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Junguiana

v.38-1, p.73-86

A katábasis de C. G. Jung: dos mitos antigos


às experiências visionárias modernas

Pedro Henrique Costa de Resende*


Mateus Donia Martinez**

Resumo Palavras-chave
Este artigo buscou revisitar as experiências tou-se, historicamente, a katábasis (1) na an- Katábasis, C.G.
de katábasis de C.G. Jung, ou, em outras pala- tiguidade clássica através da mitologia grega, (2) Jung, O Livro
vras, as experiências de descida ao submundo, no período medieval e moderno, por meio das Vermelho,
história da
ou mundo dos mortos, seguidas pelo retorno obras de Dante Alighieri, Emmanuel Swedenborg
psicologia, vida
ao mundo dos vivos, a anábasis. Em termos e William Blake, e (3) finalmente, na própria vida
e obra.
psicológicos, essas experiências significam o de Jung, com ênfase na constituição de O Livro
confronto com o inconsciente e a subsequente Vermelho. As experiências de katábasis foram
ampliação da consciência. Para revisitar as ex- de vital importância para Jung e culminaram na
periências de katábasis de C.G. Jung, resga- gênese da psicologia analítica. ■

* Doutorando em psicologia na Universidade Federal de Juiz de


Fora (UFJF), mestre em psicologia pela Universidade Federal
de São João Del-Rei (UFSJ), graduado em psicologia e filoso-
fia pela UFSJ. Membro do Núcleo de Pesquisa em Espiritual-
idade e Saúde (NUPES) da UFJF. e-mail: <pedrohenriresende@
icloud.com>
** Doutorando e mestre em psicologia social pela Universidade
de São Paulo (USP) e graduado em psicologia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do
Laboratório de Estudos Psicossociais: crença, subjetividade,
cultura & saúde (INTERPSI) da USP e do Grupo de Pesquisa
em Experiência Religiosas e Estados Alterados de Consciência
(GEALTER) da PUC-SP. e-mail: <mdmartinez@usp.br>

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A katábasis de C. G. Jung: dos mitos antigos às experiências visionárias modernas

1. Introdução Tudo o que fiz posteriormente em minha


O termo katábasis foi comumente utilizado vida está contido nessas fantasias preli-
na literatura antiga para designar uma descida minares [...]. Minhas buscas científicas
ao submundo ou a morada dos mortos (DAN- foram o meio e a única possibilidade de
TAS, CORNELLI, 2019). Diversos heróis efetuaram arrancar-me a esse caos de imagens [...].
suas descidas em busca de diferentes elemen- Procurei transformar cuidadosamente
tos. Por exemplo, Héracles desceu ao Hades cada imagem, cada conteúdo, compre-
para cumprir uma de suas 12 tarefas. Teseu e endendo-os racionalmente na medida do
Perítoo efetuaram um percurso pelo submundo possível e, principalmente, procurei reali-
para conquistar Perséfone e Orfeu desceu ao Ha- za-los na vida (JAFFÉ, 2016, p. 198).
des na tentativa de resgatar Eurídice, inauguran-
do a proposta da katábasis nos ritos inciáticos Pode-se compreender, portanto, que, como
forma de integrar e dar sentido a todo esse
órfico-pitagóricos. Na Odisséia essa trajetória
“material” e a sua própria existência, em uma
efetuada por Odisseu se associou ao nekyia,
espécie de anábasis, Jung elaborou um projeto
ou seja, o rito no qual os espíritos dos falecidos
científico e proposta terapêutica, a psicologia
são chamados para revelar o futuro (BRANDÃO,
analítica.
1987a). Mais tarde, no período medieval e renas-
centista, a descida foi associada ao inferno cris-
2. A katábasis na antiguidade clássica
tão, com clássicos como A Divina Comédia, de
Independente da existência ontológica, a
Dante Alighieri, descrevendo diversos planos do
perspectiva simbólica junguiana é considerada
inferno e também do paraíso (ALIGHIERI, 2006).
a ponte epistemológica entre os mundos mate-
Da mesma forma, a anábasis, ou o retorno da
rial e imaterial (PENNA, 2013, p. 140). Assim, o
mansão dos mortos, se associou à ressureição
conceito de katábasis pode se associar, simbo-
na tradição judaico-cristã.
licamente, à compreensão da existência de uma
Visionários modernos como Emanuel Swe-
dupla natureza no homem, que envolveria por
denborg e William Blake também efetuaram suas
um lado uma dimensão material e, por outro,
descidas ao inferno através de visões e sonhos,
uma dimensão espiritual. Frente à decomposi-
escrevendo seus relatos em obras como O Céu e ção da matéria do corpo humano e à possibili-
o Inferno (SWEDENBORG, 1987) e O Matrimônio dade da morte, são genuínos os questionamen-
do Céu e do inferno (BLAKE, 2004). Shamdasani tos sobre os limites e sentidos da existência
(2014) sugere que as experiências visionárias de humana. Nesse contexto, as religiões buscam
C. G. Jung ocorridas a partir de 1913 e sua pro- oferecer respostas e rituais para lidar com essas
dução de O Livro Vermelho representam uma questões sobre a realidade última. A passagem
continuidade dessa tradição. Jung também teria de uma realidade material para uma espiritual,
realizado sua katábasis, iniciada em um perío- consubstanciada pela morte, representaria en-
do de crise pessoal. Nesse sentido, ao refletir tão, uma experiência de katábasis e anábasis,
sobre esse período de sua vida, de 1913 a 1915, ou vice-versa.
“Jung descreveu esses anos nos quais perseguiu Desde a mais remota antiguidade o culto aos
‘as imagens interiores’ como a época mais im- mortos vem sendo praticado, tanto por necessi-
portante de sua vida” (BAIR, 2003, p. 330), pois, dades higiênicas como por respeito aos faleci-
como ele mesmo afirma: dos e, até mesmo, pela crença de que se os vivos

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reverenciarem os que já partiram, essa atenção nem todos os povos concordavam sobre esse
e cuidado poderia aplacar suas más influências ponto. Por exemplo, entre os cultos órficos da
sobre o mundo físico. A experiência religiosa Grécia Antiga, a alma do homem comum não era
presente nesse possível contato com o outro mais do que uma sombra, que se esqueceria de
mundo, também pode ser compreendida através tudo ao renascer, pois beberia das águas do rio
do conceito de numinoso formulado por Rudolf Lethê, ao passo que o iniciado nos ritos e nos
Otto (2011), um conjunto de reações emocionais conhecimentos de Orfeu poderia se mover com
que geram, tanto arrebatamento como estranha- mais segurança no outro mundo e, tendo acesso
mento. O estar próximo de um Nume, como des- à fonte da memória, poderia guardar esclareci-
crito por Hesíodo (1995), em sua Teogonia, gera mentos para serem utilizados em seu nascimen-
temor e fascínio, por um lado, assim como terror to futuro (BRANDÃO, 1987a).
e medo, por outro. O numinoso é, portanto, “um Alguns dos principais deuses e heróis da
evento um tanto singular, que por sua profun- antiguidade também seguiram pela jornada de
didade foge à interpretação inteligente” (OTTO, descer ao submundo e retornar ao mundo dos
2011, p. 97). vivos em katábasis e anábasis que refletiam os
Da mesma forma, a reflexão sobre o para- ciclos da natureza. Foi o caso de Innana na Su-
deiro dos seres que nos precederam na passa- méria, Marduk na Babilônia, Rá e Ossíris no Egi-
gem para a outra margem da vida, sejam os que to, o Megistos Kouros cretense, o Adônis sírio, o
apresentam bons sentimentos e comportamen- Átis frígio e deuses agrários Dioniso e Perséfone
tos, como bondade, sabedoria, coragem etc. ou celebrados em Elêusis. Entre os heróis, relacio-
aqueles que foram ímpios e corruptos, alimen- nados ao período clássico, Héracles, Teseu, Perí-
tou a crença em lugares ou espaços específicos too, Orfeu e Odisseu realizaram a katábasis com
para abrigar os diferentes tipos humanos desen- diferentes objetivos. No cristianismo Lázaro e o
corporados. As boas almas seriam encaminha- próprio Cristo desceram à mansão dos mortos.
das para jardins e espaços de bem-aventurança, No mundo renascentista, Dante foi conduzido
por exemplo: na Suméria se acreditava na terra por Virgílio às diferentes moradas das almas
de Dilmún, espécie de éden mesopotâmico; na (SERRANO, 1999).
mitologia egípcia havia o Sekhet-Aaru, ou cam- O acompanhar dos ciclos naturais, a mudan-
pos de junco, destinado àqueles que passaram ça das estações em contínuo processo de morte
pelo julgamento de Osíris; na Grécia Antiga os e o renascimento associaram a katábasis a di-
Campos Elíseos; e na Religião Cristã o paraíso versos cultos iniciáticos. Para Edmonds (2004,
é situado no céu. Em contraposição, os lugares p. 113), “a interpretação iniciática é atraente, em
sinistros e tenebrosos são destinados às almas primeiro lugar devido à equação comum da his-
dos homens maus, nas partes mais profundas tória da katábasis com um processo de morte e
da terra, dos quais os condenados não podem renascimento”. Concordando com essa visão de
sair. É interessante notar como os antigos esta- Eliade que afirma que “a descida para o Hades
vam convencidos de que justos e injustos não significa passar por uma morte iniciática, a ex-
ocupariam o mesmo espaço depois da morte periência desse tipo estabelece um novo modo
(SERRANO, 1999). de ser” (1972, p. 27). No processo de iniciação,
Também se encontra em muitas culturas a o homem se integrava à natureza, participando
crença de que os falecidos que sofreram e luta- de seus ciclos de renovação, ao mesmo tempo,
ram possuíam conhecimentos adquiridos pela do ponto de vista da reflexão, era oferecido a ele
experiência e que poderiam levar esclarecimen- a oportunidade de transformar suas concepções
tos àqueles que se aventurassem a ir ao seu de mundo e surgir como “homem novo” (BRAN-
encontro, descendo ao submundo. No entanto, DÃO, 1987a).

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De todos esses elementos procuramos nos do submundo, presidido por três juízes: Rada-
deter na análise da história de alguns heróis da manto, Eaco e Minos. Como juízes severos, mas
mitologia grega como forma de esclarecer os equitativos, faziam os mortos passarem pelo
diversos aspectos presentes na experiência da exame de seus atos, obrigando, inclusive, os
katábasis. Mesmo antes dessa avaliação, bus- criminosos a confessarem seus crimes (HESÍO-
camos descrever como os antigos concebiam a DO, 1995; SERRANO, 1999).
estruturação do espaço do mundo dos mortos, Os Campos Elísios à direita e a ilha dos afor-
no caso o Hades. tunados eram concebidos como paraísos ver-
Segundo Hesíodo (1995), em sua Teogonia, a des, cheios de bosques e situados ao oeste do
transição entre o mundo físico e o submundo se mundo, cercados pelo rio Oceano. Nesses locais
dava pela barca de Caronte sobre as águas do se deleitavam as almas dos justos. Já à esquer-
rio Estige e Aqueronte, apesar de o Hades tam- da, se encontrava o Flegetonte, um rio de fogo
bém poder ser acessado por meio de fendas e em constante fluxo de chamas. Em um recinto
cavernas em espaços geográficos específicos. espaçoso com colunas também se encontrava
Héracles, por exemplo, desceu pelo cabo Têna- um espaço destinado aos assassinos que eram
ro, na Lacônia, uma das entradas clássicas que castigados por Tisífone, a vingadora do homicí-
dava acesso direto ao mundo dos mortos (BRAN- dio, uma das erínias, que açoitava os culpados
DÃO, 1987b). até enlouquecerem. Imediatamente depois se
A entrada do Hades era de uma caverna que encontrava o abismo do Tártaro, cuja profundi-
funcionava como pórtico, na entrada já se en- dade é descrita como o dobro da que existe entre
contrava Cérbero. Esse feroz guardião impedia a terra e o céu, em seu fundo estavam os Titãs,
a saída dos mortos e a entrada dos vivos. Ele presos por Zeus.
era representado como um cão monstruoso Na descida efetuada por alguns heróis ao
com três cabeças e de seu dorso também sa- Hades, Martínez (2000) faz uma interessante
íam várias cabeças de serpentes, assim como distinção entre as características e os objetivos
sua cauda era uma serpente. Passada essa envolvidos. Ele destaca três tipos de katábasis:
caverna, se encontrava a morada das crianças a 1) Hybristiké katabasis, presente nos mitos de
que morreram em tenra idade, em um espaço Héracles, Teseu e Pirítoo, 2) a katábasis românti-
contíguo moravam as sombras dos inocentes, ca de Orfeu e a 3) chamada katábasis necroman-
condenados e mortos por falsas acusações. te de Odisseu.
Mais adiante vagavam as almas dos suicidas O primeiro tipo de katábasis é definido pela
e daqueles que se tornaram desgostosos com hybris, expressão entendida pelos gregos como
a vida. A continuação desse espaço se esten- um contraponto a boa ordem, a atitude que des-
dia pelo chamado campo dos suspiros e das conhece os limites na sua relação com os ou-
lágrimas, onde se concentravam todos os que tros. O termo acaba por ter diferentes facetas,
foram consumidos por Eros e seguiam corroí- enquanto Platão entende que há hybris sempre
dos por suas penas. Em espaço mais profundo, que é superada a medida do justo, Aristóteles
passando por um bosque de mirtos, estava o a define como a ofensa gratuita pelo prazer de
lugar destinado aos guerreiros. A partir desse se sentir superior (ABBAGNANO, 2007). A katá-
ponto um caminho se bifurcava, à direita con- basis de Héracles é encontrada em seu décimo
duzia ao palácio de Hades que se deveria pas- primeiro trabalho, a busca do cão Cérbero por
sar para chegar aos Campos Elísios e o caminho imposição do rei Euristeu. Diante do deus Ha-
da esquerda levava ao Tártaro, lugar onde rece- des, Héracles pediu-lhe permissão para levar o
beriam terríveis suplícios as almas dos ímpios. cão monstruoso para a superfície, ao que o deus
Nessa bifurcação também se situava o tribunal concordou, desde que Héracles dominasse o

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animal sem nenhuma arma e sem feri-lo. Sobre cujo próprio nome significa obscuro (orphnós),
esse mitologema Brandão destaca: estava destinado a descer as trevas do submun-
do. A prova de amor de Orfeu comoveu Hades e
A respeito da katábasis de Héracles sa- Perséfone que permitiram o retorno de Eurídice,
be-se que esta configura o supremo rito mas com uma condição: o poeta deveria ir à fren-
iniciático, a morte simbólica, é a condição te e sem olhar para trás e sua esposa seguiria
indispensável para uma anábasis, uma seus passos. No caminho, Orfeu, vencido pela
subida, uma escalada definitiva na busca dúvida se realmente sua amada o seguia, olhou
do autoconhecimento, da transformação, para trás e ela se esvaiu para sempre numa som-
do que resta do homem velho no homem bra. Segundo Brandão (1987a) após voltar do
novo (1987b, p. 114). Hades, Orfeu instituiu um conjunto de mistérios
ritualísticos, que eram vedados às mulheres. Em
No caso, o encontro com criaturas monstru- uma das versões do mito, por esta proibição, as
osas, como Cérbero, dentro de uma perspectiva Mênades teriam matado Orfeu e seus seguido-
analítica, diz respeito ao reconhecimento dos re- res. O elemento simbólico dessa katábasis seria
síduos psíquicos inibidores e a sua superação. O representado pela necessidade de desapego, o
rompimento dos limites que, nesse caso, exige erro de Orfeu no Hades foi ter olhado para trás,
um esforço físico. ter voltado ao passado, apegando-se a matéria
Na katábasis de Teseu e Pirítoo tambem há simbolizada por Eurídice. “Um órfico autêntico
elementos de hybris. Os dois heróis haviam jamais retorna. Desapega-se por completo, do
descido ao Hades para capturar Perséfone, para viscoso, do concreto e parte para não mais re-
que ela desposasse Pirítoo. Teseu é apenas um gressar” (BRANDÃO, 1987a, p. 144). Orfeu ainda
acompanhante, que retribui um favor ao amigo, não estaria pronto para sua junção harmônica e
pois juntos eles haviam capturado Helena para definitiva com sua anima, somente através de
Teseu. No Hades os dois heróis são convidados sua morte, o supremo sacrifício, ele alcança a
a um banquete e cometem dois erros: se sentam liberação.
à mesa e comem os alimentos oferecidos. Os Para Martínez (2000), a katábasis mais com-
dois amigos acabam presos em suas cadeiras. pleta se encontra no mito de Odisseu, chamado
Teseu é resgatado, posteriormente, por Héracles. pelo autor de katábasis necromante, no episó-
Pirítoo, no entanto, permanece para sempre no dio de Nekya que ocupa a parte central da Odis-
submundo. Para Brandão (1987b) essa descida séia, sendo sua própria essência. Após a Guerra
também tem características ritualísticas. Nas de Tróia, Odisseu afronta os deuses e por sua
culturas antigas o elemento masculino deveria hybris inicia uma jornada penosa de retorno ao
descer ao interior da terra para fecundá-la e as- lar. Nesse processo ele será despojado de todos
sim trazer nova vida à superfície. Sob o ponto de os seus bens e perderá a companhia de todos
vista da psicologia analítica, encontramos nesse da sua tripulação, até os seus sentimentos de or-
mito a busca do elemento feminino nas profun- gulho e poder serão sacrificados no final. A sua
dezas do inconsciente, o resgate da anima do descida ao Hades representa a morte do homem
aspecto materno devorador. velho e natural para o posterior nascimento do
No segundo tipo de katábasis, o elemento homem esclarecido que já não orienta sua vida
romântico, em seu sentido mais geral, se des- pelas glórias do mundo.
taca como tema central. Temos essa imagem no Mesmo antes da descida ao Hades, o encon-
mito de Orfeu, o poeta filho da musa Calíope e de tro com Calypso e Cyrce representa o contato
Apolo. Eurídice, esposa de Orfeu, havia morrido com um outro mundo. Essas duas deusas ha-
após ter sido picada por uma serpente e o poeta, bitavam locais paradisíacos semelhantes aos

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Campos Elíseos. Porém, tanto Calypso, quanto a mesma, profundas relações com o Livro Ver-
Cyrce representam uma vida de ilusão. O prazer melho de Jung. “Abandonai toda a esperança,
sem conhecimento que inebria a razão na pri- ó vos que entrais!” (ALIGHIERI, 2006, p. 95). As
meira e a dominação pelos sentidos que trans- palavras gravadas em um letreiro escuro descon-
forma o homem em irracional na segunda. No certaram o próprio Dante e este solicitou ao seu
episódio de Nekyia, Martínez (2000) identifica guia, o poeta Virgílio, que as esclarecesse “aqui
uma necromância, Odisseu deveria oferecer o toda suspeita é bom deixar, qualquer tibieza
sangue de animais às almas dos mortos, assim aqui não se comporta” (ALIGHIERI, 2006, p. 95),
o herói poderia acessar o Hades e obter esclare- ou seja, era necessário se armar de fortaleza de
cimentos. O contato com os mortos, em especial ânimo e abandonar qualquer expectativa, pois
o sábio Tirésias, traz a ampliação da consciên- eles iriam confrontar as facetas mais sombrias
cia de Odisseu. Pelos conhecimentos adquiridos da experiência humana.
nesse encontro, o herói conecta toda sua jorna- No apocalipse apócrifo de Pedro temos algu-
da passada ao presente, e ainda tem a previsão mas descrições do inferno cristão. Nesta obra
de seu futuro. Cristo mostra a Pedro que depois da morte as
Nesses três tipos de katábasis encontramos almas são castigadas naquilo em que pecaram
os elementos essenciais da descida ao submun- em vida, neste espaço do submundo, o apóstolo
do, ou da busca pelo contato com os espíritos vê pessoas penduradas em suas línguas e outras
e os Numes. No primeiro, o aspecto de terror, com suas línguas em chamas, lagos de lama,
o enfrentamento e a superação dos limites es- nuvens de vermes e assim por diante. Albrecht
tabelecidos pelo mundo físico. No segundo, o Dieterich em 1893 argumentou que essas des-
desapegar da matéria para um encontro com os crições apócrifas bebiam na fonte das tradições
seres que já partiram. E por fim, no terceiro, a in- órfico-pitagóricas (SHAMDASANI, 2014). A fusão
tegração da individualidade pelo esclarecimento das tradições antigas acerca do submundo e as
trazido pelos Numes do outro mundo. propostas cristãs atinge seu auge em A Divina
Comédia. O próprio Alighieri em carta a Cangran-
3. A katábasis no período medieval e de I della Scala, político de Verona, afirma que a
moderno obra poderia ser lida de duas formas. A primeira
No período medieval, o mesmo processo vin- literal, ou seja, o indicativo dos diversos estra-
culado à katábasis dos antigos gregos é revivido tos ou locais para onde as almas podem se en-
na famosa obra de Dante Alighieri (1265–1321), A caminhar depois da morte, a segunda alegórica,
Divina Comédia. A obra escrita em diferentes mo- onde o foco é o homem em seu percurso interior.
mentos da vida do autor teria sido iniciada em Podemos avaliar, seguindo a segunda proposta,
1306, com a escrita do conjunto de poemas so- que, diante do tribunal da própria consciência,
bre o Inferno, no castelo de Val di Magra, tendo o homem que age no bem estaria mais livre e
sua conclusão em 1321 nos relatos do Paraíso, mais confiante para o exercício de sua vontade,
ano de morte de Alighieri. A obra apresenta uma enquanto que, aquele que escolhesse o erro ou
complexa cosmovisão, revelando não somente mal, se sentiria constrangido e perturbado. As
uma análise histórica do homem medieval, mas diversas imagens apresentadas por Dante no
também as vivências internas de Dante no perío- Inferno seriam, nesse caso, representações me-
do e as crenças acerca da vida no além. tafóricas de um estado de espírito de fraqueza,
Shamdasani (2014) destaca a obra como um sofrimento e miséria internos. Como uma obra
marco da tradição visionária, a descida aos in- hermética, A Divina Comédia teria diferentes ca-
fernos tem sua introdução no destaque colocado madas interpretativas (ALIGHERI, 2006; SHAM-
sobre o pórtico da entrada do submundo, tendo DASANI, 2014).

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Duas figuras que viveram nos séculos XVIII William Blake foi leitor das obras de Swe-
e XIX também contribuíram para a expansão de denborg e desde jovem afirmava ter experiên-
ideias acerca do estado da alma no inferno e cias visionárias. Por certo tempo ele frequentou
no paraíso: Emanuel Swedenborg (1688–1772) a igreja de Swedenborg em Londres, no entanto,
e William Blake (1757–1827). O inferno descrito posteriormente ele criticou a institucionalização
por Swedenborg tem características semelhan- das ideias de Swedenborg. Em 1790 ele publicou
tes ao de Dante. Swedenborg foi um cientista o livro O Matrimônio do céu e do inferno (BLAKE,
e místico sueco, um dos fatos conhecidos de 2004). Nesta obra Blake apresenta uma crítica
sua vida foi uma crise pessoal vivida por volta à interpretação de Swedenborg do céu e do in-
de 1740, que culminaram com uma experiência ferno, para ele os dois espaços não eram radi-
visionária em 1745. Em um dia do mencionado calmente inconciliáveis. O problema para Blake
ano, Swedenborg estava sentado em uma taver- é que Swedenborg se fixou demais no céu e em
na em Londres e escutou um estranho dizer para suas conversas com anjos. Para uma visão com-
ele que não comesse tanto. Ele voltou para casa preensiva da totalidade seria necessário dar o
e sonhou com o mesmo indivíduo da taverna que mesmo peso ao inferno, dialogando com os seus
se revelou como o próprio Cristo e disse que o habitantes. O diabo e os demônios deveriam ser
levaria pelo céu e pelo inferno, que ele conver- entrevistados.
saria com os mortos, anjos e demônios e que Em seus trabalhos Blake apresenta a tenta-
deveria revelar as pessoas no seu retorno sobre tiva de articular os opostos céu e inferno, como
a verdadeira fé. Foi-lhe indicado que anotasse duas polaridades da vida humana também re-
tudo o que fosse visto e ouvido de forma a reve- presentados por forças como atração e repulsão,
lar o significado simbólico da Bíblia. No trabalho razão e energia, amor e ódio. Essas oposições
de Swedenborg, céu e inferno são estritamente seriam necessárias para que a experiência hu-
dicotômicos. Os dois, basicamente, estariam mana fosse completa. Blake também apresen-
em germe dentro de cada ser humano. E após a ta sua crítica à religião organizada. Ao final de
morte a abertura da porta de um desses locais sua vida, Blake passou a se interessar, cada vez
seria determinada de acordo com as escolhas e mais, pela Divina Comédia de Dante Alighieri
ações neste mundo. O amor a Deus e ao próximo (2006), produzindo uma série de imagens que
seriam a chave para o paraíso, enquanto todos ilustravam diferentes momentos da passagem
os vícios e erros em relação a Deus e aos outros pelos infernos e pelos planos do paraíso (BLAKE,
homens seriam a chave do inferno (SHAMDASA- 2004; SHAMDASANI, 2014).
NI, 2014; SWEDENBORG, 1987). Assim como Eugene Taylor (1997) situou as
Em O Céu e Inferno, Swedenborg (1987) des- experiências anômalas de Jung dentro da tradi-
creve o que experienciou em suas visões. Ha- ção visionária, Shamdasani (2014) buscou loca-
veria diversos infernos que poderiam ser aces- lizar O Livro Vermelho em correspondência direta
sados por fendas nas rochas, buracos, covas e à linhagem dos tratados de Dante, Swedenborg
cavernas. Em alguns a aparência era como de e Blake. A partir de uma crise pessoal iniciada
cidades destroçadas por uma guerra, em outros, em 1913, Jung também vivenciou sua katábasis,
os aspectos eram de ruínas de monumentos his- descida aos infernos, experimentando nesse
tóricos, outros, ainda, se apresentavam como processo uma série dos assim chamados even-
desertos. A diversidade de infernos era propor- tos anômalos. O relato dessas experiências con-
cional à diversidade de vícios e falhas humanas. tidas em O Livro Vermelho pode ser interpretado
Nesses locais as almas se reuniriam de acordo da mesma forma que Dante avaliou sua obra, ou
com suas semelhanças, e da mesma forma acon- seja, de duas maneiras, uma objetiva, na qual se
teceria nos diferentes paraísos. considera a possibilidade de vivências parapsi-

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cológicas e outra subjetiva, seu confronto com No sonho descrito acima, Jung passa em fren-
o inconsciente e a subsequente assimilação de te ao primeiro túmulo de um falecido do período
suas imagens. de 1830, observa suas roupas quando este co-
meça a se movimentar retornando à vida. Jung
4. A katábasis de C. G. Jung afirma que isso teria acontecido porque ele o
Entre 1913 e 1914, Jung realizou um período olhara. Com um sentimento de mal-estar, ele
de autoexperimentação, induzindo fantasias em continua sua caminhada e se aproxima de outro
estado desperto, sua primeira descida ao infer- morto pertencente ao século XVIII, acontecendo
no. Para Shamdasani (2014), a leitura cronológi- o mesmo que antes, o corpo começa a mover-se
ca dos eventos torna clara uma experiência reli- e o indivíduo volta à vida. Jung percorre uma fi-
giosa de recuperação certos aspectos perdidos leira chegando à frente de um falecido do sécu-
da vida de Jung. O ponto de contato com a psica- lo XII, vestido com uma cota de malha e mãos
nálise e seu subsequente desligamento de Freud postas no peito, era um cavaleiro cruzado, esse
tornam-se secundários nesse processo. O autor também retorna a vida após ser observado por
sugere que a fase de obscurantismo de Jung se- ele (JAFFÉ, 2016).
ria seu período psicanalítico, propriamente. Sua Para Freud os conteúdos inconscientes eram
crise a partir de 1913 significaria a recuperação interpretados como resíduos recalcados da ati-
do que ele tinha de mais autêntico, e, por con- vidade consciente (LAPLANCHE, 2010), ou como
seguinte, a estruturação de suas experiências cadáveres de um passado esquecido, enquanto
em uma nova perspectiva científica, a psicologia para Jung o inconsciente como reino dos mortos
analítica. apresentava sua dinâmica própria e estava reple-
Nessa época uma fantasia se repetia cons- to de vitalidade. Esse sonho foi seguido por um
tantemente para Jung, a ideia de que havia algo desejo de Jung em resgatar algo de seu passado,
morto que continuava a viver. Por exemplo, sur- assim suas brincadeiras de infância foram revi-
giram experiências visionárias de cadáveres vidas no processo de construção de pequenas
que eram colocados em crematórios, mas, em casas, castelos e igrejas nas margens do lago,
seguida, descobria-se que ainda estavam vivos. próximo de sua casa em Zurique. “A construção
Essas fantasias culminaram em um sonho. Jung representava apenas o início. Ela desencadeava
destaca: toda uma sequência de fantasias que mais tarde
anotei meticulosamente” (JAFFÉ, 2016, p. 181).
Eu estava em uma região que me lembra- De acordo com Jaffé, Jung afirma que foi no
va os Alyscamps, perto de Arles. Lá existe ano de 1913 que ele se decidiu tentar algo mais
uma alameda de sarcófagos que remonta extremo:
a época dos merovíngios. No sonho, eu
vinha da cidade e via diante de mim uma Sentado em meu escritório considerei
alameda semelhante, orlada de uma filei- cada vez mais os temores que sentia,
ra de túmulos. Havia pedestais encimados depois me abandonei à queda. O solo
por lajes os quais os mortos repousavam. pareceu ceder a meus pés e fui como que
Jaziam em suas roupagens antigas, as precipitado numa profundidade obscura,
mãos postas sobre o peito, à maneira dos não pude evitar um sentimento de pânico.
cavaleiros das antigas capelas mortuárias Mas de repente, sem que ainda tivesse
em suas armaduras, com a única diferença atingido uma grande profundidade, en-
de que em meu sonho os mortos não eram contrei-me com grande alívio de pé numa
de pedra talhada, mas de modo singular, massa mole e viscosa. A escuridão era
mumificados (JAFFÉ, 2016, p. 178-9). quase total, pouco a pouco meus olhos se

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habituaram a ela, que parecia um crepús- algo mais próximo da loucura divina, como lista-
culo sombrio. Diante de mim estava uma do por Platão em Fedro (2000), ao mencionar os
caverna obscura” (JAFFÉ, 2016, p. 185). estados alterados das pitonisas em Delfos.
Nessas vivências Jung se encontra com os
Em outros sonhos do mesmo período Jung mortos. Por exemplo, em 12 de janeiro de 1914,
apresenta essa descida ao abismo de si mesmo ele se viu diante de um emaranhado de corpos
de formas semelhantes: “surgiu em um primei- humanos. Em 2 de fevereiro, em seus diálogos
ro lugar a imagem de uma cratera e senti como com sua alma, esta afirma que ele havia chega-
se estivesse no país dos mortos” (JAFFÉ, 2016, do ao inferno. No entanto, é em 14 a 16 de janeiro
p. 185). A descida ao inferno nas experimenta- de 1914 que Jung relata uma sequência maior de
ções de 1913 é uma busca por conteúdos perdi- experiências. Ele se viu em uma biblioteca, onde
dos, da mesma forma que fizeram os heróis an- conversava com o bibliotecário sobre cristianis-
tigos, Héracles, Teseu, Perítoo, Orfeu e Odisseu. mo, Nietzsche e Goethe, e procurava pelo livro
Jung buscava resgatar aspectos significativos, Imitação de Cristo, de Tomás Kempis. Em segui-
somente acessadas nessa descida ao mais pro- da, ele se vê conversando com uma mulher que
fundo de si mesmo, o que não descarta a pos- lhe pergunta se ele era um ser espiritual. Logo
sibilidade de eventos parapsíquicos envolvidos após, formas sombrias aparecem, eram homens
no processo. Nesse sentido o próprio Jung con- que se afirmavam anabatistas, mortos há 300
sidera algumas de suas visões do período como anos. O líder deles afirma que se chamava Eze-
precognitivas, por exemplo, sua visão de 1913, quiel e que ele e seu grupo estavam indo par Je-
descritas em Memórias e em biografias do au- rusalém visitar os locais sagrados. Jung pergun-
tor. Nessas visões uma onda gigantesca atingia ta se ele poderia ir com eles, mas seu pedido é
toda a Europa, enquanto as montanhas da Su- negado. Ezequiel afirma que ele não poderia ir
íça se elevavam para proteger o país, as águas junto, porque ainda tinha um corpo.
então se transformaram em sangue e destroços Nessa época Jung afirma que, em meio as
das obras da civilização boiavam por toda parte suas próprias trevas, nada mais era desejável
(BAIR, 2003; JAFFÉ, 2016). do que ter um guia, um guru real dotado de sa-
Para Shamdasani (2009), O Livro Vermelho ber para conduzi-lo por entre suas experiências
apresenta dois momentos principais, o primei- visionárias. Ele afirma: “Foi esta tarefa que Fi-
ro, a aceitação de Jung de seu caos interior e a lêmon assumiu e que sob este ponto de vista,
estimulação de imagens que permitissem um nolens volens eu devia reconhecer como ‘psica-
diálogo mais próximo com o inconsciente e, um gogo’ [psicopompo]. Ele me encaminhou para
segundo momento, de acomodação de suas ex- muitos esclarecimentos interiores” (JAFFÉ, 2016,
periências visionárias na psicologia, elaborando p. 189-90). No retorno da multidão das sombras
e interpretando suas visões. Seguindo a linha dos anabatistas, temos a escrita dos Septem
histórica composta por Alighieri, Swedenborg e Sermones ad Mortuos.
Blake, Jung estabeleceu a forma como a obra de- Boechat (2014) afirma que, dentre todas as
veria ser lida. Por muito tempo ele havia perse- aparições e interferências dos mortos do livro
guido a ciência, na forma como ela era desenvol- vermelho, a principal delas se encontra na ter-
vida em seu tempo, na qual muitos conteúdos da ceira parte do livro, Aprofundamentos, quando
experiência humana eram relegados à margem Filêmon pronuncia os sete sermões aos mortos.
da grande maioria dos estudos. No entanto, para A multidão de mortos que vieram de Jerusalém
Jung, era necessário um trabalho que abarcasse não encontrou o que buscava. Dessa forma, são
a totalidade das vivências humanas, o que ele como que doutrinados por Filêmon, sobre a na-
nomeou como loucura ou irracional. Na verdade, tureza de Deus, do homem e do destino. Em O

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Livro Vermelho, fica claro que o autor de Septem grado que se encontra internamente. Os mortos
Sermones é Filêmon. Diz Jung: seriam os conteúdos da sombra psicológica que
voltam pedindo a integração da consciência. Se-
Filêmon aproximou-se de mim com veste riam, portanto, partes desvitalizadas da psique,
branca de sacerdote e colocou a mão so- esquecidas do passado, desprezadas ou recal-
bre meu ombro. Falei então à escuridão. cadas, que pedem socorro.
Falai, vós mortos. E logo gritaram em unís- A segunda hipótese é de aspecto histórico.
sono. Nós voltamos de Jerusalém, onde Jung inicia a escrita do livro vermelho no período
não encontramos o que procurávamos. da primeira guerra mundial. Na crise europeia,
Pedimos entrada junto a ti. Tu ansiaste milhares de jovens foram enviados para a morte
por nós. Não teu sangue, tua luz. É isto. nos campos de batalha. A morte é um tema coti-
Então Filêmon, levantou sua voz, deu-lhes diano no inconsciente coletivo da Europa e, pro-
uma lição e disse (e esta é a primeira ins- vavelmente, do mundo. “O inimaginável número
trução aos mortos) (2009, p. 447-8). de mortos em toda a Europa invade o imaginá-
rio coletivo” (BOECHAT, 2014, p. 1790). A ques-
Para Boechat (2014), os mortos são uma cha- tão da crueldade da guerra, na qual as grandes
ve fundamental para a compreensão de O Livro potências mundiais manipulavam as vidas das
Vermelho. Há a sugestão de que eles precisam massas como se fossem peões em um jogo de
ser esclarecidos. “A multidão dos mortos não xadrez, impactou a população.
salvos tornou-se maior que o número dos cris- Boechat, no entanto, também destaca que
tãos vivos, por isso é tempo que nós intervenha- “todas essas abordagens são, de certa forma,
mos a favor dos mortos” (JUNG, 2009, p. 297). convincentes. Mas serão elas suficientemente
Boechat formula duas hipóteses psicológicas abrangentes?” (BOECHAT, 2014, p. 1793). Ao que
para a explicação do papel dos mortos nos diá- ele mesmo responde: “Não podemos esquecer
logos do livro vermelho. Na primeira, ele especu- que os mortos, concretamente, interessam Jung
la que os mortos somos nós mesmos, que não desde sua mais tenra infância [...] é sabido que
encontramos respostas adequadas para nossas os ancestrais de Jung por parte materna sempre
necessidades espirituais nas religiões oficiais, tiveram grande intimidade com as manifestações
que de certa forma, se perderam na ritualística espiritualistas” (BOECHAT, 2014, p. 1800-1). Em
excessiva, esquecendo o papel essencial da ex- nosso entendimento, é imprescindível conside-
periência individual na busca pelo sagrado e sua rar a perspectiva parapsicológica na abordagem
significação. Para o autor, seria necessário que dos eventos em questão.
a religião, especialmente a cristã, resgatasse o Jung afirma que tanta imaginação necessita-
seu aspecto gnóstico, ou seja, resgatasse o as- va de um terreno sólido e que ele deveria voltar
pecto humano da relação com o divino. “Uma a realidade humana. A sua anábasis, marcada
verdade que volte a fazer sentido para nossas pela compreensão científica, era, então, uma ne-
almas e não tenha sofrido o desgaste do ritual cessidade psicológica. Nesse sentido, ele sen-
automático” (BOECHAT, 2014, p. 1782). As verda- tiu a urgência de tirar conclusões concretas dos
des essenciais do cristianismo se encontravam acontecimentos inconscientes e isso se trans-
crestadas pelo excesso de especulações filosófi- formou na tarefa e conteúdo de sua vida (JAFFÉ,
cas, o fundo essencial e benéfico havia se perdi- 2016). Jung ainda completa: “Toda minha ativi-
do por séculos de conflitos. A interpretação des- dade ulterior consistiu em elaborar o que jorrava
sa primeira hipótese é que o homem, em geral, do inconsciente naqueles anos que inicialmente
necessita de um caminho de volta a si mesmo, me inundava: era a matéria prima para a obra de
não o caminho da Jerusalém exterior, mas do sa- uma vida inteira” (JAFFÉ, 2016, p. 204).

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O processo de katábasis vivenciado por da consciência. Nessa descida, ou entrada no


Jung o levou à compreensão do próprio proces- outro mundo, encontramos diversas camadas
so psicoterapêutico. A exploração de imagens possíveis de interpretação. Do ponto de vista da
em O Livro Vermelho são uma tentativa de re- psicologia analítica, elas significam o enfrenta-
conciliação entre a ciência de seu tempo e as mento dos impedimentos pessoais, a aquisição
transformações internas de seu confronto com de conhecimento e a assimilação de emoções
o inconsciente. Um diálogo entre o espírito do profundas, enfim, a reestruturação da individu-
tempo e o espírito das profundezas. A partir alidade. Jung destaca:
dessas vivências, Jung conduziria seus pacien-
tes através dos passos que ele mesmo havia tri- O nekyia não é uma queda titânica, sem
lhado. Transformando a prática da psicoterapia sentido e puramente destrutiva, mas uma
em uma espécie de rito iniciático de descida ao katabasis eis antron cheia de sentido,
submundo. Como indicado no Aion (JUNG, 1979), uma descida a caverna da iniciação e do
essa descida é parte do processo fundamental conhecimento secreto. A jornada através
da individuação, representado na tradição cris- da psique humana tem a finalidade de
tã pela descida de Jesus a mansão dos mortos e recompor o homem como um todo, des-
sua subsequente subida aos céus no terceiro dia pertando a memória em seu sangue (1971,
de sua ressurreição. Shamdasani (2014) aponta par. 213).
que no trabalho de Jung de 1934 apresentado em
Eranos, Arquétipos do inconsciente coletivo, ele Da mesma forma, resgatamos experiências
argumentou que o processo simbólico somente de descida ao mundo dos mortos efetuada por li-
é possível quando o ego entra em relação es- teratos e visionários como Alighieri, Swedenborg
treita com a imagem, seja ela qual for, quando e Blake. Todas essas experiências servem de pa-
nenhum obstáculo é oferecido, o que seria o râmetro para as vivências de Jung do período de
correspondente de uma renúncia temporária da 1913–1930, também chamado de confronto com
individualidade consciente às forças inconscien- o inconsciente. Nessa época temos a produção
tes. Esse processo, no entanto, oferece riscos à de O Livro Vermelho, obra de inestimável valor
consciência, principalmente, se essa sucumbe para a psicologia profunda, que também deve
totalmente à pressão das forças inconscientes. ser compreendida como pertencente a uma tra-
Porém, quando bem-sucedido, se estabelece um dição visionária.
estreito diálogo do ego com a imagem, há aber- O Livro Vermelho pode ser interpretado como
tura para o desenvolvimento da personalidade, a descrição de um processo iniciático. Como ex-
ou em outras palavras, para a individuação, a pressam Hillman e Shamdasani:
modificação da psique, de suas disposições e
atitudes frente ao mundo (JUNG, 1975). Descendo no interior de suas próprias pro-
fundezas, [Jung] encontrou imagens que,
5. Conclusão de alguma forma, o tinham precedido. [Foi]
O termo katábasis foi utilizado na literatura uma descida a ancestralidade humana. [...]
clássica em referência à descida ao submundo Isso não é mera metáfora [...] Quando ele
que diversos heróis efetuaram. Neste artigo re- fala dos mortos, ele quer dizer os mortos.
corremos a alguns exemplos como forma de es- Eles estão presentes em imagens. Eles ain-
clarecimento do sentido simbólico do termo. O da continuam a viver (2015, p. 12).
conceito em suas diferentes formas, hybristiké,
romântica e necromante, tem em comum com as Concluindo, Jung efetuou sua descida ao
pesquisas psíquicas o processo de ampliação submundo e retornou, elaborando o material re-

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colhido em uma teoria rica em esclarecimentos cida ao submundo representa o encontro com a
sobre a psique. A psicologia complexa estabele- ancestralidade, a morada dos mortos. ■
ce a descida do indivíduo em busca de si mes-
mo. Mais do que uma linguagem figurada, a des- Recebido em: 25/02/2020 Revisão 30/06/2020

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Abstract
C. G. Jung’s katabasis: from ancient myths to modern visionary experiences
This article aimed to revisit C.G. Jung experien- historically (1) in classical antiquity through greek
ces of katabasis, or in other words the experiences of mythology, (2) in the medieval and modern period,
descending to the underworld, or world of the dead, through the works of Dante Alighieri, Emmanuel
followed by the return to the world of the living, Swedenborg and William Blake, and (3) finally in
the anabasis. In psychological terms, these expe- Jung’s own life with an emphasis on the constitution
riences mean confronting the unconscious and the of The Red Book. The katabasis experiences were of
subsequent expansion of consciousness. To revisit vital importance to Jung and culminated in the gene-
C.G. Jung’s experiences of katabasis, it was rescued sis of analytical psychology. ■

Keywords: Katabasis and anabasis, C.G. Jung, The Red Book, history of psychology, life and work.

Resumen
La catábasis de C. G. Jung: de los mitos antiguos a las experiencias visionarias
modernas
Este artículo buscó volver a examinar las ex- catada, históricamente, la catábasis (1) en la anti-
periencias de catábasis de C.G. Jung, o, en otras güedad clásica a través de la mitología griega, (2)
palabras, las experiencias de descender al infra- en el período medieval y moderno, a través de las
mundo, el mundo de los muertos, seguido por obras de Dante Alighieri, Emmanuel Swedenborg y
el retorno al mundo de los vivos, la anábasis. En William Blake, y (3) finalmente, en la propia vida de
términos psicológicos, estas experiencias suponen Jung, con énfasis en la constitución del Libro Rojo.
la confrontación con el inconsciente y la posterior Las experiencias de catábasis fueron de vital impor-
expansión de la conciencia. Para volver a examinar tancia para Jung y culminaron en la génesis de la
las experiencias de catábasis de C.G. Jung, fue res- psicología analítica. ■

Palabras clave: Catábasis, C. G. Jung, El Libro Rojo, historia de la psicología, vida y obra.

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