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Título: Forró: Música e Dança “de raiz”?

Autora: Adriana Fernandes

Instituição: Universidade Federal de Goiás/University of Illinois at Urbana-Champaign (USA)

Cargo: Professora Assistente IV

e-mail: afernand@terra.com.br

Resumo: O trabalho propõe, a partir de dados concretos, uma abordagem sintagmática para o estudo do

forró e de outros gêneros populares. A partir dos conceitos de “tradição”, presentes nos textos de

Hobsbawm e Waterman, estabeleço um diálogo com o termo “de raiz” usado das mais diferentes formas

pelos atores de forró. São muitas as denominações encontradas para o gênero e cada uma delas apresenta

signos sonoros, de gestualidade e movimentação que são defendidos por seus autores como “de raiz.” O

objetivo da apresentação é explicitar a dinâmica, as controvérsias e as várias possibilidades estilísticas que

agem simultaneamente numa sociedade urbana, enfatizando uma metodologia de análise dialética. Este

estudo é parte do trabalho de doutorado para a UIUC, “Music, Migrancy and Modernity: A Study of

Brazilian Forró,” que analisa o forró e a comunidade migrante nordestina em São Paulo, sob orientação do

Prof. Dr. Thomas Turino.

Palavras-Chave: Forró, tradição, dialética

Abstract: The present paper is an attempt of a syntagmatic approach to the study of Brazilian forró and

other popular genres. I relate concepts of “tradition”, presented by Hobsbawm and Waterman, with the

term “de raiz” (from root, grassroots) used in many ways by forró actors. There are many forró styles and

each of them present sound, body, and movement signs that are defended as “de raiz” by its practioners.

The goal is to make clear the dynamics, controversies and the many stylistic possibilities that work together

in an urban society, emphasizing dialectic methods. This study is part of a PhD dissertation, “Music,

Migrancy and Modernity: a Study of Brazilian Forró,” at UIUC, advised by Dr. Thomas Turino, which

analyses forró music and the Northeastern migrant community in São Paulo, Brazil.

Key words: Forró, tradition, dialectics


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Para este trabalho eu defino forró como sendo uma festa dançante com música ao

vivo, na qual a base instrumental é o acordeon (de botão ou de teclado). Existem forrós

de viola, de pife, de rabeca, mas estes não serão considerados neste trabalho. Também

existe uma limitação com relação ao repertório tocado pelos instrumentistas. As músicas

tocadas devem ser em sua maioria caracteristicamente nordestinas: forrós, baiões,

xaxados, arrasta-pés, xotes, cocos, cirandas, seja pelo padrão rítmico dançante

característico de cada um destes estilos, seja pela temática nordestina. A questão

nordestina é um fator importante, pois, o forró surgiu naquela região do Brasil e este dado

será muito lembrado e buscado pelas diferentes vertentes do forró através do termo “de

raiz”usado pelos músicos, público e estudiosos.

A partir desta definição, eu tenho como objetivo nesta apresentação evidenciar

algumas das várias vertentes de forró encontradas em pesquisa de campo realizada em

Recife (PE) e São Paulo, capital, no período de junho de 2000 até março de 2001 e

propor uma metodologia de análise sintagmática onde a questão “de raiz” é o foco. Com

isso, pretendo explicitar a dinâmica, as controvérsias e as várias possibilidades estilísticas

que agem simultaneamente numa sociedade urbana, enfatizando sua dialética.

O forró passa a ser conhecido em todo o Brasil a partir do final da década de 1940

através principalmente do rádio e do músico Luiz Gonzaga (1912-1989). Luiz Gonzaga

era um migrante nordestino na capital federal, o Rio de Janeiro, tentando alcançar

notoriedade e sucesso através da sua música na mídia. Esta música é carregada de suas

vivências e de sua formação musical no nordeste. Gonzaga era filho de sanfoneiro

famoso na região de Exu, divisa de Pernambuco com o Ceará. Seu pai fazia o que ficou

conhecido como forró de pé-de-serra, ou seja, música dançante e majoritariamente


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instrumental realizada no acordeon de botão (também conhecido como safona pé-de-

bode) em ocasiões festivas familiares. Família, no contexto nordestino, tem uma

conotação bastante ampla, referindo-se também aos agregados, empregados,

conhecidos,vizinhos, além dos membros unidos por laços de sangue. Portanto, a relação

entre os que freqüentam um forró de pé-de-serra é de conhecimento interpessoal, face a

face e interativo.

Quando Gonzaga chega ao Rio de Janeiro, ele vai aprender a tocar as músicas da

moda: tangos, valsas, em um acordeon de teclado, “mais moderno.” No entanto, é um

grupo de estudantes nordestinos que o incentiva a voltar a tocar as músicas “da terra.”

Influenciado pelos padrões estéticos estabelecidos e amplamente aceitos na música da

época através da mídia, Gonzaga irá “criar” o baião, como uma novidade no cenário

nacional em termos de música dançante. Também vai tornar conhecidos na mídia o xote,

o arrasta-pé, o xaxado, estabelecendo parâmetros com uma perspectiva bastante

idiossincrática, mas que ficaram conhecidos como “tradicionais, puros, de raiz”. Luiz

Gonzaga, seguindo os passos de Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz, Cícero Dias,

Manezinho Araújo, dentre outros, irá compartilhar a sua “visão” de Nordeste através da

sua música. Visão esta jamais “pura,” mas sim, amalgamada de influências e vivências

com as quais ele também se identificava, como por exemplo o terno de linho cento e

vinte, a necessidade de um “doutô” para compor as letras de suas músicas (Humberto

Teixeira, advogado, e Zé Dantas, médico), músicas estas que passam a ser cantadas, ao

invés de fazer música instrumental como na terra natal, a sanfona de teclado e cento e

vinte baixos (ao invés dos “oito-baixos do seu pai”). O que eu enfatizo aqui é a

complexidade e as controvérsias da identidade de uma figura importante na Música


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Popular Brasileira, mas que, com o passar do tempo, tornou-se numa figura mística, uma

lenda, pois, as controvérsias foram deixadas de lado em favor de uma pureza que não

existiu. Portanto, a música de Gonzaga, desde o seu início na mídia (e então, quando a

maioria de nós toma conhecimento dela), tem como característica um dinâmico diálogo

com o seu tempo (presente e passado), com as circunstâncias sociais, políticas e

econômicas as quais ele experiencia.

A música que lança Luiz Gonzaga na mídia é “Baião” onde o intérprete diz que

vai nos ensinar a dançar um novo tipo de música, o baião. Entra aqui um fator inerente ao

forró, a dança. Foi com a pesquisa de campo que pude descobrir que a dança do forró é

uma dança cordial, cortez, sutil onde o objetivo é a aproximação corporal afim de se

sentir o calor e o cheiro da outra pessoa. Logicamente pode-se estabelecer vários níveis

desta percepção, mas, de modo geral, em se tratando de um contexto mais familiar, essa

distância é, em primeira instância, a distância dos braços arqueados e o contato corporal é

mais restrito a toques fortuitos durante a dança. Os pares dançam arrastando os pés,

portanto, toda a planta do pé é usada. O forró, no nordeste brasileiro e dentro da classe

social baixa é uma atividade de lazer caracteristicamente do fim do dia e o cansaço

corporal é um fato, portanto, os passos são mais repetitivos do que criativos e a dança

limita-se a movimentos da cintura para baixo.

Seguindo a trajetória de Luiz Gonzaga, outro músico considerado ícone do forró é

Jackson do Pandeiro (1919-1982). Na música de Jackson fica mais claro ainda a questão

dialógica do compositor e seu tempo. A música de Jackson tem notadamente uma

influência do samba carioca que se entranha no coco conhecido e praticado por Jackson

desde criança, ensinado por sua mãe. Temos então o que veio a se chamar forró, um outro
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estilo de música nordestina. Nordestina? A questão da migração deixa muito claro o

desaparecimento destas fronteiras imaginadas. O forró de Jackson do Pandeiro é tão

“impuro” quanto o baião de Gonzaga e com ele o círculo se fecha e o paradigma do forró

dentro da mídia está criado. São os estilos de Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro que

serão tomados como modelo, “de raiz,” “tradicionais”: modo de cantar, “grão” de voz

(Roland Barthes), rítmica, temas, o famoso trio: triângulo, sanfona e zabumba,

indumentária, estilo de performance, diálogos com o público (informalidade), modo de

dançar. Mas esta categorização se detém nos meios intelectualizados mais do que nos

meios populares onde as práticas de Gonzaga e Jackson foram geradas e continuadas.

Estas características modelares encaixam o forró no conceito de tradição

inventada, de Hobsbawm (1997), pois é um conjunto de práticas reguladas por regras

tácita ou abertamente aceitas, de natureza ritual ou simbólica, visando inculcar certos

valores e normas de comportamento através da repetição, implicando uma continuidade

com o passado (p.9) As regras aceitas do forró de Jackson e Gonzaga são aquelas que os

caracterizam como nordestinos migrantes trazendo ao conhecimento de um amplo

público, através da repetição midiática, um determinado comportamento simbólico do seu

local de origem, porém, conformado no novo contexto, no caso, a capital federal e a

indústria cultural. Esta visão relativa e conjuntural está relacionada com os estudos de

Christopher Waterman sobre a construção da identidade Pan-Ioruba (1990). Em seu

artigo na revista de etnomusicologia, Waterman chama atenção sobre o processo de

criação de uma “tradição” e de uma identidade, realizada principalmente pelos

colonizadores, mas que, com o passar do tempo, afeta o imaginário do grupo de pessoas

ao qual ela se refere, tornando-se concreta, real. Para isso Waterman cita George Marcus
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e Michael Fischer: “as forças externas, de fato, são parte integral da construção e

constituição do interno, ou seja, da própria unidade cultural, e devem ser registradas…”

(Marcus apud Waterman, 1990: 367).

Portanto, no caso do forró, os compositores e intérpretes considerados hoje como

ícones e protótipos do estilo, Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, estão sendo

repensados neste trabalho em relação a sua identidade e a “tradição” que eles

supostamente nos legaram. Neste sentido, vou expor aqui duas manifestações atuais desta

“tradição”: o que chamam de “forró universitário” e “forró eletrônico”.

O chamado “forró universitário” teve início na cidade de São Paulo na primeira

metade da década de 1990. Um grupo de jovens de classe média paulistana ligados a

jovens universitários e à promoção de festas e eventos, começa a realizar festas dançantes

com música ao vivo, um pouco diferente da lambada, que acabava de acontecer no meio

musical. Para isso, contratam trios nordestinos, ou seja, músicos que tocam na formação

criada por Luiz Gonzaga de zabumba, sanfona e triângulo um repertório dançante

divulgado principalmente por Gonzaga e Jackson nos idos 1940 e 50. O êxito de público

destas festas desemboca na abertura de casas de forró, seguindo o modelo comercial de

casas noturnas nordestinas na cidade como o forró Asa Branca, e o forró de Pedro

Sertanejo (pai de Oswaldinho do Acordeon). O ponto forte destas festas é a música e a

dança de par onde o xote faz muito sucesso. Eu atribuo essa quase automática empatia

com a música nordestina à questão da proximidade entre o xote e o reggae, apontada por

Gonzaga antes de morrer e por Gilberto Gil em meios de comunicação de massas. Esta

proximidade vai ficar mais clara no aspecto visual, quando mais casas são abertas como

Remelexo, Danado de Bom, Kaviá, e o público freqüentador se veste em trajes jovens,


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praieiros, a chamada “surf wear,” e as boinas à la Bob Marley são freqüentes. Os trios

não são necessariamente trios, baixo elétrico normalmente é acrescentado, as vezes

percussão de efeito ou a própria bateria podem se somar ao que se habituou chamar a

base do forró. Um dos grupos mais requisitados e que participou deste processo desde o

início foi o Trio Virgulino formado por migrantes nordestinos e reverenciado por aquele

público como âncoras do forró tradicional, pé-de-serra. Mas, eles não tocam música

iminentemente instrumental e nem safona de botão, como o pai de Luiz Gonzaga! No

entanto, sua música é considerada a mais próxima do estilo Gonzaga e Jackson e os

jovens universitários os reverenciam como mantenedores do forró “de raiz,” que passa a

ser sinônimo de forró pé-de-serra, “tradicional.” Ocorre aqui uma compactação de tempo

onde se une o forró instrumental do pai de Gonzaga, o forró de Gonzaga e Jackson e

ainda o forró do Trio Virgulino. Portanto, manifestações diferentes, separadas no tempo

diacrônico, passam a ter a mesma denominação no meio universitário paulistano. Na

platéia, casais de jovens absolutamente enlaçados dançam uma seqüência de passos que

mais parece uma coreografia ensaiada do que apenas um encontro casual entre duas

pessoas que querem dançar juntas. Movimentos provenientes da dança de salão ensinada

nas academias como a lambada, o two-steps norte-americano, e até mesmo o tango

argentino podem ser detectados. Os rapazes usam sandálias rasteiras, de preferência,

alpercata de rabicho, lembrando Lampião e seus cabras. As garotas usam sapatilha

chinesa e dançam na ponta dos pés. O sexo está mais presente no “forró universitário” e

não raro, depois de uma noite no forró, os pares dirigem-se a motéis para relações sexuais

fortuitas (o famoso “ficar”).


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Nos meios nordestinos o forró é perene, segundo Dominguinhos, porque “se ele

virar moda, a moda acaba e os músicos ficam sem emprego” (Fernandes, 2001). Durante

o mesmo trabalho de campo, na mesma cidade de São Paulo, mas nos nichos

freqüentados por migrantes nordestinos, a sanfona foi substituída por um teclado e no

palco existem jovens bailarinas com uma grande porcentagem do corpo exposto. O

repertório tocado com timbre de acordeon tem o acompanhamento automático e

repetitivo do ritmo sintético do baião em andamento frenético, quase disco. É o “forró

eletrônico”. O público é formado por pessoas mais maduras que dançam os passos

repetitivos ensinados por Luiz Gonzaga, só que mais rápido. Meus informantes no Centro

de Tradições Nordestinas, no Patativa e no Forró da Catumbi (recém reinaugurado sob

nova direção) me disseram que forró de sanfona é coisa do passado, bonito é teclado, é

mais “muderno.” Eu perguntei-lhes sobre a dança de forró dos universitários, eles

disseram que é bonito mas é complicado, difícil de aprender.

Com estes dados é possível salientar alguns pontos importantes neste rápido

estudo. A questão “de raiz” é inicialmente colocada por estudantes no Rio de Janeiro para

Luiz Gonzaga como ‘da terra.” Também são estudantes intelectualizados que

reverenciam e unem no tempo o forró instrumental, o forró de Jackson e Gonzaga e o

forró do Trio Virgulino como “forró tradicional.” Portanto, como entre os Iorubás de

Waterman, é um grupo externo aos atores do forró que inventam uma “tradição” e uma

“raiz” para ele. Entre os nordestinos migrantes, “tradição, raiz” é coisa do passado, é

necessário “modernizar”. Trocam a sanfona pelo teclado mas continuam dançando como

antes e continuam trabalhando muito como antes. Hoje entre nós, podemos perceber que

Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro fizeram um tipo de música na sua época que
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embora propagada e reverenciada como “de raiz” já estava ligada a indústria cultural. Os

universitários reverenciam o forró “de raiz” e o praticam com outros instrumentos, outra

dança, outra indumetária e ainda cruzando influências entre forró, lambada, reggae e

xote. Identidade é algo dinâmico, fatores internos e externos estão em permanente

diálogo e os termos “moderno” e “de raiz” perpassam todos os grupos em questão ao

mesmo tempo, afetando-os. Portanto, perguntar se forró é música e dança de raiz requer

perguntar também se forró é música e dança “muderna.” Com este trabalho fica

demonstrado que a cultura popular vai muito além de categorias binárias e a pluralidade e

flexibilidade é que estão no centro da questão. O importante aqui não são as respostas

para tais perguntas e sim este processo de refletir sobre o que acontece questionando os

signos envolvidos, sejam eles verbais e não verbais.

Bibliografia:

Albuquerque Jr. Durval Muniz de. 1999. A Invenção do Nordeste e Outras Artes. São Paulo:

Cortez.

Fernandes, Adriana. 2001. Anotações de Trabalho de Campo. Brasil.

Hobsbawm, Eric. 1997. “Introdução: A Invenção das Tradições.” In: Hobsbawm, Eric e Terence

Ranger (org.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Waterman, Christopher. 1990. “Our Tradition is a Very Modern Tradition:” Popular Music and

the Construction of Pan-Ioruba Identity.” Ethnomusicology 34(3):367-379.

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