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A Escravidão Venceu No Brasil Entrevista
A Escravidão Venceu No Brasil Entrevista
FOTOGRAFIA
O que comem crianças de cinco continentes? A mesma junk food
Foto
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro é autor de uma obra influente, que
inclui "A Inconstância da Alma Selvagem" e "Araweté — O Povo do
Ipixuna" DÉBORAH DANOWSKI
É muito difícil separar o que você imagina que vai acontecer daquilo que você
deseja que vá acontecer.
O problema é que vai trazer má visibilidade. Vai ser uma péssima propaganda
para o Brasil. Primeiro, porque, se estou bem entendendo, vários
compromissos contratuais com a FIFA não estão sendo honrados, atrasos
muito grandes, etc. Segundo, porque essa ideia de que os brasileiros estão
achando uma maravilha que a Copa se realize no Brasil pode ser desmentida
de maneira escandalosa se os turistas, tão cobiçados, chegarem aqui e
baterem de frente com povo nas ruas, brigando com a polícia, uma polícia
despreparada, brutal, violenta, assassina. Tenho a impressão de que não vai
fazer muito bem à imagem do Brasil.
Outra coisa importante é que a Copa foi vendida à opinião pública como algo
que ia ser praticamente financiado pela iniciativa privada, que o dinheiro do
povo, do contribuinte, ia ser pouco gasto. O que está se vendo é o contrário, o
governo brasileiro investindo maciçamente, gastando dinheiro para essas
reformas de estádios, dinheiro dos impostos. Então, nós estamos pagando
para que a FIFA lucre. Porque quem lucra com as copas é a FIFA.
Impedir a Copa é impossível, não adianta nem desejar. Não sei também se
seria bom, poderia produzir alguma complicação diplomática, ou uma
repressão muito violenta dentro do país. Existe uma campanha: Não Vai Ter
Copa. O nome completo é: Sem Respeito aos Direitos Não Vai Ter Copa. No
sentido desiderativo: não deveria haver, desejamos que não haja.
Mas não é só isso: a insatisfação com a Copa foi catalisada por várias outras
que vieram surgindo nos últimos anos, que envolvem categorias sociais
diversas, e não estão sendo organizadas nem controladas pelos partidos.
Essas manifestações têm de tudo, uma quantidade imensa de pautas
[reivindicações]. Tem gente que quer só fazer bagunça, tem gente de direita,
infiltrados da polícia, neonazistas, anarquistas. Um conjunto complexo de
fenómenos com uma combinação de causas. Uma coisa importante é que são
transversais: tem gente pobre e de classe média misturada na rua. É a primeira
vez que isso acontece. O que talvez tenha em comum é que são todos jovens.
Da classe média alta à [favela da] Rocinha.
Mas agora não são muito expressivas em termos de números. E não são
as favelas que estão em massa na rua.
Tem gente pobre e de classe média misturada na rua. É a primeira vez que
isso acontece. O que talvez tenha em comum é que são todos jovens. Da
Mais volátil.
Quando a violência começou a atingir a classe média — ainda que uma bala de
borracha não seja uma bala de fuzil, porque o que eles usam na favela é bala
de verdade e o que eles usam na rua é bala de borracha, ainda assim você
pode matar com bala de borracha, pode cegar, etc —, à medida que a polícia
começou a atacar tanto a rua quanto o morro houve um aumento da percepção
da classe média em relação à violência da polícia nas favelas, o que é
novidade. A imprensa fez uma imensa campanha para santificar a polícia com
a coisa das UPP [Unidade de Polícia Pacificadora, programa para acabar com
o poder armado paralelo nas favelas, instalando a polícia lá dentro], mas todo o
mundo está percebendo que essas UPP são no mínimo ambíguas. Basta ver o
caso do [ajudante de pedreiro] Amarildo, que foi sequestrado, torturado e morto
pela polícia [em Junho de 2013, na Rocinha], e sumiu da imprensa.
profundo é escravocrata
Quero ver o que vai acontecer. Quem deu visibilidade à morte do Amarildo não
foi a grande imprensa. Foram as redes sociais, os movimentos sociais. Essa
morte é absolutamente banal, acontece toda a semana nas favelas, mas
calhou de acontecer na altura das manifestações, então foi capturada pelos
manifestantes, o que produziu uma solidariedade entre o morro e a rua que foi
inédita.
Num país como este, em que a desigualdade, a violência, continuam,
porque é que as massas não saem?
Quem dera que eu soubesse a resposta. Essa é a pergunta que a esquerda faz
desde que existe no Brasil. Acho que há várias razões. O Brasil é um país
muito diferente de todos os outros da América Latina, por exemplo da
Argentina. Basta comparar a história para ver a diferença em termos de
participação política, mobilização popular. Tenho impressão de que isso se
deve em larga medida à herança da escravidão no Brasil. O Brasil é um país
muito mais racista do que os Estados Unidos. Claro que é um racismo
diferente. O racismo americano é protestante. Mas no Brasil há um racismo
político muito forte, não só ideológico como o americano, interpessoal. O Brasil
é um país escravocrata, continua sendo. O imaginário profundo é escravocrata.
Você vê o caso do menino [mulato] amarrado no poste [no bairro do Flamengo,
por uma milícia de classe média que o suspeitava assaltante] e que respondeu
de uma maneira absolutamente trágica quando foi pego: mas meu senhor, eu
não estava fazendo nada. Só essa expressão, “meu senhor”... O trágico foi
essa expressão. Continuamos num mundo de senhores. Porque o outro era
branco.
Não acabou, pois é. É o mito de que no Brasil todas as coisas se resolvem sem
violência. Sem violência, entenda-se, sem revolta popular. Com muita violência
mas sem revolta. A violência é a da polícia, do estado, do exército, mas não é a
violência no sentido clássico, francês, revolucionário.
E toda a vez que acontecem coisas como essas manifestações de Junho, por
exemplo, há aquela sensação: dessa vez o morro vai descer. O morro não
desceu. Em parte porque já não é mais o morro, boa parte do morro é de
classe média. Evidentemente, houve um crescimento económico. As favelas da
minha infância, nos anos 50, eram completamente diferente, como essas vilas
da Amazônia, feitas de lona preta. Hoje são casas de alvenaria, feitas de
tijolos. Ainda assim a miséria continua. Quero dizer apenas que a distância
entre a classe média e o morro diminuiu do ponto de vista económico.
pelos militares
Em parte pode ser isso. Houve uma espécie de opção política forçada do PT,
segundo a qual a única maneira de melhorar a renda dos pobres é não mexer
na renda dos ricos. Ou seja, vamos ter que tirar o dinheiro de outro lugar. E de
onde é que eles estão tirando? Do chão, literalmente. Destruindo o meio
ambiente para poder vender soja, carne, para a China. Não está havendo
redistribuição de renda, o que está havendo é aumento da renda produzida
pela queima dos móveis da casa para aquecer a população, digamos. Está um
pouquinho mais quente, não estamos morrendo de frio, mas estamos
destruindo o Brasil central, devastando a Amazônia. Tudo foi feito para não
botar a mão no bolso dos ricos. E não provocar os militares.
O Brasil é uma democracia formal, claro, mas consentida pelo status quo. A
abertura foi permitida pelos militares. A Lei da Amnistia foi imposta tal qual pelo
governo militar. Eles não foram destronados, presos, criminalizados.
Simplesmente foram amnistiados. E boa parte do projecto de desenvolvimento
nacional gestado durante a ditadura militar está sendo aplicado com a maior
eficiência.
Pela esquerda.
Pela chamada esquerda, pela coalisão que está no poder, na qual a esquerda
é uma parte mínima, porque tem os grandes proprietários de terra, os grandes
empresários.
Ou seja, que não vai ser afectado pelo aquecimento global, etc.
É, que todas essas coisas são com os outros. Um pouco como acontece nos
Estados Unidos, em países muito grandes.
A única visão global que o Brasil tem é de se tornar uma potência geopolítica.
O Brasil, hoje, é um actor maior, de primeira linha, em Moçambique, em
Angola, nos países latino-americanos. Está disputando com a China pedaços
de Moçambique. A Odebrecht está construindo hidroeléctricas [barragens] em
Angola e assim por diante. O Brasil se imagina como potência que vai oprimir.
Agora é a vez de sermos opressores, deixarmos de ser os oprimidos. Agora os
brasileiros da vez vão ser os haitianos, os bolivianos, os paraguaios, que
trabalham nas “sweatshops” de São Paulo, nas terras em que plantamos soja e
etc. O PT nunca foi um partido de esquerda. É um partido que procurava
transformar a classe operária numa classe operária americana.
Tanto a esquerda como a direita são posições políticas que você encontra
dentro da classe média. A classe dominante é de direita de maneira genética, a
grande burguesia, o grande capital. E os pobres, a classe trabalhadora... se eu
fosse fazer um juízo de valor um pouco irresponsável diria que 60 a 70 por
cento do Brasil estaria muito feliz com um governo autoritário, que desse
dinheiro para comprar geladeira, televisão, carro, etc. Uma população que tem
uma profunda desconfiança em relação a esses jovens quebradores de coisas
na rua, que seria a favor da pena de morte, que é violentamente homofóbica.
Foto
Iapii-hi, índia Araweté, prepara doce de milho (fotografia de 1982) EDUARDO
VIVEIROS DE CASTRO
Depois do garoto do Flamengo ter sido amarrado por aquela milícia, ouvi
trabalhadores negros pobres dizerem: tem mais é que botar bandido na
cadeia, fizeram foi pouco com ele.
É uma ideia antiga, que já vem dos cristãos-novos que vieram de Portugal, que
tinham de limpar o sangue. A gente sabe que quase toda a população
portuguesa que se instalou no Brasil é de cristãos-novos, Diria que 70 por
cento desses brancos orgulhosos de serem brasileiros são judeus, marranos,
convertidos a ferro e fogo pela Inquisição. Então, havia essa ideia de que o
Brasil era um país racialmente inferior porque era composto de negros, índios,
portugueses com essa origem um pouco duvidosa. E já Portugal em si não é...
A Holanda.
de civilização propriamente tropical, com uma nova relação entre as raças, que
Hoje o Brasil foi branqueado. Essa cultura country aí é uma mistura de cultura
europeia com cultura americana, de grande carrão, 4x4, pick ups, rodeos,
chapéus americanos, botas. Existe um projecto de transformar o Brasil num
país culturalmente do hemisfério norte, seja Estados Unidos, seja essa Europa
mais reaccionária. Porque estamos falando de colonos alemães que vieram do
campesinato reaccionário, bávaro, pomerano, e dos camponeses italianos, que
eram entusiastas do nazismo e do fascismo na II Guerra. Continuam sendo. O
que tem de grupo de extrema-direita no sul do Brasil é muito. O foco da direita
fascista, nazista é o Paraná e o Rio Grande do Sul. Então o Brasil é um país
dividido entre um sul branco e o resto não branco, português, negro no litoral,
índio no interior.
E o matadouro.
O mundo está entrando, num sentido físico, termodinâmico, num outro regime
É, acho que sim. Bom, nenhuma derrota é definitiva. O meu pessimismo nem
passa tanto pelo facto de que o Brasil não tem jeito, porque acho que ainda
poderia haver uma revolução antropofágica no Brasil. Mas hoje isso é uma
questão que já não teria mais sentido colocar pelo simples facto de que
estamos numa situação planetária em que a catástrofe já se iniciou. O mundo
está entrando, num sentido físico, termodinâmico, num outro regime ambiental
que vai produzir catástrofes humanas jamais vistas, no meu entender: fome,
epidemias, secas, mudança de regime hidrológico, tudo. Nessas
circunstâncias, é possível que cheguemos a um momento em que noções
como Brasil, Estados Unidos, países, comecem a perder a sua nitidez. Pode
ser que daqui a 50 anos a palavra Brasil não tenha mais nenhum sentido. Que
tenhamos que falar em Terra.
É um pré-apocalipse?
Dira que sim. Isabelle Stengers, filósofa belga, diz que a palavra crise não é
adequada porque supõe que você pode superá-la, quando o que estamos
vivendo é uma situação que não tem um voltar atrás. Vamos ter que conviver
com ela para sempre. Um novo regime do mundo, de climas, de águas, não
haverá mais peixes, os estoques estão acabando no mundo, a quantidade de
refugiados que vão invadir a Europa vai ser brutal nas próximas décadas. Se a
temperatura subir quatro graus, que é o que todos os climatologistas estão
imaginando, isso vai produzir uma mudança total no que é viver na Terra. E a
quantidade de africanos que vai invadir a Europa vai ser um pouco maior do
que aqueles pobres que morrem afogados ali em Lampedusa. E como os
países ricos vão reagir? É uma questão interessante. Vai ser com armas
atómicas? Vão bombardear quem? O meu pessimismo passa mais por aí.
No Brasil as crises são estritamente políticas. Faz reforma política? Vai ter
revolta da população? Será que há Copa? Tudo isso é verdade, fundamental,
mas a gente não pode perder de vista o cenário mais amplo.
Votei na Marina em 2010, com certeza. Não tenho certeza nenhuma de que
votaria nela em 2014, talvez não.
De forma nenhuma. A Dilma, nem sob pelotão de fuzilamento voto nela. Esses
idiotas do PSDB nem pensar. Então talvez eu não vote. Talvez vote nulo.
Talvez os muitos povos brasileiros que compõem esse país só tenham chance
Talvez os muitos povos brasileiros que compõem esse país só tenham chance
de ganhar uma certa emancipação cultural, política, metafísica, no contexto do
declínio geral do planeta. Nessas condições é possível que haja esperança
para os negros, os índios, os quilombolas [descendentes de escravos], os
gays, os pobres desse planeta favela. Não esqueçamos que o mundo tem três
bilhões e meio de habitantes vivendo em cidade, metade da população
mundial. Desses, no mínimo um bilhão vive em favelas. Ou seja, um sétimo da
população mundial vive em favelas. O Brasil deve ter uma proporção maior que
a Alemanha, Estados Unidos. Diria que deve andar na casa dos 30 milhões. [A
população de] um bom país europeu.
Seria uma guerrilha nas redes sociais? Admite o uso de violência ou uma
guerrilha virtual apenas?
Vejo mais uma guerrilha do que uma guerra, com a vantagem de que as
novo terror
Não há desfecho.
Sou um activista das redes, de facto. Mas não convoco para manifestações,
não pertenço a nenhuma organização, estou um pouco velho para sair na rua.
É, mas para sair na rua como black bloc [sorriso]... Posso ir atrás do black bloc,
na frente não dá.
Talvez...
Fora do estado.
Digamos que sim. Mas não sou um anarquista daqueles que acham que a
sociedade actual pode prescindir do estado. Acho isso um sonho um pouco
infantil.
Acha que não pode prescindir do estado mas que é importante cultivar...
Defende que toda a lógica do que o Brasil poderia ser, oferecer, passaria
por se tornar mais índio. Não os índios tornarem-se brasileiros mas o
Brasil tornar-se índio, o que significaria uma outra forma de vida, não
para produzir, não para consumir. Que significa isso na guerrilha das
cidades e das redes? Como os índios podem estar presentes aí? O que
podem dar à tal insurreição contínua?
Vou juntar isso com o final da pergunta anterior. Fui-me tornando mais activo
nas redes porque apareceram, antes não existiam, e em função da minha
enorme decepção com o final da ditadura, o facto de que continuamos reféns
do grande capital, dos grandes clãs, dos capitães hereditários que continuam
mandando no Brasil, José Sarney, Fernando Collor, Renan Calheiros. Essa
aliança entre o mais arcaico, que é Sarney, e o mais moderno do capitalismo,
que são esses agronegociantes de alta tecnologia do Mato Grosso do Sul,
todos eles combinados para manter a tranquilidade política: não deixemos as
massas virem atrapalhar.
Todo o mundo tem uma imagem do Brasil como país preguiçoso, relaxado, laid
back, onde tudo é mais devagar. E existe uma grande ambiguidade nossa em
relação a essa imagem. Por um lado achamos interessante a imagem de um
país easy going, por outro lado temos uma grande vergonha disso, nos
queremos transformar num país performante, que vai para a frente, produtivo.
A gente quer ao mesmo tempo ser sambista e grande potência mundial. Eu
acho que devia continuar sendo sambista. Que a gente devia saber explorar as
virtudes do não-produtivismo. A ética protestante, que nos deu o espírito do
capitalismo, para falar como Weber, nunca esteve inscrita no DNA do Brasil,
graças a vocês portugueses, que também não a tinham [risos]. Tiveram
durante século e meio, mas depois... Então, por um milagre histórico fomos
preservados dessa maldição que é a ética produtivista do capitalismo. Fomos
capturados pelo capitalismo porque nos invadiu, domou. O capitalismo foi
possível porque a Europa invadiu a América. Se não fosse a America, a Europa
não teria deixado de ser o que era na Idade Média, um fundo de quintal. Na
Idade Média, as sociedades desenvolvidas eram o Islã, a India e a China. Os
europeus eram um bando de bárbaros, sujos, mal vestidos, católicos. Mas por
acaso os portugueses e os espanhóis deram de cara com o novo mundo e o
capitalismo tornou-se possível. Porque foi o ouro do Novo Mundo, milhares de
toneladas, e tudo o que saiu da América, novas plantas, novos recursos
alimentares, que permitiu a expansão do capitalismo e depois a revolução
industrial. Se não tivesse havido invasão da América, destruição da América
não teria havido Europa moderna. Hoje, no mundo, as principais plantas que
servem de alimentação mundial são de origem ameríndia: o milho, que se
planta em toda a parte, a batata, que permitu a revolução industrial inglesa, a
mandioca, da qual toda a África do Oeste hoje vive. Só que a América já era,
não tem mais Novo Mundo para descobrir, a terra fechou, arredondou, além de
que o pólo dinâmico do capitalismo foi para a China.
O Brasil tem muito poucos índios comparado com os países andinos ou mezo-
americanos. Estão na casa de um milhão, num país de 200 milhões. Mas têm
um poder simbólico muito grande, até porque têm uma base muito grande, 12
por cento do território brasileiro. Está tudo invadido [por obras ou fazendeiros]
mas oficialmente é terra indígena. Além de que têm um poder de sedução no
imaginário ocidental. A Amazônia tem um poder simbólico imenso. Embora, ao
contrário do que os brasileiros pensam, não seja só brasileira, a maior parte da
Amazônia está no Brasil. E é um objecto transcendente, uma espécie de última
chance, último lugar da terra. O que dá ao Brasil um poder simbólico que ele
não sabe usar, ao contrário, a Amazônia tem servido para atacar o Brasil por
não saber cuidar da Amazônia. E sabe uma coisa? Não sabe mesmo. E não
está sabendo se valer da Amazônia como um trunfo mundial. Nem como um
lugar onde poderia se desenvolver uma civilização menos estúpida, do ponto
de vista tecnológico e social. Os índios aí servem como exemplo. Estão na
Amazônia há pelo menos 15 mil anos. Boa parte da floresta amazónica foi
criada pela actividade indígena. Boa parte do solo foi criado com cinza de
fogueira, detritos humanos. A Amazônia é essa floresta luxuriante em parte por
causa da acção humana, dos índios.
A Amazônia tem servido para atacar o Brasil por não saber cuidar da
Foto
Meninos a pescar no rio Xingu (1982) EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
Isso também afectou os índios, não? Em São Gabriel da Cachoeira, o
município mais indígena do Brasil [estado do Amazonas], um dos
grandes problemas é o alcoolismo. Impressionante ver o estado em que
muitos índios vivem em São Gabriel. É um resultado desse erro de tentar
converter o índio em brasileiro nesse modelo que está a descrever?
O alcoolismo é uma praga da população indígena das três Américas. Tem a ver
com várias coisas. Uma delas é genética, mesmo. Os índios têm, por razões de
evolução, muito menos resistência ao metabolismo do açúcar no organismo.
Por isso que eles têm essa tendência à obesidade e à diabetes. Segundo, os
índios sempre tiveram álcool, na América do Norte menos, mas todos os índios
da Amazônia preparavam bebidas fermentadas, etc. É a mesma coisa com o
tabaco, só que ao contrário. O tabaco é indígena. Os índios fumavam, mas não
tinham câncer, ou a taxa devia ser muito pequena, assim como o alcoolismo
existe entre nós mas é muito menos violento. Porquê? Os índios, para fazerem
o tabaco deles e a bebida deles, tinham que produzir à mão. Tabaco tinham de
plantar, de enrolar, de fazer um charuto, levava cinco dias para fumar, eram
objectos custosos. A cerveja que faziam levava semanas. Aí, chega de repente
a cachaça, seis meses de trabalho indígena concentrado numa garrafa que
custa dois reais. A mesma coisa com a gente: quando você pega num maço de
cigarro que tem concentrado seis meses de trabalho indígena, você fuma um
atrás do outro. Você morre de câncer aqui e os índios morrem de cirrose lá.
O capitalismo apresenta aos índios uma coisa que eles nunca tiveram: o
O capitalismo apresenta aos índios uma coisa que eles nunca tiveram: o infinito
mercantil. Os objectos não acabam nunca. Você tem uma quantidade infinita
de cachaça. É como se chegassem aqui marcianos que nos dessem soro da
vida eterna. Os índios não entendem e consomem, consomem, consomem.
Eles produziam pouco para ter tempo livre. O que acontece agora é que
continuam produzindo pouco mas os produtos chegam em quantidade infinita.
E eles não têm estrutura social, política, institucional. Vai levar séculos para
que desenvolvam resistências. Todo o ser humano gosta de se drogar, alterar
a consciência, desde o café até ao LSD, então nos índios o álcool entrou
destruindo tudo. É certamente a coisa mais destrutiva em todos os índios das
Américas.