhos ordena-se aos membros do corpo, pela
facilidade de obedecer, mas obriga-se com mando mais áspero as partes
viciosas do espírito, como servos?)
Esse mesmo tema é desenvolvido por Santo Agostinho, no Contra
Iulianum IV, 12, 61, que Ziegler junta ao Terceiro Livro do De Re Publica
XXVIII, 39, fr. 2 (Z. XXV, 37):
Sed et imperandi et seruiendi sunt dissimilitudines cognoscendae. Nam ut
animus corpori dicitur imperare, dicitur etiam libidini, sed corpori ut rex ciuibus suis
aut parens liberis; libidini autem ut seruis dominus, quod eam coercet et frangit. Sic

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regum, sic imperatorum, sic magistratuum, sic patrum, sic populorum imperia ciuibus
sociisque praesunt ut corporibus animus; domini autem seruos ita fatigant ut optima
pars animi, id est sapientia, eiusdem animi uitiosas inbecillasque partes ut libidines, ut
iracundias, ut perturbationes ceteras.
(Mas tanto do mandar quanto do servir as dissememlhanças devem-se
reconhecer. Pois como se diz que o espírito manda no corpo, diz-se também que
manda na libido, mas manda no corpo como um rei nos seus cidadãos, ou como
um pai manda nos filhos; e manda na libido como um senhor manda nos
servos, porque a reprime e a alquebra. Assim os mandos – dos reis, dos
comandantes, dos magistrados, dos pais, dos povos – estão à frente de cidadãos
e aliados, como o espírito está à frente do dos corpos; os senhores fatigam os
servos assim como a melhor parte do espírito, isto é: a sabedoria, as partes
viciosas e fracas do mesmo espírito como libidos, irascibilidades, outras
perturbações.)
Não resta dúvida de que Cícero inverte a ordem estabelecida
naturalmente por Aristóteles, não por erro de leitura ou interpretação, mas o faz
deliberadamente, não hesitando em tomar seu próprio caminho, não obstante a
força de persuasão de sua fonte. No entanto, parece claro que as circunstâncias
do mundo de Cícero parecem ter influenciado seu pensamento, de modo que o
que parecia naturalmente propenso à obediência, a parte da alma relacionada
aos desejos, toma um novo aspecto, quase irredutível, que obriga a parte
racional a impor-se pela força, numa ordem do mais forte sobre o mais fraco.
Essa ordem é reveladora do ambiente político do final da República romana,
que tanto envolvera em suas tramas de partidos e facções a mente de Cícero,
que não seria possível supor que ele conseguisse manter-se isolado de tais
interferências, na composição do De Re Publica.
Com isso, torna-se quase inevitável que se atribua a Cícero um
comportamento ético seguidor da doutrina estóica, principalmente por causa da
proximidade de Panécio, que sem dúvida compôs o ambiente cultural da
geração anterior à de Cícero. Porém, a mesma crítica que se apressa em
classificar a obra de Cícero como estóica admite que a fonte da teoria da

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dominação revelada pelas fontes indiretas é aristotélica – -, e


que essa relação entre senhor e escravo não corresponde às idéias básicas do
estoicismo sobre a liberdade por natureza de todos os homens; outro ponto
fundamental nesse aspecto é a concepção estóica da materialidade da alma, que
torna iguais corpo e alma, não sendo possível considerar o corpo como
elemento inferior que deve ser submetido.
Essas idéias estão relacionadas e parcialmente discutidas na obra de
Moraux (1957), quando se discute sobre os traços de Aristóteles,
especificamente do , no De Re Publica, de modo que se
pode constatar que a influência de Panécio na obra de Cícero é muito mais de
conveniência do que de resultado de análise de um e de outro. Salvo nos pontos
em que o próprio Cícero indique a influência estóica e de Panécio, como no De
Officiis I, 6, pode-se entender que Cícero tenha ido além buscar os
fundamentos para a concepção de suas idéias, não para estabelecer uma nova
doutrina, mas para persuadir e convencer a si mesmo com a fonte geradora de
idéias que serviu inclusive aos próprios estóicos. Além disso, costumam-se
juntar ao nome de Panécio outros nomes como Dicearco e Posidônio, que vez
ou outra aparecem citados com referência a Cícero, o que torna difícil, senão
impossível, tomar uma posição definitiva acerca das fontes.
Parece mais lógico afirmar que Cícero empregava essas fontes de modo
não excludente, adaptando-as às suas necessidades de momento, e que no De
Re Publica havia a necessidade de fundamentar certas concepções próprias do
, mesmo tendo como pano de fundo a doutrina estóica
veiculada por personalidades como Panécio e Políbio, segundo a convicção de
Moraux, ibidem, p. 77:
Que Panétius ait fait au de larges emprunts et en ait
adapté quelques thèses à la philosophie du Portique, cela n’a rien qui doive nous
surprendre, car sa sympathie pour l’aristotélisme, déjà signalée par les Anciens, se
manifeste dans plusiers autres domaines.

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(Que Panécio tenha tomado grandes empréstimos do


e tenha adaptado algumas teses à filosofia do Pórtico não há que nos
surpreender, pois sua simpatia pelo aristotelismo, já assinalada pelos Antigos,
se manifesta em muitos outros domínios.)
Apesar da fragmentação do De Re Publica e das referências de
Aristóteles soarem como ecos distantes, é relevante a intenção de Cícero de
retomar as idéias em sua fonte primeira, como a aproximação por comparação
entre as formas de governo e as características do indivíduo, da família e do
Estado, como o emprego de conceitos específicos para o dirigente da república,
como os ecos da obra perdida de Aristóteles, além dos elementos fundamentais
da forma de exposição de Platão.
Convém que se resguarde em Cícero sua capacidade de transformar as
idéias consagradas pela tradição filosófica dos maiores mestres em elementos
aplicáveis em sua prática política, de um modo às vezes simplificador, mas ao
mesmo tempo criativo e personalista.
Esta suma de comentários e transcrições que marcam de alguma forma a
presença de Aristóteles no De Re Publica permite que se reafirme a
importância da obra de Cícero como veículo de uma tradição clássica, ainda que
permeada pela influência dos filósofos estóicos; o fato de que tenha havido
elementos intermediários reforça o poder da idéia original ao alcance de várias
gerações que dispõem delas como fundamento cultural e político apesar do
afastamento no tempo e no espaço.

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DE RE PUBLICA

LIVRO PRIMEIRO

I.1- Caio Duílio, Aulo Atílio, Lúcio Metelo [não] teriam com ímpeto
libertado [a pátria] do terror de Cartago, nem os dois Cipiões teriam com seu
sangue extinguido o nascente incêndio da segunda guerra púnica, nem a este,
provocado por maiores recursos, Quinto Máximo teria enfraquecido, ou Marco
Marcelo teria destruído, ou Públio Africano o teria compelido, arrancado das
portas desta cidade, para dentro das muralhas dos inimigos.
Na verdade, Marco Catão, homem desconhecido e novo7, a quem todos
nós que nos aplicamos a estas mesmas coisas somos levados como que a um
modelo para dedicação e virtude, certamente teve o direito de se deleitar em
sossego, em Túsculo, lugar salubre e próximo. Mas homem louco, como aqueles
julgam, quando nenhuma necessidade o coagisse, preferiu lançar-se nestas
vagas e tempestades, até extrema velhice, a viver naquela tranqüilidade e
sossego agradabilíssimo.

7Homo nouus: homem novo, o que não descende de uma família nobre e que, exercendo pela
primeira vez uma magistratura curul, funda assim sua nobreza (F. Gaffiot).

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Omito inumeráveis varões, cada um dos quais tiveram salvação para esta
cidade; e os que não estão afastados da memória desta geração deixo de
mencionar, para que ninguém se queixe de ter sido esquecido, ele ou alguém
dos seus. Determino unicamente isto: tamanha é a necessidade de virtude ao
gênero humano, e tamanho é o amor dado pela natureza, para que se defenda a
salvação comum, que esta força venceu todos os encantos do prazer e do
sossego.

II.2- Na verdade, não ter virtude suficiente é como que ter alguma arte,
se não uses; se bem que certamente uma arte, quando a não uses, contudo pode
ser mantido o mesmo conhecimento, a virtude foi posta inteira em seu uso; e
seu uso máximo é o governo da cidade e daquelas mesmas coisas que aqueles8
apregoam nos cantos9, realmente não por uma perfeita linguagem.
Pois nada é dito pelos filósofos que, na verdade, correta e honestamente
seja dito, que por aqueles não se tenha produzido e confirmado, pelos quais às
cidades o direito foi escrito. De onde então a devoção, ou de quais vem a
religião? de onde o direito ou dos povos ou este mesmo que se diz civil? de
onde a justiça, a fé, a eqüidade? de onde o pudor, a continência, a fuga da
torpeza, a procura do louvor e da honestidade? de onde a firmeza nos labores e
perigos? Em verdade, daqueles que as confirmaram por disciplinas, umas
formadas por costumes, e consagraram outras por leis.
3. E ainda, até mesmo Xenócrates, nobre filósofo entre os primeiros,
quando se queria saber dele o que alcançavam seus discípulos, dizem ter
respondido que faziam por vontade própria o que se obrigavam a fazer pelas
leis. Portanto, deve-se preferir aquele cidadão que obriga a todos pelo poder e
pena das leis isto que a custo a poucos podem os filósofos persuadir pela
palavra, até àqueles mesmos doutores que discutem essas coisas. Então, que
linguagem daqueles é tão procurada que se deva antepor à cidade bem
constituída pelo direito público e pelos costumes? Na verdade, deste modo

8 Filósofos epicuristas, para quem a política é um obstáculo à sabedoria.


9 Imagem empregada por Platão (Gor. 485d – e ).

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“cidades grandes e poderosas “, como chamava Ênio, a aldeolas e fortalezas


penso que devem ser preferidas, assim os que estão à frente destas cidades em
deliberação e autoridade julgo que devem-se antepor pela própria sabedoria
aos que, experientes em todo negócio público, estejam longe. E já que somos
arrastados às obras do gênero humano que devem ser engrandecidas e
dedicamo-nos por nossos conselhos e trabalhos a tornar a vida dos homens
mais segura e mais rica e somos incitados a este desejo por estímulos da própria
natureza, tenhamos aquele curso que sempre foi de cada excelente cidadão e
não ouçamos aqueles sinais que cantam à retirada, para que chamem de volta
também aqueles que já tenham avançado.

III.4- A estas razões tão certas e tão luminosas são postas, por aqueles
que primeiro contra-argumentam, dificuldades que se devem suportar, para
que a República seja defendida, na verdade um leve impedimento ao vigilante e
laborioso e que deve ser desprezado não só em tão grandes coisas, mas também
nas medianas seja nos estudos, seja nos deveres, seja até mesmo nos negócios.
São acrescentados perigos à vida, e destes um torpe medo da morte se
apresenta aos fortes varões a quem isto, consumir-se pela natureza e velhice,
mais costuma parecer lamentável, do que ser-lhe dado tempo, para que possam
antes de tudo pela pátria restituir esta vida, que no entanto devia ser restituída
à natureza.
Na verdade, nesse ponto, julgam-se copiosos e eloqüentes, quando
reúnem calamidades dos homens mais ilustres e injúrias postas, a partir
daqueles cidadãos ingratos.
5. Daí, então, aqueles exemplos mesmo entre os gregos: Milcíades,
vencedor e domador dos persas, ainda não sanadas aquelas feridas, que tinha
recebido, corpo voltado à claríssima vitória, dissipou a vida, das armas dos
inimigos preservada, nos laços dos cidadãos; e Temístocles, repelido e expulso
da pátria que tinha libertado, recorreu não aos portos da Grécia salvos por si,
mas ao seio dos bárbaros, que tinha abatido.

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Nem, na verdade, faltam exemplos de volubilidade e crueldade dos


atenienses com os mais importantes cidadãos, que, gerados e freqüentes entre
aqueles, dizem ter abundado também em nossa severíssima cidade. Pois ou o
exílio de Camilo, ou o malogro de Ahala é lembrado, ou o ódio a Nasica, ou o
degredo de Lenate, ou a condenação de Opímio, ou a fuga de Metelo, ou a
penosíssima ruína de Caio Mário [...]10 assassinato de principais, ou destruições
daqueles muitos que pouco depois se seguiram.
6. Na verdade, nem mesmo de meu nome se abstêm e, creio, porque
pensam-se preservados naquela vida e sossego por nossa deliberação e perigo,
mais gravemente lamentam-se também de nós e mais afetuosamente. Mas não
facilmente eu diria por que, quando estes mesmos atravessam os mares para
aprender e ver [...] [ Perderam-se duas páginas ]

IV.7- [...] eu estando afastado do consulado, o povo romano em


assembléia igualmente prestando juramento, teria jurado que [a pátria] estava
salva, facilmente eu compensaria o cuidado e a mágoa de todas as injúrias. Se
bem que nossas quedas tiveram mais de honra que de trabalhos e nem tanto de
mágoa, quanto de glória, e tomamos maior alegria da saudade dos bons do que
dor da alegria dos ímprobos. Mas se de outro modo, como disse, tivesse
acontecido, como poderia lamentar, quando a mim nada de imprevisto nem de
mais grave tivesse sucedido do que eu tivesse esperado, por meus tão grandes
feitos? Pois eu fora aquele a quem embora fosse lícito tomar do sossego maiores
frutos do que a outros, por causa da vária suavidade dos estudos, nos quais
desde a puerícia eu vivera, ou, se algo mais acerbo acontecesse a todos, não
uma precípua, mas suportar uma condição igual à fortuna, com os outros, não
teria duvidado em levar-me a caminho das mais graves tempestades e quase
aos próprios raios, por causa dos cidadãos que devem ser preservados, e
preparar com meus próprios perigos o sossego comum aos restantes.

10 Falta uma linha, que se conjectura; uel crudelissima post reditum eius “ou crudlelíssimo
(assassinato de principais) após sua volta”.

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8. Pois nem por esta lei a pátria nos gerou e educou de modo a que quase
nenhuma subsistência esperasse de nós e entretanto, ela mesma servindo a
nossos interesses, fornecesse seguro refúgio a nosso sossego e lugar tranqüilo
na quietude, mas para que ela mesma tomasse como penhor para seu proveito
as mais numerosas e maiores partes de nosso espírito, engenho e conselho; e
tanto nos concedesse para uso privado, quanto pudesse ser-lhe a mais.

V.9- Já aqueles refúgios que tomam a si como escusa, com que mais
facilmente usufruam do sossego, sem dúvida minimamente devem ser ouvidos,
quando assim dizem que aproximam-se da república geralmente homens
dignos de nada bom, que com os quais ser comparados é sórdido e que bater-se,
sobretudo estando incitada a multidão, é lamentável e perigoso. Por causa do
que nem é de sábio aceitar as rédeas, quando não possa coibir os ímpetos
insanos e indômitos do vulgo, nem de homem livre ou suportar os açoites das
afrontas lutando com adversários impuros e desumanos ou esperar que injúrias
não se devam fazer a um sábio; por conseqüência, como que aos bons, corajosos
e dotados de grande ânimo haja algo mais justo para se aproximar da república,
do que não ceder aos ímprobos, nem admitir que por eles seja despedaçada a
república, quando não possam eles mesmos levar auxílio, se desejarem.

VI. 10- E aquela exceção, a quem afinal pode ser aprovada: que negam
que o sábio venha a assumir alguma parte da república, exceto a que por acaso
a circunstância e a necessidade o obrigue? Como se, na verdade, pudesse
acontecer a alguém necessidade maior do que aconteceu a nós, na qual que teria
podido fazer, se não tivesse então sido cônsul? E como pude ser cônsul, se não
tivesse tido desde a infância aquele curso da vida, pelo qual, nascido de família
eqüestre, chegasse à honra mais importante? Pois não há poder fora de tempo,
nem quando tenhas desejo de levar socorro à república, ainda que ela seja
apertada por perigos, se não estejas naquele lugar, para que te seja permitido
fazer isso.

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11. E sobretudo isto no discurso de homens doutos costuma parecer-me


admirável: os que em mar tranqüilo negam poder governar, porque nem se
instruíram, nem alguma vez cuidaram em aprender, estes mesmos declaram
que se chegarão à direção, excitadas as maiores vagas. Pois esses costumam
dizer abertamente e vangloriar-se muito nisto: das razões das repúblicas, quer
das que se devem estabelecer, quer das que se devem observar, nem ter
aprendido alguma vez nem ensinar nada; e acham que a ciência daquelas coisas
deve-se conceder não a homens doutos e sábios, mas aos exercitados naquele
gênero.
Por que acontece oferecer seu trabalho à república então, caso esses
sejam afinal coagidos por necessidade, quando, o que é de muito mais bem
disposto, nenhuma necessidade obrigando, não saibam reger república?
Certamente, que verdadeiro fosse que o sábio não costuma descer por sua
vontade às razões da cidade, mas se fosse coagido pelas circunstâncias, então
este cargo enfim não costuma recusar, contudo eu pensaria que estas ciências
das coisas civis minimamente deva ser negligenciada pelo sábio, por isso que
todas as coisas deveriam ser preparadas por ele, das quais não saberia utilizar-
se, se alguma vez fosse necessário.

VII. 12- Estas coisas foram ditas por mim com muitíssimas palavras por
esta causa: porque a esta obra fora instituído e empreendido por mim um
debate sobre a república; para que este não se tivesse inutilmente, tive de
eliminar primeiro a hesitação do aproximar-se da república. E contudo, se
alguns há que se impressionam com a autoridade dos filósofos, atentem por um
momento e ouçam aqueles11, cuja autoridade e glória são as mais elevadas junto
aos homens mais doutos; os quais penso, mesmo que eles mesmos não tenham
gerido a república, contudo, já que sobre a república buscaram e escreveram
muitas coisas, terem desempenhado alguma função da república. Na verdade,

11 Platão, Aristóteles, Panécio etc.

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aqueles sete que os gregos chamaram sábios12, quase todos vejo que se
versaram em meio à república. Pois nem há alguma coisa, em que a virtude
humana se chegue ao poder dos deuses mais aproximadamente do que ou
fundar cidades ou preservar as já fundadas.

VIII. 13- Destas coisas, uma vez que a nós tocou como o mesmo, tanto no
gerir a república ficássemos na memória: algo digno de se alcançar, quanto no
explicar as razões das coisas civis, não só no uso, mas também no zelo de
aprender e ensinar ...13 ficássemos autores de uma certa propriedade, quando,
superiores, uns tivessem sido polidos em debates, de cujas realizações nada se
encontrasse, outros prováveis no gerir, rudes no dissertar. Nem, na verdade,
uma certa nossa razão deve-se instituir, nova, e nem foi encontrada por nós,
mas deve-se retomar de memória um debate dos homens de nossa cidade mais
ilustres e sábios de uma só geração, que foi exposto a mim e a ti 14, então
mocinho, por Públio Rutílio Rufo15, em Esmirna, quando juntamente estávamos
vários dias, no qual imagino que quase nada que pertencesse grandemente às
razões de todas as coisas foi deixado passar.

IX. 14- Pois, como Públio Africano, aquele filho de Paulo, sendo cônsules
Tuditano e Aquílio, decidisse nas férias latinas estar nos jardins, e seus amigos
mais próximos, em grande número junto a ele, dissessem que por aqueles dias
haviam de visitá-lo freqüentemente, amanhecendo nas férias, vem a ele
primeiro o filho de sua irmã, Quinto Tuberão; como amigavelmente Cipião o
tivesse cumprimentado e com prazer o tivesse visto, diz: “Como tu, tão cedo,
Tuberão? pois davam-te estas férias com certeza oportuna possibilidade para
desenrolar teus livros”.

12 Tales de Mileto; Bias de Pirene; Pítacos, tirano de Mitilene; Cleóbulo, tirano de Lindos;
Quílon, éforo de Esparta; Periandro, tirano de Corinto. Platão foi o primeiro a dar a lista (Prot.
343).
13 Falta talvez uma linha, pulada pelo copista.
14 Presume-se que seja o irmão mais novo de Cícero, Quinto.
15 Discípulo de Panécio. Em 98 a.C. foi legado de Múcio Cévola na Ásia; teria encontrado Cícero

em Esmirna, onde esteve exilado.

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Então ele (Tuberão):


- Para mim, na verdade, todo tempo para meus livros é vago, pois nunca
eles estão ocupados; mas tu ser encontrado sossegado é muito importante,
sobretudo com esta agitação da república16.
Então Cipião:
- Entretanto encontraste-me, por Hércules, mais sossegado em trabalhos
do que em espírito.
Então, ele (Tuberão):
- Mas na verdade convém que relaxes também o espírito; pois somos
muitos, como estabelecemos, preparados, se com tua comodidade pode
acontecer, a abusar contigo deste sossego.
- Com meu prazer, na verdade; que relembremos de vez em quando algo
a respeito das aplicações do ensino.

X. 15- Então, ele (Tuberão):


- Queres então, uma vez que tanto me convidas de certo modo quanto
me dás tua esperança, que isto primeiro, Africano, vejamos, antes que venham
os outros: que há sobre esse segundo sol que foi anunciado no senado? Pois
nem poucos nem frívolos são os que dizem ter visto dois sóis17, de modo que se
deve ter fé tanto quanto se deve procurar a razão.
Aí, Cipião:
- Quanto desejaria tivéssemos conosco nosso Panécio 18! que estas e outras
questões celestes com muito zelo costuma procurar. Mas eu, Tuberão - pois
contigo abertamente falarei o que sinto - não concordo muito em todo esse
gênero com aquele nosso amigo que, as coisas que a custo por conjectura quais
sejam podemos suspeitar, assim afirma como que com os olhos pareça discerni-
las ou tratar inteiramente com a mão. Pelo que mesmo o mais sábio, Sócrates,
costumo julgar, que teria deixado, a seu modo, todo cuidado, e o que se

16 Trata-se dos problemas causados pelas distribuições de terra (Lex Sempronia), após a morte de
Tibério Graco.
17 Fenômeno óptico provocado pelo reflexo do sol em uma nuvem que contém cristais de gelo.

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procurasse sobre a natureza teria dito ser maior do que a razão dos homens
possa alcançar ou em nada absolutamente pertencer à vida dos homens.
16. Depois, Tuberão:
- Não sei, Africano, por que se tenha entregue assim à memória que
Sócrates tenha rejeitado toda essa discussão e somente sobre a vida e sobre os
costumes costumava questionar. Pois que autor mais fecundo sobre aquilo do
que Platão podemos louvar? Em cujos livros, em muitos lugares, Sócrates fala
assim: que, mesmo quando discute sobre costumes, sobre virtudes e enfim
sobre a república, contudo esforça-se em juntar, pelo hábito de Pitágoras,
números, geometria e harmonia.
Então, Cipião:
- São essas coisas como dizes; mas creio que tu ouviste, Tuberão, que
Platão, estando Sócrates morto, estendeu-se primeiro ao Egito para estudar,
depois à Itália e à Sicília, para que aprendesse inteiramente as descobertas de
Pitágoras, e que ele esteve muito com Árquita de Tarento e com Timeu de
Locres e que encontrou comentários de Filolau e, quando naquele tempo, nestes
lugares, o nome de Pitágoras era forte, ele dedicou-se tanto aos homens
pitagóricos quanto àqueles estudos. E assim, como tivesse amado Sócrates
especialmente e tivesse desejado atribuir a ele todas as coisas, cobriu a graça e a
sutileza socrática com a obscuridade do discurso de Pitágoras e com aquela
gravidade de muito numerosas artes.

XI. 17- Como Cipião tivesse dito estas coisas, de repente avistou Lúcio
Fúrio que chegava e, quando o saudou muito amigavelmente, pegou e colocou-
o em seu leito. E como ao mesmo tempo Públio Rutílio tivesse chegado, que é o
autor deste discurso para nós, este também, quando saudou, perto de Tuberão
mandou sentar.
Então, Fúrio:

18 Em 129 Panécio estava em Athenas, onde sucedera Antípatros na Stoá.

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- Que vós fazeis? Por acaso nossa chegada interrompeu algum discurso
vosso?
- O menos possível, na verdade, disse Africano; pois tu costumas
investigar aplicadamente estas coisas que estão neste gênero de que pouco
antes Tuberão decidira perguntar. Na verdade, nosso Rutílio, mesmo sob as
próprias muralhas da Numância, costumava algumas vezes questionar comigo
algo desta dimensão.
- Que coisa afinal ocorrera? diz Filo.
Então, ele (Cipião):
- Desses dois sóis, de que desejo, Filo, ouvir de ti o que pensas.

XII. 18- Dissera ele isto, quando um menino anunciou que Lélio vinha a
ele e que já tinha saído de casa. Então Cipião, tomados os calçados e as vestes,
saiu e, como tivesse andado um pouquinho no pórtico, saudou Lélio que
chegava e aqueles que ao mesmo tempo tinham vindo: Espúrio Múmio, que
entre os primeiros estimava, Caio Fânio e Quinto Cévola, genros de Lélio,
doutos jovens, já em idade da questura19. Como os tivesse a todos saudado,
voltou-se no pórtico e juntou ao meio Lélio; pois houve na amizade entre eles
como que um certo direito: em guerra, Lélio cultuava o Africano como um
deus, por causa da distinguida glória militar; em paz, por sua vez, Cipião
considerava Lélio, porque o antecedia em idade, em lugar do pai. Depois, como
tivessem conversado muito poucas coisas entre si, com um ou com outro, e
como a Cipião a chegada deles tivesse sido muito agradável e muito grata,
aprouve que se assentassem em um lugar mais ensolarado, lugar de um
pequeno prado, porque era inverno a estação do ano; como quisessem fazê-lo,
chega um homem prudente e agradável e caro a todos eles, Mânio Manílio, que,
por Cipião e pelos outros muito amigavelmente saudado, assentou-se bem
próximo a Lélio.

19 Pelo menos vinte e oito anos.

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XIII.19- Então, Filo:


- Não me parece, diz, porque estes vieram, que outro assunto deva ser
procurado, mas que mais acuradamente deve-se discutir e dizer algo digno dos
ouvidos deles.
Neste momento, Lélio:
- Que afinal discutíeis, ou ao meio de que discussão chegamos?
[Filo]:
- Cipião quisera saber de mim o que eu pensava sobre isto: que constava
que dois sóis foram vistos.
[Lélio]:
- Falas sério, Filo? Já foram exploradas por nós aquelas coisas que
concernem a nossas casas e à república, se na verdade procuramos o que se faz
no céu?
E ele (Filo):
- Acaso tu não pensas que concerne a nossas casas saber o que se faz e o
que acontece em casa? que não é aquela que nossas paredes cingem, mas este
mundo todo, morada que os deuses nos deram como pátria comum consigo,
quando principalmente, se ignoremos estas coisas, muitas e grandes coisas
devam ser ignoradas por nós. E quanto a mim como, por Hércules, também a ti
próprio, Lélio, e a todos ávidos de sabedoria deleita a própria cognição e
consideração das coisas.
20. Então, Lélio:
- Não impeço, principalmente porque estamos em férias; mas podemos
ouvir algo ou chegamos muito tarde?
- Nada até aqui foi discutido, e, já que está intacto, na verdade concederei
com prazer a ti, Lélio, para que dissertes sobre isso.

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- De modo algum; ouçamo-te, exceto se talvez Manílio acha que algum


interdito20 entre os dois sóis deva-se compor, para que se apossem do céu assim
como um e outro tenha-se apossado.
Então, Manílio:
- Segues, Lélio, a zombar desta arte em que primeiro tu mesmo excedes,
depois sem a qual ninguém pode conhecer o que é seu, o que é alheio? mas com
essa em pouco tempo [pode-se conhecer]; agora ouçamos Filo, que vejo ser
consultado sobre as maiores coisas antes do que eu ou do que Públio Múcio21.

XIV. 21- Então, Filo:


- Nada de novo levarei a vós e nem que por mim tenha-se cogitado ou
encontrado; pois de memória tenho que C. Sulpício Galo22, homem doutíssimo,
como sabeis, quando esta mesma visão era falada e ele estava por acaso junto a
M. Marcelo, que com ele tinha sido cônsul, mandou trazer um globo que o avô
de M. Marcelo, tomada Siracusa, tinha levado da cidade riquíssima e
ornadíssima, quando nada mais da tamanha presa tinha levado a sua casa.
Como muito freqüentemente eu tivesse ouvido o nome, por causa da glória de
Arquimedes, não admirei tanto o próprio aspecto deste globo; pois era mais
gracioso e mais célebre para o vulgo do que aquele, que, feito pelo próprio
Arquimedes, o próprio Marcelo tinha posto no templo da Virtude 23. 22. Mas,
depois que Galo começou a expor muito sabiamente a razão desta obra, eu
começava a achar que houve mais de engenho naquele siciliano do que parecia
ter podido portar a natureza humana.
Pois Galo dizia que era velho o invento daquela outra esfera sólida e
plena e que ela foi torneada primeiro por Tales de Mileto, e que depois por
Eudoxo de Cnido, discípulo de Platão, segundo sustentava, ela mesma foi

20 O interdictum “uti possidetis” é um ato de autoridade do pretor, que decide provisoria e


condicionalmente sobre a posse de algum imóvel. Lélio fez um gracejo com Manílio, que era
jurista.
21 Públio Múcio Cévola, irmão de Quinto, também era jurista e não estava presente.
22 Legado de Paulo Emílio em 168 na Macedônia, explicou o eclipse da lua ao exército, antes da

batalha de Pidna. Foi cônsul em 166 com M. Marcelo.

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desenhada com astros e estrelas, que se fixavam no céu; dela todo ornato e
descrição, tomada de Eudoxo muitos anos após, não pela ciência da astrologia,
mas por uma certa faculdade poética, Arato24 expôs em versos. E este gênero de
esfera, em que estavam os movimentos do sol e da lua e daquelas cinco estrelas
que se denominavam errantes e como que vagas, naquela esfera sólida não
pôde ser delimitado, e nisso deve-se admirar o invento de Arquimedes que
refletiu de que modo uma só conversão conservaria, em dissímeis movimentos,
cursos desiguais e vários. Como Galo movesse esta esfera, acontecia que a lua
em precisamente tantas conversões naquele bronze, quantos dias no próprio
céu punha-se sob o sol, a partir do que tanto acontecia aquele mesmo eclipse do
sol no céu e na esfera, quanto incidia a lua então naquele cone que era a sombra
da terra, quando o sol em linha reta ...
[Perderam-se oito páginas.]

XV. 23- [Cipião]:


- ... foi, porque eu mesmo estimava o homem e em tempos passados
soubera ter sido apreciado e caro a meu pai, Paulo. Lembro-me de que, sendo
até então mocinho, como meu pai fosse cônsul na Macedônia e estivéssemos no
acampamento, nosso exército perturbava-se por superstição e medo, porque,
noite serena, subitamente a lua brilhante e cheia tinha-se eclipsado. Então ele,
como fosse enviado aproximadamente no ano anterior ao que foi declarado
cônsul, não duvidou, no dia seguinte, em público, no acampamento, ensinar
que nenhum prodígio acontecia e que aquilo também já tinha acontecido e que,
em tempos determinados, sempre haveria de acontecer, quando o sol assim se
tivesse posto, que não pudesse atingir a lua com sua luz.
- Que dizes, afinal? diz Tuberão; ele fora capaz de ensinar isto a homens
quase rústicos e ousava junto a ignorantes dizer estas coisas?
Cipião:

23Foi construído por Marcelus, filho do vencedor de Siracusa, pelo voto feito por seu pai na
batalha de Clastidium em 222 a.C.

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- Ele na verdade ... [ perderam-se duas páginas ]


24. Cipião:
- ... e nem insolente ostentação nem linguagem que se afasta da
personalidade de homem muito sério; pois tinha conseguido grande coisa:
lançara abaixo a vã superstição e temor em homens perturbados.

XVI. 25- E algo desse modo também, naquela guerra25 longuíssima que
atenienses e lacedomônios fizeram entre si com a maior tensão, aquele Péricles,
com autoridade, eloqüência e conselho, primeiro de sua cidade, como tivessem-
se feito trevas de repente, obscurecido o sol, e o maior temor tivesse ocupado os
ânimos dos atenienses, diz-se ter ensinado o que ele mesmo recebera de
Anaxágoras, de quem fora ouvinte: que aquilo acontece em tempo certo e
necessário, quando toda a lua se tiver posto sob o globo do sol; e assim, mesmo
que isto não aconteça em toda lua nova, contudo não pode acontecer, senão na
lua nova. Como tivesse ensinado isto argumentando com cálculos, libertou do
medo o povo; pois então este cálculo era novo e ignorado: o sol oposto à lua
costumar eclipsar-se, que, dizem, Tales de Mileto primeiro ter visto. E isto
posteriormente não escapou, na verdade, a nosso Ênio, que, como escreve, mais
ou menos no tricentésimo qüinquagésimo ano após Roma fundada: “Nas nonas
de junho pôs-se diante do sol a lua, e a noite.”
E nisto tamanha é a razão e a habilidade, que desde este dia que vemos
assinalado em Ênio e nos anais dos pontífices máximos26 os eclipses do sol
anteriores foram recalculados até aquele que houve nas nonas de julho,
reinando Rômulo; na verdade, nestas trevas, ainda que a natureza arrastou
Rômulo a um termo humano, a virtude contudo, diz-se, tê-lo sustentado no céu.

XVII. 26- Então, Tuberão:

24 Arato de Soles, na Cilícia (315 – 239),interpretou a obra de Eudoxo em um poema em


hexâmetros (Phaenomena), que foi traduzido por Cícero.
25 Guerra do Peloponeso (431 – 404). Eclipse ocorrido em 4 de agosto de 431 (Tuc. 2,28).
26 Livros em que os pontífices máximos anotavam ano a ano os nomes dos cônsules e os

principais eventos.

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- Vês, Africano, o que pouco antes contrariamente te parecia, ...


[Perderam-se duas páginas.]
[Cipião]:
- ... que outros vejam. Além disso, por que deva achar algo claro nas
coisas humanas quem tenha avistado estes reinos dos deuses, ou algo
duradouro quem tenha conhecido o que é eterno ou glorioso, quem tenha visto
quão pequena é, primeiramente, a terra inteira, e depois aquela parte dela que
os homens habitam e a que nós em exígua parte dela fomos fixados,
ignoradíssimos de muitos povos, esperemos contudo que nosso nome voeje e
vagueie muito amplamente? 27. Na verdade, campos, construções, gados,
imenso peso de prata e de ouro quem não costume estimar e chamar bens,
porque o fútil fruto daquelas coisas lhe pareça exíguo uso, incerto domínio,
freqüentemente também imensa posse dos homens mais horríveis, quanto este
deve ser considerado afortunado, ao qual só na verdade seja lícito reivindicar
por suas todas as coisas por direito não dos quirites, mas dos sábios, nem por
dívida civil, mas por comum lei da natureza, que veta alguma coisa ser de
qualquer um, senão daquele que saiba tratar e usar, que considere nossos
comandos e consulados nas coisas necessárias, não nas que devem ser
desejadas, que devem ser assumidos por reconhecimento da função que se deve
cumprir, não que devem ser procurados por causa dos prêmios ou da glória27,
que enfim, como escreve Catão28 que meu avô Africano era habituado a dizer,
possa ele mesmo anunciar de si: “Nunca fazer mais do que quando nada
fizesse, nunca estar menos só do que quando estivesse só.” 28. Quem de fato
pode na verdade pensar que então Dionísio29 fez mais quando, tudo tramando,
arrancou a seus concidadãos a liberdade, do que seu concidadão Arquimedes,
quando fez essa mesma esfera, como nada parecesse fazer, de que há pouco se
falava? E quem (pode na verdade pensar) não mais solitários estar os que no
foro e na turba não tenham com quem seja agradável conversar, do que os que,

27 Conforme Platão, Rep.I,347b.


28 Catão fora questor do Africano em África e Sicília.
29 Dionísio, o Antigo, 405 – 363 (Diodoro 13, 91-93).

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com nenhuma testemunha, ou falem eles mesmos consigo ou como que estejam
presentes em reunião dos homens mais doutos, quando se deleitam com os
achados e escritos deles? Quem na verdade pode imaginar qualquer um mais
rico do que aquele a quem nada falte? que certamente a natureza reclamasse, ou
mais poderoso do que aquele que consiga tudo o que procure, ou mais feliz do
que o que esteja livre de toda perturbação de ânimo, ou com o destino mais
seguro do que o que possua aquilo que consigo, como dizem, até de naufrágio
possa levar? E que comando, que magistratura, que reino pode ser mais notável
do que, desprezando todas as coisas humanas e julgando inferiores à sabedoria,
cogitar alguma vez no espírito nada, senão o eterno e divino, a quem tenha sido
persuadido os outros serem chamados humanos, serem somente aqueles que
tivessem sido polidos nas próprias artes da humanidade? 29. Como aquele dito
de Platão, ou algum outro30 disse, parece-me ser de muito bom gosto: alguém,
como do alto mar a tempestade tivesse levado a terras ignotas e ao litoral
deserto, os outros temendo por causa do desconhecimento dos lugares, dizem
ter notado na areia algumas formas geométricas estarem escritas; como as
tivesse visto, gritou que fossem de bom ânimo, pois ele via vestígios de homens,
coisa que claramente era interpretada não a partir da semeadura do campo que
ele distinguia, mas a partir dos indícios de instrução. Por isso, Tuberão, sempre
me agradaram tanto a instrução, quanto homens eruditos, quanto esses teus
estudos.

XVIII. 30- Então, Lélio:


- Não ouso, na verdade, diz, a essas coisas, Cipião, dizer que nem tanto
tu ou Filo ou Manílio ... [Perderam-se duas páginas]
[Lélio]:
- ... na família paterna dele mesmo houve aquele nosso amigo digno de
ser imitado por este: “homem excelentemente cordato, hábil Élio Sexto”, que foi
“excelentemente cordato” e “hábil” e foi dito por Ênio, não porque procurava as

30 Segundo Diógene Laércio (II,8,4) e Vitrúvio (VI,1), o dito é de Aristipo, fundador da escola
cirenaica.

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coisas que nunca encontraria, mas porque respondia as coisas que livrariam
tanto de preocupação quanto de embaraço os que tivessem procurado, e ao que
discutia contra os estudos de Galo sempre estava na boca aquele Aquiles, de
Ifigênia:
“Os sinais do céu, o que é próprio da observação dos astrólogos,
“quando, ou cabra ou escorpião, surge algum nome de feras,
“o que está diante dos pés ninguém olha, perscrutam as plagas do céu31.”
E ele mesmo (pois eu o ouvia muito e com prazer) dizia ser aquele
Zetho32 de Pacúvio demasiado inimigo da doutrina; mais o deleitava
Neoptólemo de Ênio, que diz de si que quer filosofar, mas em poucas coisas;
pois que em tudo não é agradável. Porque, se os estudos dos gregos tanto vos
deleitam, há outros mais livres e difusos mais amplamente, que quer ao uso da
vida quer também à própria república podemos levar. Na verdade, essas artes,
se apenas valem algo, valem para que agucem um pouco e como que estimulem
os engenhos das crianças, com que mais facilmente possam aprender coisas
mais importantes.
XIX. 31- Então, Tuberão:
- Não discordo de ti, Lélio, mas procuro que coisas tu entendes ser as
mais importantes.
[Lélio]:
- Direi, por Hércules, e serei desprezado por ti possivelmente, como tu
tenhas procurado de Cipião essas coisas celestes, eu por outro lado vou estimar
estas coisas que parecem ante os olhos que devem ser mais procuradas. Por que
então a mim o neto de L. Paulo33, com este tio materno, nascido em nobilíssima
família e nesta tão clara república, procura de que modo dois sóis tenham sido
vistos, não procure por que em uma só república dois senados e quase já dois
povos existam? Pois, como vedes, a morte de Tibério Graco34 - e já antes toda

31 Tragédia adaptada de Ifigênia em Áulis, de Eurípides, correspondendo aos versos 919 a 974.
32 Zetho, personagem do Antíope, de Pacúvio. Ele louvava a vida ativa, contrário ao seu irmão
gêmeo Anfião, que louvava a vida contemplativa.
33 Tuberão era filho de Emília, irmã do Emiliano, e tinha por avô Emílio Paulo.
34 Morto em 133 a.C.

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razão do seu tribunato - dividiu o povo uno em duas partes; e os detratores e


mesmo invejosos de Cipião, a começar por P. Crasso e Ápio Cláudio, têm
contudo, mortos esses, a outra parte do senado que é dissidente de vós, sendo
autor Metelo e P. Múcio; e [nem eles] nem este aqui35 -único que pode-,
excitados os aliados mesmo de nome latino, violadas as alianças, os triúnviros
mais sediciosos acumulando cada dia algo de novo, homens de bem ricos
perturbados, suportam vir em socorro a estas tão perigosas coisas.
32. Por isso, se me ouvis, jovens, não temais um outro sol, pois ou
nenhum pode existir ou exista certamente como foi visto, de modo que não seja
molesto, ou por nada saber dessas coisas ou mesmo que saibamos muito nem
melhores nem mais felizes podemos ser por essa ciência; na verdade, senado e
povo, que um só tenhamos tanto pode acontecer quanto muito molesto é se não
acontece, e diferentemente sabemos e vemos que existe, caso isso tenha-se
realizado, tanto bem mais havemos de vencer quanto mais afortunadamente.

XX. 33- Então, Múcio:


- Que julgas então, Lélio, que deva ser aprendido por nós, para que
possamos realizar isso mesmo que postulas?
[Lélio]:
- Aquelas artes que façam que sejamos de proveito à cidade; penso na
verdade que isso é a mais brilhante função da sapiência e máximo documento
ou ofício da virtude. Por isso, para que estas férias nos levem acima de tudo aos
discursos mais úteis à república, peçamos a Cipião que explique qual ele estima
ser a melhor forma de governo da cidade, depois requereremos outras coisas.
Conhecidas as quais, espero havermos de chegar a estas pela mesma via e
havermos de explicar a razão dessas coisas que agora se erguem.

XXI. 34- Como isso tanto Filo, quanto Manílio, quanto Múmio tivessem
aprovado inteiramente ... [ Perderam-se duas páginas]

35 Cipião Emiliano.

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[Lélio]:
- ... não só por essa causa: que era justo que da república falasse o mais
importante senador da república, quis que acontecesse, mas também porque
lembrei-me de que muito freqüentemente dissertavas com Panécio, de sólito em
presença de Políbio, dois gregos realmente muito expertos nas coisas civis, e
reunia muitas coisas e ensinava que de longe o melhor estatuto da cidade era
aquele que nossos antepassados nos tinham deixado. No qual debate, já que tu
és mais preparado, terás dado a nós todos prazer - que até mesmo por estes
direi - se tiveres explicado o que sentes da república.

XXII. 35- Então, ele (Cipião):


- Não posso na verdade dizer que em alguma reflexão costume versar
mais aguda ou diligentemente do que nessa mesma que me é proposta por ti,
Lélio. Porquanto, quando no seu trabalho cada artesão, que realmente seja
superior, eu vir em nada mais refletir meditar curar, senão no que, nesse
gênero, seja melhor, eu, como me tenha sido deixado por meus pais e ancestrais
este único trabalho: cuidado e administração da república, não confessarei ser
mais inativo do que algum operário, se eu me tiver dado ao trabalho na máxima
arte menos do que eles nas mínimas? 36. Mas nem me contentei com aquelas
coisas que, escritas acerca dessa deliberação, nos deixaram os maiores e mais
sábios homens da Grécia, nem ouso antepor àquelas as que me parecem. Por
isso peço de vós que assim me ouçais: nem como absolutamente experto nas
coisas gregas nem como as anteponha às nossas especialmente neste gênero,
mas como um só dos pais togados com diligência instruído não
inconvenientemente e incendiado pelo zelo de aprender desde a puerícia,
contudo educado pelo uso também dos preceitos domésticos muito mais do que
das letras.

XXIII. 37- Neste ponto, Filo:


- Não, por Hércules, diz, Cipião, duvido que alguém tenha-te excedido
em engenho, e não duvido de que pelo hábito das coisas mais importantes na

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república tu mesmo tenhas facilmente vencido a todos; e temos que sempre tens
sido dedicado a estes estudos. Por isso, se como dizes dirigiste mesmo o ânimo
a essa reflexão, até como que uma arte, tendo o maior agradecimento a Lélio,
pois espero que muito mais fecundas hão de ser as coisas que serão ditas por ti,
do que todas as que nos foram escritas pelos gregos.
Então, ele (Cipião):
- Realmente muito grande expectativa tu impões ao meu discurso, ônus
que é muitíssimo grave para quem há de falar de assuntos importantes.
E Filo:
- Ainda que seja grande, contudo excedê-la-ás, como costumas; e nem de
fato há perigo de que o discurso seja insuficiente, tu dissertando sobre a
república.

XXIV. 38- Aí, Cipião:


- Farei o que queres, como puder, e avançarei ao debate por aquela lei, da
qual creio que se deva utilizar em todas as coisas a ser discutidas, se queres
suprimir erro, para que dessa coisa acerca de que se procura, se o nome que está
é conveniente, se explique o que se declara por esse nome, que, se for
conveniente, então, finalmente convirá avançar ao discurso. Pois nunca poderá
ser entendido qual seja aquilo de que se debaterá, senão se o que seja tenha sido
antes entendido. Por isso, uma vez que procuramos acerca da república,
vejamos primeiro isto: o que é isso mesmo que procuramos.
Como Lélio tivesse aprovado, nem na verdade, diz Africano, dissertarei
de algo tão conhecido assim, que volte àqueles elementos, dos quais homens
doutos costumam usar nestes assuntos, como desde a primeira união de macho
e fêmea, depois da progênie e parentesco comece e com palavras defina muitas
vezes o que é e de quantos modos cada coisa se diga; pois como vou falar junto
a homens prudentes e versados na maior república com a mais alta glória na
guerra e na paz, não confiarei em que aquele mesmo assunto de que eu discutia
seja mais ilustre do que a minha linguagem.

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De fato, nem tomei a cargo isto: que como um professor percorresse


tudo; e nem prometo que hei de realizar de modo que nenhuma pequena parte
neste discurso tenha sido esquecida.
Então, Lélio:
- Eu, na verdade, espero esse mesmo gênero de linguagem que prometes.

XXV. 39- Então, diz Africano, a república é coisa do povo, contudo povo
não é todo ajuntamento de homens congregado de qualquer modo, mas
ajuntamento do vulgo associado por consenso do direto e por comunhão de
interesse. Contudo sua primeira causa de se ajuntar não é tanto a fraqueza
quanto uma certa como que congregação natural de homens; pois este gênero
não é isolado nem solitário-errante, mas assim criado que nem, na verdade, em
afluência de todas as coisas ...
[Perderam-se duas páginas]
40. ... e isto a própria natureza não só incitaria, mas também obrigaria.

XXVI. 41- [Cipião]:


- ... algumas - como que sementes -, para que nenhuma instituição das
restantes virtudes nem da própria república se invente. Estes ajuntamentos,
portanto, instituídos por esta causa acerca de que falei, estabeleceram primeiro
residência em determinado lugar por moradia; a esta conjunção deste modo de
tetos, como tivessem cercado com defesas naturais e artificiais, chamaram
cidadela ou cidade, separada por templos e espaços comuns. Portanto todo
povo, que é ajuntamento do vulgo tal qual expus, toda cidade, que é
constituição de povo: toda república, que, como disse, é coisa do povo, deve-se
reger por um certo conselho, para que seja duradoura. Mas esse conselho
primeiro sempre deve-se referir àquela causa: causa que gerou a cidade.
42. Depois, ou a um só deve-se atribuir ou a alguns escolhidos ou deve-se
empreender ao vulgo e a todos. Por isso, quando para um só está o máximo de
todas as coisas, a esse único chamamos rei e reino ao estatuto dessa república.
Mas, quando está para escolhidos, então essa cidade se diz para o rei com

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arbítrio dos aristocratas. Mas essa cidade é democrática (pois assim chamam),
em que no povo todas as coisas estão.
Mas qualquer dos três gêneros, se contenha aquele vínculo que primeiro
ligou por associação da república os homens entre si, não é perfeito; isso na
verdade não é o melhor - na minha opinião -, contudo é tolerável e de modo
que um possa ser mais eficaz do que o outro. Pois seja um rei justo e sábio, seja
cidadãos escolhidos, principais, seja o próprio povo, ainda que este deve ser o
menos aprovado, contudo, não se entrepondo injustiças ou cobiças, parece que
a alguém pode ser de não incerto estado.

XXVII. 43- Mas também nos reinos demasiado experimentados são os


restantes cidadãos em comum direito e conselho, e no governo dos melhores a
custo a multidão pode ser partícipe da liberdade, quando careça de todo
conselho comum e poder, e, quando tudo é exercido pelo povo, ainda que justo
e moderado, contudo a própria eqüidade é desigual, quando tem nenhum grau
de dignidade.
E assim, se Ciro aquele persa foi muito justo e sábio, contudo parece-me
que a coisa do povo - pois esta é pública, como disse antes - ela não foi
reclamada ao máximo, quando se rege pelo assentimento e medida de um só; se
os massilienses, nossos clientes, se regem com a mais alta justiça por cidadãos
escolhidos e principais, há contudo nessa condição do povo uma certa
semelhança de servidão; se os atenienses em certos tempos, suprimido o
Areópago, nada faziam senão por plebiscito e decretos do povo, uma vez que
não tinham distintos graus de dignidade, a cidade não tinha seu ornamento.

XXVIII. 44- E falo isto destes três gêneros de governo não desordenados e
confundidos, mas que mantêm seu estado. Gêneros que primeiro estão nesses
vícios um a um, que antes eu disse, depois têm outros vícios funestos; pois
nenhum gênero dessas repúblicas há que não tenha caminho para algum mal
limítrofe, precipitado e escorregadio.

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Pois àquele rei - como aquele poderosíssimo nome - tolerável ou, se


queres, até mesmo amável, a Ciro subsiste como licença para mudança de
ânimo aquele crudelíssimo Fálaris, em cuja semelhança o domínio de um só por
inclinado curso também facilmente escorrega36. E para aquela administração da
cidade de poucos e principais massilienses há um limite que foi outrora entre os
atenienses consenso e facção do governo dos trinta. Logo o poder de tudo do
povo de Atenas, eles mesmos, para que não procuremos outros, [disseram ter-
se] convertido em furor e desvario da multidão ... [Perderam-se duas páginas]
Nem Cartago teria tanto de recursos por quase seiscentos anos, sem
conselhos e disciplina.

XXIX. 45- [Cipião]:


- ... o mais asqueroso, e desta costuma florescer [uma república] dos
aristocratas ou aquela facciosa tirânica, quer monárquica quer mesmo muitas
vezes popular, e do mesmo modo daquela costuma florescer algum gênero
daqueles que falei antes. E admiráveis são nas repúblicas as evoluções e como
que ciclos das mudanças e vicissitudes, os quais quando é do próprio sábio tê-
los conhecido, então sem dúvida é próprio do que se aplica a governar a
república prever por um curso que modera e que retém em seu domínio, como
algum grande cidadão e um homem quase divino. E assim um quarto gênero de
república acima de tudo sinto que deve ser provado, que é a partir destes três
que primeiro disse moderado e misto.

XXX. 46- Aqui, Lélio:


- Sei que assim te agrada, Africano; pois freqüentemente de ti ouvi, mas
no entanto, se não é molesto, a partir desses três modos de república eu
quereria saber o que tu julgas o melhor. Pois aproveitaria algo ... [Perderam-se
duas páginas]

36Alusão à morte de Fálaris, tirano de Agrigento (570 - 554), em um touro de bronze, destinado
a supliciar suas vítimas.

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XXXI. 47- [Cipião]:


- ... e qualquer república é tal qual ou a natureza ou a vontade daquele
que a dirige. E assim em nenhuma outra cidade, senão na que o poder do povo
é o mais alto, a liberdade tem alguma habitação; na verdade, nada pode ser com
certeza mais doce do que ela, e esta, se não é justa, deixo de dizer no reino, onde
na verdade a servidão nem é obscura ou dúbia, mas nessas cidades em que
todos são livres em palavra? Pois exercem sufrágios, entregam comandos,
magistraturas, são rodeados, são solicitados, mas dão mais as coisas que,
mesmo que não queiram, devem ser dadas e que eles mesmos não têm, onde
outros pedem; pois são experientes em comando, em conselho público, em juízo
dos juízes escolhidos, coisas que se ponderam pela antigüidade das famílias ou
pelas riquezas. E em povo livre como os ródios, como os atenienses, nenhum
cidadão há que ... [perderam-se duas páginas]

XXXII. 48- [Cipião]:


- ... [se de um povo] alguém, um só ou muitos mais ricos e mais
opulentos se levantassem, então recordam que a partir do desdém e da soberba
deles essas coisas nasceram, cedendo tanto fracos como ignavos, sucumbindo à
arrogância dos ricos. Mas, caso os povos mantenham seu direito, negam haver
qualquer coisa mais notável, mais livre, mais bem-aventurada, porque estes são
senhores das leis e dos juízos, da guerra e da paz, das alianças, da vida e da
riqueza de cada um. A esta única, religiosamente, pensam chamar-se república,
isto é, coisa do povo. E assim, da dominação tanto de reis quanto de patrícios, a
coisa do povo costuma ser reivindicada para a liberdade, e não costuma -desde
povos livres- reis serem procurados, ou poder e recursos da aristocracia.
49. E na verdade negam ser preciso que pelo vício de um povo não
domado todo este gênero de povo livre seja repudiado. Do que um povo
concorde e que em tudo leva à sua conservação e liberdade, nada é mais
imutável, nada mais firme. E a concórdia pode ser a mais fácil naquela
república em que o mesmo conduza para todos. Das diversidades da utilidade,

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quando uma coisa desembaraça uns, outra coisa desembaraça outros, nascem as
discórdias. E assim, quando os patrícios se apoderam das coisas, nunca se
estabelece o estatuto da cidade. Já isso muito menos nos reinos dos quais, como
diz Ênio: “Nenhuma associação é sagrada, nem confiança37”. Por isso, quando a
lei é vínculo da sociedade civil, o direito da lei é igual; por qual direito a
associação dos cidadãos pode ser mantida, quando igual não seja a condição
dos cidadãos? Pois, se igualar-se as riquezas não agrada, se os talentos de todos
não podem ser iguais, decerto devem ser iguais os direitos daqueles entre si,
que são cidadãos na mesma república. Pois que é cidade, senão associação de
direito dos cidadãos? ... [Perderam-se duas páginas]

XXXIII. 50- [Cipião]:


- ... com efeito, as outras repúblicas, na verdade, pensam que não devem
ser chamadas com esses nomes com que elas desejam chamar-se. Por que,
então, eu deva chamar rei, pelo nome de Júpiter ótimo, um homem ávido de
dominar ou de poder singular, oprimido o povo, dominante, que não antes
tirano? Pois um tirano pode ser clemente tanto quanto um rei pode ser
desfavorável, de modo que isto é do interesse dos povos: se vão servir a um
senhor cortês ou intratável; que não vão servir não pode acontecer. E por que
modo a Lacedemônia, aquela, quando se pensava que era superior pela
disciplina da república, pudera então alcançar que gozasse de bons e justos reis,
quando haveria de ser rei qualquer um que fosse nascido de família real?
Pois os aristocratas, na verdade, quem pode suportá-los, que sem a
concessão do povo, mas por suas assembléias arrogaram a si este nome? Que,
então, esse se julgue o melhor? Pela instrução, pelas habilidades, pelos esforços
ouço. Quando...? [Perderam-se quatro páginas]

XXXIV. 51- [Cipião]:

37 Fragmento de uma tragédia de Ênio (fr. 197), também citada no De Officiis I,8.

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- ... Se fortuitamente isso fará, tão rapidamente quanto uma nau será
revirada, se dos passageiros um conduzido por sorteio tenha-se dirigido ao
governo. Por isso, se um povo livre escolha com quais se reúna e escolha, se é
que quer estar salvo, cada um melhor, com certeza a salvação das cidades foi
posta nos conselhos dos melhores, sobretudo quando a natureza tenha trazido
isto: não só que os mais elevados em virtude e ânimo estivessem à frente dos
mais fracos, mas que estes também queiram obedecer aos mais elevados. Mas
dizem que este ótimo estatuto foi revirado por malfeitas opiniões dos homens,
que por desconhecimento da virtude que, quando está em poucos, então por
poucos se julga e se percebe, pensam que homens opulentos e ricos, nascidos
então de família nobre, são os melhores. Por este erro do vulgo, quando os
recursos de poucos, não as virtudes, começaram a manter a república, aqueles
principais dos aristocratas mantêm teimosamente o nome, e disso carecem,
desse nome. Pois riquezas, nome, recursos desprovidos de conselho tanto de
viver como de ordenar aos outros são apenas cheios de desonra e de insolente
soberba, e nenhuma espécie de cidade é mais disforme do que aquela em que os
mais opulentos são julgados os melhores.
52. A virtude na verdade governando a república, que pode ser mais
preclaro? quando aquele que ordena aos outros serve ele próprio a nenhum
desejo, quando ele próprio abraçou todas as coisas para as quais estabelece e
convoca os cidadãos e não impõe as leis ao povo, às quais ele próprio não
obedeça, mas sua vida, como a lei, oferece aos seus cidadãos. Se alguém sozinho
pudesse conseguir tudo suficiente, nada seria necessário aos mais; se todos
pudessem ver o melhor e nele consentir, ninguém procuraria os principais
eleitos. A dificuldade do conselho que se deve tomar transferiu a coisa do rei
aos mais, o erro e a leviandade dos povos transferiu da multidão aos poucos.
Assim entre a fraqueza de um só e a leviandade de muitos, os aristocratas se
apossaram do lugar médio; do que esse nada pode ser mais moderado. Esses
guardando a república, necessário é os povos serem os mais felizes, livres de
todo cuidado e preocupação, permitido seu sossego pelos outros, por quem isso

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deve ser guardado e não exposto a que em seu proveito o povo pense ser
negligenciado pelos principais.
53. Pois na verdade a eqüidade de direto -quanto abraçam os povos
livres- nem pode ser conservada, pois os próprios povos, ainda que tenham-se
soltado e desenfreado, atribuem especialmente a muitos muitas coisas, e há
neles mesmos grande dileto dos homens e dignidades, e esta que se chama
eqüidade é a mais iníqua; quando então tem-se igual a honra aos mais elevados
e aos mais baixos, que necessário é existam em todo povo, a própria eqüidade é
a mais iníqua. O que naquelas cidades que pelos melhores são dirigidas não
pode acontecer. Estas aproximadamente, Lélio, e algumas coisas desse gênero
costumam ser discutidas por aqueles que sobretudo louvam essa forma de
república.

XXXV. 54- Então, Lélio:


- Qual, diz, desses três [gêneros], Cipião, que tu ao máximo aprovas?
[Cipião]:
- Direito procuras que ao máximo dos três, já que deles nenhum mesmo
aprovo por si separadamente e anteponho a cada um aquele que tenha sido
forjado a partir de todos. Mas, se um só e simples deva ser aprovado, aprovaria
o do rei [...] neste lugar é chamado, ocorre um nome como que de rei dos
patrícios, que olha por seus cidadãos assim como pelos nascidos de si e que os
preserva com mais zelo do que [...] sustentar-se pela diligência de um só
homem, aristocrata e mais elevado.
55. Estão presentes os aristocratas, que declaram que eles fazem melhor
isto mesmo e que dizem que há de haver mais de conselho em muitos do que
em um só, havendo contudo a mesma eqüidade e fidelidade. E eis que com a
máxima voz clama o povo que nem quer obedecer a um só nem a muitos; nem
às feras na verdade algo é mais doce do que a liberdade, dela todos carecem
quer sirvam ao rei quer aos aristocratas. Assim por afeição nos tomam os reis,
por conselho os aristocratas, por liberdade os povos, de modo que, em
comparando, é difícil que se escolha o que ao máximo queres.

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Lélio:
- Creio, diz, mas desenredar o que resta a custo poderão, caso fiques
devedor disto começado.

XXXVI. 56- [Cipião]:


- Imitemos então Arato, que tencionando falar de grandes coisas pensa
que se deve começar de Júpiter.
[Lélio]:
- Por que de Júpiter? Ou que este discurso tem semelhante ao canto
daquele?
[Cipião]:
- Muito, diz, para que religiosamente dele que ensina tomemos os
princípios, que todos, doutos e indoutos, consentem ser único rei de todos os
deuses e homens.
Quê? diz Lélio.
E aquele [Cipião]:
- O que contas, senão o que está ante os olhos? Ou estas coisas foram
instituídas para utilidade da vida pelos principais das repúblicas: que se pense
um só rei estar no céu, que por um sinal, como diz Homero, poderia revirar
todo o Olimpo e ele mesmo poderia manter-se tanto rei como pai de todos,
grande autoridade há e muitas testemunhas, quem sabe a todos, a muitos
agrada ser ele nomeado, assim nações consentiram em decisões, é claro, dos
principais: que nada é melhor do que o rei, já que contam com que todos os
deuses são regidos pela divindade de um só; ou aprendemos que estas coisas
foram postas no erro de ignorantes e semelhantes a fábulas, ouçamos como que
os mestres comuns dos homens eruditos, que como com os olhos viram aquelas
coisas que nós a custo conhecemos ouvindo.
Pois quem, diz Lélio, são esses?
E ele [Cipião]:
- Os que, a natureza das coisas havendo de ser investigada, sentiram
todo este mundo por uma inteligência ...

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[Perderam-se quatro páginas]


57. [Lélio]:
- Por isso, se te agrada, faz descer teu discurso desse lugar a essas coisas
mais de cá.

XXXVII. 58- Mas se queres, Lélio, darei a ti testemunhas nem demasiado


antigas nem de modo algum bárbaras.
- Esses, diz [Lélio], quero.
[Cipião]:
- Vês então que há menos de quatrocentos anos esta cidade existe, que
sem reis existe?
[Lélio]:
- Na verdade, menos38.
[Cipião]:
- Quê, então? Esta idade de quatrocentos anos, como de cidade e estado,
por acaso é por demais longa?
- Essa na verdade, diz [Lélio], é a custo idade adulta.
[Cipião]:
- Então, fora estes quatrocentos anos, em Roma havia um rei?
[Lélio]:
E soberbo, na verdade.
[Cipião]:
- Que mais?
[Lélio]:
- O mais justo e depois para trás até Rômulo, que desde este tempo era
rei no ano seiscentésimo.
[Cipião]:
- Então nem esse na verdade é muito velho?
[Lélio]:

38 Da expulsão de Tarqüínio (510 a.C.) à data do diálogo (129 a.C.) há 381 anos.

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- Absolutamente, e quase já a Grécia envelhecia. Diz, Cipião, por acaso


Rômulo foi rei de bárbaros? Se, como os gregos dizem, todos são ou gregos ou
bárbaros, temo que tenha sido rei de bárbaros; mas se esse nome deve-se dar
pelos costumes, não pelas línguas, penso que os gregos não são menos bárbaros
do que os romanos.
E Cipião:
- Ora, para isto de que se trata não procuramos raça, procuramos
talentos. Se, então, homens tanto prudentes quanto não velhos quiseram ter
reis, sirvo-me de testemunhas nem muito antigas nem desumanas e ferozes.

XXXVIII. 59- Então, Lélio:


- Vejo, Cipião, que tu estás bastante provido de testemunhas, mas em
relação a mim, como em relação a um bom juiz, os argumentos valem mais do
que as testemunhas.
Então, Cipião:
- Serve-te portanto, Lélio, tu mesmo de um argumento do teu
sentimento.
- De que sentimento, diz ele?
- Se alguma vez, se por acaso te parecestes estar irado com alguém.
- Eu, na verdade, mais freqüentemente do que quereria.
- Quê? Então, como tu estás irado, permites àquela cólera o domínio do
teu ânimo?
- Não, por Hércules, diz, mas imito Árquitas, aquele tarentino que, como
tivesse chegado à quinta e se tivesse desagradado em tudo diferentemente do
que ordenara: “Ah desgraçado, diz ao caseiro, que eu mataria já de açoites, se
não estivesse irado”.
60. - Muito bem, diz Cipião. Então Árquitas pensava com justiça ser a
cólera evidentemente dissidente da razão, alguma sedição do ânimo e queria
que ela se sedasse pelo conselho. Ajunta a cobiça, ajunta o desejo de mando,
ajunta o de glória, ajunta as luxúrias, e vês, caso nos ânimos dos homens esteja
o mando da realeza, que isso há de ser dominação de um só, a saber, do

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conselho –pois essa é a melhor parte do ânimo-: o conselho sendo dominante,


nenhum lugar há para desejos, nenhum para ira, nenhum para temeridade.
- Assim é, diz.
- Aprovas então o ânimo assim disposto?
- Na verdade, nada mais, diz.
- Então não aprovarias se, repelido o conselho, as luxúrias, que são
inumeráveis, ou as cóleras retivessem tudo?
- Eu, na verdade, nada julgaria mais infeliz do que esse ânimo, nada, do
que um homem assim animado.
- Sob uma realeza então te agrada que estejam todas as partes do ânimo e
que elas sejam regidas pelo conselho?
- A mim, na verdade, assim agrada.
- Por quê, então, duvidas do que sentes da república? em que, caso a
muitos ela seja transferida, já se pode entender que nenhum mando haverá que
esteja à frente, porque certamente, caso não haja um só, nenhum pode haver.

XXXIX. 61- Então, Lélio:


- Que difere, por favor, entre um só e muitos, se a justiça está [toda] no
muitos?
E Cipião:
- Já que pelas minhas testemunhas, Lélio, entendi que tu não te
comoveste muito, não deixarei de usar de ti como testemunha, para que eu
prove isto que digo.
- A mim? diz ele, por que modo?
- Porque voltei o espírito há pouco, quando estávamos na casa de
Fórmias, a ti que dizias fortemente à famulagem que a uma só sentença desse
ouvido.
- Com certeza ao caseiro.
- Quê? No lar muitos estão à frente dos teus negócios?
- Ao contrário, na verdade, um só, diz.
- Quê? Toda a casa, por acaso que outro além de ti rege?

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- De modo nenhum, na verdade.


- Por quê, então, tu não concedes o mesmo na república: as dominações
de cada um, caso apenas sejam justos, ser as melhores?
- Sou levado, diz, a que quase admita esse modo.

XL. 62- E Cipião:


- Então podes admitir mais, Lélio, se (para que eu omita semelhanças, a
um só piloto, a um só médico, caso apenas sejam dignos dessas artes, é mais
correto entregar a nau a um, o doente a outro, do que a muitos) eu tiver
chegado a coisas maiores.
- Que coisas são essas?
- Quê? Tu não vês que pelo excesso e soberba de um só, de Tarqüínio, o
nome de rei chegou ao ódio para este povo?
- Vejo, na verdade, diz.
- Pois também vês isso de que eu julgo que, avançando o discurso, hei de
dizer muitas coisas; expulso Tarqüínio, o povo exultou por uma certa
extraordinária falta de hábito de liberdade: ora inocentes eram expulsos ao
exílio, ora bens de muitos eram saqueados, ora cônsules anuais, ora feixes39
abaixados ao povo, ora apelações de todas as coisas, ora secessões da plebe, ora
diretamente assim a maior parte das coisas encaminhadas, de modo a que tudo
estivesse no povo.
- É como dizes, diz.
63. - É deveras, diz Cipião, na paz e no ócio (pois é permitido divertir-se,
enquanto nada temas) como numa nau e freqüentemente também numa doença
leve. Mas como aquele que navega, quando súbito o mar começa a increpar-se,
também aquele doente, agravando-se a doença, implora o auxílio de um só,
assim nosso povo na paz mesmo em casa manda até nos próprios magistrados
ameaça recusa apela provoca, na guerra obedece assim como a um rei; pois vale

39Fascis, -is (m): feixe de varas de olmo ou bétula, geralmente com uma machadinha no meio,
que os lictores levavam à frente dos magistrados, como símbolo do poder que lhes assistia de
castigar ou condenar à morte.

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a salvação mais do que o desejo. Na verdade, nas guerras mais graves, também
sem colega os nossos quiseram que todo mando fosse para particulares, cujo
próprio título indica a força de seu poder. Pois ditador em verdade por isso se
chama, porque é dito, mas em nossos livros vês, Lélio, que ele é chamado
mestre do povo.
- Vejo, diz.
E Cipião:
- Sabiamente então aqueles antigos ... [Perderam-se duas páginas]

XLI. 64- [Cipião]:


- ... na verdade de um justo rei, quando o povo foi privado, “Uma
saudade toma por muito tempo40 os peitos” como diz Ênio, depois do óbito de
um ótimo rei.
“... ao mesmo tempo entre
“si assim lembram: ‘Ó Rômulo, Rômulo divino,
“qual guardião da pátria os deuses te geraram!
“ó pai, ó genitor, ó sangue oriundo dos deuses!
Nem patrões nem senhores chamavam aqueles aos quais por justiça
tinham obedecido, afinal nem reis na verdade, mas guardiães da pátria, mas
pais, mas deuses; e não sem causa. Que então ajuntam?
“Tu nos conduziste para dentro dos limites da luz.”
A vida, a honra, a decência julgavam serem dadas a si pela justiça do rei.
Teria ficado a mesma vontade nos seus descendentes, se a semelhança dos reis
tivesse permanecido, mas vês que pela injustiça de um só todo aquele gênero de
república caiu.
[Lélio]:
- Vejo certamente, diz, e esforço-me por conhecer esses cursos de
mudanças não mais na nossa do que em toda república.

Diu, apesar das lições dia, pia, dura e fida, segundo a lição editada por James E. G. Zetzel, pela
40

Cambridge University Press.

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XLII. 65- E Cipião:


- Quando tiver dito o que sinto sobre aquele gênero de república que ao
máximo aprovo, devo sobretudo falar mais acuradamente das mudanças das
repúblicas, mesmo que eu ache muito pouco fácil elas acontecerem naquela
república. Mas desta da monarquia primeira e certíssima é aquela mudança:
quando um rei começa ser injusto, perece logo aquele gênero e é o mesmo
aquele tirano, o pior gênero e limítrofe do melhor. Se os aristocratas o abafaram,
o que ordinariamente aconteceu, o governo tem um estatuto secundário dos
três, pois é como que do rei, isto é, conselho de patrícios que, principais,
deliberam pelo bem para o povo. Senão, o povo por si matou e expulsou o
tirano, é mais moderado, até onde sente e conhece, e se alegra por seu feito e
quer por si guardar o governo constituído. Senão, quando ou contra um rei
justo o povo levou violência ou despojou-o do reino, ou ainda, o que aconteceu
mais freqüentemente, degustou o sangue dos aristocratas e submeteu todo o
governo a seu capricho, acautela-te penses que ou algum mar ou chama seja
tamanha que não seja mais fácil acalmar do que a multidão desenfreada pela
insolência. Então acontece aquilo que em Platão foi dito claramente, se apenas
eu puder exprimir isso em latim; é difícil de se fazer, mas tentarei contudo.
XLIII. 66- “Pois, diz, quando as goelas insaciáveis do povo secaram de
sede de liberdade, e ele servido de maus serventes hauriu, sedento, liberdade
não moderadamente preparada mas demasiado pura, então a magistrados e
principais41, caso não sejam muito brandos e permissivos e lhe sirvam
largamente a liberdade, persegue censura repreende, chama-os prepotentes,
reis, tiranos”. Penso de fato que estas coisas te são conhecidas.
- Na verdade, diz ele, me são muitíssimo conhecidas.
67. [Cipião]:
- Logo elas seguem: “Os que obedeçam aos principais são atormentados
por esse povo e são chamados de escravos voluntários; os que na magistratura
queiram ser semelhantes aos particulares e os particulares que façam que nada

41 Principes, “governantes” (Platão, Rep.8,562d).

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difira entre o particular e o magistrado, a esses dão louvores e glorificam com


honras, para que seja necessário em um governo desse modo tudo estar pleno
de liberdade, assim também toda casa particular esteja livre de domínio e este
mal chegue até os animais, enfim que pai tema filho, filho desdenhe do pai,
esteja longe todo pudor, que sejam absolutamente livres, nada diferencie seja
cidadão ou estrangeiro, mestre que tema os discípulos e seja complacente com
eles e os discípulos desprezem os mestres, adolescentes que assumam para si a
gravidade dos velhos, velhos se rebaixem à brincadeira dos adolescentes, para
que não lhes sejam odiosos e graves. A partir disso acontece que mesmo os
escravos se incumbem mais livremente, esposas com o mesmo direito estejam
que os maridos, e além disso em tamanha liberdade cães mesmo e cavalos,
jumentos sejam afinal livres, assim passeiem que se lhes deva afastar do
caminho. Logo, diz, a partir desta infinita [liberdade] congrega-se esta suma
licença, que assim fastidiosas e moles acabem as mentes dos cidadãos, de modo
que, se se aplique uma mínima força de comando, se irritam e não podem
suportar. A partir do que começam também a desdenhar das leis, para que
estejam absolutamente sem senhor algum”42.

XLIV. 68- Então, Lélio:


- Direito, diz, foram expressas por ti as coisas que foram ditas por ele.
- Mas para que eu retorne já ao costume do meu discurso, a partir desta
demasiada licença que eles julgam única liberdade, diz aquele que a partir de
certa cepa surge e como que nasce um tirano. Pois que a partir do demasiado
poder dos principais ergue-se a ruína dos principais, assim a própria liberdade
afeta com servidão este povo demasiado livre. Assim tudo demasiado, seja no
tempo seja nos campos seja nos corpos, quando foram mais agradáveis,
convertem-se quase no contrário, e ao máximo isso acontece nas repúblicas:
aquela demasiada liberdade tanto aos povos quanto aos particulares cai em
demasiada servidão. E assim a partir desta máxima liberdade gera-se o tirano e

42 Platão, Rep.VIII,562c – 563e.

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aquela injustíssima e duríssima servidão. Então a partir deste povo indômito ou


antes cruel escolhe-se freqüentemente algum chefe, contra aqueles principais já
abatidos e expulsos do lugar, audacioso, torpe, que persegue atrevidamente os
que muitas vezes bem serviram à república, gratificando ao povo tanto com as
alheias como com as suas coisas; a este, porque os temores foram opostos ao
particular, são dados comandos e esses são continuados, mesmo com
protetores, como Pisístrato em Atenas, são protegidos, por fim daqueles
mesmos pelos quais foram produzidos surgem os tiranos. Se os homens de bem
os reprimiram, como freqüentemente acontece, a cidade se recria; senão,
audaciosos, acontece aquela facção, outro gênero de tiranos, e essa mesma nasce
também a partir daquele preclaro estatuto freqüentemente dos aristocratas,
quando alguma deformidade desviou do caminho os mesmos principais. Assim
os tiranos arrancam dos reis entre si o estatuto da república como uma bola, e
desses os principais ou o povo, destes ou facções ou tiranos, e nunca se mantém
por mais tempo o mesmo modo de república.

XLV. 69- Como isto esteja assim, dos três primeiros gêneros de longe
excede, na minha opinião, o monárquico, e ao mesmo monárquico excederá
aquele que for equilibrado e misturado a partir dos três primeiros modos de
repúblicas. Agrada de fato haver na república um certo gênero que excede,
também real, haver outro não dividido e atribuído à autoridade dos principais,
haver alguns gêneros preservados para o juízo e vontade da multidão. A
constituição tem primeiro estas coisas: alguma grande eqüidade, de que a custo
homens livres podem carecer por muito mais tempo, depois firmeza, porque
mesmo aqueles primeiros gêneros facilmente se convertem em vícios contrários,
de modo que de um rei surja um senhor, dos aristocratas uma facção, do povo
turba e confusão, e porque os próprios gêneros freqüentemente se mudam em
novos gêneros; isto nesta junta e moderadamente misturada constituição da
república quase não acontece, sem os grandes vícios dos principais. Não há
portanto causa de revolução, quando cada um está em sua posição firmemente
colocado e não subjaz para onde se precipite e decaia.

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XLVI. 70- Mas temo, Lélio e vós, homens amicíssimos e prudentíssimos,


que, se por mais tempo eu volte a este gênero, como que de algum principiante
e professor e não do que considera ao mesmo tempo convosco pareça ser meu
discurso. Por isso avançarei àquelas coisas que são conhecidas a todos, e
procuradas por nós já há tempo. Assim de fato julgo, assim sinto, assim afirmo
que nenhuma de todas as repúblicas seja em constituição seja em distribuição
seja em disciplina deve ser comparada com aquela que nossos pais deixaram
para nós, já então recebida pelos ancestrais. Se agrada, já que o que tínheis vós
mesmos também quisestes ouvir de mim, eu mostrarei ao mesmo tempo tanto
de que qualidade seja ela quanto que é a melhor. E, exposta para exemplo nossa
república, ajustarei a ela, se puder, todo aquele discurso que hei de ter sobre o
melhor estatuto da cidade. Se eu puder ter e alcançar isto, terei realizado
plenamente este encargo diante do qual Lélio me pôs, segundo minha opinião
sustenta.

XLVII. 71- Então, Lélio:


- Teu encargo na verdade, diz, Cipião, e teu, certamente de um só. Pois
quem antes de ti terá dito quer das instituições dos ancestrais, quando tu
mesmo és muito mais ilustre do que os ancestrais, quer do melhor estatuto da
cidade - se temos este (mesmo que não agora certamente), então na verdade
quem pode ser mais florescente do que tu? - quer sobre as decisões a serem
previstas para o futuro, quando tu, dois terrores43 afastados desta urbe, previste
para todo o tempo?

43 Cartago e Numância.

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LIVRO SEGUNDO

[Perderam-se aproximadamente trinta letras]

I. 1- ... por desejo de ouvir começou Cipião a falar assim: isto é de Catão,
o velho, que, como sabeis, particularmente estimei e ao máximo admirei, a
quem me dediquei todo desde a adolescência seja por juízo de um e de outro
pai44 seja também por meu zelo, cujo discurso nunca me pôde saturar, tamanho
era no homem o hábito da república que tinha gerido tanto na paz quanto na
guerra, assim excelentemente como também por muitíssimo tempo, tanto a
medida no dizer quanto a elegância misturada à gravidade quanto o maior zelo,
quer do aprender quer do ensinar, quanto a vida congruente o bastante ao
discurso.
2- Ele costumava dizer que por esta causa o estatuto da nossa cidade
excede o das outras cidades: que naquelas indivíduos houve ordinariamente
dos quais cada um constituiu sua república por leis e institutos seus, como dos
cretenses Minos, dos lacedemônios Licurgo, dos atenienses, que muitas vezes
foi mudada, ora Teseu, ora Drácon, ora Sólon, ora Clístenes, ora muitos outros,
por fim já exângüe e estendida um douto homem, Demétrio de Falero, a
sustentou; a nossa república não foi constituída por engenho de um só, mas de
muitos, e nem por única vida de homem, mas por alguns séculos e gerações.
Pois dizia que nenhum engenho surgiu tamanho, que alguém alguma vez
existiu, a quem nenhuma coisa afugentasse, e que nem todos os engenhos
referidos em um só pode prover tanto a um só tempo, que abrangessem tudo
sem o hábito e antigüidade da coisas.
3- Por isso, como ele costumava, assim agora meu discurso repetirá a
origem do povo romano, pois com prazer também uso da palavra de Catão. E
mais facilmente alcançarei o que foi proposto, se eu mostrar-vos nossa república

44L. Aemilius Paulus, o pai natural de Cipião (Scipio Aemilianus), P. Cornelius Scipio, seu pai
adotivo; de fato este era chamado de Africanus maior, aquele de Africanus minor.

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tanto nascente quanto crescente quanto adulta quanto já firme e robusta, do que
se eu mesmo fingir alguma para mim, com Sócrates, em Platão.

II. 4- Como todos tivessem aprovado isto: que exórdio temos, diz, de
república instituída tão claro e tão conhecido a todos quanto o princípio desta
urbe a ser fundada proveniente de Rômulo? O qual nascido do pai Marte
(concedamos com efeito à fama dos homens, sobretudo não inveterada só, mas
também com sabedoria transmitida pelos ancestrais, bem se julguem os méritos
das coisas comuns, como a raça também, não só o engenho ser divino), ele
então, quando nasceu, com o irmão Remo, diz-se, que foi ordenado ser exposto
junto ao Tibre, por Amúlio, rei albano, por temor do reino se abalar; no qual
lugar, como tivesse sido sustentado pelas mamas de besta silvestre e pastores o
tivessem sustentado e alimentado no culto e trabalho agreste, mantém-se,
quando cresceu, tanto em forças do corpo quanto em ferocidade de ânimo ter
excedido os outros tanto que todos que então habitavam aqueles campos, onde
hoje está esta urbe, equânimes obedeciam a ele, e com prazer. Com tropas
destes, como se tivesse apresentado chefe – que já das fábulas aos fatos
cheguemos – ter oprimido Alba Longa, válida e potente urbe naqueles tempos,
e ter destruído o rei Amúlio conta-se.

III. 5- Esta glória gerada, diz-se que, tomados os auspícios, primeiro


cogitou fundar e firmar uma urbe, uma república. Quanto ao lugar da urbe, que
deve ser provido muito diligentemente por aquele que pretende enredar uma
república duradoura, com incrível proveito escolheu. E de fato nem aproximou
do mar, o que para ele fora muito fácil com aquela força e recursos, como
avançasse ao campo dos rútulos ou dos aborígines, ou na embocadura do Tibre,
lugar a que muitos anos depois o rei Anco conduziu uma colônia, ele mesmo
fundaria a urbe, mas, homem de excelente providência, sentiu isto e viu que
não eram os mais oportunos os lugares marítimos para aquelas cidades que
fossem fundadas com esperança de duração e comando, primeiro porque as
cidades marítimas estariam expostas a perigos não só muitos mas também

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invisíveis. 6- Pois a terra contínua denuncia antes por muitos indícios as


chegadas dos inimigos não só esperadas mas também repentinas, tanto como
que por algum fragor quanto pelo próprio som, e nem na verdade algum
inimigo pode voar por terra, que não possamos saber não só que seja ele
inimigo mas também quem e de onde seja. Mas aquele inimigo marítimo e
naval pode estar junto antes que alguém possa suspeitar de que esteja para
chegar, e nem na verdade, quando chega, mostra ou quem seja ou de onde
venha ou ainda o que queira, e enfim nada certamente se conhece, seja pacífico
ou hostil, não se pode discernir e julgar.

IV. 7- E há das urbes marítimas ainda alguma corrupção e mudança de


costumes; misturam-se então às conversações e às disciplinas e são importadas
não só mercês adventícias mas também costumes, de modo que nada possa
permanecer íntegro nas instituições paternas. Já os que habitam essas cidades
não se fixam em seus lugares, mas sempre por alada esperança e cogitação são
arrancados mais longe do lar e ainda, quando permanecem em corpo, em
espírito contudo exilam-se e vagueiam. Nem na verdade alguma coisa
perverteu mais outrora por muito tempo abalada tanto Cartago quanto Corinto,
do que este error e dispersão de cidadãos, porque pelo desejo de comércio e de
navegação tinham deixado o cultivo tanto dos campos quanto das armas.
8- Também muitos perniciosos convites ao luxo são por mar oferecidos
às cidades, que são ou tomados ou importados; e há também a própria
amenidade de atrativos muitos, quer suntuosos quer desidiosos, dos desejos. E
o que disse de Corinto, isso não sei se é permitido dizer com a maior verdade
de toda a Grécia, pois também o próprio Peloponeso quase todo está no mar, e
nem, exceto os de Fliunte, há alguns cujos campos não atinjam o mar, e fora do
Peloponeso os enianos e os dórios e os dólopes são únicos afastados do mar.
Que direi das ilhas da Grécia, que cingidas pelas vagas nadam elas mesmas ao
mesmo tempo com instituições e costumes das cidades? 9- Mas estas coisas na
verdade, como acima disse, são da antiga Grécia. Das colônias, de fato, há a que
levada pelos graios à Ásia, Trácia, Itália, África, exceto uma só, Magnésia, que a

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onda não banhe? Assim os campos dos bárbaros parece haver, como que
tecidos junto, alguns litorais da Grécia; pois na verdade dos próprios bárbaros
nenhum havia antes marítimo, exceto etruscos e púnicos, uns por causa de
comerciar, outros por causa de assaltar. Esta é a causa perspícua dos males e
das mudanças da Grécia, por causa desses vícios das urbes marítimas que
pouco antes muito brevemente toquei. Mas, contudo, nestes vícios está aquela
grande comodidade: tanto o que em toda parte foi gerado, que àquela urbe que
habites possa chegar por água, quanto em troca, que isso que seus campos
ofereçam possam levar e remeter a quaisquer terras que queiram.

V. 10- De que modo, então, pôde mais divinamente Rômulo abranger


tanto as vantagens quanto evitar os defeitos, do que porque estabeleceu a urbe à
margem de um rio perene tanto regular quanto que flui ao mar amplamente?
Pelo qual pudesse a urbe tanto receber por mar o de que carecesse quanto
oferecer o de que estivesse cheia, e assim pelo mesmo rio as coisas ao máximo
necessárias ao sustento e à cultura não só do mar absorveria, mas também
receberia as arrancadas da terra. Assim já me possa parecer então ter ele
adivinhado que esta urbe haveria de apresentar um dia a sede e o lar ao maior
poder; em alguma outra parte da Itália, teria podido ter, não de modo mais
fácil.
VI. 11- E as guarnições naturais da mesma urbe, quem é tão indiferente
que não as tenha pelo ânimo notadas e nitidamente conhecidas? Aquele traçado
e construção de sua muralha definidos, com sabedoria de Rômulo então e ainda
dos restantes reis, de toda parte por escarpados e abruptos montes, assim um só
acesso, que era entre o monte Esquilino e o Quirinal, a maior trincheira posta
adiante, era cingido por um fosso vastíssimo e assim, como fortificada cidadela,
lançado em torno um escarpado e como que um rochedo cortado em volta,
firmava-se, de modo que naquele horrível tempo da chegada do gaulês45
permaneceu incólume e intacta. E escolheu lugar tanto abundante em fontes

45 Em 390 a.C.

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quanto salubre em região pestilente; portanto colinas há que, quando são


sopradas através, elas mesmas então levam sombra aos vales.

VII. 12- E, na verdade, estas coisas muito rapidamente concluiu; pois


tanto estabeleceu a urbe, que de seu nome ordenou chamar-se Roma, quanto
para reafirmar a nova cidade recorreu a um certo conselho novo e um tanto
rústico de grande homem e logo então que provê de longe, mas para fortalecer
os recursos do reino e de seu povo, quando ordenou que as virgens sabinas,
nascidas de honroso lugar, que tinham vindo a Roma por causa dos jogos que
então, anuais, primeiro tinha instituído fazer no circo para as consuais46, fossem
raptadas e as deu em matrimônio das mais importantes famílias.
13- Por causa disso, como os sabinos tivessem levado guerra aos
romanos e a peleja da batalha tivesse sido vária e ambígua, celebrou aliança
com o rei dos sabinos T. Tácio, as próprias matronas que tinham sido raptadas
suplicando; pela qual aliança tanto admitiu os sabinos na cidade, partilhadas as
coisas sagradas, quanto associou seu reino com o rei daqueles.

VIII. 14- E após a morte de Tácio, como todo o domínio tivesse recaído
para ele, ainda que com Tácio para conselho dos reis tinha escolhido principais
(que foram chamados pais por causa da afeição) e tinha distribuído o povo
tanto com o seu nome quanto com o de Tácio e de Lucumão, que, aliado de
Rômulo, tinha morrido na batalha sabina, em três tribos e trinta cúrias (cúrias
que denominou pelos nomes daquelas que dos sabinos tinham sido raptadas
virgens, depois súplices de paz e aliança), ainda que essas coisas tinham-se
distribuído, Tácio sendo vivo, contudo, tendo ele sido morto, muito mais ainda
Rômulo reinou pela autoridade e conselho dos pais.
IX. 15- Feito isso, por primeiro viu e julgou o mesmo que em Esparta
Licurgo pouco antes tinha visto: com singular mando e poder real as cidades
então melhor serem governadas e regidas, se tiver sido acrescentada a

46Festas em honra de Conso, divindade romana cujo altar enterrado no meio do Circo Máximo
era desenterrado nessas festas em sua honra (Dic. da Mit. – P. Grimal).

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autoridade da aristocracia àquela força de dominação. E assim, com este


conselho apoiado e protegido, e como que com o senado, tanto fez com muita
felicidade muitas guerras com os vizinhos quanto, como ele mesmo nada do
despojo levasse à sua casa, não deixou de enriquecer os cidadãos.
16- Então, Rômulo muito freqüentemente seguiu os auspícios, o que
mantemos hoje com grande salvação da república. Pois também ele mesmo,
princípio que foi da república, fundou a urbe, tendo tomado auspícios também
para todas as coisas públicas a serem instituídas, de cada tribo cooptou áugures
únicos que a si estivessem juntos nos auspícios, e teve a plebe distribuída em
clientelas dos principais (que de quanta utilidade tenha sido depois terei visto47)
e por expressão de multa de carneiros e bois (que então era bem em gado e
posses de lugares, a partir do que se chamavam ricos em gado e ricos em
lugares) não por força e sacrifícios aos deuses continha.

X. 17- E Rômulo, como tivesse reinado trinta e sete anos e tivesse gerado
estes dois sustentáculos da república, auspícios e senado, tanto conseguiu que,
como súbito, obscurecido o sol, não tivesse comparecido, pensava-se ter sido
colocado no número dos deuses; opinião que nenhum mortal pôde alguma vez
alcançar sem extraordinária glória de virtude.
18- Mas isto a tal ponto mais deve-se admirar em Rômulo, que os outros,
que dizem de homens ter-se tornado deuses, foram de gerações de homens
menos instruídas, de modo que do fingir era pendente a razão, como inexpertos
fossem facilmente impelidos a crer. E discernimos a idade de Rômulo ter sido
menos do que estes seiscentos anos, já tornadas antigas literatura e doutrinas, e
afastado todo aquele antigo error da inculta vida dos homens. Pois se, o que se
investiga pelos anais dos gregos, Roma foi fundada no ano segundo da sétima
olimpíada48, a esse século caiu a idade de Rômulo, quando a Grécia era já plena
de poetas e músicos, e tinha-se menor fé nas fábulas, salvo das coisas antigas.

47Essa passagem anunciada falta nos manuscritos.


48A primeira olimpíada foi fixada em 776 a.C.; a sétima, de julho de 752 a junho de 748 a.C.
Segundo Políbio (2,14,27) a fundação de Roma se fixa em 21 de abril de 752 a.C.

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Pois cento e oito anos depois que Licurgo determinou escrever as leis 49 foi
fixada a primeira olimpíada, que na verdade por erro de nome pensam que foi
estabelecida por aquele Licurgo50; e Homero, os que dizem o mínimo, antepõem
aproximadamente trinta anos à idade de Licurgo51.
19- A partir do que pode-se entender que Homero existiu muitos anos
antes que Rômulo, de modo que, já doutos os homens e os mesmos tempos
eruditos, a custo algo daria lugar para o fingir. A Antigüidade de fato recebeu
fábulas fingidas alguma vez mesmo [sem fundamento, mas esta idade já bem
cultivada, principalmente zombando de tudo que não pode acontecer, rejeitou52
...]
20- ... [Estesícoro], seu neto, como disseram na verdade, da parte de sua
filha. Mas ele morreu no ano em que Simônides nasceu, na qüinquagésima
sexta olimpíada, em que mais facilmente já se possa entender então a crença
pela imortalidade de Rômulo, como a vida dos homens já tivesse sido
envelhecida e tratada e conhecida. Mas de fato tamanha foi nele a força de
engenho e de virtude que se creditava a Próculo Júlio 53, homem do campo, isto
acerca de Rômulo, que muitos séculos já antes54 os homens teriam crido a
nenhum outro acerca de um mortal. O qual, com impulso dos senadores pelo
que eles afastariam de si a recusa da perda de Rômulo, em assembléia conta-se
ter dito que Rômulo foi visto por ele naquela colina, que agora se chama
Quirinal, e que ele ordenou-lhe que pedisse ao povo que naquela colina se
fizesse um santuário a si, que ele era deus e que se chamava Quirino.

49 Por volta de 884, segundo o historiador Timeu. Segundo Eratóstenes e Eusébio, 826 a.C.,
cinqüenta anos da primeira olimpíada.
50 Segundo Aristóteles (apud Plutarco, Lyc.I), Licurgo instituiu uma trégua com Ífito em 776

a.C., durante os jogos olímpicos. Evidentemente este não era o legislador espartano.
51 Segundo Apolodoro (II séc. a.C.), através de C. Nepos e de Heródoto (2, 53), Homero teria

existido trinta anos antes de Licurgo, entre 914 e 910 a.C., cento e sessenta anos antes da
fundação de Roma.
52 Neste ponto há uma extensa lacuna, em que por conjectura pensa-se que Cícero enumerou os

poetas gregos que floresceram no tempo dos reis de Roma.


53 A lenda é contada por Tito Lívio (I,16) e por Plutarco (Rom. 28), em que Próculo Júlio é

patrício albano.

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XI. 21- Vedes então que com o conselho de um só homem não só nasceu
um novo povo e não como deixado a chorar no berço, mas já adulto e quase
púbere?
Então Lélio:
- Nós na verdade vemos também que tu certamente avançaste a discutir
por um novo raciocínio, que em parte nenhuma está nos livros dos gregos. Pois
aquele principal55, a quem ninguém foi superior no escrever, tomou a si um
espaço em que construiria a cidade por seu arbítrio, ele certamente a construiu
célebre talvez, mas que se afasta da vida dos homens também pelos costumes.
22- Os restantes dissertaram sem algum modelo certo e sem forma de república
sobre os gêneros e as razões das cidades. Tu me pareces estar para fazer uma e
outra coisa: de fato avançaste de modo que o que tu mesmo descubras queiras
mais atribuir aos outros do que tu mesmo representar, como Sócrates faz em
Platão, e daquela situação da urbe revoques à razão, coisas que por Rômulo
foram feitas por acaso ou por necessidade, e discutidas não por vaga
linguagem, mas fixa em uma só república. Por isso continua como estabeleceste;
portanto já pareço avistar, tu seguindo os restantes reis, como que a república
perfeita.

XII. 23- Portanto, diz Cipião, como aquele senado de Rômulo que
constava de optimates aos quais o próprio rei tanto tivesse atribuído, como
quisesse que aqueles se denominassem pais, e patrícios os filhos deles, tentasse
após a saída de Rômulo que ele mesmo regesse sem rei a república, o povo não
suportou isso e por saudade de Rômulo depois não deixou de reclamar um rei;
como com prudência aqueles principais refletiram uma nova e para as outras
gentes inaudita razão de interregno que entrava, de modo que, até que certo rei
fosse declarado, a cidade estivesse nem sem rei nem com um só rei diuturno

54 Antes, já que os homens, segundo Cícero, eram crédulos, e não havia sinal de
desenvolvimento da civilização.
55 Referência à distinção desta e daquela república de Platão.

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nem se expusesse a que alguém por inveterado poder ou fosse mais tardio para
depor o comando ou mais fortalecido para conservá-lo.
24- Com efeito, nesse tempo aquele novo povo viu contudo o que fugiu
ao lacedemônio Licurgo, que pensou o rei não para ser eleito, se apenas isto
pôde estar no poder de Licurgo, mas para ser tido, qualquer que fosse esse que
apenas tivesse sido gerado da estirpe de Hércules. Aqueles nossos, então
também agrestes, viram que era preciso ser procurada virtude e sabedoria real,
não progênie.

XIII. 25- A eles como a fama sustentasse que Numa Pompílio era notável,
deixados seus concidadãos, o próprio povo admitiu para si, sendo autores os
pais, um rei estrangeiro e chamou-o de Cures a Roma, homem sabino, para
reinar. Este, quando chegou aqui, embora o povo ordenara pelas assembléias da
cúria que ele fosse rei, contudo ele mesmo por seu mando trouxe uma lei
curiata56, e como viu os homens romanos por instituto de Rômulo inflamados
por esforços bélicos julgou que eles deviam-se afastar um pouco daquele
costume.

XIV. 26- Mas primeiro os campos, que em guerra Rômulo tomara,


dividiu por pessoa aos cidadãos e ensinou que sem devastação e presa eles
podiam, os campos devendo ser cultivados, ter abundância de todas as
comodidades e injetou neles amor do sossego e da paz, pelos quais muitíssimo
facilmente convalesce a justiça e a confiança, e por cujo patrocínio ao máximo se
defende o cultivo dos campos e a colheita dos cereais. E o próprio Pompílio
tanto acresceu dois áugures ao primitivo número, achados os auspícios maiores,
quanto ao sagrado prepôs cinco pontífices do número dos principais, quanto
mitigou os ânimos, propostas estas leis que em documentos temos, ardentes,
pelo costume e desejo, de guerrear de cultos de cerimônias e ajuntou além disso
flâmines57, salios58 e virgens vestais e instituiu todas as partes do culto

56 Lex curiata: lei que conferia a investidura do poder.


57 Sacerdotes que se consagravam ao culto de uma divindade particular.

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muitíssimo religiosamente. 27- E desejou que dos mesmos ritos fosse difícil a
diligência, muito fácil o aparato, pois muitos estabeleceu, uns para que se
aprendessem inteiramente e outros para que se observassem, mas sem despesa.
Assim aos cultos que se deviam cultivar aumentou a importância, retirou o
gasto e ele mesmo inventou comércio, jogos e todas as causas de se reunir e
solenidades. As quais causas instituídas, à humanidade e brandura chamou os
ânimos dos homens já desumanos e feros pelos esforços de guerrear. Assim ele,
como tivesse reinado trinta e nove anos em suma paz e concórdia (sigamos pois
antes de tudo o nosso Políbio, ninguém foi mais diligente do que ele em
pesquisas cronológicas), saiu da vida, confirmadas duas coisas as mais preclaras
à diuturnidade da república: culto e serenidade.

XV. 28- Como Cipião tivesse dito essas coisas:


- É de verdade, diz Manílio, isto transmitido pela memória, Africano, ter
sido esse rei Numa discípulo do próprio Pitágoras ou com certeza pitagórico?
Pois freqüentemente ouvimos isto dos mais velhos em nascimento e assim
entendemos que é pensado pelo vulgo; e nem na verdade vemos
suficientemente isso declarado com autoridade dos anais públicos.
Então, Cipião:
- É falso, Manílio, diz, pois isso tudo não só foi fingido mas também
inábil e absurdamente fingido; pois afinal não devem ser toleradas aquelas
mentiras que discernimos não só serem fingidas mas que não puderam em
verdade acontecer. De fato, reinando já pelo quarto ano Lúcio Tarqüínio
Soberbo, encontra-se que Pitágoras veio a Síbaris e Crotona e a essas partes da
Itália, pois a mesma sexagésima segunda olimpíada59 declara o início do reino
de Soberbo e a chegada de Pitágoras. 29- A partir do que se pode entender,
enumerados os anos dos reinos, quase no centésimo quadragésimo ano após a

58 Sacerdotes saltitantes de Marte.


59 62ª olimpíada: 532 – 531 a.C.. Tarqüínio Soberbo inicia seu reinado em 534 a.C..

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morte de Numa60 por primeiro Pitágoras ter tocado a Itália. E nem isto entre os
que muito diligentemente seguiram os anais dos tempos foi revolvido alguma
vez em alguma dúvida.
- Deuses imortais! diz Manílio, quão grande e quão inveterado é esse erro
dos homens! Mas contudo facilmente admito que nós não fomos instruídos por
artes ultramarinas nem importadas mas por virtudes genuínas e domésticas.

XVI. 30- E entretanto reconhecerás isso muito mais facilmente, diz


Africano, se vires que a república avança e que chega ao melhor estado por um
certo caminho e curso natural. Além do que por isto mesmo estabelecerás que a
sabedoria dos mais velhos deve ser louvada, porque entenderás que muitas
coisas mesmo tomadas de outra parte foram tornadas junto a nós melhores do
que teriam sido ali de onde tivessem sido trazidas e onde primeiro tivessem
surgido, e entenderás que não por acaso o povo romano foi consolidado, mas
por conselho e disciplina, sendo contudo não contrária a sorte.

XVII. 31- Morto o rei Pompílio, o povo elevou a rei Tulo Hostílio, o inter-
rei propondo às assembléias da cúria, e ele de seu mando a exemplo de
Pompílio consultou o povo por cúrias61. Dele foi a glória que excede em ação
militar, os grandes atos bélicos sobressaíram, e ele mesmo fez e protegeu a
partir dos despojos a assembléia e a cúria62 e instituiu o direito pelo qual se
declarariam guerras, achado que por si mesmo muitíssimo justo sancionou por
culto fecial63, de modo que toda guerra que não tivesse sido anunciada e
declarada essa seria julgada injusta e ímpia. E para que volteis o ânimo a quão
sabiamente nossos reis tenham já visto isto, algumas coisas deviam-se atribuir
ao povo (de fato muitas coisas desse gênero deverão ser ditas por nós); na

60 Segundo Cícero, tendo-se fundado Roma em 750 a.C., Rômulo reina 37 anos, Numa reina 39
anos. A morte de Numa se dá em 674 a.C., a chegada de Pitágoras, 143 anos mais tarde.
61 Divisão de ordem política e religiosa do povo romano.
62 Templo em que se reuniam as cúrias para celebrar o culto.
63 Relativo a um colégio de vinte sacerdotes que celebravam as cerimônias religiosas que

precediam a declaração de guerra, a conclusão dos tratados de paz etc.

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verdade Tulo não ousou usar das insígnias reais64, senão os povos tendo
ordenado. Pois, para que a si doze litores com feixes fosse lícito preceder ...
[Perderam-se duas páginas]

XVIII. 33- ... de fato a república [não] rasteja mas voa ao melhor estado,
posta tua fala.
[Cipião]:
- Depois dele, o neto de Numa Pompílio, da parte da filha, Anco Márcio,
foi constituído rei pelo povo e ele mesmo de seu mando trouxe a lei curiata65.
Este, como tivesse derrotado em guerra os latinos, admitiu-os na cidade e ele
mesmo ajuntou à cidade o monte Aventino e o Célio e dividiu os campos que
tomara e tornou públicas as selvas marítimas todas que tomara e fundou uma
cidade junto à embocadura do Tibre e consolidou-a com colonos. E assim, como
tivesse reinado vinte e três anos, morreu.
Então, Lélio:
- Deve ser louvado também esse rei; mas obscura é a história romana, se
no entanto temos a mãe desse rei, ignoramos o pai66.
- Assim é, diz; mas daqueles tempos quase somente os nomes dos reis
foram aclarados.

XIX. 34- Mas neste ponto por primeiro parece a cidade ter-se feito mais
douta por alguma disciplina enxertada. Pois da Grécia penetrou nesta cidade
não qualquer tênue ribeirinho mas um abundantíssimo rio daquelas disciplinas
e artes. Pois sustentam ter sido um certo Demarato de Corinto principal de sua
cidade facilmente tanto em honra quanto em autoridade quanto em bens; como
não tivesse podido suportar Cipselo67, tirano dos coríntios, diz-se que ele fugiu

64 Insígnias dos magistrados etruscos que Tulo emprega depois de tê-los vencido.
65 Lei que conferia a investidura do poder.
66 Segundo Plutarco (Mum.21), Anco Márcio era filho de Márcio Sabino (rival de Tulo Hostílio

na sucessão ao trono) e de Pompília, filha de Numa.


67 A tirania de Cipselo em Corinto teve início por volta de 610 a.C.

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com grande riqueza e transportou-se a Tarqüínios68, cidade mais florescente da


Etrúria. E, como ouvisse que a dominação de Cipselo se afirmava, evita a pátria,
homem livre e corajoso, e foi admitido cidadão pelos tarqüinienses e naquela
cidade estabeleceu domicílio e habitações. Onde, como tivesse tido dois filhos69
de mãe-de-família tarqüiniense, em todas as artes segundo a disciplina dos
gregos os educou ... [Perderam-se duas páginas]70

XX. 35- [Cipião]:


- ... [como] tivesse facilmente sido aceito na cidade, por causa da sua
humanidade e educação fez-se familiar ao rei Anco ao ponto de que se pensasse
partícipe de todos os conselhos e quase sócio do reino. Havia nele além disso
suma delicadeza, suma benignidade de recursos, auxílio, defesa e até de
prodigalizar a todos os cidadãos. E assim, morto Márcio, por sufrágios de todo
o povo criou-se rei Lúcio Tarqüínio; tinha desviado seu nome do nome grego,
para que parecesse ter imitado em todo gênero os costume deste povo. E ele,
como de seu mando trouxe a lei, a princípio duplicou aquele primitivo número
de senadores e chamou-os antigos pais das gentes maiores, aos quais primeiros
pedia opinião, os admitidos junto a si pais das gentes menores. 36- Depois
constituiu a cavalaria segundo este costume, que até aqui foi mantido. E não
pôde mudar como desejasse, os nomes dos ticienses, dos ramnenses e dos
lúceres, porque o áugure de suma fama Ato Návio não lho autorizava. E
também os coríntios vejo que foram outrora diligentes em repartir e alimentar
os cavalos públicos com tributos dos órfãos e das viúvas 71. Mas contudo, às
anteriores partes de cavaleiros ajuntadas as posteriores, fez 1200 cavaleiros,
duplicou o número. Depois que na guerra submeteu a grande nação dos equos,
tão feroz quanto ameaçadora das coisas do povo romano, ele mesmo, como

68 Cidade etrusca ao norte de Roma a oito quilômetros do mar.


69 Arrunte e Lucumão.
70 Nessas páginas, Cipião provavelmente narrava como Lucumão transferiu-se a Roma (Tito

Lívio I,34; Dionísio de Halicarnasso III,46-48).


71 Os cavaleiros recebiam soma fixa (aes equestre) para aquisição dos cavalos e uma soma anual

(aes hordiarium) para manutenção, à custa dos tributos impostos às viuvas e aos órfãos. Tito
Lívio (I,43,9) atribui esta medida a Sérvio Túlio.

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tivesse repelido os sabinos das muralhas da urbe, dispersou-os com a cavalaria


e venceu-os com a guerra. E recebemos que ele mesmo, primeiro, fez os jogos
máximos que foram chamados romanos e ter prometido haver de se fazer um
templo no Capitólio a Júpiter ótimo máximo na própria batalha na guerra
sabina e ter morrido, como tivesse reinado trinta e oito anos.

XXI. 37- Então, Lélio:


- Agora acontece aquele dito de Catão mais certamente: a constituição da
república não é de um só tempo nem de um só homem; manifesto é de fato
quão grande torne-se a cada rei a chegada das coisas boas e úteis. Mas segue-se
aquele que me parece de todos na república ter visto muitíssimo.
- Assim é, diz Cipião. Pois, depois daquele, Sérvio Túlio, primeiro, conta-
se ter reinado sem ordem do povo, que sustentam ter nascido de uma escrava
tarqüiniense, como tivesse sido concebido de um certo cliente do rei. Este, como
assistisse aos banquetes do rei, educado entre o número de fâmulos, não ficou
oculta a centelha de engenho que já então brilhava em criança; assim era
experto em tudo, seja no ofício seja na palavra. E assim Tarqüínio que
precisamente tinha então filhos pequenos, amava Sérvio de modo que este era
tido pelo vulgo como seu filho, e instruiu-o com o maior zelo em todas aquelas
artes que ele mesmo aprendera segundo o rebuscadíssimo costume dos gregos.
38- Mas como Tarqüínio se tivesse perdido por emboscada dos filhos de Anco, e
Sérvio, como disse antes, tivesse começado a reinar não por ordem mas por
vontade e concessão dos cidadãos, porque, como Tarqüínio tivesse estado
doente por causa de um ferimento e se dizia falsamente que vivia, ele tinha
administrado a justiça com régio ornato e com sua riqueza tinha liberado os
endividados e, tendo usado de muita afabilidade, tinha provado que
administrava a justiça por ordem de Tarqüínio, não se reuniu aos senadores,
mas, sepultado Tarqüínio, ele mesmo por si consultou o povo e, ordenado a

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reinar, de seu mando obteve a lei curiata72. E primeiro com guerra vingou-se das
injúrias dos etruscos; a partir do que como73 ... [Perderam-se duas páginas]

XXII. 39– [Cipião]:


- ... dezoito [centúrias] de censo máximo74. Depois, grande número de
cavaleiros separado da maior parte de todo o povo, distribuiu o povo restante
em cinco classes75 e repartiu os seniores dos juniores e os opôs de modo que os
sufrágios fossem pelo poder não da multidão mas dos ricos e cuidou – o que
sempre deve-se ter na república – de que não muito prevaleçam os mais
numerosos. Esta disposição, se fosse ignorada a vós, seria explicada por mim;
agora vedes a razão ser tal que – as centúrias dos cavaleiros com as seis por
sufrágios e a primeira classe76, acrescida a centúria que foi dada aos carpinteiros
pelo maior proveito da urbe – haja 89 centúrias; com que, das cento e quatro
centúrias (tantas de fato foram deixadas), oito únicas se acrescentassem,
completar-se-ia a força do povo inteira, e o que resta – muito maior multidão de
noventa e seis centúrias – nem se excluísse dos sufrágios, para que não fosse
soberba, nem fosse demasiado forte, para que não fosse perigosa. 40- Nisso,
mesmo nas próprias palavras e nomes foi diligente. Como ele tivesse chamado
os ricos de assíduos pelo dinheiro a ser tributado, chamou de proletários os que
tivessem produzido ou não mais do que mil e quinhentas moedas de bronze ou
absolutamente nada em seu censo exceto a cabeça, como que parecesse esperar
deles como que proles, isto é, como que progênies da cidade. E em uma só
centúria dessas noventa e seis centúrias eram declarados muitos mais do que
quase na primeira classe toda. Assim ninguém era proibido do direito de voto e

72 Ver nota ao capítulo XIII.


73 Entre o fim deste capítulo e o começo do outro, Cipião fala da tomada de território aos
habitantes de Cere, Tarqüínios e Veios. No começo do capítulo seguinte, trata-se da organização
censitária instituída por Sérvio.
74 Categoria de pessoas de maior riqueza.
75 A primeira classe; 80 centúrias; a segunda, a terceira e a quarta: 20 centúrias cada uma; a

quinta classe: 30 centúrias. A essas 188 centúrias juntavam-se cinco, entre as quais a dos
carpinteiros.
76 Três centúrias dos cavaleiros (ramnenses, ticienses e lúceres), oitenta da primeira classe e seis

por sufrágios.

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prevalecia no sufrágio muitíssimo aquele a quem muitíssimo interessava estar a


cidade no melhor estado. Além disso com os acensos77 vestidos, os que tocam
trompa, os corneteiros, os proletários ... [Perderam-se quatro páginas]

XXIII. 41- [Cipião]:


- ... do melhor estatuto ser constituída a república que a partir desses três
gêneros – real e aristocrático e popular – moderadamente misturada para que
não irrite punindo o ânimo desumano e feroz ...
[Cipião]:
42- ... [Cartago], sessenta [e cinco] anos mais antiga [do que a urbe
Roma], porque fora fundada 39 [anos] antes da primeira olimpíada78. E aquele
antiqüíssimo Licurgo viu quase as mesmas coisas. E assim essa eqüidade e este
tríplice gênero de repúblicas parece-me ter sido algo comum a nós com aqueles
povos. Mas o que seja próprio em nossa república, do que o qual nada pode ser
mais preclaro, isso perseguirei se puder mais sutilmente; porque nada desse
modo haverá que se encontre tal em alguma república. Estes de fato que até
aqui expus foram assim mistos tanto nesta cidade quanto na dos lacedemônios
e na dos cartagineses, de modo que de nenhum modo terão sido temperados.
43- Pois na república em que há alguém, único, de perpétua potestade,
especialmente real, embora nela haja também senado, como foi então em Roma
quando havia reis, como em Esparta com as leis de Licurgo, e como haja algum
direito mesmo do povo, como foi junto a nossos reis, contudo esse nome de rei
sobressai, e nem pode desse modo a república não ser nem chamar-se reino. E
essa forma de cidade é mutável ao máximo por esta causa: que pelo vício de um
só decai facilmente precipitada em perniciosíssima parte. Pois o próprio gênero
real de cidade não só não deve ser censurado – mas não sei se deve ser
anteposto de longe aos restantes simples, se eu provasse algum gênero simples

77Soldados de tropa de reserva, sem uniforme de soldado e sem armas.


78Cícero baseia-se em Políbio, segundo o qual Roma fundara-se em 751-750 a.C., e Cartago em
816-815 a.C.. Por outro lado, 39 anos da primeira olimpíada dá a data de 815 a. C.. Nessa lacuna
de quatro páginas, Cipião devia falar da monarquia mista, e comparava Roma a Cartago e
Esparta.

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de república -, mas assim até onde retenha seu estatuto. E há esse estatuto
quando por perpétua potestade e justiça de um só e por sabedoria de um só se
reja salvação e eqüidade e sossego dos cidadãos. Faltam absolutamente muitas
coisas a esse povo que está sob um rei, e entre as primeiras a liberdade, que não
nisso está: que nos sirvamos de um justo senhor, mas que de nenhum ...
[Perderam-se duas páginas]
... e assim aquela preclara constituição de Rômulo, como tivesse
permanecido firme por quase duzentos e vinte anos79 ...

XXIV. 44- [Cipião]:


- ... suportavam80. E de fato àquele injusto e acerbo senhor a fortuna
acompanhou por algum tempo nos feitos de sucesso. Pois tanto venceu pela
guerra todo Lácio como tomou Suessa Pomécia, urbe opulenta e repleta, e,
enriquecido com a maior presa de ouro e prata, cumpriu o voto do pai com a
edificação do Capitólio, fundou colônias e enviou a Delfos, pelos hábitos
daqueles dos quais nascera81, magníficos dons como oferendas dos despojos a
Apolo.

XXV.45- Aqui já se converte aquela evolução cujo movimento natural e


circuito desde o princípio aprendestes a conhecer. De fato, cabeça da prudência
civil, em que todo este nosso discurso consiste, é isto: ver os rumos e desvios
das repúblicas, para que, quando saibais aonde se inclina cada coisa, possais
reter ou acudir. Pois aquele rei de que falo, maculado primeiro pelo assassínio
de um excelente rei, não era de íntegro espírito e, como ele mesmo temesse
pena de seu crime muito elevada, desejava ser temido; depois, apoiado em
vitórias e riquezas, exultava de insolência e não podia reger seus costumes nem
as obscenidades dos seus.

79 Tarqüínio, o Soberbo, foi expulso depois de 240 anos de constituição real.


80 Por conjectura e contexto, supõe-se que os romanos suportavam a tirania de Tarqüínio, por
certo tempo, devido a seus sucessos militares.
81 Tarqüínio Prisco, de Corinto.

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46- Assim, como seu filho mais velho tivesse violentado Lucrécia, filha
de Tricipitino e esposa de Colatino, e a mulher, casta e nobre, tivesse punido a
si mesma com a morte por aquela injúria, então Lúcio Bruto, homem notável de
caráter e virtude, afastou de seus concidadãos aquele injusto jugo de dura
servidão. Como ele fosse um particular, sustentou toda a república e, primeiro,
nesta cidade ensinou que ninguém é particular, no preservar a liberdade dos
cidadãos. A cidade incitada por ele, autor e principal, e por esta recente querela
do pai e dos parentes de Lucrécia e pela recordação da soberba de Tarqüínio e
das muitas injúrias tanto dele mesmo como dos filhos, ordenou que fosse
exilado tanto o rei mesmo como seus filhos e a gente dos Tarqüínios.

XXVI. 47- Vistes então como a partir do rei tenha surgido um senhor e
pelo vício de um só um gênero de república converteu-se de bom no pior? Este
é o senhor do povo que os gregos chamam tirano; pois desejam que aquele rei
seja quem delibera como um pai para o povo e conserva aqueles à frente dos
quais foi posto, na melhor condição possível de viver: gênero de república,
como eu disse, certamente bom, mas no entanto inclinado e como que propenso
ao mais pernicioso estatuto. 48- Mas ao mesmo tempo que se curvou este rei
para um domínio mais injusto, torna-se de contínuo tirano; do que este, não é
possível algum animal nem mais horrível nem mais feio cogitar-se nem mais
odioso aos deuses e aos homens. Este, ainda que figura de homem, contudo
pela crueldade dos costumes vence as feras mais devastadoras. Quem poderá
dizer homem este que não deseja a si com seus cidadãos e enfim com todo
gênero humano comunhão alguma do direito, associação alguma de
humanidade? Mas haverá para nós outro lugar mais adequado para falar deste
gênero, quando o próprio tema tenha advertido que falemos contra aqueles
que, mesmo já liberta a cidade, procuraram poderes absolutos.

XXVII. 49- Tendes então a origem primeira do tirano; pois os gregos


quiseram que este nome fosse do rei injusto, os nossos costumaram chamar reis
a todos que, únicos, tivessem contra os povos perpétuo poder. E assim Espúrio

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Cássio, Marco Mânlio e Espúrio Mélio foram acusados de ter querido fazer-se
rei, e há pouco ... [Perderam-se duas páginas]

XXVIII. 50- [Cipião]:


- ... [Licurgo] na Lacedemônia chamou-os velhos, na verdade muito
poucos, 28, que ele quis fossem para conselho supremo, como o rei tivesse o
mando supremo; a partir do que os nossos seguiram e interpretaram isso
mesmo: os que aquele chamou velhos, denominaram senado, como dissemos
que já Rômulo fizera, escolhidos os pais. Contudo excede e sobressai a força, o
poder e o nome dos reis. Partilha com o povo algum poder, como Licurgo e
Rômulo, não o terás saciado de liberdade, mas tê-lo-ás incendiado de desejo de
liberdade, como apenas o tenhas feito tomar gosto pelo poder. Sempre estará
pendente aquele temor: que o rei, o que freqüentemente resulta, surja injusto. É
então frágil aquela fortuna do povo que foi posta, como eu disse antes, na
vontade ou nos costumes de um só.

XXIX. 51- Por isso foi esta a primeira forma de tirano, tanto aspecto
quanto origem, chegada a nós nessa república que Rômulo, tendo tomado os
auspícios, tinha fundado, não naquela que, como Platão escreveu, o próprio
Sócrates para si mesmo tinha retratado naquele diálogo82. Assim, do modo
como Tarqüínio deparou-se com o poder não novo mas que mantinha tendo
praticado injustiça, ele arruinou todo este gênero de cidade real. Seja-lhe oposto
um outro, bom, tanto sábio quanto hábil em função e cargo civil, como que
tutor e procurador da república. Assim será chamado quem quer que seja
dirigente e piloto da cidade. Fazei por reconhecerdes tal homem, pois esse é que
pode guardar a cidade por conselho e obra. Já que esse conceito até aqui foi
menos usado em nossa fala, e freqüentemente o gênero desse homem deverá
ser tratado por nós no restante discurso ... [Perderam-se doze páginas]

82Deve-se suprimir [peripeato] como leitura marginal da copista explicativa de illo in sermone,
como peri politeias, título da obra de Platão.

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XXX. 52- [Cipião]:


- ... procurou cidade mais desejada que esperada, e a menor quanto pôde,
não a que pudesse ser mas a que pudesse ser observada em alguma razão das
coisas civis. Mas eu, se ao menos puder conseguir, com as mesmas razões que
ele viu, não em sombra e imagem de cidade mas na mais ampla república farei
esforços por que se me mostre alcançar a causa de cada coisa, tanto do bem
quanto do mal público, como um graveto. Passados destes reinados duzentos e
quarenta anos, um pouco mais com os interregnos, Tarqüínio expulso, tanto
ódio do nome de rei houve ao povo romano quanto houvera falta de Rômulo
depois do óbito ou antes depois da partida. E assim, como então não pudera
passar sem rei, expulso Tarqüínio, não pudera assim ouvir o nome de rei.
[Perderam-se dezesseis páginas]

XXXI. 53- [Cipião]:


- ...aquela lei83 foi toda suprimida. Com este pensamento, nossos
antecessores então expulsaram Colatino inocente, em vista do parentesco, e os
Tarqüínios restantes, pela ofensa do nome. Com este mesmo pensamento,
Públio Valério tanto ordenou primeiro serem abaixados os feixes, como tivesse
começado a falar em assembléia, quanto desceu sua casa para a baixa Vélia84,
depois que sentiu movimentar-se a suspeita do povo, porque tinha começado a
construir no local mais alto da Vélia, no mesmo lugar onde o rei Tulo habitara.
E ele mesmo, no que foi sobretudo “Publícola”85, trouxe ao povo aquela lei86
que primeira foi levada aos comícios centuriados: nenhum magistrado mataria
ou açoitaria um cidadão romano, contra o direto de apelação.
54- Declaram os livros dos pontífices ter existido o direito de apelação
mesmo desde os reis, também os dos áugures mostram, e do mesmo modo as
doze tábuas de muitas leis indicam que é lícito apelar de toda sentença e pena; e

83 Cipião parece falar da lei sobre exílio, segundo a qual os Tarqüínios poderiam voltar a Roma e
reaver suas posses.
84 Eminência do monte Palatino.
85 “O que cultiva o povo”.
86 Lex Valeria de prouocatione.

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é tradição que os decênviros, que tinham escrito as leis, foram nomeados sem
direito de apelação87, isto mostra bem que os restantes magistrados não tinham
sido nomeados sem direito de apelação. E a lei consular de Lúcio Valério Polito
e Marco Horácio Barbato, homens sabiamente populares por causa da
concórdia, sancionou que nenhuma magistratura fosse criada sem direito de
apelação. E nem na verdade as leis pórcias, que são três – dos três Pórcios –
como sabeis, trouxeram algo de novo além da sanção. 55- E assim Publícola,
promulgada essa lei de direito de apelação, ordenou as machadinhas serem
retiradas dos feixes88 e no dia seguinte sub-rogou para si como colega Espúrio
Lucrécio e ordenou que seus litores passassem para ele, porque era mais velho,
e instituiu primeiro que a cada cônsul, alternados os meses, os litores
precedessem, para que não houvesse mais sinais de mando no povo livre do
que tivesse havido no reino. Não medíocre foi este homem, como entendo, que,
proporcionada liberdade dada ao povo, mais facilmente manteve a autoridade
dos principais. E nem eu decanto a vós estas coisas agora sem causa tão velhas e
tão obsoletas, mas defino exemplos de homens e coisas nas pessoas ilustres e
tempos, para os quais meu discurso restante se dirija.

XXXII. 56- O senado manteve então neste estatuto a república naqueles


tempos, assim como no povo livre poucas coisas eram exercidas através do
povo e muitas pela autoridade, plano e costume do senado e desse modo os
cônsules tinham poder, em tempo até então anual, real do mesmo gênero e
direito. E o que era para obter a força dos nobres ao máximo, isso era retido
veementemente: a assembléia do povo não seria julgada, se a autoridade dos
pais não a aprovasse. E nesses mesmos tempos um ditador também foi
instituído quase dez anos depois dos primeiros cônsules, Tito Lárcio, e esse
gênero de mando pareceu novo e o mais próximo da semelhança real. Mas, no
entanto, todas as coisas eram mantidas com a autoridade dos principais,

87 Ou seja, não cabia apelação contra a sentença dos decênviros.

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concedendo o povo, e os grandes feitos de guerra eram exercidos naqueles


tempos pelos mais fortes varões investidos do mais elevado mando: ditadores e
cônsules.

XXXIII. 57- Mas o que a própria natureza das coisas obrigava acontecer,
que um pouco mais de direito para si o povo livre de reis conseguisse, não
longo intervalo, quase dezesseis anos, sendo cônsules Póstumo Comínio e
Espúrio Cássio, foi alcançado. Nisso faltou razão, mas contudo a própria
natureza das repúblicas vence freqüentemente a razão. Então retende isso que
eu disse de início: caso não haja na cidade esta igual compensação tanto de
direito quanto de dever e função, de modo que haja esta igual compensação
tanto de poder suficiente nas magistraturas quanto de autoridade no conselho
dos principais e de liberdade no povo, não pode este estatuto de república
conservar-se.
58- Pois, como a cidade tivesse sido agitada por causa de dívida, a plebe
ocupou primeiro o monte Sagrado89, depois o Aventino. E nem na verdade a
disciplina de Licurgo teve aqueles freios nos homens gregos, pois também em
Esparta, reinando Teopompo, há do mesmo modo cinco que eles nomeiam
éforos – em Creta, dez que são chamados “cósmoi”- assim o poder do tribuno
da plebe foi constituído contra o poder consular, como aqueles foram
constituídos contra a força do rei.
XXXIV. 59- Houvera talvez a nossos ancestrais naquela dívida alguma
razão de cuidar que não muito tempo antes nem fugira a Sólon ateniense 90 nem
pouco depois a nosso senado91, quando por causa da libido de um só todo
endividamento dos cidadãos foi liberado e deixou-se depois de se prender92; e
sempre a este gênero, como a plebe falisse por dispêndios de calamidade

88 Feixe de varas de olmo ou bétula com uma machadinha no meio. Os litores o levavam à frente
dos primeiros magistrados como símbolo do poder que lhes assistia de castigar ou condenar à
morte.
89 Secessão da plebe, 493 a.C. Criação dos tribunos da plebe.

90 Alusão à lei de Sólon – – cem anos antes da secessão da plebe em Roma, que
suprimiu a escravidão por dívida e aliviou as dívidas.
91 O senado poderia tomar a mesma medida de Sólon, evitando a criação do tribuno da plebe.

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pública, por causa da salvação de todos procurou-se algum alívio e remédio.


Então, esquecido este conselho, nasceu para o povo a causa: dois tribunos da
plebe criados por sedição, para que se diminuísse o poder e a autoridade do
senado, que contudo permanecia grave e grande, os mais sábios e fortes tanto
em armas como em conselho guardando a cidade; a autoridade desses florescia
ao máximo, porque, como de longe ultrapassassem em honra os outros, em
volúpias eram inferiores e quase não superiores em riquezas. E por isso a
virtude de cada um era mais grata, porque nas coisas privadas guardavam
muito diligentemente cada cidadão com obras, conselho, dinheiro.

XXXV. 60- Nesse estado de república, um questor acusou Espúrio Cássio,


que gozava da maior glória junto ao povo, de empenhar-se por ocupar o reino
e, como o pai tivesse dito que sabia estar ele em culpa, cedendo o povo, como
ouvistes, puniu-o com a morte93. E, por volta de cinqüenta e quatro anos após
os primeiros cônsules, os cônsules Espúrio Tarpeio e Aulo Atérnio trouxeram
por comícios centuriados aquela grata lei de multa e juramento94. Vinte anos
depois que os censores Lúcio Papírio e Públio Pinário, para notificar multas,
tinham voltado de particulares para o poder público grande quantidade de
rebanhos, uma leve avaliação dos gados constituiu-se em multa, por lei dos
cônsules Caio Júlio e Públio Papírio95.

XXXVI. 61- Mas alguns anos antes, como a autoridade no senado fosse a
maior, o povo suportando e obedecendo, foi iniciado um cálculo, para que tanto
cônsules como tribunos da plebe abdicassem da magistratura e para que os
decênviros fossem criados com o máximo poder sem direito de apelação, que
tanto tivessem o maior poder como escrevessem as leis. Estes, como tivessem

92 A lei Poetelia de 326 a.C. abolia a escravidão por endividamento.


93 Atentado e execução de Cássio: 486-5 a.C.
94 Essa lei estabelecia uma quantia máxima de trinta bois e dois carneiros que se deviam

“consagrar” como multa pela violação do juramento dos pleiteantes; os Fastos consulares
indicam 454 a.C.
95 Lei que converte em dinheiro a quantidade de rebanhos: cem asses por boi, dez asses por

carneiro.

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escrito dez tábuas com a maior eqüidade e prudência das leis, no ano seguinte
sub-rogaram outros decênviros, cuja confiança, nem justiça, não
semelhantemente foi louvada. Deste colégio contudo houve aquele distinto
louvor de Caio Júlio, que, como tivesse, único, o máximo poder sem direito de
apelação, porque era decênviro, pediu contudo garantias96 a um homem nobre,
Lúcio Sêstio, em cujo quarto se dizia que estando este presente tinha sido
desenterrado um corpo; aquele dizia que não haveria de desdenhar aquela lei
preclara, que vetava decidir-se sobre a vida de cidadão romano, senão por
comícios centuriados.

XXXVII. 62- O terceiro ano dos decênviros seguiu-se, como fossem os


mesmos e não tivessem desejado sub-rogar outros. Neste estado de república –
que eu já disse não poder ser duradouro, porque não era igualável em todas as
ordens da cidade – toda a república era para os principais, prepostos os
decênviros mais nobres, não opostos os tribunos da plebe, nenhum outro
magistrado adjunto, não deixando direito de apelação junto ao povo contra
execução e açoites.
63- Então, súbito nasceu a maior perturbação e agitação de toda
república, a partir da injustiça destes que – acrescidas duas tábuas de leis
iníquas, pelas quais mesmo os casamentos que costumavam ser concedidos aos
povos afastados, estes eles proibiram, para que os plebeus não estivessem com
os patrícios, pela lei mais desumana, que depois foi sub-rogada pelo plebiscito
canuleio97 – libidinosamente com todo poder acerba e avidamente estiveram à
frente do povo. Evidentemente aquele fato foi conhecido e celebrado por muitos
documentos escritos98, como um certo Décimo Virgínio99 com sua própria mão
tivesse matado a filha virgem no foro, por causa da intemperança de um só

96 Poposcit com duplo acusativo; pediam-se garantias para assegurar o comparecimento do


acusado à justiça.
97 Em 445 a.C.
98 Tradição dos anais. O episódio de Virgínia, que marca o fim da oligarquia por revolução

popular, é semelhante ao episódio de Lucrécia, que marca o fim da monarquia da mesma


forma.
99 Centurião, cuja filha Virgínia assinalou a queda da oligarquia.

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daqueles decênviros100, e triste se tivesse refugiado junto ao exército que estava


então no Álgido, os soldados [...] Ter deixado aquela guerra que estava nas
mãos e primeiro o monte sagrado, como tinha-se feito antes em semelhante
causa, depois o Aventino ... [Perderam-se oito páginas]
[Cipião] ... julgo que nossos ancestrais tanto aprovaram ao máximo,
como muito sabiamente retiveram.

XXXVIII. 64- Como Cipião tivesse dito essas coisas, e em silêncio de


todos se esperava seu discurso restante, então Tuberão:
- Já que nada de ti, Africano, estes nascidos antes perguntam, ouvirás de
mim o que desejarei no teu discurso.
- Certo, diz Cipião, e com prazer, na verdade.
Então, ele (Tuberão):
- Pareces-me ter louvado nossa república, como de ti Lélio tivesse
perguntado não da nossa, mas de toda república. Nem no entanto aprendi de
teu discurso por qual disciplina, por quais costumes ou leis podemos constituir
ou preservar essa mesma república que louvas.

XXXIX. 65- Aqui, o Africano:


- Penso que para nós, Tuberão, em breve haverá melhor lugar de
dissertar sobre instituir e preservar as cidades. Quanto ao melhor estatuto,
julgava ter respondido suficientemente ao que Lélio tinha perguntado. Primeiro
eu tinha delimitado em número os três gêneros louváveis de cidade e,
precisamente contrários a esses três, os perniciosos, e que nenhum deles era o
melhor sozinho, mas era preferível a cada um o que fosse comedidamente
temperado daqueles três. E usei do exemplo da nossa cidade, o que não valeu
para delimitar o melhor estado (pois foi possível acontecer isso sem exemplo),
mas para que pela maior cidade realmente se distinguisse qual seria isso que a
razão e linguagem descreveriam. Mas, se buscas sem exemplo de povo algum o

100 Ápio Claudio.

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próprio gênero de melhor estado, devemo-nos servir da imagem da natureza, já


que tu ... esta imagem de urbe e povo ... [Aqui é provável terem-se perdido
quatro páginas]

XL. 67- [Cipião]:


- ... [que] há muito procuro e ao que desejo chegar.
[Lélio]:
- Procuras talvez um prudente?
Então, ele:
- Esse mesmo.
- Tens uma bela cópia desses mesmos que aqui estão, assim comeces de ti
mesmo.
Então, Cipião:
- Mas oxalá houvesse de todo senado proporcionalmente! Mas contudo
prudente é aquele que, como freqüentemente vimos em África, assentando-se
em enorme besta contém e a dirige para onde quer e com leve advertência ou
toque encurva essa fera.
- Conheci e, como tivesse sido enviado a ti101, freqüentemente vi.
- Então aquele indiano ou púnico contém uma só besta tanto dócil como
habituada aos costumes humanos; mas no entanto aquela parte que se oculta
nas ânimos dos homens e que, parte do ânimo, se chama mente não freia e
doma uma besta única ou fácil de submeter, caso alguma vez acontece isso que
muito raramente é possível. De fato, também essa besta feroz deve ser contida
... [Perderam-se quatro páginas]

XLII. 69- [Cipião]:


- ... possa ser dito.
Então, Lélio:
- Já vejo aquele que esperava, homem a quem atribuis dever e função.

101 Lélio foi legado de Cipião na terceira Guerra Púnica.

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- A este certamente, diz o Africano, quase único (pois neste estão todas as
outras coisas, único) atribuo que nunca se afaste de instruir e observar a si
mesmo, que invoque outros à imitação de si, que apresente aos cidadãos a si
mesmo como espelho, pelo esplendor de ânimo e de sua vida. Como então nas
liras ou flautas e como no canto, até com vozes, uma certa harmonia deve-se
manter a partir de sons distintos, que, mudada ou discrepante, ouvidos
educados não podem suportar, e essa harmonia a partir da moderação das
vozes mais dissemelhantes se realiza, contudo, concorde e congruente; assim a
partir dos mais elevados e dos mais baixos e médios, interpostas as ordens,
como sons, como moderada razão a cidade [está afinada por consenso das cosas
mais dissemelhantes. E o que se diz pelos músicos harmonia no canto, isso na
cidade é concórdia, o mais estreito e melhor vínculo de segurança em toda
república, e esta sem justiça não pode existir por nenhum pacto.]102 [Perderam-
se vinte e duas páginas]

XLIV. 70- [Filo]:


- ... estar cheia de justiça.
Então, Cipião:
- Concordo, na verdade, e declaro a vós nada haver que até aqui
pensemos estar dito da república ou para onde possamos mais longamente
progredir, se não for confirmado que não só é falso não ser possível sem
injúria103, mas que é muitíssimo verdadeiro que, sem a suma justiça, de nenhum
modo é possível que se administre uma república. Mas, se agrada, para este dia
até aqui; o restante (de fato, o que resta é bastante numeroso) adiemos para
amanhã.
Como assim tivesse agradado, fez-se o fim do debate para aquele dia.

102 Santo Agostinho, Da Cidade de Deus, II, 21.

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LIVRO TERCEIRO

[perderam-se oito páginas]

II. 3- ...e com veículos para lentidão, e ela mesma104, como tivesse
recebido os homens soando com infundadas vozes algo começado e confuso,
recortou-as e distinguiu-as em partes e gravou, com alguns sinais, assim
palavras para coisas e coligou os homens, antes dissociados, pelo mais
agradável vínculo da conversação entre si. Por semelhante inteligência também
os sons da voz, que pareciam infinitos, foram todos assinalados e expressos,
poucos sinais inventados, com os quais seriam retidas tanto as conversas com
os ausentes, como os indícios das vontades e as lembranças das coisas
pretéritas105. Acrescentou-se a isso o número, como coisa necessária à vida,
então única imutável e eterna, que primeira estimulou também que
elevássemos a vista ao céu e não contemplássemos em vão os movimentos dos
astros e pelas enumerações das noites e dias ... [Perderam-se oito páginas]

III. 4- ...cujas almas mais alto se elevaram e puderam ou realizar ou


cogitar algo digno do dom dos deuses, como eu disse antes. Por isso para nós
sejam esses que dissertam da razão de viver grandes homens - que são –, sejam
eruditos, sejam mestres de verdade e virtude, enquanto apenas seja certa coisa,
quer encontrada por homens versados em variedade de repúblicas quer ainda
tratada no sossego e escritos desses, coisa – como é – que deve ser minimamente
desprezada, razão civil e disciplina dos povos, que realiza nos bons engenhos o
que já freqüentemente realizou, para que uma certa virtude incrível e divina se
elevasse.
5- E, se alguém pensou que a esses instrumentos da alma, que teve por
natureza e pelas instituições civis, deve ser juntada também a si doutrina e

103 Idem, ibidem: ... rem publicam regi sine iniuria non posse.
104 Conjectura-se que o sujeito seja mens.
105 Gênero epistolar, testamentos e a tradição dos monumenta historica.

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concepção mais fecunda das coisas, como esses mesmos que se envolvem no
debate destes livros, ninguém há que os não deva preferir a todas as coisas.
De fato, que pode ser mais brilhante do que quando se ajuntam o trato e
o uso das grandes coisas com o zelo e concepção daquelas artes? ou que pode
ser cogitado mais perfeitamente por Públio Cipião, Caio Lélio, Lúcio Filo? os
quais, para que não deixassem passar nada que pertencesse ao maior louvor
dos homens ilustres, atribuíram esta doutrina adventícia de Sócrates ao
costume doméstico e aos ancestrais.
6- Por isso, penso que quem quis e pôde uma e outra coisa, isto é, que se
instruísse tanto das instituições dos ancestrais como da doutrina, alcançou em
tudo o louvor. Mas, se uma deva ser escolhida de uma e de outra via da
prudência, contudo, mesmo a quem parecerá mais feliz aquela tranqüila razão
da vida nos melhores estudos e artes, esta via civil é mais louvável e certamente
mais ilustre, vida de que os homens assim mais elevados se ornam, como Mânio
Cúrio106 ... que por nenhum ferro nem ouro pôde superar ... [Perderam-se seis
páginas]

IV. 7- ... ter havido sabedoria, contudo, na razão de um e outro gênero


diferiu isto: que aqueles com palavras e artes alimentaram os princípios da
natureza, estes, com instituições e leis. Na verdade, esta cidade, única, produziu
mais, se menos sábios, já que mantêm esse nome tão restritamente àqueles, mas
de certo dignos do maior louvor, já que cultivaram os preceitos e descobertas
dos sábios. Mas também quantas cidades tanto há quanto houve que devem ser
louvadas (já que, na natureza das coisas, é de longe do máximo conselho
constituir aquela república que possa ser diuturna), caso enumeremos um para
cada uma, quão grande multidão de homens superiores já se possa encontrar! E
se quisermos alumiar com o ânimo quer na Itália o Lácio quer a gente sabina ou

Mânio Cúrio Dentato: vencedor dos samnitas e sabinos em 290 a.C., e de Pirro em 275 a.C. Os
106

samnitas procuram comprá-lo com ouro, e ele teria respondido que preferia dominar gente que
possuísse ouro a possuí-lo ele mesmo.

SUMÁRIO
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vosca da mesma, se o Sâmnio, se a Etrúria, se aquela Magna Grécia, se depois o


assírios, os persas, os fenícios, estas ... [Perderam-se doze páginas]

V. 8- ... [já que fomos convocados a voltar do próprio fim pela


interpelação dele.]107
E Filo:
- Mas conferis a mim uma preclara causa, quando quereis que eu
sustente a defesa da improbidade108!
- Entretanto, diz Lélio, deves respeitar isso, caso tenhas dito aquelas
coisas que costumam ser ditas contra a justiça, para que não pareças também
sentir, quando tu mesmo sejas como que único exemplo da antiga probidade e
confiança, e para que nem seja ignorado teu hábito de debater para as partes
contrárias, porque assim pensas que mais facilmente se encontra o verdadeiro.
E Filo:
- Mas vamos! diz, exercerei o costume para vós, mesmo sabendo que me
emboçarei; porque, já que os que procuram ouro não acham que algo deve ser
recusado por eles, nós, como procuremos a justiça, coisa muito mais cara do que
todo ouro109, de fato não devemos fugir a nenhuma moléstia. Mas de algum
modo eu hei de usar de linguagem alheia, assim ser-me-ia lícito usar de boca
alheia! Agora, devem-se dizer por Lúcio Fúrio Filo aquelas coisas que
Carnéades110, homem grego e habituado a que fosse acomodado às palavras ...
[Perderam-se quatro páginas]
VIII. 12- [Filo]:

107 Depois do proêmio (I-IV), retoma-se o tema da justiça. O discurso de Filo liga-se à grande
lacuna do livro II, XLIV. Segundo Agostinho (Cidade de Deus II,21), depois do elogio à justiça
feito por Cipião, este encarrega Fúrio Filo do elogio da injustiça. O início deste capítulo foi
integrado por Mai, na edição de 1876, com um fragmento da epístola CVIII de Sêneca.
108 Da mesma forma, Glauco na República de Platão II, 361-368.

109 Platão, Rep. I, 336e:


110 Carnéades de Cirene (214-128 a.C.), fundador da Nova Academia e iniciador do ceticismo,

veio a Roma em 156-155 com o estóico Diógenes de babilônia e o peripatético Clitomarco para
recorrer de uma multa aplicada pelo senado a Atenas pela destruição de Oropo. Entre seus
discursos, fez particular impressão sobre os romanos aquele de dois dias sucessivos,
dissertando no primeiro sobre a existência da justiça, e no segundo, a tese oposta, como
argumentos que deviam recordar aqueles de Trasímaco, no livro I da República de Platão.

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- ... tanto encontrasse quanto guardasse, o outro encheu por certo quatro
grandes livros sobre a mesma justiça111. Pois nada grande nem magnífico perdi
de Crisipo, que fala por um certo costume seu para que examine tudo pelos
impulsos das palavras, não pelo juízo das coisas. Próprio daqueles heróis foi
estimular essa virtude que jaz, que é a única, se de fato existe, ao máximo
munificente e generosa e que ama os outros mais do que ela mesma, nascida
antes para os outros que para si, e colocá-la naquele divino sólio não longe da
sabedoria. 13- Nem na verdade faltou a eles ou vontade (que outra coisa de
escrever houve para eles, ou que plano no total?) ou engenho, pelo que
excederam a todos; mas a causa deles venceu tanto a vontade quanto a
abundância. O direito acerca do que investigamos é algo civil, nenhum é
natural; pois, se fosse como as coisas quentes e frias, amargas e doces, assim
seriam as justas e injustas as mesmas para todos.

IX. 14- [Filo]:


- Agora, caso alguém, com aquele verso de Pacúvio “sendo puxado por
carro de serpentes aladas”, possa olhar de cima para baixo e percorrer com os
olhos muitas e várias gentes e urbes, verá primeiro – naquela gente egípcia, ao
máximo incorrupta, que mantém por escrito a memória de muitos séculos e
eventos – um certo boi ser pensado deus, que os egípcios denominam Ápis, e
muitos outros portentos junto aos mesmos e animais de cada gênero
consagrado no número de deuses; depois na Grécia, como junto a nós, templos
magníficos consagrados a simulacros humanos, que os persas pensaram
nefandos112, e por essa única causa Xerxes, diz-se, ter ordenado queimarem-se
os templos atenienses, porque achasse que era nefando conterem-se reclusos
por paredes os deuses, cuja morada seria todo este mundo.
15- Depois contra os persas tanto Filipe, que a cogitou, quanto
Alexandre, que a executou, sustentava esta causa de guerrear: que queria

111 Referência à República de Platão, cujo subtítulo é , e à obra de Aristóteles,


, perdida hoje.
112 Heródoto I, 131.

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vingar os templos da Grécia, que na verdade os gregos acharam que não


deviam ser refeitos, para que fosse aos pósteros perante a vista prova eterna do
crime dos persas. Quão numerosos povos, como os tauros no Axino 113, como
Busíris114, rei do Egito, como gauleses115, como cartagineses116, pensaram que
imolar homens era tanto pio como gratíssimo aos deuses imortais! Mas as
instituições de vida assim se distanciam que cretenses e etólios achem honesto
assaltar, lacedemônios tenham proclamado serem seus todos os campos que
pudessem alcançar com dardo. Os atenienses costumavam jurar mesmo
publicamente ser sua toda terra que produzisse oliveira ou grãos, os gauleses
pensam ser torpe procurar obter com a própria mão o cereal, e assim armados
ceifam os campos alheios. 16- Mas nós, os homens mais justos, que não
consentimos117 que as gentes transalpinas semeassem oliveira e videira, com
que mais sejam nossos olivais e nossas vinhas. Como façamos isto, somos ditos
fazer com prudência, não com justiça, para que entendas que sabedoria difere
de eqüidade. Licurgo, aquele inventor das melhores leis e do direito mais
eqüitativo, deu os campos dos ricos para serem cultivados, como por
escravidão, à plebe.
X. 17- Mas, caso eu queira descrever os gêneros de direito, instituições,
costumes e hábitos, não só vários em todas as nações, mas em uma só urbe, ou
nesta mesma, mostrá-los-ei mil vezes mudados; assim este nosso intérprete do
direito, Manílio, diga serem uns agora os direitos dos legados e herança das
mulheres e, adolescente, ele tenha-se acostumado a dizer outros, ainda não
promulgada a lei Vocônia118, lei que na verdade a mesma solicitada por motivo
de direito dos homens é plena de injúrias para as mulheres. Por que então a

113 “não hospitaleiro”, depois “hospitaleiro”, devido ao comércio com outras


nações. Sacrifícios humanos a Ártemis Táurica.
114 Rei mítico do Egito, morto por Hércules.
115 César, De bello gallico, VI, 16.
116 Diodoro Sículo XX, 14. Ênio, Annales 125.
117 Proibição de 154 a.C. que vigorava ainda em 129 a.C., data em que se daria este debate.

Somente Massília era isenta dessa lei. (Estrabão IV, 1)


118 Lei de 169 a.C., proposta por Caio Vocônio Saxa, que impedia os cidadãos da primeira classe

de instituir mulheres como herdeiras e de legar mais do que cabia ao herdeiro.

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mulher não pode ter riqueza? Por que as virgens vestais podem ter herdeiros119,
e não sua mãe? E por que, se as mulheres tiveram uma medida de riqueza a ser
constituída, a filha de Públio Crasso poderia ter, se o pai a tivesse única, cem
milhões de sestércios, salva a lei, e a minha não poderia ter três milhões ...
[Perderam-se duas páginas]

XI. 18- [Filo]:


- ... tivesse sancionado para nós os direitos, tanto todos se serviriam dos
mesmos diretos quanto os mesmos não se serviriam uns de uns, outros de
outros direitos. E pergunto se é de homem justo e de homem de bem obedecer
às leis? Quais? Quaisquer que sejam? Mas nem a virtude aceita inconstância,
nem a natureza suporta variedade, e as leis se comprovam pela pena, não pela
nossa justiça; então nenhum direito é natural. A partir do que se conclui isto:
que não há na verdade justos por natureza. Acaso dizem que há variedade nas
leis e que os homens de bem por natureza seguem essa justiça que é, não aquela
que se pensa? e dizem então que isto é de homem de bem e justo: atribuir a
cada um o que é digno de cada um? 19- Logo, por ventura devemos ter
primeiro consideração com os brutos mudos? Então não homens medíocres,
mas os melhores e doutos, Pitágoras e Empédocles, afirmam que há uma só
condição de direito de todos os seres animados e proclamam que penas
inexpiáveis pendem sobre aqueles pelos quais tenha sido maltratado um
animal. É crime então fazer mal a animal; crime que quem queira ... [Perderam-
se cento e cinqüenta e duas páginas, a saber, dois cadernos, excetuadas quatros
folhas]

XII. 20- [Filo]:


- ... então todos que têm poder de vida e morte sobre o povo são tiranos,
preferem chamar-se reis pelo nome de Júpiter Ótimo. Quando, decididos, retêm

119Virgens vestais podiam dispor de bens, sem intermédio de tutor. (Aulo Gélio I, 12, 9;
Plutarco, Numa, X)

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a república por causa das riquezas ou nascimento ou algumas obras, é facção,


mas eles se chamam aristocratas. Mas, se o povo pode muitíssimo e todas as
coisas se movem por seu arbítrio, diz-se aquela liberdade, mas é licença. Mas,
quando um teme o outro, tanto homem teme homem quanto ordem teme
ordem, então, porque ninguém confia em si, acontece como que um pacto entre
povo e poderosos, a partir do que surge o que Cipião louvava como gênero
conjunto de cidade; e então é mãe da justiça120 não a natureza nem a vontade,
mas a fraqueza. Pois, quando de três um deve-se escolher, ou fazer injustiça e
não receber, ou tanto fazer quanto receber, ou nenhuma nem outra coisa, o
melhor é fazer impunemente, se possas, segundo nem fazer nem sofrer, o mais
infeliz é digladiar sempre ora as injúrias devendo ser feitas, ora devendo ser
recebidas. Assim, quem ... seguir aquele primeiro121 ... [Faltam oito páginas]

XIV. 22- [Filo]:


- ... todos vos lembrai. A sabedoria ordena aumentar os recursos, ampliar
riquezas, levar adiante os limites (de onde seria então aquele louvor inciso nos
monumentos dos maiores comandantes “estendeu os limites do império”,
senão algo foi acrescido de alheio?), comandar muitíssimos quanto possível,
gozar dos prazeres, ser poderoso, ser rei, ser senhor; e a justiça recomenda
poupar a todos, ocupar-se do gênero humano, dar o seu a cada um, não tocar as
coisas sagradas, públicas, alheias. Portanto, o que se realiza, caso obedeças à
sabedoria? riquezas, poderes, recursos, cargos honoríficos, comandos, reinos,
quer aos indivíduos quer aos povos. Mas, já que falamos sobre república (as
coisas mais ilustres são as que acontecem em público) e já que a razão de direito
é a mesma em uma e outra coisa, penso que se deve falar da sabedoria do povo.
E já omitirei outros; este nosso povo, que Africano retomou no discurso de
ontem desde a cepa, por cujo mando já o globo terrestre se retém, é pela justiça

120Políbio VI, 5; Tucídides V, 89.


121 Platão, Rep. II, 358e – 359ab; Lactâncio (Inst. 3, 17) atribui a Epicuro: sapientis est male facere, si
et utile et tutum.

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ou pela sabedoria que do menor de todos [fez-se o maior?]122 ... [É provável que
faltem quatro páginas]
23- [Filo]:
- ... além dos árcades e atenienses que, creio, temendo que isto fosse
interdito pela justiça, para que não surgisse alguma vez, consideram que eles
surgiram da terra, como estes camundongos, a partir dos campos lavrados.

XV. 24- A estas coisas costumam ser ditas aquelas primeiro por aqueles123
que minimamente são maus no discutir, que nesta causa têm tanto mais
autoridade, porque, quando se pergunta de um homem de bem - queremos que
este seja aberto e simples124 - não são sagazes no debater, nem inveterados nem
maliciosos; negam então que o homem de bem seja sábio, porque a bondade e
justiça deleitem-no por sua vontade e por si, mas porque a vida do homem de
bem é livre de medo, cuidado, solicitude e perigo, e pelo contrário aos ímprobos
sempre algum recife pega-se-lhe nas almas, sempre se lhes encontram
julgamentos e suplícios ante os olhos; nenhum emolumento, nenhum tão
grande prêmio fruto de injustiça há sempre que temas, sempre que penses estar
junto, pender alguma coisa, danos ... [Perderam-se oito páginas, parte das quais
se supre, referidos os lugares por Lactâncio125.]

XVIII. 28- [Filo]:


- [Pergunto, caso sejam dois homens, dos quais um é ótimo, muitíssimo
equânime, de suma justiça, de singular confiança, outro de notória má ação e
audácia; se nisso a cidade esteja em erro, que julgue aquele homem de bem
celerado, facinoroso, nefasto, e pelo contrário esse, que seja o mais ímprobo,
avalie ser de suma probidade e confiança e por esta opinião de todos os
cidadãos aquele homem de bem seja vexado, agarrado e levem-se enfim as

122 Os romanos deveriam restituir os bens e as terras aos povos dominados e tornar à sua
primeira condição de miséria. (Lactâncio, Inst. Div., V, 12, 5-6)
123 Epicuristas, cujo conceito de justiça é ilustrado em De Finibus I, 16; II, 21.
124 Platão, Rep. II, 361b.
125 Inst. Div. V, 12, 5-6.

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mãos contra ele, sejam-lhe vazados os olhos, seja condenado, amarrado,


queimado, deportado]126, viva na pobreza, por fim até pelo melhor direito
pareça ser a todos o mais infeliz, e pelo contrário aquele ímprobo seja louvado,
respeitado, amado por todos, sejam conferidos a ele todos os cargos honoríficos,
todos os comandos, todos os recursos, todas as riquezas de toda parte, e seja
enfim julgado o melhor homem pela avaliação de todos e o mais digno de toda
[melhor] fortuna, quem enfim será tão demente que duvide qual dos dois
prefira ser?

XIX. 29- O que há em cada um, há o mesmo nos povos: nenhuma cidade
é tão estulta que queira não mandar injustamente mais do que servir
justamente. Nem na verdade afastar-me-ei mais longamente. Sendo eu cônsul,
indaguei, como vós estivésseis em conselho comigo, do tratado de Numância 127.
Quem ignorava que Quinto Pompeio tivesse feito um tratado, e que na mesma
causa estava Mancino128? Um, ótimo homem, até persuadiu, sendo eu referente
da deliberação do senado, outro se defendeu acerrimamente. Se se procura
pudor, probidade, fidelidade, Mancino as trouxe, se razão, conselho, prudência,
Pompeio está antes. Qual das duas coisas ...129

XXIX. 41- [Lélio]:


- ... [quanto à] Ásia130, Tibério Graco persistiu nos cidadãos e desprezou
os direitos e alianças dos aliados de nome latino. Coisas que se o costume de
excesso de liberdade começasse a espalhar mais largamente e tivesse conduzido
nosso mando do direito para a força, de modo que os que até aqui por vontade

126 Trecho conservado por Lactâncio: Inst. Div. V, 12, 5-6.


127 Lúcio Fúrio Filo, cônsul em 136 a. C.
128 O senado recusava ratificar o tratado de paz feito por Ostílio Mancino, cônsul precedente.

Quinto Pompeio, procônsul em 141, tinha feito com os numantinos um pacto de amizade;
quando sucessor Pompílio Lenate foi mandado em 139 a Espanha para continuar a guerra, os
numantinos apelaram a esse pacto. Pompeio negou tudo, e o senado anulou o pacto.
129 Lacuna de numerosas páginas que interrompe o discurso de Filo em louvor à injustiça. Até o

capítulo XXIX Lélio assume a defesa da justiça, como Sócrates na República, de Platão, 368c.
Apud Lactâncio, Inst. Div. V, 16, 5-13.
130 Trata-se da herança que Átalo III, rei de Pérgamo, deixou ao povo romano.

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nos obedecem mantenham-se com terror, mesmo que isso para nós que somos
dessa idade foi vigiado pouco mais ou menos, contudo inquieto-me pelos
nossos pósteros e por essa imortalidade da república, que pudera ser perpétua,
se se alimentasse das instituições e costumes dos pais.

XXX. 42- Como Lélio tivesse dito essas coisas, mesmo que todos os que
estavam presentes indicavam que eles tinham-se deleitado bastante disso,
contudo além dos outros Cipião foi como que transportado por um certo gozo:
- Na verdade tu, Lélio, diz, defendeste freqüentemente muitas causas de
modo que eu não só [pensaria que se deve comparar] contigo Sérvio Galba,
nosso colega131, que tu antepunhas a todos até onde viveu, mas nenhum dos
oradores áticos132 ou por suavidade ...133 [Perderam-se doze páginas]

XXXI. 43- [Cipião]:


- ... levar de volta134. Logo, quem então diria que é um povo aquela coisa
do povo, isto é, república, como todos tivessem sido oprimidos pela crueldade
de um só e nem houvesse um só vínculo de direito nem consenso e associação
de reunião? E isto mesmo em Siracusa. Aquela preclara urbe que Timeu 135 diz
ser a maior dos gregos, a mais bela de todas, cidadela para ser contemplada,
portos difusos até as ribanceiras da urbe e dentro da sinuosidade da fortaleza136,
vias amplas, pórticos, templos. Muralhas em nada mais faziam, Dionísio
mantendo, para que aquela fosse república; nada de fato do povo, e o próprio
povo era de um só. Logo, onde há tirano, ali não viciosa, como eu dizia ontem,

131 Sérvio Sulpício Galba (190-130) fez parte, como Lélio e Cipião, do colégio dos áugures.
132 Oradores áticos: Antífon, Andócides, Lísias, Isócrates, Iseu, Licurgo, Ésquines, Demóstenes,
Hipérides, Dinarques; nomeados todos por Cícero no Brutus, com exceção de Andócides e Iseu.
133 Conjectura-se: [aut perspicuitade aut grauitade comparandum esse existimem]
134 Referência ao touro de bronze de Fálaris, tirano de Agrigento. Cipião Emiliano o levou de

volta (reportare) de Cartago a Agrigento, no fim da terceira Guerra Púnica.


135 Timeu de Taormina (346-250 a.C.) escreveu uma história da Sicília e a história das expedições

de Pirro. Ele foi uma das fontes de Políbio.


136 Em Siracusa havia dois portos: o maior, entre a ilha de Ortígia e o promontório do Plemírio, e

o menor, , que se insinuava até a cidadela.

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mas, como agora a razão conduz, deve-se certamente dizer que nenhuma
república há.

XXXII. 44- Com clareza dizes, diz Lélio, e já vejo então para onde o
discurso se encaminha.
- Vês, portanto, que aquela que esteja toda em poder de facção não pode
na verdade ser dita república.
- Assim exatamente julgo.
- E muitíssimo correto julgas; portanto, que foi então a coisa dos
atenienses, quando depois daquela grande guerra do Peloponeso aqueles trinta
varões estiveram à frente da urbe do modo mais injusto? Acaso a antiga glória
da cidade ou a preclara vista da fortaleza ou o teatro, os ginásios, os pórticos, ou
nobres propileus ou a cidadela ou as obras admiráveis de Fídias ou aquele
magnífico Pireu fazia-a república?
- De modo algum na verdade, diz Lélio, já que não era coisa do povo.
- Quê? Quando os decênviros estiveram em Roma há três anos sem
direito de apelação, como a própria liberdade tivesse perdido direito de posse
provisória?
- Do povo nenhuma coisa era, mas ao contrário o povo conduziu isso,
para que recuperasse a sua coisa.

XXXIII. 45- [Cipião]:


- Chego agora àquele terceiro gênero, em que parecerá talvez haver
apuros. Quando se dizem que se age pelo povo e que tudo está em poder do
povo, quando por qualquer coisa que deseja a multidão submete a suplício,
quando conduzem, pilham, mantêm, dissipam o que querem, podes então,
Lélio, negar que essa é república, quando do povo sejam todas as coisas, já que
na verdade queremos que república seja coisa do povo?
Então, Lélio:
- Mas nenhuma eu negaria que é república mais depressa do que essa
que esteja absolutamente em poder da multidão. Pois, se a nós não agradava ter

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havido república em Siracusa, nem em Agrigento, nem em Atenas, quando


houvesse tiranos, nem aqui, como houvesse decênviros, não vejo que nome de
república apareça mais em dominação da multidão, porque primeiro para mim
povo não é, como tu otimamente definiste, Cipião, senão o que se mantém por
consenso de direito, mas esse convento é tão tirano quanto se fosse um só, do
que este também mais horrível, porque nada é fera mais desumana do que essa
que imita visão e nome de povo. Mas nem convém, como os bens dos delirantes
pelas leis estejam em poder dos parentes paternos, que deles já ... [Lacuna de
oito páginas]

XXXIV. 46- [Cipião]:


- ... possam dizer-se – por que aquela é república do povo – as coisas que
foram ditas da monarquia.
- E também muito mais, diz Múmio; pois contra o rei antes cai a
semelhança com o senhor, porque é um só. Mas numerosos homens de bem
tomarão posse das coisas na república em que nada poderá ser mais feliz do
que ela. Mas contudo prefiro mesmo um reino à um povo livre; então resta a ti
esse terceiro gênero de república muitíssimo viciosa.

XXXV. 47- Nisto, Cipião:


- Conheço, diz, esse teu costume, Espúrio, avesso à razão popular; e,
ainda que isso pode-se suportar mais brandamente do que tu costumas
suportar, contudo concordo que nenhum destes três gêneros há que se deva
aprovar menos. Contudo não concordo nisso: os aristocratas serem superiores
em muito ao rei; se então sabedoria é que pode dirigir a república, que importa
afinal esteja esta em um só ou em muitos? Somos levados por um certo erro
debatendo assim; quando então se proclamam aristocratas, nada pode parecer
melhor. Então, que melhor do que o melhor pode-se cogitar? E quando fez-se
menção do rei, acorre aos ânimos o rei, mesmo injusto. E nós nada falamos
agora do rei injusto, quando procuramos acerca do própria república

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monárquica. Por isso, avalie Rômulo ou Pompílio ou Túlio137 como rei; talvez
não terás tanto pesar daquela república.
48- [Múmio]- Que louvor, portanto, deixas da república popular?
Então, ele [Cipião]:
- Quê? A ti afinal, Espúrio, não parece ser república a dos ródios, junto
aos quais há pouco estivemos juntamente138?
[Múmio]- Mas a mim parece e certamente o mínimo censurável.
[Cipião]- Corretamente dizes, mas, se te lembras, todos eram o mesmo,
ora da plebe ora senadores, e tinham mudanças por quais meses cumpririam
um cargo popular, por quais cumpririam um cargo senatorial. Em ambas partes
recebiam o direito de presença e tanto no teatro quanto na cúria julgavam
igualmente coisas capitais e todas as restantes. Tanto podia e de tanto valor era
a multidão quanto [o senado] ... [Perderam-se quarenta cadernos ou 640
páginas, das quais restam oito do livro IV e duas do livro V.]

LIVRO QUARTO

[Perderam-se muitas páginas do início]

II. 2- ... favor, que convenientemente descritas ordens, idades, classes,


cavalaria, em que os votos também do senado estão139, muitos desejando
demasiado que tolamente esta vantagem fosse tirada, os quais procuram novas
liberalidades por algum plebiscito de que se deve restituir os cavalos140.

137 Corrigido Tullum por tullium, que designa Servius Tullius, e não Tullus Hostilius, cf. Ziegler,
“Die drei gerecht Könige Roms” in Latomus 26, 1967, 448-449.
138 Em 140 a. C. Cipião, acompanhado de Lúcio Metelo Clavo e de Espúrio Múmio, esteve em

embaixada no Oriente para resolver questões dinásticas nos reinos aliados.


139 Até a época dos Gracos, os senadores votaram junto com os cavaleiros; e uma pessoa podia

pertencer ao senado e à ordem eqüestre (T. Lívio XXXIX, 37 e 44).


140 Esses cidadãos queriam excluir os senadores dos tribunais reservados aos cavaleiros,

proibindo os que tinham servido na cavalaria de manter os cavalos, e ofereciam em troca uma

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III. 3- Considerai agora as coisas restantes quanto tenham previsto


sabiamente para aquela associação de cidadãos de feliz e honesto viver; essa é
de fato a causa primeira de se reunir, e isso deve-se fazer a partir da república
para os homens, em parte pelas instituições, em parte pelas leis. A princípio
quiseram que a disciplina infantil para os de condição livre, acerca de que os
gregos trabalharam muito em vão e em que, única, nosso hóspede Políbio
censura a negligência das instituições, - nenhuma certa ou destinada pelas leis –
fosse ou exposta publicamente ou única de todos. Pois ... [Perderam-se quatro
ou oito páginas]

IV. 4- ... adolescente despir-se. Assim foram profundamente reclamados


como que fundamentos de alguma vergonha. Na verdade, quão absurdo é o
exercício da juventude nos ginásios! Quão fútil aquele exercício militar dos
efebos! Quão dissolutos e livres os contatos e amores! Deixo de lado os da Élida
e tebanos, junto aos quais no amor a libido dos nascidos livres tem licença
mesmo permitida e dissoluta; os lacedemônios mesmos, quando tudo
concedem no amor dos jovens, exceto o estupro, dividem por muro certamente
tênue o que excetuam. De fato, permitem abraços e coitos, interpostos os
mantos.

Aqui, Lélio:
- Claramente entendo, Cipião, que tu preferes, nessas disciplinas da
Grécia que repreendes, lidar com os povos mais nobres, a lidar com teu Platão,
que nem atinges na verdade, sobretudo quando ... [Todo final deste livro
perdeu-se]

promoção à ordem senatorial, largitio. A lex Sempronia Iudiciaria só foi votada em123 a. C.; ela
declarava que 300 senadores e 600 cavaleiros constituiriam os tribunais criminais e civis.

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LIVRO QUINTO

[Perdeu-se o início deste livro]

II. 3- [Manílio]:
- ... [nada tinham tão] real quanto a explanação da eqüidade, em que
havia a interpretação de direito, direito que os particulares costumavam pedir
aos reis. E por essas causas os campos de terra lavrada e de bosque e de pasto
amplos e úberes se delimitavam: os que fossem de reis e que se cultivassem sem
obra e trabalho dos reis, para que nenhum cuidado de negócio privado os
afastasse das coisas dos povos. E nem na verdade algum particular era juiz ou
árbitro de litígio, mas tudo se acabava com os juízos dos reis. E a mim parece
que nosso Numa manteve ao máximo este antigo costume dos reis da Grécia.
Pois outros, mesmo que cumpriam também este dever, contudo em grande
parte exerceram as guerras e cultivaram seus direitos; e aquela diuturna paz de
Numa foi mãe para esta urbe de direito e religião, que foi ainda escritor das leis
que sabeis que se sobressaem, o que é próprio deste cidadão de que tratamos ...
[Perderam-se quatro ou oito páginas]

III. 5- [Cipião]:
- ... acaso te ofende conhecer ... de raízes e sementes?
[Manílio]:
- Em nada, se apenas a obra se sobressair.
- Acaso pensas que esse estudo é de feitor?
- O menos possível, pois que muito freqüentemente a atividade
abandona a cultura do campo.
- Logo, como o feitor conhece a cultura do campo, o administrador sabe
das letras, um e outro relaciona a si o proveito do deleite da ciência para o
executar, assim este nosso dirigente terá se esforçado certamente pelo direito e
por conhecer as leis, terá examinado de todo modo as fontes delas, mas,
aconselhando, lendo e escrevendo, de modo que não impeça que possa como

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que administrar a república e nela de certo modo ser feitor, expertíssimo no


mais elevado direito sem que ninguém pode ser justo, não inexperto no civil,
mas assim como um piloto experimentado nos astros, um médico nas ciências
naturais; um e outro de fato se serve dessas coisas para sua arte, mas não se
afasta de seu dever. E isso verá este homem ... [Não se sabe quantas páginas
perderam-se]

VI. 8- [Cipião]:
- ... às cidades em que os melhores procuram o louvor e o decoro e
evitam a ignomínia e desonra. E nem são aterrorizados tanto por medo e por
pena - que é constituída por leis - quanto por vergonha, que a natureza deu ao
homem como que um certo temor de censura não injusta. Esta aquele dirigente
das repúblicas aumentou com opiniões e concluiu pelas instituições e
disciplinas, de modo que o pudor afastasse os cidadãos dos delitos não menos
do que o medo. Mas estas coisas que pertencem certamente ao louvor poderiam
ser ditas mais ampla e abundantemente.

VII. 9- Para a vida e para o uso do viver essa razão foi descrita pelas
núpcias legais, filhos legítimos, santos assentos dos deuses Penates e Lares
familiares, para que todos gozem das vantagens comuns e suas e nem seja
possível viver-se bem sem boa república nem haver algo mais feliz do que
cidade bem constituída. Acerca do que costuma parecer-me admirável que
tamanha seja ... [Termina o palimpsesto]

LIVRO SEXTO

IX. 9- [Cipião]:

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- Como eu tivesse chegado à África141, tribuno militar142, como sabeis, a


serviço de Mânio Manílio143, junto à quarta legião144, nada me foi mais urgente
do que encontrasse Massinissa145, rei amicíssimo de nossa família por justos
motivos. Quando cheguei a ele, tendo-me abraçado, o velho chorou e um pouco
depois levantou o olhar ao céu e : “Rendo-te graças, diz, sumo sol, e a vós,
restantes habitantes do céu, porque, antes que eu migre desta vida, avisto no
meu reino e nestes tetos Públio Cornélio Cipião, com cujo nome mesmo me
reanimo; e assim nunca se afasta de minha alma a memória daquele varão
ótimo e muitíssimo invicto”. Depois eu a ele, de seu reino, ele a mim, da nossa
república, inquiriu; e, muitas palavras havidas de lá e de cá, aquele dia foi
passado por nós.

X. 10- Então, recebido o régio aparato, levamos a conversa adiante até


alta noite, como o velho falasse nada senão do Africano e tivesse lembrado de
tudo dele, não só dos feitos, mas também das coisas ditas. Depois, quando nos
separamos para deitar, a mim, tanto cansado do caminho quanto que tivesse
vigilado até alta noite, o sono abraçou mais cerradamente do que costumava.
Este Africano – creio na verdade a partir do que tínhamos falado;
acontece de fato ordinariamente que nossas reflexões e conversas provoquem
algo no sono tal qual Ênio escreve de Homero146, de que sem dúvida muito
freqüentemente vigilante costumava refletir e falar – mostrou-se a mim naquela
forma que me era mais conhecida147 a partir de sua imagem do que a partir dele

141 Em 149 a.C., os exércitos consulares da Sicília tinham desembarcado em Útica.


142 Públio Cornélio Cipião, filho do vencedor de Pidna, Lúcio Emílio Paulo.
143 Mânio Manílio Nepos, cônsul em 149 a.C. junto com Lúcio Márcio Censorino.
144 Havia duas legiões para cada exército consular.
145 Rei da Numídia, tinha então 90 anos; morreu no ano seguinte. Após a batalha de Zama

(201),Cipião, o Africano, restabeleceu seu reino e o fortaleceu contra Sifax, na segunda guerra
púnica.
146 Ênio, nos Anais, fala de um sonho em que Homero lhe aparece e diz que sua alma está em

seu corpo, depois de ter estado em um pavão.


147 Cipião Emiliano, nascido em 185, não pode se lembrar do Africano, morto em 183; daí a

lembrança da máscara de cera (imago) moldada sobre o rosto do morto e posta em um busto,
guardada num armário no átrio.

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próprio. Quando o conheci, de fato tremi; mas ele: “Sê de ânimo, diz, e deixa o
temor, Cipião, e o que eu diga transmite à memória.

XI. 11- “Vês aquela urbe que coagida148 por mim a obedecer ao povo
romano renova antigas guerras149 e não pode repousar?” (E mostrava Cartago
de um certo lugar elevado e cheio de estrelas, iluminado e claro.) “`A qual tu
vens agora quase soldado para sitiá-la; cônsul, nestes dois anos destruí-la-ás e
terás esse cognome, adquirido por ti, que tens até aqui, hereditário de nós. E,
quando tiveres destruído Cartago, tiveres marchado em triunfo150 e tiveres-te
tornado censor151 e tiveres percorrido como embaixador152 o Egito, a Síria, a
Ásia, a Grécia, serás eleito153 segunda vez cônsul, estando ausente, e concluirá a
maior guerra, arruinarás Numância. Mas, quando tiveres sido levado em carro
ao Capitólio, encontrarás a república perturbada por projetos de meu neto154”.

XII. 12- “Aqui, Africano, convém que tu mostres à pátria lume de alma e
teu engenho e conselho. Mas desse tempo vejo como que uma ancípite via155
dos destinos. Pois, quando tua idade houver voltado oito vezes sete156 circuitos
e voltas do sol e estes dois números, dos quais um e outro é tido como pleno,
um por uma causa, outro por outra, tiverem completado a soma para ti fatal do
circuito natural, a ti somente e a teu nome toda cidade se voltará, em ti o
senado, em ti todos os homens de bem, em ti os aliados, em ti os latinos fixarão
a vista, tu serás o único em que a salvação da cidade possa-se apoiar157, e, para

148 Depois da batalha de Zama, foram impostas duras condições a Cartago.


149 Desde o fim da segunda guerra púnica e o início da terceira há quase meio século.
150 O triunfo foi no mesmo ano da destruição de Cartago, 146 a.C.
151 Em 142 a.C.
152 Em 140 – 139 a.C.
153 Em 134 a.C.
154 Tibério Graco, filho de Cornélia, filha do Africano. Morreu quando Cipião estava em

Numância.
155 Alusão ao apogeu da glória de Cipião e seu trágico destino.
156 Oito e sete são considerados números perfeitos pelos pitagóricos e por Platão. (Timeu 39d)
157 Nitor “apoiar-se” serve para um jogo de conceitos com scipio “bastão”, o que sugere um outro

jogo de palavras: nomen omen “o nome é o presságio”.

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não se dizer muito, convém que restaures, ditador, a república, se tiveres


evitado as ímpias mãos dos parentes158”.
Aqui, como Lélio tivesse gritado e os outros tivessem gemido mais
veementemente, levemente rindo Cipião: “Chi! peço, diz, que não me desperteis
do sono, e um pouco ouvi o restante”.

XIII. 13- “Mas, para que sejas, Africano, mais ardoroso para guardar a
república, tem como certo a todos que tenham conservado, ajudado, aumentado
a pátria haver no céu um lugar definido onde, felizes, gozem de vida eterna. De
fato, nada há àquele principal deus159 que rege todo o mundo, que aconteça na
terra, mais aceitável do que assembléias e reuniões de homens – tendo sido
ligados por direito – que são chamadas cidades; os dirigentes destas e
guardiães, tendo partido daqui, para cá voltam”.

XIV. 14- Aqui eu, ainda que estivesse aterrado não tanto por medo da
morte quanto por medo das insídias dos meus, perguntei contudo viveria ele
próprio e meu pai Paulo160 e outros que nós pensávamos mortos. “Mas ao
contrário, diz, vivem estes que voaram dos vínculos dos corpos como de
cárcere, a vossa que se diz vida é morte161. Por que tu não olhas teu pai Paulo
que vem a ti?” Quando o vi, derramei na verdade um poder de lágrimas, e ele,
tendo-me abraçado, beijando-me proibia-me chorar.

XV. 15- E eu, logo que reprimido o choro, comecei a poder falar: “Por
favor, eu digo, santíssimo e ótimo pai, já que esta é vida, como ouço Africano
dizer, por que me demoro na terra? por que me não apresso a vir aqui junto a
vós? “Não é assim”, diz ele. “Se esse deus de quem é todo este templo que

158 Cipião Emiliano foi encontrado morto em seu leito no dia em que repetiria perante o povo
seu discurso proferido no senado, contra legem iudicariam. Uns (Apiano e Plutarco) pensam em
morte natural, outros suspeitam de homicídio. Não escaparam à suspeita os triúnviros Papírio
Carbão, Caio Graco e Fúlvio Flaco, a irmã Cornélia, mãe dos Gracos, e até a sua mulher
Semprônia, irmã dos Gracos.
159 (Timeu 41a).
160 Lúcio Emílio Paulo, vencedor da batalha de Pidna, contra Perseu, em 168 a.C..

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avistas não te tenha liberado desses guardiães do corpo, aqui não pode estar
aberta entrada a ti. De fato, os homens foram gerados por esta lei, que
guardassem aquela esfera que vês no meio deste templo, a qual se diz terra, e a
eles foi dada alma a partir daqueles fogos eternos162 que chamais astros e
estrelas, que esféricas e redondas animadas por mentes divinas perfazem seus
círculos e órbitas com celeridade admirável. Por isso, tanto a ti, Públio, quanto a
todos os homens pios a alma deve ser retida em custódia do corpo 163, e nem
sem ordem desse deus, pelo que ela vos foi dada, deve-se migrar da vida dos
homens, para que não pareçais evitar a função humana designada pelo deus.

XVI. 16- Mas assim, Cipião, como este teu avô, como eu que te gerei,
cultiva a justiça e a piedade, que quando grande nos pais e parentes, então é
máxima na pátria; essa vida é via para o céu e para esta reunião daqueles que já
viveram e afrouxados do corpo habitam aquele lugar que vês – e esse era um
círculo luzente de esplendidíssimo candor entre chamas – que vós, como
recebestes dos gregos, denominais Círculo Lácteo. A partir do que todas as
coisas restantes a mim que contemplava pareciam preclaras e maravilhosas. E
essas eram estrelas que nunca vimos a partir deste lugar e essas magnitudes de
todas que nunca suspeitamos haver, das quais havia aquela menor que, mais
distante do céu, mais próxima da terra, luzia com luz alheia 164. E as esferas das
estrelas venciam facilmente a magnitude da terra. Já a própria terra pareceu-me
assim pequena que tive pesar de nosso império pelo que tocamos como que um
ponto dela.

XVII. 17- Como olhasse mais: “Por favor, diz Africano, até quando tua
mente estará fixa no solo? Não vês a que templos viestes? A ti tudo foi
conectado em nove círculos ou antes esferas, das quais uma só é celeste, a mais

161 Fedro 67c-d.


162 “de aspecto de fogo”; ensinamento da doutrina estóica (Natura Deorum 2,15,41),
por oposição ao fogo que consome.
163 Fédon 62b.
164 A Lua. Anaxágoras afirmou primeiro que a Lua recebia a luz do Sol.

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afastada, que abraça todas as outras, o próprio sumo deus que retém e contém
as outras; nesta estão fixos aqueles cursos eternos das estrelas que são girados, à
qual estão sujeitas as sete esferas, que são retrovertidos em movimento
contrário, e para o céu165. Destas, aquela que na terra denominam Satúrnia
possui uma única esfera. Depois é aquele fulgor próspero e salutar ao gênero
humano que se diz de Júpiter. Então aquele rútilo e horrível à terra que dizeis
marcial. Depois, abaixo, o sol obtém quase a região média, condutor, principal e
moderador, dos restantes lumes, mente e temperança do mundo, com tanta
magnitude que com sua luz lustra e completa todas as coisas. A este como
companheiros seguem os cursos, um de Vênus outro de Mercúrio, e no ínfimo
círculo a Lua incendiada pelos raios do Sol é girada. Abaixo já nada há senão
mortal e decaído, exceto as almas dadas ao gênero humano por mercê dos
deuses; acima da Lua todas as coisas são eternas. Pois aquela esfera que é média
e nona, a Terra, nem se move e é ínfima, e para ela são levados todos os pesos
por sua atração.

XVIII. 18- Como eu a olhasse estupefato, quando me refiz: “Quê? eu


digo, este som, tanto e tão doce, que é que enche meus ouvidos?”
- Este, diz, é aquele que unido por intervalos desiguais, mas contudo em
determinada proporção distintos racionalmente, realiza-se por impulso e
movimento de seus próprios círculos e temperando agudos com graves
harmoniosamente realiza várias sinfonias; de fato tamanhos movimentos não se
podem impelir em silêncio, e a natureza sustenta que os extremos soem
gravemente de uma parte, de outra agudamente. Por isso aquele sumo curso
estelífero do céu, cuja conversão é mais concitada, move-se com som agudo e
excitado, e este da Lua e ínfimo com som muitíssimo grave; pois a Terra, nona
esfera, permanecendo imóvel está fixa sempre em um só assento, tendo
encerrado um lugar no meio do mundo. Esses oito cursos em que a força de
dois é a mesma, sete realizam sons distintos por intervalos, número que é como

165 A primeira esfera gira de leste para oeste, as outras, de oeste para leste.

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que o nó de todas as coisas; algo que os homens doutos, tendo imitado com
cordas e cantos, abriram para si a volta e este lugar, como outros que com
engenhos superiores cultivaram na vida humana dos divinos estudos166.
19- Os ouvidos dos homens repletos deste som ensurdeceram-se;
nenhum sentido é mais embotado em vós, como, quando o Nilo precipita-se
dos montes mais altos àquela que se denomina Catadupa167, aquela gente que
habita aquele lugar carece do sentido de ouvir por causa da magnitude do som.
Na verdade este som é tamanho pela incitadíssima conversão de todo o mundo,
que os ouvidos humanos não o podem capitar, como não podeis olhar contra o
Sol, e pelos raios dele vossa agudeza de sentido é vencida.

XIX. 20- Eu, admirando estas coisas, levava contudo continuamente os


olhos à terra. Então, Africano: “Percebo, diz, que tu contemplas ainda agora a
sede e morada dos homens, que se te parece pequena assim como é, observa
sempre estas ciosas celestes, despreza aquelas humanas. Tu, de fato, que
celebridade da fala dos homens ou que glória a ser esperada podes conseguir?
Vês que se habita na terra em locais raros e estreitos e nesses mesmos como que
manchas onde se habita vastas soledades entrepostas e que aqueles que moram
na terra não só estão assim interrompidos, que nada entre eles possa se
derramar de uns para outros, mas que estão em parte oblíquos168, em parte
transversos, em parte ainda adversos a vós. Desses certamente nenhuma glória
podeis esperar.

166 Segundo as leis harmônicas aplicadas pelos pitagóricos à astronomia, os planetas na sua
rotação produzem um som que varia segundo a distância da esfera do centro do sistema e sua
velocidade de rotação. Já que a Terra é imóvel e muda, e Vênus e Mercúrio têm um tom igual,
as oito esferas produzem as sete notas correspondentes à oitava musical, e a harmonia celeste é
aquela de um heptacórdio.
167 Catarata do Nilo em Wadi Halfa, abaixo de Assuã. A primeira catarata do Nilo, entre as ilhas

Elefantina e File (Heródoto II, 17).


168 Oblíquos ( ): que se encontram na zona temperada oposta, no sentido da latitude.
Transversos: que se encontram na mesma zona temperada, do lado oposto no sentido da
longitude. Adversos ( ): que encontram na zona temperada oposta e do outro lado
(Macróbio, Comm.2,5).
O mundo de Roma encontra-se no globo terrestre no quadrante nordeste; os oblíquos estão na
mesma longitude e latitude sul; os transversos estão na mesma latitude e na longitude oeste; os
adversos estão na latitude sul e longitude oeste.

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XX. 21- E distingues a mesma terra como que cingida e circundada por
alguns cinturões, dois dos quais ao máximo diversos entre si e nos próprios
vértices do céu de uma e outra parte apoiados vês que se endureceram com a
geada, e que aquele no meio muitíssimo se abrasou com o ardor do sol. Dois
cinturões são habitáveis, dos quais aquele austral em que os que se detém
imprimem vestígios contrários a vós, em nada ao vosso gênero, e aquele outro
submetido ao Aquilão169, que habitais, distingue em quão tênue parte vos toca.
De fato, toda terra que é habitada por vós, apertada nos vértices, nos lados mais
ampla, alguma pequena ilha foi derramada em volta daquele mar que chamais
Atlântico, que chamais grande, a este chamais na terra Oceano, que contudo vês
com tamanho nome quanto é pequeno.
22- A partir destas mesmas terras cultas e conhecidas, acaso teu nome ou
de algum dos nossos pôde transcender este Cáucaso que distingues ou
atravessar a nado aquele Ganges? Quem ouvirá teu nome nas restantes partes
do oriente ou nas últimas do sol que se põe, do Aquilão ou do Austro?
Amputadas estas, distingue na verdade em quantas estreitezas vossa glória
quer se dilatar. E esses mesmos que falam de nós, por quanto tempo falarão
ainda?

XXI. 23- E além disso, caso aquela prole dos homens futuros deseje em
seguida transmitir aos pósteros os louvores de cada um dos nossos recebidos
dos pais, contudo por causa de inundações e incêndios da terra que é necessário
acontecer em certo tempo, não só não eterna, mas nem glória duradoura
também podemos alcançar. E que interessa que haja uma fala de ti daqueles que
nascerão depois, quando nenhuma tenha havido daqueles que nasceram antes?
Homens que foram não menos numerosos e certamente melhores.

169Vento norte: Aquilo e Boreas; vento sul: Auster e Notus; vento leste: Eurus; vento oeste:
Zephyrus.

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XXII. 24- Sobretudo quando, junto a esses mesmos dos quais pode-se
ouvir nosso nome, ninguém possa alcançar a memória de um só ano. Os
homens, de fato, medem vulgarmente pelo retorno do sol, isto é, de um só
astro; e, como ao mesmo ponto de onde uma vez partiram todos os astros
tenham retornado e tenham repetido a mesma descrição de todo céu em longos
intervalos, então aquele pode-se chamar na verdade ano que volta, em que a
custo ousaria dizer quão numerosas gerações humanas sejam contidas. Pois,
quando outrora o sol foi visto faltar e extinguir-se aos homens, quando a alma
de Rômulo penetrou neste mesmo templo, e quando dessa mesma parte o sol
nesse mesmo tempo segunda vez tenha faltado, então, todos os signos e estrelas
chamados de novo ao princípio, tenha um ano completo; saiba na verdade que
a vigésima parte desse ano ainda não foi convertida170.

XXIII. 25- Por isso, caso tenhas perdido a esperança de voltar a este lugar
em que os grandes e excelentes homens têm tudo, de quanto afinal é essa glória
humana que pode a custo pertencer a uma exígua parte de um só ano?
Portanto, se quiseres olhar ao alto e contemplar esta sede e morada eterna, nem
te entregues às falas do vulgo, nem ponhas esperança das tuas coisas em
prêmios humanos; é mister que por seus encantos a própria virtude atraia-te ao
verdadeiro decoro. O que outros falem de ti, eles mesmos vejam, mas falarão
contudo; e toda aquela fala tanto se cinge por estreitezas destas regiões que vês,
nunca acerca de alguém foi perene, quanto se enterra pela morte dos homens,
quanto se extingue pelo esquecimento da posteridade.”

XXIV. 26- Como tivesse dito essas coisas: “Eu na verdade, digo,
Africano, visto que aos que tiveram merecimento da pátria como que um
caminho está aberto ao acesso do céu, ainda que desde a infância não faltei ao
vosso decoro pelas marcas do caminhar do pai e pelas tuas, agora contudo,

170Da morte de Rômulo (716) à data do sonho de Cipião (149) fazem-se 567 anos, que
multiplicados por 20 perfazem 11340 anos, cifra que se aproxima de outra dada por Cícero no
Hortêncio: 12954 anos.

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exposto tamanho prêmio, esforçar-me-ei muito mais vigilantemente.” E ele: “Tu


na verdade esforça-te e assim tem que tu não és mortal, mas este corpo; de fato
nem tu és isso que essa forma declara, mas a mente de cada um é esse cada um,
não essa figura que pode-se mostrar com o dedo. Portanto, que tu és deus fica
sabendo, visto que deus é que vige, que sente, que lembra, que provê, que tanto
rege e modera e move esse corpo a que foi preposto, quanto aquele principal
deus, este mundo; e, como o próprio deus eterno move o mundo mortal a partir
de alguma parte, assim a alma sempiterna move o frágil corpo.

XXV. 27- Pois o que sempre se move171 é eterno; o que leva movimento a
algo e o que é agitado ele mesmo de outra parte, quando o movimento tem fim,
é necessário tenha fim de viver. Portanto somente o que se move por si, porque
nunca é abandonado por si, nunca então deixa de mover-se; e além disso às
outras coisas que se movem há esta fonte, este princípio de mover. Por princípio
nenhuma origem há; pois a partir de princípio surgem todas as coisas, e ele
mesmo a partir de nenhuma outra coisa pode nascer. Nem, de fato, haveria esse
princípio que se geraria de outro lugar, porque, se nunca surge, não morre
então alguma vez. Pois o princípio, extinto, nem ele mesmo renascerá de outro,
nem a partir de si criará outro, se contudo é necessário do princípio todas as
coisas nascerem. Assim acontece que o princípio do movimento seja a partir
disso: que ele mesmo se move por si; e isso nem pode nascer nem morrer, ou
então é necessário caia todo céu e toda natureza também pare nem se encontre
alguma força pela qual, de primeiro impulsionada, se mova.

XXVI. 28- Como portanto esteja patente que é eterno isso que se mova
por si mesmo, quem é que pode negar que esta natureza foi atribuída aos
ânimos? Sem ânimo é então tudo que se agita por impulso externo; e o que é
animal172, isso seja movido por moto interior e seu. Pois esta natureza e força é

171 No manuscrito medieval de Platão: ; a melhor lição é “que se move


por si”, do papiro Oxyrinco.
172 Animal: provido de ânimo.

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própria do ânimo, que, se é única de todas as coisas que se pode mover de si


mesma, certamente nem nascida é e é eterna. Esta, exerce tu nas melhores
coisas. E são os melhores cuidados acerca da salvação da pátria, pelos quais
agitado e exercitado o ânimo voará mais velozmente a esta sede e morada sua; e
fará isso mais rapidamente, se já quando esteja recluso no corpo elevar-se para
fora e contemplando aquelas coisas que estejam fora separe-se quanto possível
do corpo. Pois os ânimos daqueles que se entregaram às volúpias do corpo e
apresentaram-se como que serventes delas e, por impulsos de libidos que
obedecem às volúpias, violaram os direitos de deuses e de homens, escapados
dos corpos, revolvem-se em torno da própria terra e não voltam a este lugar,
senão inquietados por muitos séculos.
E foi-se; eu libertei-me do sono.

Referências

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