Você está na página 1de 4

Folha de S.Paulo - A arte do possível - 04/05/2008 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0405200821.

htm

ASSINE BATE-PAPO BUSCA E-MAIL SAC SHOPPING UOL

São Paulo, domingo, 04 de maio de 2008


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A ARTE DO POSSÍVEL
EM CARTA A UM ESTUDANTE DE TEOLOGIA, A
FILÓSOFA ALEMÃ HANNAH ARENDT REBATE O
ALCANCE UNIVERSAL DOS ATOS POLÍTICOS

25 de novembro de 1967

Prezado senhor Benedict,

O senhor está a par das errâncias de sua bela carta, que só me


chegou às mãos, depois de todas as tribulações, quando eu já
me aprontava a embarcar num avião. Quero tentar
responder-lhe agora; é uma pena que deva fazê-lo por
escrito.
O senhor diz ter relido minha brochura sobre a Revolução
Húngara [1956]. Até onde sei, a editora a retirou do
mercado, com minha concordância. Suas objeções estão
corretas; são as mesmas que me faço hoje. Não pus fé no
desenvolvimento da situação na Rússia.
Jamais ataquei o comunismo enquanto tal, muito menos o
reduzi a uma posição totalitária. Sempre me manifestei com
toda clareza contra a identificação de Lênin com Stálin ou
mesmo de Marx com Stálin.
Não diria que o comunismo se modificou, mas, sim, que a
forma de domínio se transformou. O que temos hoje na
Rússia é a ditadura do partido único, uma variante da tirania,
e apenas isso, que era de esperar pelo curso "normal" das
coisas após a morte de Lênin, não fosse a intervenção de
Stálin.
Também não acredito no "potencial" de autotransformação
do sistema totalitário -seria como se uma monarquia absoluta
pudesse rumar por si só para uma monarquia constitucional.
Também no que toca o seu segundo ponto, imperialismo
americano no Vietnã, estamos de acordo quanto ao essencial.

Vácuo de poder
O único elemento de consolo na história toda é que o país vai
se agitando mais e mais, e que o governo não pode fazer
nada a respeito, se não quiser atingir os fundamentos da
república.
Confio que o senhor esteja a par disso e não entrarei em

1 de 4 04/05/2008 19:56
Folha de S.Paulo - A arte do possível - 04/05/2008 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0405200821.htm

detalhes. Pode bem ser que estejamos no início de um novo


desenvolvimento imperialista -não necessariamente
totalitário; o que é certo é que a república dos EUA não
sobreviverá a um tal curso das coisas, isto é, a república
como forma de governo, não o próprio país.
Também o país se encontra sob grave ameaça, mas isso não
me importa tanto. Minha lealdade vincula-se a esta república
-não ao país- e, é claro, também às pessoas, entre as quais,
feitas as contas, me sinto melhor do que nunca.
O senhor me pergunta ainda se a questão social se tornou a
questão política por excelência. A luta contra a pobreza e a
fome diz respeito exclusivamente à pobreza e à fome, ao
menos no que diz respeito aos pobres e famintos, que não
costumam ser os que conduzem ou que poderiam conduzir
essa luta.
E a luta contra o analfabetismo é cada vez mais uma
pré-condição para o fim da pobreza e da fome. A pobreza e a
fome (chame-as como quiser) impediram que surgisse, dos
movimentos de libertação na Ásia e na África, alguma coisa
com um mínimo de estabilidade.

A pobreza e a fome criaram o vácuo de poder -também na


América do Sul, onde a corrupção dos governos é o reverso
dessa medalha- que agora está ressuscitando o imperialismo.
Toda formação política se caracteriza pelo poder (não pela
violência!) que ela é capaz de exercer; pobreza, fome e
analfabetismo criam apenas impotência. Não me venha com
os vietnamitas, que de fato conquistaram poder no curso da
guerra de guerrilha; nós já os conhecíamos quando ainda se
chamavam "indochineses".
Não são absolutamente um povo miserável, mas um povo
desafortunado, mas altamente dotado e herdeiro de uma
cultura antiga. Trata-se, ali, de libertação nacional, mas não,
absolutamente, do que entendemos por liberdade.
E o mesmo vale, creio, para Cuba, onde cabe a nós a culpa
maior pelo desdobrar dos acontecimentos rumo à tirania
russa. Mas olhe bem para os outros Estados sul-americanos.
Bem, chegamos então ao "capítulo adicional da história da
revolução que os últimos desenvolvimentos tornaram
necessário". Quisera eu ser tão otimista quanto o senhor! A
Pax Americana, contra a qual Kennedy se exprimiu com
veemência e que Johnson proclamou abertamente, é um
pesadelo imperialista -mas, por isso mesmo, apenas um
sonho.

Caos puro
A "pacificação de cima para baixo" de que o senhor fala é
impossível tecnicamente, seja em termos militares ou
econômicos. Ninguém é rico o bastante para ajudar a quem
não consegue se ajudar; foi possível dar auxílio à Alemanha
ou ao Japão, mas não há como ajudar a Índia, o Egito ou o
Congo.
E, no que diz respeito aos militares, a Guerra do Vietnã

2 de 4 04/05/2008 19:56
Folha de S.Paulo - A arte do possível - 04/05/2008 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0405200821.htm

deveria ser prova suficiente de que as superpotências já não


têm como conduzir guerras convencionais; e graças a Deus
estão todos de mãos amarradas no que diz respeito à guerra
atômica.
É claro que seria possível invadir o Vietnã, o Vietnã do
Norte e ocupar e violentar o país com alguns milhões de
soldados. Mas, sem falar nos tremendos riscos políticos,
quantas vezes um país como os Estados Unidos poderia se
permitir esse tipo de coisa?
No que diz respeito à violência: não há revolução que tenha
triunfado graças à simples violência. Há, é claro, o levante
violento dos oprimidos, que entretanto só conseguiu alguma
coisa quando o poder do Estado já estava minado. É sempre
a impotência, a cólera cega e tremenda dos impotentes que se
manifesta como violência.
Quando ela triunfa, o caos puro e simples se instala no dia
seguinte -simplesmente porque todos que descarregaram sua
ira começam imediatamente a divergir. Daí não virá
nenhuma resistência.
E, se acha que algo do gênero está se dando no Vietnã, creio
que o senhor está fundamentalmente equivocado. E creio
haver algo do gênero, um erro do mesmo gênero, em outra de
suas observações.

Sonho de unidade
O senhor afirma que a Guerra do Vietnã teria revelado aos
estudantes "a unidade do mundo e a necessidade de
transformá-lo". Quanto a esse último ponto, podemos
concordar sem mais delongas; mas a "unidade do mundo",
supondo que o senhor entenda por esse termo mais que uma
espécie de solidariedade, é apenas um sonho. Apenas em
termos técnicos o mundo constitui uma espécie de unidade.
Sob todos os outros pontos de vista, sobretudo no que diz
respeito à política e às chances de um desenvolvimento rumo
à liberdade, cada país constitui um caso à parte.
Quanto ao seu último ponto, não resta dúvida de que estamos
envolvidos na persistência de "condições indignas" na Pérsia,
no Vietnã e no Brasil, mas não cabe a nós transformá-las.
Essa me parece ser uma espécie de delírio de grandeza às
avessas.
Tente fazer política na Pérsia, e o senhor logo estará curado.
Sua responsabilidade diz respeito a impedir que se
perpetuem condições indignas na Alemanha ou que se
matem estudantes durante uma manifestação. Temo que isso
já o manterá mais que ocupado.
"Politics, like charity, begins at home" [Política, como
caridade, começa em casa]. Se amanhã -e isso seria bem
possível-, após a retirada das tropas americanas do Vietnã, os
vietnamitas começarem a se degolar mutuamente, eu não me
sentirei em nada responsável.
A política é sempre, entre outras coisas, a arte do possível, e
as possibilidades dos homens e dos povos são sempre
limitadas. Não reconhecer esses limites é um delírio de

3 de 4 04/05/2008 19:56
Folha de S.Paulo - A arte do possível - 04/05/2008 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0405200821.htm

grandeza, por mais que este se oculte por trás de sentimentos


sublimes. [...]

Com os melhores votos, sua Hannah Arendt

A íntegra desta carta saiu na "Mittelweg". Tradução de SAMUEL


TITAN JR.

NA INTERNET - Leia a íntegra da troca de cartas entre Hannah


Arendt e o estudante de teologia Hans-Jürgen Benedict no site
www.folha.com.br/081221

Texto Anterior: + Movimento estudantil: Mao enquadrado


Próximo Texto: + Arte: Ato sustentável
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo
desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da
Folhapress.

4 de 4 04/05/2008 19:56

Você também pode gostar