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A escravidão venceu no Brasil.

Nunca foi abolida.


Eduardo Viveiros de Castro, um dos maiores pensadores do
Brasil, acredita que "a ditadura brasileira não acabou". Não
quer uma revolução, quer uma guerrilha.

Alexandra Lucas Coelho no Rio de Janeiro


 16 de Março de 2014, 0:00

Fome, secas, epidemias, matanças: a Terra aproxima-se do apocalipse. Talvez


daqui a 50 anos nem faça sentido falar em Brasil, como Estado-nação.
Entretanto, há que resistir ao avanço do capitalismo. As redes sociais são uma
nova hipótese de insurreição. Presente, passado e futuro, segundo um dos
maiores pensadores brasileiros

Eduardo Viveiros de Castro, 62 anos, é o mais reconhecido e discutido


antropólogo do Brasil. Acha que “a ditadura brasileira não acabou”, evoluiu
para uma “democracia consentida”. Vê nas redes sociais, onde tem milhares de
seguidores, a hipótese de uma nova espécie de guerrilha, ou resistência. Não
perdoa a Lula da Silva ter optado pela via capitalista e acha que Dilma
Rousseff tem uma relação “quase patológica” com a Amazônia e os índios. Não
votará nela “nem sob pelotão de fuzilamento”.

FOTOGRAFIA
O que comem crianças de cinco continentes? A mesma junk food

Professor do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, autor de uma obra influente


(destaque para A Inconstância da Alma Selvagem ou Araweté — O Povo do
Ipixuna, este último editado em Portugal pela Assírio & Alvim), Viveiros de
Castro é o criador do perspectivismo ameríndio, segundo a qual a humanidade
é um ponto de vista: a onça vê-se como humana e vê o homem como animal; o
porco vê-se como humano e vê a onça como animal. Humano é sempre quem
olha.

Nesta longa entrevista, feita há um mês no seu apartamento da Baía de


Botafogo — antes ainda da greve dos garis (homens e mulheres do lixo), um
exemplo de revolta bem sucedida — Viveiros foi da Copa do Mundo ao fim do
mundo. Acredita que estamos à beira do apocalipse.

Vê sinais de uma revolta nas ruas brasileiras? Aquilo que aconteceu em


2013 foi um levantamento mas não uma revolta generalizada. Acha que
isso pode acontecer antes da Copa, ou durante?

Foto
O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro é autor de uma obra influente, que
inclui "A Inconstância da Alma Selvagem" e "Araweté — O Povo do
Ipixuna" DÉBORAH DANOWSKI

É muito difícil separar o que você imagina que vai acontecer daquilo que você
deseja que vá acontecer.

Vamos separar. O que desejaria que acontecesse?

Revolta popular durante a Copa.


E isso significa o quê, exactamente?

Manifestação. Não estou imaginando a queda da Bastilha nem a explosão de


nada, mas gostaria que a população carioca o deixasse muito claro. Embora a
Copa vá acontecer em várias cidades, creio que o Rio se tornou o epicentro do
problema da Copa, em parte porque o jogo final será no Maracanã.

Mesmo nas manifestações, o Rio foi a cidade mais forte.

São Paulo também teve manifestações muito importantes, mais conectadas


com o Movimento Passe Livre [MPL, estudantes que em Junho de 2013
iniciaram os protestos contra o aumento dos transportes]. Voltando ao que eu
desejaria: que a população carioca manifestasse a sua insatisfação em relação
à forma como a cidade está sendo transformada numa espécie de empresa,
numa vitrine turística, colonizada pelo grande capital, com a construção de
grandes hotéis, oferecendo oportunidades às grandes empreiteiras, um balcão
de negócios, sob a desculpa de que a Copa iria trazer dinheiro, visibilidade,
para o Brasil.

Eu desejaria que a população carioca manifestasse a sua insatisfação em

relação à forma como a cidade está sendo transformada numa espécie de

empresa, numa vitrine turística, colonizada pelo grande capital

O problema é que vai trazer má visibilidade. Vai ser uma péssima propaganda
para o Brasil. Primeiro, porque, se estou bem entendendo, vários
compromissos contratuais com a FIFA não estão sendo honrados, atrasos
muito grandes, etc. Segundo, porque essa ideia de que os brasileiros estão
achando uma maravilha que a Copa se realize no Brasil pode ser desmentida
de maneira escandalosa se os turistas, tão cobiçados, chegarem aqui e
baterem de frente com povo nas ruas, brigando com a polícia, uma polícia
despreparada, brutal, violenta, assassina. Tenho a impressão de que não vai
fazer muito bem à imagem do Brasil.
Outra coisa importante é que a Copa foi vendida à opinião pública como algo
que ia ser praticamente financiado pela iniciativa privada, que o dinheiro do
povo, do contribuinte, ia ser pouco gasto. O que está se vendo é o contrário, o
governo brasileiro investindo maciçamente, gastando dinheiro para essas
reformas de estádios, dinheiro dos impostos. Então, nós estamos pagando
para que a FIFA lucre. Porque quem lucra com as copas é a FIFA.

Desejaria que essa revolta impedisse mesmo a Copa?

Impedir a Copa é impossível, não adianta nem desejar. Não sei também se
seria bom, poderia produzir alguma complicação diplomática, ou uma
repressão muito violenta dentro do país. Existe uma campanha: Não Vai Ter
Copa. O nome completo é: Sem Respeito aos Direitos Não Vai Ter Copa. No
sentido desiderativo: não deveria haver, desejamos que não haja.

O que se está dizendo é que os direitos de várias camadas da população estão


sendo brutalmente desrespeitados, com remoções forçadas de comunidades,
desapropriando sem indemnização, modificando aspectos fundamentais da
paisagem carioca sem nenhuma consulta. Isso tudo está irritando a população.

Mas não é só isso: a insatisfação com a Copa foi catalisada por várias outras
que vieram surgindo nos últimos anos, que envolvem categorias sociais
diversas, e não estão sendo organizadas nem controladas pelos partidos.
Essas manifestações têm de tudo, uma quantidade imensa de pautas
[reivindicações]. Tem gente que quer só fazer bagunça, tem gente de direita,
infiltrados da polícia, neonazistas, anarquistas. Um conjunto complexo de
fenómenos com uma combinação de causas. Uma coisa importante é que são
transversais: tem gente pobre e de classe média misturada na rua. É a primeira
vez que isso acontece. O que talvez tenha em comum é que são todos jovens.
Da classe média alta à [favela da] Rocinha.

Mas agora não são muito expressivas em termos de números. E não são
as favelas que estão em massa na rua.
Tem gente pobre e de classe média misturada na rua. É a primeira vez que

isso acontece. O que talvez tenha em comum é que são todos jovens. Da

classe média-alta à [favela da] Rocinha

As famosas massas ainda não desceram, e provavelmente não vão descer


durante a Copa. Nem sei se vão descer em alguma momento, se existe isso no
Brasil. Mas acho que vai haver uma quantidade de pequenas manifestações.
Por exemplo, a Aldeia Maracanã [pequena comunidade de índios pressionada
a sair, por causa das obras do estádio] produziu uma confusão muito grande,
se você pensar no tamanho da população envolvida. Os moradores daquela
casa eram 14 pessoas e não obstante mobilizaram destacamentos do Bope
[tropa de elite], bombas, etc. Quem está, em grande parte, criando a
movimentação popular é o estado, com a sua reacção desproporcional. O
Movimento Passe Livre ganhou aquela explosão em São Paulo por causa da
brutalidade da reacção policial. O Brasil nunca teve esse tipo de confronto
entre a polícia e jovens manifestantes. A polícia não sabe como reagir, não tem
um método, então reage de maneira brutal. Os próprios manifestantes não têm
experiência de organização. O que estão chamando de black bloc não é a
mesma coisa que black bloc na Dinamarca, na Alemanha ou nos Estados
Unidos.

Mais volátil.

Ideologicamente pouco consistente. Sabemos que o black bloc europeu é


essencialmente uma táctica de protecção contra a polícia. Noutros países,
como os Estados Unidos, tem uma certa táctica de agressão a símbolos do
capitalismo. Aqui no Rio está uma coisa meio misturada, ainda não se
consolidou uma identidade, um perfil táctico claro para o que se chama de
black bloc. E eles estão sendo demonizados. Acho até que, no caso do Brasil,
o facto de que sejam black coloca uma pequena ponta de racismo nessa
indignação. Não duvido de que no imaginário da classe média por trás da
máscara negra esteja também um rosto negro. Pobres, bandidos, etc.
Mas isso está acontecendo ao mesmo tempo que a polícia continua invadindo
as favelas, matando 10, 12, 15 jovens por semana. Até recentemente esse
comportamento clássico do estado diante da população muito pobre, isto é,
mandar a polícia entrar e arrebentar, era algo que a classe média tomava
como... [sinal de longínquo].

Porque se passava lá nos morros.

Quando a violência começou a atingir a classe média — ainda que uma bala de
borracha não seja uma bala de fuzil, porque o que eles usam na favela é bala
de verdade e o que eles usam na rua é bala de borracha, ainda assim você
pode matar com bala de borracha, pode cegar, etc —, à medida que a polícia
começou a atacar tanto a rua quanto o morro houve um aumento da percepção
da classe média em relação à violência da polícia nas favelas, o que é
novidade. A imprensa fez uma imensa campanha para santificar a polícia com
a coisa das UPP [Unidade de Polícia Pacificadora, programa para acabar com
o poder armado paralelo nas favelas, instalando a polícia lá dentro], mas todo o
mundo está percebendo que essas UPP são no mínimo ambíguas. Basta ver o
caso do [ajudante de pedreiro] Amarildo, que foi sequestrado, torturado e morto
pela polícia [em Junho de 2013, na Rocinha], e sumiu da imprensa.

Vinte e cinco policiais foram indiciados.

No Brasil, há um racismo político muito forte, não só ideológico como o

americano. O Brasil é um país escravocrata, continua sendo. O imaginário

profundo é escravocrata

Quero ver o que vai acontecer. Quem deu visibilidade à morte do Amarildo não
foi a grande imprensa. Foram as redes sociais, os movimentos sociais. Essa
morte é absolutamente banal, acontece toda a semana nas favelas, mas
calhou de acontecer na altura das manifestações, então foi capturada pelos
manifestantes, o que produziu uma solidariedade entre o morro e a rua que foi
inédita.
Num país como este, em que a desigualdade, a violência, continuam,
porque é que as massas não saem?

Quem dera que eu soubesse a resposta. Essa é a pergunta que a esquerda faz
desde que existe no Brasil. Acho que há várias razões. O Brasil é um país
muito diferente de todos os outros da América Latina, por exemplo da
Argentina. Basta comparar a história para ver a diferença em termos de
participação política, mobilização popular. Tenho impressão de que isso se
deve em larga medida à herança da escravidão no Brasil. O Brasil é um país
muito mais racista do que os Estados Unidos. Claro que é um racismo
diferente. O racismo americano é protestante. Mas no Brasil há um racismo
político muito forte, não só ideológico como o americano, interpessoal. O Brasil
é um país escravocrata, continua sendo. O imaginário profundo é escravocrata.
Você vê o caso do menino [mulato] amarrado no poste [no bairro do Flamengo,
por uma milícia de classe média que o suspeitava assaltante] e que respondeu
de uma maneira absolutamente trágica quando foi pego: mas meu senhor, eu
não estava fazendo nada. Só essa expressão, “meu senhor”... O trágico foi
essa expressão. Continuamos num mundo de senhores. Porque o outro era
branco.

Como um DNA, algo que não acabou.

Não acabou, pois é. É o mito de que no Brasil todas as coisas se resolvem sem
violência. Sem violência, entenda-se, sem revolta popular. Com muita violência
mas sem revolta. A violência é a da polícia, do estado, do exército, mas não é a
violência no sentido clássico, francês, revolucionário.

E toda a vez que acontecem coisas como essas manifestações de Junho, por
exemplo, há aquela sensação: dessa vez o morro vai descer. O morro não
desceu. Em parte porque já não é mais o morro, boa parte do morro é de
classe média. Evidentemente, houve um crescimento económico. As favelas da
minha infância, nos anos 50, eram completamente diferente, como essas vilas
da Amazônia, feitas de lona preta. Hoje são casas de alvenaria, feitas de
tijolos. Ainda assim a miséria continua. Quero dizer apenas que a distância
entre a classe média e o morro diminuiu do ponto de vista económico.

Ao fazer ascender esses milhões da miséria, o PT neutralizou a


revolução?

A ditadura brasileira não acabou. Nós vivemos numa democracia consentida

pelos militares

Em parte pode ser isso. Houve uma espécie de opção política forçada do PT,
segundo a qual a única maneira de melhorar a renda dos pobres é não mexer
na renda dos ricos. Ou seja, vamos ter que tirar o dinheiro de outro lugar. E de
onde é que eles estão tirando? Do chão, literalmente. Destruindo o meio
ambiente para poder vender soja, carne, para a China. Não está havendo
redistribuição de renda, o que está havendo é aumento da renda produzida
pela queima dos móveis da casa para aquecer a população, digamos. Está um
pouquinho mais quente, não estamos morrendo de frio, mas estamos
destruindo o Brasil central, devastando a Amazônia. Tudo foi feito para não
botar a mão no bolso dos ricos. E não provocar os militares.

A ditadura brasileira não acabou. Nós vivemos numa democracia consentida


pelos militares. Compare com a Argentina: porque é que no Brasil não houve
julgamento dos militares envolvidos na tortura?  Porque os militares não
deixam. Vamos ver o que vai acontecer agora, no dia 1 de Abril.

Com o aniversário do golpe militar.

Já existe uma campanha aí, subterrânea, para que no dia 31 de Março


apaguem-se as luzes, toquem-se buzinas, para comemorar o 50º aniversário
do golpe. Ou seja, existe uma campanha da direita para mostrar que a
população ainda apoia a direita. Não sei que sucesso vai ter, mas não duvido
que haja uma manifestação, oculta, pessoas que vão apagar as luzes das suas
casas ou piscar as luzes à meia-noite, alguma coisa assim.

Mas nenhuma possibilidade de viragem à direita.


Não creio.

O actual regime não é uma democracia?

O Brasil é uma democracia formal, claro, mas consentida pelo status quo. A
abertura foi permitida pelos militares. A Lei da Amnistia foi imposta tal qual pelo
governo militar. Eles não foram destronados, presos, criminalizados.
Simplesmente foram amnistiados. E boa parte do projecto de desenvolvimento
nacional gestado durante a ditadura militar está sendo aplicado com a maior
eficiência.

Pela esquerda.

Pela chamada esquerda, pela coalisão que está no poder, na qual a esquerda
é uma parte mínima, porque tem os grandes proprietários de terra, os grandes
empresários.

Está cumprindo um ideário que vem da ditadura?

O Brasil se imagina como potência geopolítica que necessariamente vai

oprimir. Agora, é a vez de sermos opressores, deixarmos de ser os oprimidos

O PT é um partido operário do século XIX. Eles têm um modelo que é indústria,


crescimento, como se o Brasil fosse os Estados Unidos do século XXI. Com
grande consumo de energia. Uma concepção antiga, fora de sintonia com o
mundo actual. Agora está começando a mudar um pouco, mas a falta de
sensibilidade do governo para o facto de que o Brasil é um país que está
localizado no planeta Terra, e não no céu, é muito grande. Eles não percebem.
Acham que o Brasil é um mundo em si mesmo.

Ou seja, que não vai ser afectado pelo aquecimento global, etc.

É, que todas essas coisas são com os outros. Um pouco como acontece nos
Estados Unidos, em países muito grandes.
A única visão global que o Brasil tem é de se tornar uma potência geopolítica.
O Brasil, hoje, é um actor maior, de primeira linha, em Moçambique, em
Angola, nos países latino-americanos. Está disputando com a China pedaços
de Moçambique. A Odebrecht está construindo hidroeléctricas [barragens] em
Angola e assim por diante. O Brasil se imagina como potência que vai oprimir.
Agora é a vez de sermos opressores, deixarmos de ser os oprimidos. Agora os
brasileiros da vez vão ser os haitianos, os bolivianos, os paraguaios, que
trabalham nas “sweatshops” de São Paulo, nas terras em que plantamos soja e
etc. O PT nunca foi um partido de esquerda. É um partido que procurava
transformar a classe operária numa classe operária americana.

E nunca o Brasil foi um país tão capitalista.

Minha mulher me contou que, conversando com um desconhecido, operador


da bolsa de valores, isto em 2007, 2008, ele dizia: se eu soubesse que ia ser
tão bom para nós jamais teria votado contra o Lula.

Onde está a esquerda? Qual é a sua opção de voto? Ou a opção deixou


de ser votar?

Tanto a esquerda como a direita são posições políticas que você encontra
dentro da classe média. A classe dominante é de direita de maneira genética, a
grande burguesia, o grande capital. E os pobres, a classe trabalhadora... se eu
fosse fazer um juízo de valor um pouco irresponsável diria que 60 a 70 por
cento do Brasil estaria muito feliz com um governo autoritário, que desse
dinheiro para comprar geladeira, televisão, carro, etc. Uma população que tem
uma profunda desconfiança em relação a esses jovens quebradores de coisas
na rua, que seria a favor da pena de morte, que é violentamente homofóbica.
Foto
Iapii-hi, índia Araweté, prepara doce de milho (fotografia de 1982) EDUARDO
VIVEIROS DE CASTRO

Depois do garoto do Flamengo ter sido amarrado por aquela milícia, ouvi
trabalhadores negros pobres dizerem: tem mais é que botar bandido na
cadeia, fizeram foi pouco com ele.

Ou seja, é um país conservador, reaccionário, em que os pobres colaboram


com a sua opressão. Não todos, mas existe isso. A escravidão venceu no
Brasil, ela nunca foi abolida. Sou muito pessimista em relação ao Brasil, digo
francamente. Em relação ao passado e ao futuro. Em relação ao passado no
sentido de que é um país que jamais se libertou do ethos, do imaginário
profundo da escravidão, em que o sonho de todo o escravo é ser senhor de
escravos, o sonho de todo o oprimido é ser o opressor. Daí essa reacção: tem
mais é que botar esses caras na cadeia. Em vez de se solidarizar. E podia ser
o filho dele facilmente. E às vezes é o filho dele.

Oswald de Andrade, o poeta, dizia: “O Brasil nunca declarou a sua


independência.” Em certo sentido é verdade, porque quem declarou a
independência do Brasil foi Portugal, um rei português. Eu diria: e tão pouco
aboliu a escravidão. Porque quem aboliu a escravidão foi a própria classe
escravocrata. Não foi nenhuma revolta popular, nenhuma guerra civil.

E em relação ao futuro sou pessimista porque... talvez ainda tenha um pouco


de esperança, mas acho que o Brasil já perdeu a oportunidade de inventar uma
nova forma de civilização. Um país que teria todas as condições para isso:
ecológicas, geográficas.

Uma espécie de terceira via do mundo?

É, outra civilização. Porque civilização não é necessariamente transformar um


país tropical numa cópia de segunda classe dos Estados Unidos ou da Europa,
ou seja, de um país do hemisfério norte que tem características geográficas e
culturais completamente diferentes.
Lembremos que houve um projecto explícito no Brasil, e que deu certo, que
está dando certo, por isso é que sou pessimista, que é o projecto iniciado com
Pedro II, em parte inspirado pelo célebre teórico racista Gobineau, que era uma
grande admiração de D. Pedro: o Brasil só teria saída mediante o
braqueamento da população, porque a escravidão tinha trazido uma tara, uma
raça inferior.

Havia que lavar o sangue.

É uma ideia antiga, que já vem dos cristãos-novos que vieram de Portugal, que
tinham de limpar o sangue. A gente sabe que quase toda a população
portuguesa que se instalou no Brasil é de cristãos-novos, Diria que 70 por
cento desses brancos orgulhosos de serem brasileiros são judeus, marranos,
convertidos a ferro e fogo pela Inquisição. Então, havia essa ideia de que o
Brasil era um país racialmente inferior porque era composto de negros, índios,
portugueses com essa origem um pouco duvidosa. E já Portugal em si não é...

A Holanda.

Exacto. Não é a coisa mais branca que podemos encontrar na Europa. A


Península Ibérica é um pouco africana, foi dominada 800 anos pelos árabes.
Então o Brasil só ia melhorar com branqueamento. Isso foi uma política de
estado que durou décadas e trouxe para o Brasil milhões de imigrantes
alemães, italianos, mais tarde japoneses. Com o propósito explícito de
branquear, não só geneticamente, mas culturalmente e economicamente. E
eles foram para o Sul, de São Paulo até ao Rio Grande. Mas, esse que é o
ponto curioso, a partir do governo militar para cá essa população branca
invadiu o Brasil, a Amazônia. A colonização da Amazônia a partir da década de
70 foi feita pelos gaúchos, muitos deles pobres, que foram expulsos, alemães
pobres, italianos pobres, cujas pequenas propriedades fundiárias foram
absorvidas pelos grandes proprietários, também gaúchos, também brancos, e
que foram estimulados pelo governo, com subsídios, promessas mirabolantes,
a irem para a Amazônia. Hoje, tem um cinturão de cidades no sul da Amazônia
com nomes como Porto dos Gaúchos, Querência, que é um lugar onde se
guarda o gado, típico do Rio Grande do Sul. Os gaúchos [de origem
europeia] chegaram numa região temperada, subtropical [sul do Brasil] em que
você podia mais ou menos copiar um tipo de estrutura agrícola, de produção
alimentar do país de origem. Só que na Amazônia isso é uma abominação. É
um preconceito muito difundido essa ideia de que pessoal do Norte não sabe
trabalhar, é preguiçoso. Você ouve muito isto no Paraná, no Rio Grande do Sul.
Quem sabe trabalhar é o colono alemão, italiano.

O Brasil está perdendo a oportunidade de se constituir como um novo modelo

de civilização propriamente tropical, com uma nova relação entre as raças, que

fosse efectivamente multinacional

Hoje o Brasil foi branqueado. Essa cultura country aí é uma mistura de cultura
europeia com cultura americana, de grande carrão, 4x4, pick ups, rodeos,
chapéus americanos, botas. Existe um projecto de transformar o Brasil num
país culturalmente do hemisfério norte, seja Estados Unidos, seja essa Europa
mais reaccionária. Porque estamos falando de colonos alemães que vieram do
campesinato reaccionário, bávaro, pomerano, e dos camponeses italianos, que
eram entusiastas do nazismo e do fascismo na II Guerra. Continuam sendo. O
que tem de grupo de extrema-direita no sul do Brasil é muito. O foco da direita
fascista, nazista é o Paraná e o Rio Grande do Sul. Então o Brasil é um país
dividido entre um sul branco e o resto não branco, português, negro no litoral,
índio no interior.

O censo da população dá por uma unha uma maioria não-branca.

O agronegócio é na verdade o modelo gaúcho, desenvolvido no pampa, nos


campos do Rio Grande. Plantação extensa de monocultura, de soja, de arroz,
de cana. Então o Brasil está perdendo a oportunidade de se constituir como um
novo modelo de civilização propriamente tropical, com uma nova relação entre
as raças, que fosse efectivamente multinacional. Um país que se constituiu em
cima do genocídio indígena, da escravidão, da monocultura. Que continua
fazendo o que fez desde que foi criado, exportando produtos agrícolas. Que
continua a alimentar os países industrializados. Primeiro a Europa, depois os
Estados Unidos, agora a China. Continua sendo o celeiro do capitalismo.

E o matadouro.

O segundo maior rebanho bovino do mundo, depois da Austrália. Um país que


se está destruindo a si mesmo para se transformar numa caricatura dos países
que lhe servem de modelo cultural. Em vez de, ao contrário, saber utilizar a sua
situação geográfica altamente privilegiada, a sua situação demográfica, uma
população imensa, para construir um novo estilo de civilização.

O senhor está descrevendo a derrota do “Manifesto Antropófago” de


Oswald de Andrade [visão de um Brasil que se torna forte por comer,
absorver o outro]

O mundo está entrando, num sentido físico, termodinâmico, num outro regime

ambiental que vai produzir catástrofes humanas jamais vistas, no meu

entender: fome, epidemias, secas, mudança de regime hidrológico, tudo

É, acho que sim. Bom, nenhuma derrota é definitiva. O meu pessimismo nem
passa tanto pelo facto de que o Brasil não tem jeito, porque acho que ainda
poderia haver uma revolução antropofágica no Brasil. Mas hoje isso é uma
questão que já não teria mais sentido colocar pelo simples facto de que
estamos numa situação planetária em que a catástrofe já se iniciou. O mundo
está entrando, num sentido físico, termodinâmico, num outro regime ambiental
que vai produzir catástrofes humanas jamais vistas, no meu entender: fome,
epidemias, secas, mudança de regime hidrológico, tudo. Nessas
circunstâncias, é possível que cheguemos a um momento em que noções
como Brasil, Estados Unidos, países, comecem a perder a sua nitidez. Pode
ser que daqui a 50 anos a palavra Brasil não tenha mais nenhum sentido. Que
tenhamos que falar em Terra.

É um pré-apocalipse?
Dira que sim. Isabelle Stengers, filósofa belga, diz que a palavra crise não é
adequada porque supõe que você pode superá-la, quando o que estamos
vivendo é uma situação que não tem um voltar atrás. Vamos ter que conviver
com ela para sempre. Um novo regime do mundo, de climas, de águas, não
haverá mais peixes, os estoques estão acabando no mundo, a quantidade de
refugiados que vão invadir a Europa vai ser brutal nas próximas décadas. Se a
temperatura subir quatro graus, que é o que todos os climatologistas estão
imaginando, isso vai produzir uma mudança total no que é viver na Terra. E a
quantidade de africanos que vai invadir a Europa vai ser um pouco maior do
que aqueles pobres que morrem afogados ali em Lampedusa. E como os
países ricos vão reagir? É uma questão interessante. Vai ser com armas
atómicas? Vão bombardear quem? O meu pessimismo passa mais por aí.

No Brasil as crises são estritamente políticas. Faz reforma política? Vai ter
revolta da população? Será que há Copa? Tudo isso é verdade, fundamental,
mas a gente não pode perder de vista o cenário mais amplo.

Não vê ninguém no Brasil, politicamente, que tenha uma visão ampla? O


senhor votou na Marina Silva [nas últimas presidenciais].

Votei na Marina em 2010, com certeza. Não tenho certeza nenhuma de que
votaria nela em 2014, talvez não.

Eduardo Campos [candidato pernambucano que fez uma aliança com


Marina]?

De forma nenhuma. A Dilma, nem sob pelotão de fuzilamento voto nela. Esses
idiotas do PSDB nem pensar. Então talvez eu não vote. Talvez vote nulo.

Qual é a missão, o papel, a hipótese para alguém como o senhor? Virar


uma espécie de guerrilheiro nas redes sociais?

É. Eu diria que a revolução antropofágica do Oswald de Andrade só é possível


sob o modo da guerrilha. Estamos falando de uma coisa que foi pensada em
1928...
Mas que foi revivendo, anos 60, agora.

O Oswald, um homem da classe dominante, pensava no Brasil como uma


coisa sobre a qual você podia pôr e dispôr. Nesse sentido, ele pertence à
geração dos teóricos do Brasil, que eram todos da elite dominante paulistana
ou pernambucana: Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Eduardo Prado. Os
modernistas eram uma teoria do Brasil, de como o Brasil deve ser organizado,
governado.

Talvez os muitos povos brasileiros que compõem esse país só tenham chance

de ganhar uma certa emancipação cultural, política, metafísica, no contexto do

declínio geral do planeta

Talvez os muitos povos brasileiros que compõem esse país só tenham chance
de ganhar uma certa emancipação cultural, política, metafísica, no contexto do
declínio geral do planeta. Nessas condições é possível que haja esperança
para os negros, os índios, os quilombolas [descendentes de escravos], os
gays, os pobres desse planeta favela. Não esqueçamos que o mundo tem três
bilhões e meio de habitantes vivendo em cidade, metade da população
mundial. Desses, no mínimo um bilhão vive em favelas. Ou seja, um sétimo da
população mundial vive em favelas. O Brasil deve ter uma proporção maior que
a Alemanha, Estados Unidos. Diria que deve andar na casa dos 30 milhões. [A
população de] um bom país europeu.

Seria uma guerrilha nas redes sociais? Admite o uso de violência ou uma
guerrilha virtual apenas?

Nem uma coisa nem outra. A existência da Internet mudou as condições da


guerra, em geral, sim. O maior acto de guerra recente, no bom sentido, de que
me consigo lembrar foi o Edward Snowden. Não mais os Estados Unidos
espionando a Rússia, nem a Rússia espionando os Estados Unidos, mas o
vazamento de informações secretas dos estados. Isso é muito significativo. Um
jornalista morando aqui no Rio de Janeiro, que trabalha para um jornal inglês,
que recebeu informações de um analista americano, que estava escondido em
Hong Kong: isso só é possível com Internet. As redes sociais mudaram
completamente as condições de resistência ao capitalismo.

Uma nova forma de guerrilha?

Que não é nececessariamente violenta, embora exista o problema do hacker,


do bombardeio de sistema electrónico. Mas o que penso não é bem por aí.
Quando penso em guerrilha, é no sentido de combates locais, ponto a ponto.
Não estou falando de quebrar a porta do banco ou bater na polícia. Falo em
combates em que você seja capaz de conectar combates locais através do
mundo inteiro.

Existem formas novas de resistência e aliança entre as minorias étnicas,


culturais, económicas do planeta que passam pela conectividade universal da
rede, que é frágil, ao contrário do que se imagina, com pontos fracos, nós,
gargalos, em que os Estados Unidos têm um poder muito grande. Mas eu diria
que é muito difícil controlá-la até porque essa rede é indispensável para o
capitalismo. Difícil o capitalismo danificá-la demais, senão vai perder seu
principal instrumento hoje. Ainda que haja várias tentativas, no Brasil inclusive,
de vigilância.

Vejo mais uma guerrilha do que uma guerra, com a vantagem de que as

guerras em geral terminam na constituição de um novo poder totalitário, um

novo terror

É possível que a gente passe para um estado de vigilância à la George Orwell.


Tudo isso é possível. Mas acho também que a situação actual permite o
desenvolvimento de uma guerrilha de informação, muito mais que de acção
física, porque a informação hoje é uma mercadoria fundamental, estamos na
economia do conhecimento, então a guerra é uma guerra também pela
informação. É por aí que tenho alguma esperança, muito mais que numa saída
nas ruas, com ancinhos, forcados, machetes.
Parar de imaginar uma luta de classes e imaginar uma guerrilha de classes.
Classe definida, agora, não só de maneira classicamente económica mas no
contexto da nova economia, que mudou a composição de classes. Vários
intelectuais hoje pertencem à classe dominada, operária. Então, vejo mais uma
guerrilha do que uma guerra, com a vantagem de que as guerras em geral
terminam na constituição de um novo poder totalitário, um novo terror. O
“Manifesto Antropófago” pode acabar se realizando mais por esse lado. O
sonho clássico da revolução, como transformação de um estado A em estado B
é um sonho pouco interessante.

Não há desfecho.

Não há desfecho. Prefiro falar em insurreição do que em revolução, hoje. Um


estado de insurreição permanente como resistência. A palavra talvez seja mais
resistência, insurreição, do que revolução e guerra. Guerrilha é sempre de
resistência. O modelo da resistência francesa [na ocupação alemã], criar redes
subterrâneas de comunicação. Estamos nessa posição, somos um planeta
invadido por alienígenas, digamos, que é o grande capital, a TV Globo, o
agronegócio, a hegemonia norte-americana sobre os sistemas de
entretenimento; como é que você cria uma rede de resistência a esses
“alemães”?

Sou um activista das redes, de facto. Mas não convoco para manifestações,
não pertenço a nenhuma organização, estou um pouco velho para sair na rua.

EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

Está com 62 anos.

É, mas para sair na rua como black bloc [sorriso]... Posso ir atrás do black bloc,
na frente não dá.

Começou tarde a ser um activista/guerrilheiro. Porquê?

É uma questão interessante. A minha relação com o activismo na ditadura não


foi receio físico. Não que eu não tivesse medo de enfrentar a repressão. Vi
vários amigos presos, torturados, todo o mundo tinha medo. Mas não foi por
isso que não entrei na luta contra a ditadura. Foi porque não acreditava nela,
em tomar o poder para instituir uma nova ordem não muito diferente. Eu
achava que era uma briga entre duas fracções da classe média alta para saber
quem ia mandar no país. E eu não tinha a menor simpatia pela ideia de mandar
no país. Tinha uma desconfiança, que infelizmente se confirmou, quando a
gente vê que uma das pessoas que fez a luta armada está mandando no país.
E ela está fazendo coisas muito parecidas com o que os militares queriam
fazer, pelo menos na Amazônia. O projecto da Dilma na Amazônia é idêntico
ao do Médici [terceiro presidente da ditadura, no período 1969-74].

O senhor se configura como um anarquista?

Talvez...

Fora do estado.

Digamos que sim. Mas não sou um anarquista daqueles que acham que a
sociedade actual pode prescindir do estado. Acho isso um sonho um pouco
infantil.

Acha que não pode prescindir do estado mas que é importante cultivar...

Uma oposição, sim. A ideia de uma abolição do estado nas presentes


condições é fantasia. Existem algumas contradições que não podemos evitar.
Por exemplo, o maior inimigo dos índios brasileiros, num certo plano, é o
estado, que representa uma sociedade que os invadiu, exterminou, escravizou,
expropriou de suas terras. Ao mesmo tempo, o estado brasileiro é a única
protecção que os índios têm contra a sociedade brasileira. Se não fosse o
estado, os fazendeiros já teriam aniquilado todos os índios. Mas é uma
quimioterapia, como se o Brasil fosse o câncer e o estado fosse aquele
remédio. Faz um mal horrível mas você tem de tomar, é o único jeito de ter
esperança de se curar. Portanto, não posso ir contra o estado.
A ideia de uma abolição do estado nas presentes condições é fantasia.

Existem algumas contradições que não podemos evitar

Tenho simpatia pela tese do [antropólogo francês Pierre] Clastres, “A


Sociedade Contra o Estado”, um tipo de sociedade como ele entendia que era
o caso de várias sociedades indígenas, mas não imagino que isso possa ser
transferido para as nossas dimensões demográficas. Isto dito, não sei por
quanto tempo vamos ter essas dimensões no planeta, estados-nação com
milhões de habitantes. Precisamos guardar os anti-corpos contra o estado
porque podemos precisar deles no futuro.

Defende que toda a lógica do que o Brasil poderia ser, oferecer, passaria
por se tornar mais índio. Não os índios tornarem-se brasileiros mas o
Brasil tornar-se índio, o que significaria uma outra forma de vida, não
para produzir, não para consumir. Que significa isso na guerrilha das
cidades e das redes? Como os índios podem estar presentes aí? O que
podem dar à tal insurreição contínua?

Vou juntar isso com o final da pergunta anterior. Fui-me tornando mais activo
nas redes porque apareceram, antes não existiam, e em função da minha
enorme decepção com o final da ditadura, o facto de que continuamos reféns
do grande capital, dos grandes clãs, dos capitães hereditários que continuam
mandando no Brasil, José Sarney, Fernando Collor, Renan Calheiros. Essa
aliança entre o mais arcaico, que é Sarney, e o mais moderno do capitalismo,
que são esses agronegociantes de alta tecnologia do Mato Grosso do Sul,
todos eles combinados para manter a tranquilidade política: não deixemos as
massas virem atrapalhar.

Então, a minha decepção com a trajectória depois da ditadura; a minha


decepção maior ainda com a trajectória do PT, a partir da eleição do Lula, na
qual ele escreveu uma carta aos brasileiros dizendo que não ia tocar no bolso
dos ricos; a minha decepção ainda maior com a performance do governo Dilma
em relação ao meio ambiente, à Amazônia, aos índios, a total incapacidade
política da presidente para ter o mínimo de diálogo, por mais fictício que seja
com as populações indígenas, ao contrário, ela demonstra um desprezo, um
ódio mesmo, que me parece quase patológico; tudo isso me levou ao
activismo.

A gente quer ao mesmo tempo ser sambista e grande potência mundial. Eu

acho que devia continuar sendo sambista

Todo o mundo tem uma imagem do Brasil como país preguiçoso, relaxado, laid
back, onde tudo é mais devagar. E existe uma grande ambiguidade nossa em
relação a essa imagem. Por um lado achamos interessante a imagem de um
país easy going, por outro lado temos uma grande vergonha disso, nos
queremos transformar num país performante, que vai para a frente, produtivo.
A gente quer ao mesmo tempo ser sambista e grande potência mundial. Eu
acho que devia continuar sendo sambista. Que a gente devia saber explorar as
virtudes do não-produtivismo. A ética protestante, que nos deu o espírito do
capitalismo, para falar como Weber, nunca esteve inscrita no DNA do Brasil,
graças a vocês portugueses, que também não a tinham [risos]. Tiveram
durante século e meio, mas depois... Então, por um milagre histórico fomos
preservados dessa maldição que é a ética produtivista do capitalismo. Fomos
capturados pelo capitalismo porque nos invadiu, domou. O capitalismo foi
possível porque a Europa invadiu a América. Se não fosse a America, a Europa
não teria deixado de ser o que era na Idade Média, um fundo de quintal. Na
Idade Média, as sociedades desenvolvidas eram o Islã, a India e a China. Os
europeus eram um bando de bárbaros, sujos, mal vestidos, católicos. Mas por
acaso os portugueses e os espanhóis deram de cara com o novo mundo e o
capitalismo tornou-se possível. Porque foi o ouro do Novo Mundo, milhares de
toneladas, e tudo o que saiu da América, novas plantas, novos recursos
alimentares, que permitiu a expansão do capitalismo e  depois a revolução
industrial. Se não tivesse havido invasão da América, destruição da América
não teria havido Europa moderna. Hoje, no mundo, as principais plantas que
servem de alimentação mundial são de origem ameríndia: o milho, que se
planta em toda a parte, a batata, que permitu a revolução industrial inglesa, a
mandioca, da qual toda a África do Oeste hoje vive. Só que a América já era,
não tem mais Novo Mundo para descobrir, a terra fechou, arredondou, além de
que o pólo dinâmico do capitalismo foi para a China.

Voltando aos índios.

O Brasil tem muito poucos índios comparado com os países andinos ou mezo-
americanos. Estão na casa de um milhão, num país de 200 milhões. Mas têm
um poder simbólico muito grande, até porque têm uma base muito grande, 12
por cento do território brasileiro. Está tudo invadido [por obras ou fazendeiros]
mas oficialmente é terra indígena. Além de que têm um poder de sedução no
imaginário ocidental. A Amazônia tem um poder simbólico imenso. Embora, ao
contrário do que os brasileiros pensam, não seja só brasileira, a maior parte da
Amazônia está no Brasil. E é um objecto transcendente, uma espécie de última
chance, último lugar da terra. O que dá ao Brasil um poder simbólico que ele
não sabe usar, ao contrário, a Amazônia tem servido para atacar o Brasil por
não saber cuidar da Amazônia. E sabe uma coisa? Não sabe mesmo. E não
está sabendo se valer da Amazônia como um trunfo mundial. Nem como um
lugar onde poderia se desenvolver uma civilização menos estúpida, do ponto
de vista tecnológico e social. Os índios aí servem como exemplo. Estão na
Amazônia há pelo menos 15 mil anos. Boa parte da floresta amazónica foi
criada pela actividade indígena. Boa parte do solo foi criado com cinza de
fogueira, detritos humanos. A Amazônia é essa floresta luxuriante em parte por
causa da acção humana, dos índios.

A Amazônia tem servido para atacar o Brasil por não saber cuidar da

Amazônia. E sabe uma coisa? Não sabe mesm

Perante isto, o modelo sulino, gaúcho, europeu, de ocupação da Amazônia, é


um plano liso que você possa encher de fertilizante, para poder plantar plantas
transgénicas, resistentes a herbicidas, para produzir soja para vender para
China, para em seguida pegar esse dinheiro e dar Bolsa Família. Não seria
mais simples fazer com que essas pessoas não precisassem de Bolsa Família
dando para elas terra para plantar, fazendo a célebre reforma agrária que
jamais foi feita no Brasil?
Estamos exportando terra, solo e água na forma de carne, de soja. Um quilo de
carne precisa de 15 mil litros de água para ser produzido, um quilo de soja,
7500 litros. Essa água toda, que poderia estar sendo usada para plantar
comida para nós, está sendo usada para produzir soja para alimentar gado
europeu, ou em tofu e miso na China.

O Brasil destruiu mais de metade da sua cobertura vegetal, a Mata Atlântica,


que era igual à Amazônia do ponto de vista ambiental, para plantar cana e café
durante a colonização. E ficámos mais ricos? Agora estão devastando a
Amazônia para produzir soja e gado. Estamos ficando mais ricos? Os pobres
estão melhores porque está caindo mais migalha da mesa dos ricos, não
porque vieram sentar na mesa.

Foto
Meninos a pescar no rio Xingu (1982) EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
Isso também afectou os índios, não? Em São Gabriel da Cachoeira, o
município mais indígena do Brasil [estado do Amazonas], um dos
grandes problemas é o alcoolismo. Impressionante ver o estado em que
muitos índios vivem em São Gabriel. É um resultado desse erro de tentar
converter o índio em brasileiro nesse modelo que está a descrever?

O alcoolismo é uma praga da população indígena das três Américas. Tem a ver
com várias coisas. Uma delas é genética, mesmo. Os índios têm, por razões de
evolução, muito menos resistência ao metabolismo do açúcar no organismo.
Por isso que eles têm essa tendência à obesidade e à diabetes. Segundo, os
índios sempre tiveram álcool, na América do Norte menos, mas todos os índios
da Amazônia preparavam bebidas fermentadas, etc. É a mesma coisa com o
tabaco, só que ao contrário. O tabaco é indígena. Os índios fumavam, mas não
tinham câncer, ou a taxa devia ser muito pequena, assim como o alcoolismo
existe entre nós mas é muito menos violento. Porquê? Os índios, para fazerem
o tabaco deles e a bebida deles, tinham que produzir à mão. Tabaco tinham de
plantar, de enrolar, de fazer um charuto, levava cinco dias para fumar, eram
objectos custosos. A cerveja que faziam levava semanas. Aí, chega de repente
a cachaça, seis meses de trabalho indígena concentrado numa garrafa que
custa dois reais. A mesma coisa com a gente: quando você pega num maço de
cigarro que tem concentrado seis meses de trabalho indígena, você fuma um
atrás do outro. Você morre de câncer aqui e os índios morrem de cirrose lá.

O capitalismo apresenta aos índios uma coisa que eles nunca tiveram: o

infinito mercantil. Os objectos não acabam nunca

O capitalismo apresenta aos índios uma coisa que eles nunca tiveram: o infinito
mercantil. Os objectos não acabam nunca. Você tem uma quantidade infinita
de cachaça. É como se chegassem aqui marcianos que nos dessem soro da
vida eterna. Os índios não entendem e consomem, consomem, consomem.
Eles produziam pouco para ter tempo livre. O que acontece agora é que
continuam produzindo pouco mas os produtos chegam em quantidade infinita.
E eles não têm estrutura social, política, institucional. Vai levar séculos para
que desenvolvam resistências. Todo o ser humano gosta de se drogar, alterar
a consciência, desde o café até ao LSD, então nos índios o álcool entrou
destruindo tudo. É certamente a coisa mais destrutiva em todos os índios das
Américas.

Não há sociedades perfeitas. É preciso distinguir entre modelo e exemplo. Os


índios são um exemplo, não um modelo. Jamais poderemos viver como os
índios, por todas as razões. Não só porque não podemos como não é
desejável. Ninguém está querendo parar de usar computador ou usar
antibiótico, ou coisa parecida. Mas eles podem ser um exemplo na relação
entre trabalho e lazer. Basicamente trabalham três horas por dia. O tempo de
trabalho médio dos povos primitivos é de três, quatro horas no máximo. Só
precisam para caçar, comer, plantar mandioca. Nós precisamos de oito, 12, 16.
O que eles fazem o resto do tempo? Inventam histórias, dançam. O que é
melhor ou pior? Sempre achei estranho esse modelo americano, trabalha 12
horas por dia, 11 meses e meio por ano, para tirar 15 dias de férias. A quem
isso beneficia?

A única vantagem indiscutível que a civilização moderna produziu em relação


às civilizações indígenas foram os avanços na medicina. Se você fosse viver o
resto da vida no mato o que levaria? Penicilina. Foi de facto um avanço.
Mesmo assim nossos avanços sempre avançam demais. Hoje preferimos
manter uma pessoa de 90 anos sofrendo horrivelmente, tem de viver, tem de
viver, a família vai à falência. Ou seja, não sabemos mais morrer. Todo o
mundo antes do século XX sabia morrer.

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