Você está na página 1de 41

EL GRECO: A trajetória do artista de Cândia a Toledo

Profa. Dra. Wilma Steagall De Tommaso


CV: http://lattes.cnpq.br/8209900139809763

Figure 1 Assinatura do pintor.

1.1 Uma trajetória diferente

A vida de El Greco foi cercada de muitas peculiaridades e, segundo Jonathan


Brown1, “em todos os sentidos, é uma das mais estranhas da história da arte”. O
artista nasceu na Grécia em 1541, teve formação artística pós-bizantina e chegou a
receber o título de Mestre Pintor. Foi a Veneza, nos anos de 1567-68, onde recebeu a
influência de Ticiano e Tintoretto. Abandona Veneza em 1570 indo a Roma, instala-
se no Palácio Farnese e tem acesso à biblioteca onde Fulvio Orsini2, bibliotecário do
cardeal Alessandro Farnese, possibilitou-lhe além da leitura, inserir-se no seleto
círculo de artistas e intelectuais que se reuniam na biblioteca do palácio para discutir
as mais variadas questões.3

O motivo que o faz deixar Roma em 1576-1577 também é debatido pelos


pesquisadores. El Greco deixa a Itália e instala-se primeiro em Madri e depois, até o
fim de sua vida, 1614, em Toledo.
1
Jonathan BROWN. Pintura na Espanha 1500-1700. p.62
2
Fulvio Orsini, bibliotecário do cardeal, considerado o maior estudioso da Antiguidade clássica.
Importante colecionador particular, adquiriu várias obras de El Greco. Seus conhecimentos de latim
e grego deram ao pintor acesso ao círculo de estudiosos clássicos, teólogos e artistas que Orsini
reunia a sua volta. Um deles, o jovem padre espanhol Luis de Castilla (em Roma de 1571 a 1575),
tornou-se protetor do artista até o fim da vida. Jonathan BROWN. Pintura na Espanha 1500-1700.
p.65
3
José ALVAREZ LOPERA (Ed). El Greco: la obra esencial. p.34
El Greco gozou de prestígio em Toledo, onde participou do grupo dos
importantes intelectuais espanhóis que ainda lá permaneciam apesar de Felipe II ter
mudado a capital para Madri. À chegada de El Greco na Espanha, Toledo ainda era o
centro preferido dos artistas e intelectuais.

Durante sua longa estada em Toledo, El Greco produziu quadros de devoção


que renderam ao artista cretense popularidade, posto que iam de encontro aos ideais
da Contrarreforma: postulavam a piedade e a emoção da espiritualidade, ofereciam
um estímulo à oração e à devoção. O pintor ainda contava com o apoio de amigos
influentes e patronos que reconheciam a excelência de sua arte.

Após sua morte em 1614, El Greco caiu no ostracismo e, sua arte foi
considerada extravagante pelos artistas neoclássicos que exigiam um rigor anatômico
das figuras retratadas. Em El Greco, essas figuras eram dotadas de uma verticalidade
fluida que contrariava as regras. Assim, sua arte acabou sendo desvalorizada por seus
sucessores. Somente depois de dois séculos, ressurgiu o interesse pela arte do artista
no romantismo francês, tendo à frente Delacroix e o poeta Baudelaire. Veio, enfim, a
ser reconhecido como um grande mestre da pintura no século XX.
Estes séculos de esquecimento apagaram importantes informações sobre El
Greco, que muito trabalho custou a seus biógrafos na busca de documentos que
pudessem esclarecer alguns mistérios de sua vida na Grécia, na Itália e na Espanha.

O nome de Domenikos Theotokopoulos desaparece definitivamente do


catálogo artístico da época com a morte de Jorge Manuel, e com o nome,
a obra. As numerosas telas passam despercebidas nos diferentes
conventos, igrejas e sacristias durante duzentos anos. E, só a partir do
século XIX, quando se redescobre sua pintura, e se começa a considerar
seu gênio como o de um dos maiores pintores de todos os tempos.4

1.2 Creta - nascimento e formação

Domenikos Theotokopoulos, conhecido no mundo da arte como El Greco,


nasceu em Cândia, hoje Iraklion, capital da ilha de Creta, uma das maiores possessões
da República Marítima Veneziana, em 1541. “Domenikos, em grego, Kuriakos
significa “pertencente a Deus” e Theotokopoulos, “filho da Mãe de Deus”.

“Hoje é domingo, dia para dedicar ao Senhor”. Quando eu era menino,


dizia a meu Pai todos os domingos: Por ser a sua onomástica há que nos
convidar!”5

Informações sobre o ano e o local de nascimento de El Greco foram por ele


fornecidas quando em 1582, em Toledo, serviu de intérprete a um jovem grego que
estava sendo julgado pela Inquisição e o pintor declarou ter nascido em Cândia; em
1606, a propósito do litígio sobre o pagamento das pinturas de Illescas, declarou ter
sessenta e cinco anos. Há também uma carta que Giulio Clovio escreve ao Cardeal
Farnese apresentando El Greco como “um jovem candióta”.

Alvarez Lopera em sua obra “El Greco: la obra esencial” denomina de anos
obscuros (1541 – 1567) o período em que El Greco viveu na Grécia pela escassez de
dados sobre sua infância e juventude.
Foi em 1908 que Manuel de Cossío, um intelectual espanhol, entregou para ser
publicada a primeira monografia sobre El Greco. Em 1914 após a pesquisa feita por
San Roman Fernandes de documentos sobre o pintor, tais como os testamentos

4
Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El Greco. p.67
5
Jorge Manuel THEOTOCOPULI. Domingo. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El
Greco.
p.17. O emprego da palavra Pai em maiúsculas demonstra a dependência e a admiração que Jorge
Manuel teve pelo pai. “Ao deixar-me meu Pai, com ele se foi: meu amigo, meu companheiro, meu
mestre, meu protetor e toda a minha vida a seu lado”.
encontrados, Cossío publica Lo que se sabe sobre a vida de El Greco, parodiando o
primeiro capítulo de sua primeira publicação, que se intitulava Lo que se ignora de la
vida del Greco.6
A carta de Giulio Clovio e os documentos sobre a cidade natal e o ano de
nascimento de El Greco eram os únicos documentos conhecidos até os anos sessenta
do século XX. As descobertas documentais de Konstantin Mértzios, em 1966 e Maria
Constantoudaki, em 1973 7 proporcionaram por fim alguns primeiros e muito
significativos pontos de certeza.

Mértzio descobriu ao pesquisar cerca de trinta mil atas pertencentes aos


registros do cartório cretense Michele Marás, o primeiro patrimônio documental da
permanência de El Greco na ilha: uma ata fechada a seis de junho de 1566 em que
assinava na qualidade de testemunha como: “Mestre Menegos Theotokopoulos
‘sgurafos’ (Menegos era o diminutivo de Domenikos em dialeto veneziano e
‘sgurafos’ a versão cretense da palavra ‘zógrafos’, pintor)”. Constantoudaki, publicou
três documentos dos quais dois se referem a El Greco e o terceiro a seu irmão
Manussos, que os pesquisadores julgavam que também pudesse ter relação com o
pintor.8

Sabe-se agora por esses documentos que El Greco se formou como pintor
em Creta, obtendo o título de Mestre Pintor, e que parte de sua atividade artística em
Creta se deu dentro da forma tradicional pós-bizantina e que seus trabalhos neste
estilo foram altamente reconhecidos, pelo elevado preço que constava de seus quadros
nos registros.

Outra importante informação é o conhecimento exato do momento em que El


Greco deixa Creta e parte para Veneza. Biógrafos como Morales y Marin, Paul
Guinard e outros acreditavam que isto teria ocorrido em torno do ano 1560 ou até
antes. Os documentos de Constantoudaki permitiram que se soubesse que a ida de El
Greco a Veneza se deu entre dezembro de 1566 e agosto de 1568, o mais provável é
que tenha sido ao longo de 1567. Por isso agora fica claro que sua permanência em
Veneza foi de aproximadamente quatro anos.9

6
Manuel B. COSSIO. El Greco. p.27.
7
Fernando MARÍAS. El Greco. p. 298, nota 13.
8
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.10
9
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial p.13
O conhecimento da família de Domenikos Theotokopoulos vem da geração
anterior. Seu pai, Georgios (Zorzi) Theotokopoulos dedicava-se ao comércio
marítimo e estava a serviço da administração veneziana do ducado. A família
Theotokopoulos, a única com este sobrenome na ilha, se estabeleceu em Cândia nos
anos trinta do século XVI.10

A qualidade da biblioteca que El Greco deixou ao morrer e o forte interesse


intelectual que nutriram sua obra podem indicar como foi a educação que El Greco
recebeu em sua a infância. Atualmente já existem dados que comprovam que os
filhos das altas classes em Creta recebiam uma esmerada educação. Mertzios
encontrou nos registros de Marás os nomes de três mestres gregos ativos em Creta
entre os quais um teria sido o instrutor de El Greco. Também foi significativo saber
que em Cândia, nesta época, existiam várias escolas de ciências humanas “e
praticamente não havia nenhum jovem (das classes altas) que não conhecesse o grego
e o latim”.11 Na busca de Mertzios, foram encontrados quarenta e dois nomes de
pintores que trabalharam em Cândia entre 1538 e 1578, e, entre eles apenas três
possuíam o título de didascolos, isto é, mestre.12 Esses pintores se organizavam em
confrarias, onde os aprendizes ingressavam aos quatorze ou quinze anos e, aos vinte
poderiam ter o título de Mestre. Ainda não foi encontrado nenhum documento que
revele quem foi o primeiro instrutor nas artes de El Greco.

Há algum tempo, muitos estudiosos de El Greco supunham que ele teria sido
educado em algum monastério ortodoxo. Essa hipótese, entretanto, não considera o
fato de que os Theotokopoulos eram católicos.

Quanto à formação religiosa, segundo Fernando Marías, os únicos


testemunhos relativos à situação dos Theotokopoulos procedem da sua ausência na
relação entre os latinos e seus nomes de batismo: Georgios (Zorzi), o pai; Manussos
(Manólis) o irmão mais velho; Domenikos (Domenegos), El Greco; Michel (um
suposto irmão); Francisco (filho de Manussos). Nestes nomes se mesclam raízes
tradicionalmente gregas, outros venezianas e latinas. São Francisco era um dos
poucos santos ocidentais aceitos pela igreja ortodoxa, porém sua escolha como nome

10
Fernando MARÍAS. El Greco. p.26
11
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.16
12
Ibid. p.16
pode indicar uma tendência ao catolicismo e não uma prova. O mesmo pode se dizer
com respeito ao nome Domenikos que seria a forma latina para Kyriakós (Ciriaco).13

Alvarez Lopera afirma que os Theotokopoulos que viviam em Cândia


pertenciam à comunidade católica da cidade.

Na segunda metade do século XVI um terço da população e ao que parece


as classes altas em sua maioria [...]. Bettini recordou a este respeito o
testemunho de Luca Michiel, escrito em 1575, segundo o qual em Cândia
“i nobili cretesi vivono secondo il rito romano; i cittadini et la plebe
secondo il rito greco”.14

A tentativa de alguns autores de provar que El Greco teve como formação


religiosa a ortodoxa grega cairia por terra, pois as evidências estavam todas contra. A
começar pelo próprio nome, Domenikos, como os católicos e não Kyriacos, que era a
versão ortodoxa. Outro fato interessante é a declaração que El Greco faz às portas da
morte quando dá poderes a seu filho Jorge Manuel para fazer testamento em seu
nome, que ele acreditava e confessava “[...] todo aquele que crê e confessa a santa
Igreja de Roma”.15

Manussos Theotokopoulos, irmão dez anos mais velho, personagem que mais
se conhece da família Theotokopoulos pela quantidade de documentos encontrados,
teria desempenhado papel importante na vida de El Greco. Em 1566, o pai Giorgio já
havia falecido e de sua mãe, nada se sabe. Manussos foi coletor de impostos entre
1566-1583 pela República de Veneza e, nos anos 1569 e 1577, é citado em várias
ocasiões como Presidente da Confraria de navegantes da cidade. Era um homem de
destaque na sociedade candióta e claramente comprometido com o poder veneziano.

Alguns autores julgam que à morte do pai, o irmão mais velho encarregou-se
da educação de Domenikos, outros atribuem a ele a decisão de o jovem pintor ir rumo
a Veneza e, através de suas importantes relações, conseguir instalar-se no ateliê de
Ticiano. Há ainda quem supunha que os dois irmãos foram juntos a Veneza por
ocasião da nomeação de Manussos como coletor de impostos. Estas, no entanto, são
simples hipóteses não fundamentadas. Lopera afirma que havia um profundo afeto
que unia os irmãos e essa união se manteve ao longo da vida de ambos. Quando o
filho de El Greco nasceu em Toledo o pai lhe deu o nome do avô, Jorge, conforme a

13
Fernando MARÍAS. El Greco. p.30
14
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.14
15
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.14
tradição grega, mas acrescentou também o de seu irmão, Manuel. Porém, nos escritos
encontrados por Serrano Pintado, das memórias de Jorge Manuel, o filho de El Greco
escreve sobre o tio, Manussos, com tom de ironia, dando-lhe outra imagem

Meu tio foi o bom filho. Era o irmão mais velho e aquele que seguiu com o
negócio de arrecadação de seu pai. Para ele, Domenikos, o rebelde, o
inconformado, o aventureiro, assim o chamavam, foi deserdado. Mas a vida
e os desígnios de Deus são inescrutáveis. Meu tio Manuel, o virtuoso
herdeiro da família, uma vez morto o meu avô, e com seu irmão distante
em outras terras, gasta mais do que tem, dispôs do que foi arrecadado para
o Regidor, motivo pelo qual o encarceraram. E, foi seu irmão, meu Pai,
quem pagou sua dívida, comprometendo-se a fazê-lo em doze anos.16

Jorge Manuel ainda prossegue, dando detalhes de como foi a liberação de seu
tio do cárcere, e como o chamado padre Mariano, através da comunidade e de
conhecidos na Itália, interveio no translado de seu tio para Toledo. Confessa também
que El Greco nunca reprovou seu pai nem seu irmão pelo sofrimento que lhe
causaram. Lopera reforça esta afirmação: E em 1591, quando Manussos se encontrava
em situação desesperadora, o recolheu em sua casa dando-lhe guarida até o final de
seus dias. Na última frase:

Talvez com isso não tenha feito nada mais do que pagar a grande dívida
contraída com ele na juventude.17

A vida de Manussos ficou conhecida quando houve uma minuciosa pesquisa


nos documentos de Creta para elucidar o passado desconhecido de El Greco. Marías,
baseando-se no material encontrado sobre a família Theotokopoulos, faz uma
detalhada descrição da vida profissional de Manussos em que o relato feito por Jorge
Manuel coincide, porém só em alguns aspectos. Não há porque citar o irmão e estes
comentários, não fosse o caráter de Manussos, para alguns estudiosos, poder também
indicar traços da personalidade de El Greco, como um homem que pode ter sido,
segundo o autor, frio e calculista, que talvez tivesse abandonado uma suposta esposa
em Creta.18

Fernando Marías, em sua obra El Greco deixa claro que houve um certo
romantismo que serviu para construir uma imagem do artista que satisfizesse as

16
Jorge Manuel THEOTOCOPULI. Martes. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El
Greco.
p. 79
17
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p. 14
18
Fernando MARÍAS. El Greco. p. 38
pretensões culturais da Espanha da época. Na interpretação de Marías, que teve
acesso aos mesmos documentos já citados, lemos:

Membro de uma família grega de negociantes pouco escrupulosos,


funcionários da República de Veneza, de religião que tanto podia ser
ortodoxa, como católica, El Greco aparece nos documentos, desde a
juventude cretense como homem propenso a denúncias, a brigas e pleitos,
aparentemente capaz, inclusive de deixar uma família na ilha à qual jamais
regressaria. Homem de espírito pleno de inquietudes e de grandes
ambições, tanto profissionais como sociais e econômicas [....]19

O autor também contraria o que se havia dito sobre a educação que


Domenikos poderia ter recebido. Afirma que Domenikos não era um nobre cretense
ou um vêneto-cretense dos que poderiam pagar trinta ducados para estudar no
officium publicae lectiones de Cândia e que com mestres particulares católicos ou
ortodoxos, aprendiam línguas clássicas. Como sua família tinha recursos limitados,
sua educação talvez tenha se dado de forma pragmática com a leitura, a escrita e ao
ábaco, isto é, uma forma elementar de matemática, com algum mestre católico capaz
de ensinar também o dialeto vêneto. O jovem artista não necessitava de outro tipo de
formação, pois não estava destinado a ir para a Universidade de Pádua, na Itália, que
era freqüentada pelos nobres da ilha.20

Em sua pesquisa, no entanto, Marías confessa ser El Greco um dominador e


que em contrapartida, “para parecer que não somos por ele dominados, evoca nossa
capacidade para criar sucessivas e alternativas interpretações do artista e, dentre elas,
eleger aquela que possa satisfazer mais a nossa imagem pessoal do pintor”.21

Neste obscuro período em Cândia, apesar da diversidade de interpretações,


fica claro que El Greco, seja lá quem tenha sido seu mestre, formou-se como Mestre
Pintor em algum ateliê da cidade, na técnica tradicional de pintor de ícones feita com
têmpera e ouro sobre madeira.

Atualmente só duas obras são reconhecidas e atribuídas com segurança a este


primeiro período da vida de El Greco: São Lucas pintando a Virgem, 1565, Museu
Benaki em Atenas e, a La Dormición de la Virgen 1566, na igreja de Koímesis de
Ermoúpolis na ilha de Sira, esta última descoberta em 1983.

19
Fernando MARÍAS. El Greco. p.18
20
Ibid. p.45
21
Fernando MARÍAS. El Greco. p.21
Figure 2 El Greco. Dormição. Igreja de Koimesis de Ermopoles, ilha de Sira, Grecia. 1566.

1.3 El Greco em Veneza


Domenikos deixa a ilha de Creta para sempre tendo vinte e cinco anos
completos ao final de 1566. Não se conhece o itinerário desta viagem que, pela
distância, deve ter levado cerca de um mês. Pelos relatos de desaparecimentos de
navios, pelos turcos e piratas que assolavam o golfo de Veneza, esta foi com certeza
uma viagem arriscada.

O jovem cretense chega a Veneza para continuar sua carreira artística e com a
intenção de tornar-se Mestre da pintura renascentista, o que já seria uma meta muito
ousada, ou, conquistar a fama ou, talvez, como uma forma de dar vazão a seus ideais.

Na primeira pesquisa biográfica feita por Cossío, acreditava-se que


Domenikos teria chegado a Veneza em 1560 tendo lá permanecido por um período de
dez anos, até 1570. Foram, porém, encontrados documentos que atestam a
permanência do pintor até dezembro de 1566 em Creta. Atualmente sabe-se então,
que ficou em Veneza por um período de três a quatro anos (1566-7 – 1570).

Segundo estudos recentes, a viagem de Domenikos a Veneza deve ter sido na


primavera de 1567, pois os barcos que faziam essa rota preferiam os meses de maio a
outubro, quando as condições climáticas eram mais favoráveis.

Há uma carta datada de 18 de agosto de 1568 onde se diz que Domenikos


entregou uma série de desenhos a Manolis Dakypris, conhecido como Calapodas, para
que os entregasse ao cartógrafo cretense Giorgio Sideris. Esse intelectual cretense
seria o primeiro de uma série de personalidades da vida cultural a influenciar a
ascensão de El Greco como pintor, pode também ter sido o responsável por sua ida a
Veneza.22

Como Creta pertencia à República de Veneza, desde 1204, lá viviam cerca de


quatro mil gregos que contavam com sua própria igreja ortodoxa, São Jorge da
Grécia. Dentre eles poderemos encontrar os chamados madonieri, pintores gregos de
madonas que possuíam uma grande clientela grega da cidade. Neste estilo, alguns
pintores candiotas chegaram a atingir um certo renome no século XVI, como é o caso
de Mikail Damasceno, Giovanni di Manoli, Marco Canzo e Giovanni Lubini.23

Estes pintores gregos, em Veneza, incorporaram alguns elementos


renascentistas em suas obras, mas não se converteram em artistas ocidentais, não por
incapacidade, mas porque preferiram permanecer fiéis a suas origens ou por causa de
uma tomada de posição cultural. O que se constata é que confrontados com a
possibilidade, a ignoraram.24

Este é um episódio que torna El Greco um caso diferente. Não o fato de ter
saído de Creta e ter ido a Veneza, muitos gregos, artistas ou não, fizeram o mesmo.
Ao chegar em Veneza, já mestre “à grega”, abandona o universo artístico e cultural de
origem, dando um salto corajoso para converter-se em um homem ocidental, em um
pintor renascentista. A partir daí não seria mais considerado um artista oriental e
muito menos um bizantino.

[...] decidiu abandonar uma promissora carreira em Creta para fixar-se


em Veneza e, ao mesmo tempo, refazer sua arte a partir do zero para em
pouco tempo, tornar-se um pintor italiano. Foi uma decisão mais que
corajosa, pois exigia que um mestre amadurecido da pintura bizantina
esquecesse o quanto sabia daquele estilo abstrato para adquirir fluência
em outro, naturalista.25

Domenikos desembarca em uma Veneza, que embora já tivesse sido comercial


e politicamente mais poderosa, vinha sofrendo um declínio, depois que espanhóis e
portugueses vieram a ter acesso direto à África e à descoberta das Américas. Além do
tratado com os turcos que reduziu suas colônias, esses fatos contribuíram para
enfraquecer o domínio comercial que Veneza desfrutava. Contudo, isto não chegou a

22
Michael SCHOLZ-HÄNSEL. El Greco. p.12
23
José Luis MORALES Y MARIN. El Greco. p.8
24
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.25
25
Jonathan BROWN. Pintura na Espanha 1500-1700. p.62
causar um prejuízo ao jovem recém chegado da Grécia, pois Veneza continuava a ser
um importante centro cultural da Europa e, por isso foi para El Greco um período
marcante para a sua formação e desenvolvimento como pintor.

Por uma carta enviada ao Cardeal Alessandro Farnese, Giulio Clovio apresenta
El Greco como “discípulo de Ticiano”. Saber se El Greco foi um discípulo que
conviveu com Ticiano empenhado em suas obras, em seu ateliê, ou se foi apenas um
seguidor de seu estilo, foi para os pesquisadores uma tarefa árdua.

Quando El Greco chega a Veneza, Ticiano Vecellio (1488-1576) já é um


pintor consagrado, que tem por volta de oitenta anos, mas continuava à frente de seu
ateliê a serviço quase que exclusivo dos mais importantes clientes da Europa.

Envia ao Cardeal Farnese em 1567 como presente uma “Madalena


Penitente” de Nápoles, junto a outros favores a Pio V e ao Cardeal
Alexandrino (Michele Bonelli). Em dezembro do mesmo ano escreve a
Felipe II anunciando o envio de seu “Martírio de São Lourenço” e uma
“Vênus desnuda”, no ano seguinte 1568, também para o rei da Espanha,
envia o “Tributo da moeda de Londres” e dois anos mais tarde,
“Tarqüino e Lucrecia” de Cambridge.26

Em 1570, El Greco vai a Roma e se hospeda no Palácio Farnese, onde


provavelmente já está a Madalena Penitente de Ticiano que lhe servirá de modelo
para as suas Madalenas que serão analisadas no capítulo 4.

Ticiano representava para o jovem candióta o mito de um artista histórico,


porém vivo. Esta admiração tornou-se evidente através de sua obra, das anotações que
fez nas margens de seu exemplar A vida dos artistas de Giorgio Vasari e da
homenagem que faz ao retratá-lo junto a Michelangelo, Giulio Clovio e Corregio ou
Rafael para em sua famosa obra A expulsão dos mercadores do Templo (1570-
1575), atualmente no Instituto de Arte de Mineápoles.27

Não há nenhum documento que tenha registrado que El Greco esteve na


oficina de Ticiano participando da elaboração de suas obras, no entanto, a influência
não só de Ticiano, mas também de Tintoretto, Veronese e Schiavone aparece nas
características de sua obra. Os comentários anotados nas margens de seu exemplar, A

26
Fernando MARÍAS. El Greco. p.58-59
27 Michael SCHOLZ-HÄNSEL. El Greco. p.22-23
vida dos artistas, de Vasari, não deixam dúvidas quanto à admiração que El Greco
nutria por Ticiano e por seu sucessor Tintoretto (1519-1595). Tintoretto tinha gravado
nas paredes de seu ateliê a idéia de conciliar o desenho de Michelangelo e as cores de
Ticiano, El Greco, fez também sua essa pretensão e “foi capaz de harmonizar estes
dois aspectos básicos, e ao mesmo tempo aparentemente irreconciliáveis, da
pintura”. 28 A arte de Veneza diferia-se da arte de Roma e de Florença porque
privilegiava as cores em detrimento do desenho.

O que se pode concluir é que houve uma real influência de Ticiano na arte de
El Greco, porém o que se contesta é que tenha participado nas obras do grande pintor
em seu ateliê em Veneza. Quanto à carta de Giulio Clovio que o denomina como
“discípulo de Ticiano” ao pedir ao Cardeal Farnese uma acomodação para o jovem
cretense em Roma, o uso do nome de Ticiano pode ter duas hipóteses: o renome de
Ticiano elevaria o conceito de Domenikos e facilitaria a aceitação do pedido de
Clovio pelo Cardeal ou, a segunda; o termo “discípulo” além de significar aluno,
também pode pressupor “seguidor”. 29 Ticiano representava a opção clássica,
Tintoretto ao contrário era mais atual e por isso capaz de expressar as inquietações e
contradições de seu tempo, o que sem dúvida deve ter encantado a Domenikos.

A curta permanência em Veneza teve uma parcela maior na formação do estilo


de El Greco do que qualquer outro período de sua vida, porém, a grande e real
influência foi e continua sendo Tintoretto, “cujo ‘renascimento espiritual’ coincidiu
com a estada de El Greco em Veneza, continuaria a influenciar toda a vida de El
Greco”. 30 Mas, foi em Ticiano que Domenikos se inspirou para retratar Maria
Madalena.

Em Veneza, Domenikos teve contato com a linguagem ocidental artística,


desde a forma de construir um volume no vazio espacial, o desenho da anatomia de
um corpo nu, a arquitetura clássica e a paisagem. Enfim, deixa o tradicional fundo
dourado e em seu lugar, se esforça para colocar suas figuras no espaço, submetendo-
as às leis da perspectiva. Deixa a madeira e dá preferência às telas, conhece a pintura
a óleo, no entanto, continuará ainda usando a têmpera para começar suas obras.31 Sua

28
Fernando MARÍAS. El Greco. p.58-59
29
Rodrigo NAVES. El Greco. p.36
30
Arnold HAUSER. Maneirismo. p.343
31
Michael SCHOLZ-HÄNSEL. El Greco. p.12
permanência em Veneza, embora curta, deixou marcas no seu estilo durante toda a
vida do pintor.

“Da formação veneziana de El Greco advém a sua maestria na arte do


retrato”.32 As figuras que retratou ao longo de sua vida, expressavam em seus rostos
seus sentimentos. Dominou a técnica renascentista da representação da figura humana
a tal ponto que parecia dar vida às que retratava. O retrato do poeta e amigo Frei
Hortênsio Felix Paravicino é considerado uma das maiores obras de todos os tempos
em termo de retrato. Não menos famoso é também o retrato do Inquisidor Geral e
Arcebispo de Sevilha, Cardeal Fernando Niño Guevara, em 1600. Estas duas obras
pertencem ao tempo em que El Greco viveu em Toledo.

El Greco realiza neste período veneziano alguns temas que viria a repetir
durante sua vida, tais como: A adoração dos Reis, A fuga para o Egito, A Anunciação,
São Francisco e o Irmão Leão, A expulsão dos vendilhões do Templo entre outros. É
pela repetição de temas que ficou evidente a evolução artística de Domenikos.

32
Anthony E. JANSON. História geral da arte. p. 677
1.4 El Greco em Roma

Em 1570, uma das poucas datas indiscutíveis da biografia do pintor, El Greco


mudou-se para Roma, centro artístico da Itália e capital do mundo cristão, onde
recentemente Michelangelo havia falecido. Antes, teria passado por Mântua, Parma,
onde se dedicaria ao estudo de Correggio, Florença e Assis. Esta última cidade foi
fundamental para o percurso de Domenikos, pois, lá conheceu o pintor e miniaturista
Giulio Clovio, um protegido do Cardeal Alexandre Farnese e em cujo palácio residia.

Clovio, filho de um grego da Croácia também falava a língua grega, o que


representou mais um forte elo entre os dois pintores. Clovio imortalizou-se não só
pelas pinturas em miniatura que realizou, mas sobretudo por um quadro que El Greco
lhe dedicou. Hoje essa pintura está exposta na Galeria Nacional de Capodimonte, em
Nápoles. Através da já citada carta ao Cardeal Farnese, Clovio apresenta Domenikos
ao Cardeal.

“Chegou a Roma um jovem candiota, discípulo de Ticiano, que a meu


ver figura entre os excelentes em pintura. E, entre outras coisas, fez um
retrato de si mesmo que causou a estupefação de todos os pintores de
Roma. Gostaria de o receber sob a sombra de Vossa ilustríssima e
Reverendíssima, sem que necessite de outra coisa para viver a não ser
uma câmara no Palácio Farnese, por um pouco de tempo até se poder
acomodar melhor. Assim, rogo-lhe e suplico-lhe que se digne escrever ao
Ludovico, seu mordomo, para lhe dispor no referido palácio uma estância
no cimo. Vossa Ilustríssima faria assim uma obra virtuosa e digna de
Vossa Senhoria e eu lhe ficarei muito obrigado. E beijo-lhe com
reverência as mãos. De Vossa Senhoria Ilustríssima e Reverendíssima,
humildíssimo servidor”. Giulio Clovio. Carta publicada pela primeira vez
por Amadio Ronchini, 1865, t.III, p.168.33

Esta carta é um marco nos documentos que registram a estada de Domenikos,


que a partir daí tem seu nome latinizado e começaria a ser conhecido como “Il Greco”
na Itália.

Uma importante relação de amizade que Domenikos estabeleceu em Roma, foi


com Fulvio Orsini, bibliotecário do Cardeal Farnese. Orsini foi um homem culto, um
exemplo de humanista de sua época: era filósofo, literato, tinha grande conhecimento
da Antigüidade, interessava-se por todas as áreas do saber. Ser amigo de Orsini
facilitou a El Greco freqüentar as disputadas reuniões que aconteciam na biblioteca do
Palácio Farnese, na qual participava o seleto grupo da elite intelectual e artística de
Roma, para discutir as mais diversas questões. Entre elas talvez, a teoria artística, pois
Orsini era, além de colecionador e apaixonado por antigüidades, competente o
bastante para que tenha sido encarregado de elaborar a decoração da Villa Caprarola,
residência de verão do Cardeal Farnese.

[...] pertencer ao círculo orsiniano deve ter sido fator determinante para
fortalecer a autoestima do cretense e reforçar sua convicção de que a arte
é uma atividade cognitiva, eminentemente intelectual, e o artista,
portanto, um filósofo, um homem superior cujos conhecimentos devem
abarcar os campos mais diversos e elevados ,por conseguinte da mesma
estima social que os humanistas e literatos.34

33
José Luis MORALES Y MARIN. El Greco. p.61
34
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.35
Não se sabe quanto tempo El Greco permaneceu sob a tutela do Cardeal no
Palácio Farnese. Há um fato porém que permite supor que tenha sido por volta de
1572. Neste ano, Domenikos ingressou na Academia São Lucas, que era uma
congregação de artistas que se reuniam para defender seus direitos em Roma. Os
aspirantes eram submetidos a rigorosos testes para demonstrar suas capacitações e
uma vez, quando aprovados, pagavam pelo direito ao ingresso, podiam ostentar o
título de padrone e abrir um ateliê próprio na cidade.

A vinculação de El Greco na Academia São Lucas não significa o


rompimento do artista com o Cardeal Farnese, marca somente seu início como pintor
independente que não contou com nenhum mecenas importante neste período,
tampouco recebeu encomendas do meio eclesiástico ou público de maior significado,
apenas trabalhou para particulares. Estes fatos aumentam a suspeita de que então,
durante toda a sua estada em Roma, El Greco seguiu dependendo das relações que
havia feito ao chegar. Um único nome entre os clientes particulares é conhecido, um
advogado chamado Lancelotti, amigo de Orsini, ligado, portanto, ao Palácio Farnese.

Neste período romano de pouco prestígio, El Greco ocupou-se em estudar e


aperfeiçoar-se e os resultados deste empenho podem ser apreciados na segunda versão
da Purificação do templo (1570 – 1576). Há nesta obra uma maior integração das
figuras ao meio espacial. Esta evolução na arte de El Greco se deve ao estudo de
Michelangelo, artista por quem o pintor mantinha uma relação de ambivalência, pois
sentia por ele uma intensa admiração no que se refere ao tratamento que Michelangelo
dispensava à forma humana, porém o achava deficiente como verdadeiro pintor.35

1.4.1 El Greco e Michelangelo


Durante muito tempo pensou-se que as palavras de Francisco de Pacheco em
sua obra El arte de la Pintura, 1647, sobre o desprezo que Greco nutria por
Michelangelo enquanto pintor, não correspondessem à realidade, “era um bom
homem que não soube pintar”.36 No entanto, ao serem encontradas as anotações que
El Greco fez nas marginais do livro de Vasari, ficou comprovada a convicção do
cretense. El Greco julgava Michelangelo um mau pintor, mas tinha uma forte
admiração pelo domínio que o mesmo demonstrava ao desenhar um corpo humano.

35
Jonathan BROWN. Pintura na Espanha 1500-1770. p.65
36
Francisco PACHECO. Arte de la pintura. p.349
El Greco desprezou o Juízo Final mas tomou suas marcantes figuras como modelo,
sem perder por isso a coerência.37

O primeiro documento que se refere ao desprezo de El Greco pela pintura de


Michelangelo está na obra de Giulio Mancini, médico e historiador que em sua obra
Considerazioni sulla Pittura, escrita entre 1614 – 1620, um testemunho da estada de
El Greco em Roma. Nesta curta narrativa sobre a vida do pintor cretense, Mancini
relata que quando o Papa Pio V (1568 – 1572) aventou a hipótese de que as figuras do
Juízo Final de Michelangelo deveriam ser cobertas, por serem consideradas
indecentes, de acordo com os novos padrões de arte da Contrarreforma. El Greco teria
dito que “se fosse colocada abaixo toda a obra, ele a executaria com honestidade,
decência e não inferior a esta e com boa execução pictórica”. Continuando:

Indignando a todos os pintores e aos amantes da pintura, teve que ir a


Espanha, onde sob as ordens de Felipe II pintou muitas obras de muito
bom gosto. Mas, com a chegada de Pellegrini da Bolonha, Federico
Zuccaro e alguns outros flamengos, com sua arte e astúcias ocuparam os
primeiros lugares, assim resolveu ir-se da Corte retirar-se para Toledo
onde morreu muito velho e quase ausente da arte. Contudo, foi homem
para ter conseguido estar, no vigor da idade, entre os melhores de seu
século.38

Se for verdade que El Greco se convertera em um dos melhores de sua época,


segundo Mancini, então a proposta iconoclasta ou para alguns quase um sacrilégio,
que Domenikos fez sobre a obra de Michelangelo da Capela Sistina, talvez tenha
mudado a sua sorte. El Greco ao denunciar um “pecado artístico” de Michelangelo e
ao se propor a “reparar o erro”, teria ficado em uma situação difícil não só diante dos
artistas romanos que veneravam o mestre Michelangelo, mas também junto aos
clientes de seu ateliê. Há controvérsias sobre este episódio da vida de El Greco em
Roma, pois a nudez do Cristo do Juízo Final e de outros personagens da obra de
Michelangelo já teria sido coberta por Daniele de Volterra, “Il Breghatone”, em 1564
– 1566, anos antes que El Greco tivesse chegado a Roma e também “parece pouco
provável que tenha se proposto a refazer uma obra de tal envergadura, sem nunca, que
se saiba, tivesse trabalhado em afrescos”.39

37
José ÁLVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.39
38
Giulio MANCINI. Apud José ÁLVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.39
39
José ÁLVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial p.38
De qualquer forma, o que se pode dizer é que mesmo admirando Michelangelo
na arte do desenho humano e na escultura, as críticas irreverentes que El Greco teria
feito sobre a arte da pintura do venerável artista, suscitou ódios ferozes entre alguns
artistas e esta circunstância teria forçado o cretense a abandonar Roma e a mudar-se
para a Espanha.

Lendas à parte, os motivos que precipitaram a mudança para a Espanha podem


ser outros. El Greco era na Itália, país de grandes nomes e escolas de pintura, um
estrangeiro. A concorrência era acirrada, não tinha ainda conseguido o sucesso como
pintor independente em seu ateliê. Seu caráter orgulhoso, íntegro e consciente de seu
valor, junto à oportunidade advinda da decoração do Escorial, na qual Felipe II,
mecenas de Ticiano, convocava os melhores artistas, podem ter motivado El Greco a
deixar Roma e ir à Espanha.

1.4.2 A decisão de deixar Roma


A Espanha de Felipe II tornara-se o Eldorado dos artistas e também neste
aspecto, o bibliotecário, amigo e cliente de El Greco, Fúlvio Orsini que o inseriu na
vida acadêmica de Roma, o apresentou a Pedro Chacón (1526 –1581), cônego de
Toledo. Chacón vivia em Roma desde 1571 como colaborador da reforma do
calendário eclesial e também nas pesquisas de moedas, pesos e medidas da
Antigüidade. Foram esses interesses eruditos que fizeram de Pedro Chacón e do
bibliotecário Orsini grandes amigos, que segundo relato de cartas, “desfrutavam
tardes ao ar livre em animada conversa”.40

Pedro Chacón viera a Roma em companhia do jovem Pedro de Castilla (1540


– 1618), que se tornou grande amigo de El Greco até a morte do pintor, sendo um de
seus dois testamenteiros em 1614. O pai de Pedro de Castilla, de quem era filho
bastardo, era o deão da catedral de Toledo, Dom Diego de Castilla (1507 – 1584) e,
embora já se tenha especulado que El Greco teria ido à Espanha com trabalho certo, o
mais provável é que tenha ido por conta própria, contando com a influência dos
amigos espanhóis para realizar seu sonho ambicioso de ser um dos artistas a decorar o
Escorial.

40
Fernando MARÍAS. El Greco. p.120
Os espanhóis haviam falado a Domenico de suas possibilidades de êxito
em seu país, onde não existiam pintores de seu nível, onde os
italianizados como — Alonso Barruguete ou Gaspar Becerra, ao que
citava Vasari — alcançavam os melhores encargos e os favores do rei, e
onde também dois italianos o criminal Leone 1509-1590 e seu filho
herege Pompeo Leoni 1533-1608, monopolizavam a cultura real.41

A ida de El Greco à Espanha de qualquer maneira não foge à lógica. Ele


nascera em Creta, uma ilha grega colônia da República de Veneza. Um pintor grego-
oriental que se encantou com o humanismo renascentista da Itália, vai porém
encontrar na Espanha, o país mais oriental da Europa, a sua segunda pátria.

El Greco não queria viver como um artista italiano sem o reconhecimento que
ele julgava ter, era apenas um estrangeiro grego que havia abandonado Creta por não
querer ser só mais um artesão. Decidido a enfrentar um novo desafio, pois o primeiro
foi há dez anos em 1567 quando deixou sua terra natal, deixa então Roma. Em 1577,
com trinta e cinco anos parte da Itália onde aprendeu a ser um artista diferente, havia
penetrado profundamente na cultura, na pintura e na língua italiana, participado da
nata da sociedade acadêmica romana e conhecido importantes clérigos.
Paradoxalmente estava como há dez anos, tinha seu material de pintura, algumas
cartas de recomendação, os livros adquiridos em Veneza e Roma e algumas roupas.
Talvez, sua alma sentisse a frustração de um sonho não realizado, mas já não era o
mesmo homem, tampouco o mesmo pintor. Os dez anos em que permaneceu na Itália
acrescentaram-lhe uma vasta e rica experiência cultural, artística e porque não social.

Acompanhado pelo jovem discípulo italiano Francesco Preboste, sai de Roma,


passa por Florença, Pisa, em direção à cidade portuária de Gênova, onde embarca
rumo à Península Ibérica.

1.5 El Greco na Espanha

El Greco chegou a Madri na primavera de 1577 com o firme propósito de


obter na Espanha o patrocínio que não havia conseguido em Roma. No entanto, em
julho do mesmo ano já se encontrava em Toledo para realizar uma importante
encomenda de sua carreira como pintor.

41
Fernando MARÍAS. El Greco p.121.
“Para expressar minha gratidão concordo em aceitar 1000 ducados ao
invés dos 1500 oferecidos.” El Greco, no contrato para seu primeiro
trabalho na Espanha.42

Nada se sabe sobre o que teria ocorrido com o pintor em Madri, ir a busca de
trabalho no Escorial seria uma tarefa improdutiva, pois Alonso Sanchez Coelho e
Juan Fernandez de Navarrete “o Mudo” ocupavam os postos de trabalho como
pintores reais.

Toledo havia pouco tempo, desde 1561, já não era mais a corte imperial da
Espanha. A instalação da corte em Madri afetou pouco a vida toledana. “Era apenas a
capital teórica de uma monarquia nômade”.43 Porém, a Toledo que El Greco encontra
é ainda uma cidade próspera que girava em torno de sua catedral primada da Espanha.
Depois do Vaticano, Toledo tinha a catedral mais poderosa em renda e poder. A
catedral era uma máquina de bombear dinheiro sobre a cidade à margem de qualquer
outra atividade econômica. O arcebispo primaz da Espanha era o segundo em
importância na órbita católica e, depois do Papa, suas rendas o tornavam no clérigo
mais rico da Espanha.

Esta metrópole, além do poder eclesial, dos numerosos conventos, era também
um importante centro industrial e comercial. A sua economia só seria abalada quando
os mouros foram expulsos, um pouco antes da morte de El Greco em 1614. Toledo
também continuou sendo a capital intelectual, pois lá viviam muitos poetas,
humanistas e juristas importantes.

A Espanha que El Greco encontra é o país mais poderoso da Europa que


domina na Itália os reinos da Sicília e de Nápoles, além do ducado de Milão, parte da
França, da Alemanha, Países Baixos, e as Américas. A elite espanhola mantinha um
intercâmbio ativo com a arte e a cultura do resto da Europa até que com o
encerramento do Concílio de Trento, em 1563, ocorreu uma acirrada censura que
interrompeu o desenvolvimento da Espanha renascentista. Em um país onde outrora
os escritos de Erasmo foram muito divulgados, era agora cerceado com a proibição da
importação de livros. Os nobres e a elite da Espanha da Contrarreforma e da
Inquisição vão a outros países da Europa para poder prosseguir seus estudos. A

42
Philip TROUTMAN. El Greco. p.10
43
Paul GUINARD. El Greco. p.22
Espanha foi a nação líder na obra da Contrarreforma, uma vez que a união
nacionalismo e religião concorria para consolidar e unificar o estado espanhol.44

Na realidade o exemplo de El Greco demonstra o contrário desta


intolerância: a surpreendente capacidade integradora da sociedade
espanhola no final do século XVI. As reformas levadas a cabo no começo
do século sob a influência de Erasmo de Rotterdam haviam convertido a
Espanha do Escorial na ponta de lança de uma nova era confessional que
se associou durante muito tempo com o conceito unilateral e, portanto,
obsoleto da Contrarreforma. Com a ajuda de círculos eclesiásticos
abertos, um estrangeiro como El Greco pôde desenvolver aqui e ali as
primeiras idéias iconográficas barrocas que acabariam por se impor no
século XVII.45

Os artistas espanhóis, pintores e escultores não sentiram tanto o peso das ações
coercitivas da Contrarreforma, pois ainda eram considerados artesões. Enquanto na
Itália, Leonardo Da Vinci já havia dito fazia quase um século que “o artista pinta com
a mente”, a arte da pintura e da escultura espanhola ainda não participava das ciências
liberais.

Para melhor compreender a vida e a obra de El Greco na Espanha faz-se


mister conhecer o contexto histórico de sua época, na qual o maior mecenas era Felipe
II, rei de Espanha, o monarca mais poderoso da Europa. Era a Espanha da Inquisição
da Contrarreforma e dos reis católicos que será mais bem detalhada no capítulo 3
desta dissertação.

1.5.1 A Toledo de El Greco

A atmosfera de Toledo foi decisiva para a obra de El Greco. Em 1577, ano em


que El Greco chegou, Toledo era uma cidade com um passado ilustre, um presente
próspero, mas conturbado pela Inquisição e por esse motivo, com um futuro incerto.
Toledo fora um importante centro civil e religioso na Espanha. Já nos primeiros
séculos da Era cristã, Toledo começou a definir-se como centro do catolicismo
espanhol, e do século V ao século VII, foi sede de alguns concílios religiosos.46 Sua
importância política data do século VI quando Leovigildo, um rei visigodo a escolheu
como capital. No século VII, a arquidiocese de Toledo tornou-se a sede primada da

44
Rodrigo NAVES. El Greco. p.91-92
45
Michael SHOELZ-HÄNSEL. El Greco. p 42-46
46
Jonathan BROWN ; Richard L. KAGAN. La “Vista de Toledo”. In: Jonathan BROWN et al.
Visiones del pensamiento. p. 42
Espanha, o que significava que tanto os dirigentes do Estado assim como os da Igreja
lá residiriam.

Toledo era descrita como centro e coração da Espanha, sede dos poderes
político e espiritual e ainda que o primeiro pudesse ter se ausentado, — Felipe II
havia mudado a capital para Madri, — continuava sendo considerada a “Segunda
Roma”. 47 Por outro lado, a Toledo que El Greco conheceu, era uma cidade
fundamentalmente orientalizada, representante fiel da visão mítica da Espanha
medieval onde haviam convivido pacífica e produtivamente as três culturas: cristã,
judia e muçulmana.

A glória cristã de Toledo foi interrompida em 712, quando a cidade foi


conquistada pelos muçulmanos ao mando do rei Tarik. Durante 373 anos, Toledo foi
um baluarte árabe, ainda que seus governantes permitissem a prática do cristianismo.
Em 1085 houve a reconquista de Toledo, sob o reinado de Alfonso VI que outorgou o
título de Cidade Imperial e três anos depois confirmou a primazia do arcebispo de
Toledo, assegurando que a associação Igreja e Estado continuaria.

A construção de sua Catedral que teve início no século XIII e terminou no


final do século XV, é ainda hoje, pela majestade do edifício e de seu campanário
eminente, um marco que caracteriza Toledo.Também El alcazar, uma fortaleza
muçulmana, localizada na parte mais alta da cidade, em 1535 foi reformada sob a
ordem de Carlos V e se transformou em um grandioso edifício renascentista. Essa
reforma só terminou quase trinta anos depois quando já reinava Felipe II. Em 1560,
ao terminar a reforma, Felipe II fixou lá sua residência, porém um ano depois mudou-
se para Madri, setenta quilômetros ao norte de Toledo e poucas vezes durante seu
reinado voltou à Cidade Imperial.

A mudança da capital para Madri embora tenha influenciado o aspecto


econômico e social de Toledo, não deu mostras deste efeito ao longo do século XVI.
Por isso, El Greco encontra uma cidade onde a indústria da seda, brocados de veludo,
tafetás e também na fabricação de facas e espadas, mantinha ainda suas cotas
elevadas.

Quanto à vida intelectual, os colégios São Bernardini e Santo Eugênio, onde se


lecionava Teologia e Artes, proporcionavam à cidade importantes reuniões culturais,

47
Fernando MARÍAS. El Greco. p.170
equiparando Toledo às cidades de Salamanca e Alcalá, sede das importantes
universidades da época. No que se refere às Artes Plásticas, no entanto, a pintura que
se produz em Toledo por ocasião da chegada de El Greco, é de baixa qualidade.48

A vida cultural da cidade, quando El Greco chega a Toledo era ativa e


florescente graças ao dinamismo que era irradiado pelos círculos de poetas e literatos,
chamados de Academias. Dentre elas, foi famosa a que se reunia na casa de Dom
Diego Lopez Ayala, convertida numa biblioteca repleta de livros seletos, havia
também a do conde de Fuensalida e Dom Pedro. Não era usual a inclusão de pintores
nos círculos acadêmicos, por se considerar este trabalho mais artesanal que
intelectual. Outros pintores contemporâneos de El Greco não participaram destes
círculos ou academias.49 El Greco vivera durante dez anos na Itália renascentista onde
os artistas desde o final do século XV já haviam conseguido deixar a condição de
artesãos.

Toledo era na época de El Greco uma cidade dominada econômica e


religiosamente pela Igreja. A vida do toledano se fazia ao redor de sua poderosa
Catedral. A cidade que outrora conviveu com as três culturas, agora tinha a inexorável
marca da Inquisição. O tribunal de Toledo tinha como objetivo principal aplicar o que
na época chamou-se de “estatuto da limpeza de sangue”. Este estatuto rezava que se
deveria evitar que toda pessoa com antecedentes suspeitos de possuir origens
judaicas, viessem a ter algum cargo público relevante.

No rigor dos estatutos, a prevenção a ser “contaminado” afetou as relações


pessoais, o ascendente judeu deveria ser evitado. Aos conversos, restavam somente as
tarefas como mercadores, tecelões, sapateiros, entre outras, banqueiros para os mais
abastados e cobradores de impostos. Os mais cultos foram livreiros e ficaram
conhecidos também por serem excelentes médicos e cirurgiões.50

A Inquisição espanhola havia sido estabelecida em 1483 e estabeleceu uma


política de exclusão que fez crescer as tensões religiosas e se espalhou por toda
Europa. El Greco esteve em contato direto com a Inquisição em duas ocasiões. A
primeira como intérprete de um compatriota grego em 1582, quando o jovem de
dezessete anos, Micael Rizo Calcandil fora acusado de heresia, mas ao final do

48
José Luis MORALES Y MARIN. El Greco. p.17
49
Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El Greco. p.130
50
J. SANCHEZ LUENGO. Los enigmas de Doménico Theotocopoulos, El Greco. p.97
processo foi julgado inocente. A segunda vez foi após o fracasso como pintor do
Escorial, e se tratou do intento de El Greco encontrar um ou mais mecenas
procedentes do clero toledano. Desse encontro resultou o famoso retrato do Cardeal
Niño de Guevara, já citado no item 3, em 1600.51 Contrariando os planos de El
Greco, o famoso cardeal da Inquisição que poderia ter se tornado útil ao pintor, foi
em 1601 elevado à Cátedra de Sevilha.

Em Toledo conheceu Doña Jerônima de las Cuevas com quem teve seu único
filho, Jorge Manuel, fez diversos amigos clérigos e intelectuais que também foram
seus patronos e lá viveu até a sua morte em 1614.

1.5.2 A vida íntima de El Greco em Toledo

El Greco chega a Toledo em 1577 e, em 1578, nascia seu único filho, Jorge
Manuel Theotokopoulos. Possivelmente, logo ao chegar a Toledo El Greco deve ter
conhecido Doña Jerônima de las Cuevas. As informações que se têm sobre o
relacionamento do pintor com a mãe de seu filho são contraditórias, pois só se teve
conhecimento desse fato porque em 1614, o pintor deu a Jorge Manuel o poder de
realizar o testamento em seu nome. Nesta ocasião, El Greco deixou documentado que
Jorge Manuel era seu filho e de Doña Jerônima de las Cuevas, declarando que ele
seria seu herdeiro universal.

Há muitas teorias sobre o relacionamento de El Greco e de Doña Jerônima e


com a evolução das pesquisas, no encontro de documentos, algumas se confirmaram,
no entanto a maior parte caiu por terra. Imaginava-se que ela teria sido uma jovem

51
Michael SHOLZ-HÄNSEL. El Greco. p.46
aristocrata por causa do título “Doña”, mas no século XVII, esse título já estava
generalizado e não designava mais as mulheres procedentes da aristocracia52. Não há
documentos que atestem que ela foi casada com o pintor, nem referência sobre a sua
morte, ou ao menos do local onde tenha sido enterrada.

Um diário de Jorge Manuel, filho de El Greco, encontrado por Serrano Pintado


e que em 1999 foi publicado com o título Mi Padre El Greco confirma algumas das
especulações a respeito da vida de sua mãe, Doña Jerônima.

Extraindo-se do texto a visão idealizada de um filho por seus pais, temos como
fatos confirmados: Doña Jerônima era irmã de Juan de las Cuevas, um comerciante de
sedas, casado com Petronilha de Madrid. O pintor conheceu a mãe de seu filho em
uma missa, e após um ano, nasce Jorge Manuel e Doña Jerônima morre no parto. O
trauma causado pela morte prematura da mulher amada no parto de seu único filho,
teria sido a razão de nunca mais El Greco voltar a se relacionar com outras mulheres.

“Castigo de Deus, por nosso pecado”, me dizia sempre, “morreu tua


mãe”.53

52
Fernando MARÍAS. El Greco. p.164
53
Jorge Manuel THETOCOPULI. Domingo. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El
Greco. p.22-23
Essa frase que Jorge Manuel atribui a seu pai, pode explicar alguns pontos
obscuros para os pesquisadores da vida do cretense como: de que ele não se casara
por já ter deixado uma suposta esposa em Creta ou na Itália; elucida a omissão sobre
ela em toda sua vida em Toledo; porque ele nada dispôs a ela em seu testamento e
que El Greco, realmente, prosseguiu sua vida em Toledo relacionando-se com a
família Cuevas até sua morte.

Alvarez Lopera54 e Marías55 citam Juan de las Cuevas, casado com Petronila
de Madrid como possível irmão de Doña Jerônima. O casal teve um filho, Manuel de
las Cuevas e consta que seu primo Jorge Manuel aparece como tutor da pessoa e dos
bens de Manuel em 1603. Ao se emancipar em 1610, Jorge Manuel devia ao primo,
Manuel, de quem era tutor, 164.000 marevides, o que denota uma certa posição
econômica da família Cuevas.

Outro ponto obscuro é que não se tenha encontrado em nenhuma igreja


contemporânea a El Greco o registro de batismo de Jorge Manuel. Quanto às
especulações, há muitos biógrafos que atribuem este fato à possibilidade de Doña
Jerônima ser nova cristã. Na Toledo da Inquisição e da Contrarreforma, ter sangue
judeu era ser impuro. Sanches Luengo ousa afirmar que a relação ilícita com Doña
Jerônima, ter tido com ela um filho bastardo e morar em um bairro, cuja maioria dos
habitantes eram cristãos conversos, teria sido o motivo que levou Felipe II a se
desinteressar pelo cretense.

Devem ter chegado aos ouvidos de Felipe II que El Grego não tinha
escrúpulos de se relacionar com os conversos. Sua vida no bairro judeu,
sua relação com Jerônima de antecedentes pouco claros. Felipe II
desagradou-se com essas informações e, sem desqualificar a arte evidente
do quadro, não colocou o quadro no altar para o qual se destinava. Como
poderia colocar no Escorial, templo máximo do catolicismo, um quadro
de um grego que não se resguardava e andava com conversos. Que não
havia batizado seu filho e não se arrepende nem mostra escrúpulos de
relacionar-se com tipos de clara antecedência hebréia.56

54
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.78
55
Fernando MARÍAS. El Greco. p.164
56
J. SANCHES LUENGO. Los enigmas de Doménico Theotocopoulos, El Greco. p.116
Sanches Luengo também considera o comentário do Padre Sigüenza sobre El
Greco em relação à sua obra O Martírio de São Maurício como pouco confiável. Seja
como for, as portas do Escorial se fecharam para o cretense, como será mais bem
detalhado no item 2 do capítulo 3 desta pesquisa. El Greco devia conhecer a vontade e
o temperamento do poderoso monarca, desta feita, a possibilidade de um próximo
trabalho real era praticamente nula.

A vida íntima de El Greco possui muitos mistérios. Depois de sair de Creta,


sempre foi um estrangeiro, o estudo de suas assinaturas nas suas obras mostra que ele
sempre preservou sua origem grega. Na sua redescoberta pelos modernistas, depois de
quase três séculos de esquecimento, houve um ufanismo para que ele fosse
considerado um pintor espanhol. Mas, não se deve esquecer que sua marginalização
após sua morte deveu-se sobretudo à sua maneira diferente de pintar. Ele estava fora
dos padrões artísticos de sua época. Foi considerado um extravagante perdulário, pois
quando tinha dinheiro contratava músicos que tocassem na hora de seu jantar. Teria
aprendido isso quando vivera na Itália, pois era um hábito da aristocracia.

Sua vida em Toledo foi permeada por litígios, El Greco não se submetia à
vontade de seus clientes, tinha consciência de que não era apenas um artesão, mas um
intelectual e mestre em pintura. Estudos recentes sobre os litígios, mostram que houve
uma interpretação errônea, quando alguns estudiosos foram muito duros e
precipitados ao tirarem conclusões adversas sobre a personalidade do cretense. El
Greco esteve longe de ser um proscrito na sociedade toledana, como se verá no
próximo item sobre suas relações sociais. Era um artista a frente dos espanhóis de seu
tempo, que ainda consideravam a pintura um artesanato, arte mecânica. Diego
Velazquez (1599-1660), um artista posterior a El Greco, porém protegido de Felipe
IV, teve dificuldade para entrar em La orden de los caballeros de Santiago, por
indicação do rei, pois a mesma excluía aqueles que tivessem pais ou avós com
atividades mecânicas, dentre as quais se incluía a pintura. Apesar de tentar demonstrar
sua origem nobre e de ter o apoio de Felipe IV, a admissão de Velazquez à ordem só
foi possível porque obteve uma dispensa especial do Papa.57

1.5.3 Os amigos e clientes de El Greco em Toledo

Figure 3 El Greco, Vista de Toledo. Metropolitam Museum New York, (1596-1600.)

57
Richard L. KAGAN. El Greco y la ley. In: BROWN, Jonathan et al. Visiones del pensamiento.
p.131
Nós, os toledanos, somos retraídos e desconfiados: fechamos nossas
portas, receosos aos estranhos; mas uma vez que neles confiamos,
fazemos do estrangeiro centro das atenções e cortesias [...] Assim fizeram
com meu Pai os toledanos, o acolheram e lhe ofereceram amizade.58

Jorge Manuel define assim a maneira como El Greco foi acolhido e admirado
em Toledo e justifica porque o pintor em sua famosa obra O enterro do Conde de
Orgaz quis retratar alguns amigos toledanos.

Há uma unanimidade na controversa biografia de El Greco. Ele se relacionou


em Roma, como já foi colocado em itens anteriores e, em Toledo com homens cultos.
Eram clérigos importantes e humanistas influentes aqueles que faziam parte do seu
selecionado círculo de amigos.

Em Roma, após ter sido hóspede do cardeal Farnese pela intervenção de seu
amigo Julio Clovio, tornou-se amigo do influente Fulvio Orsini, bibliotecário do
palácio Farnese, que lhe propiciou uma vida cultural da mais alta qualidade na cidade
dos Papas.

Ainda em Roma conheceu Luis de Castilha, o jovem padre, filho do Deão da


catedral de Toledo, Diego de Castilha, que possivelmente foi quem o indicou, graças
à recomendação do filho, para o primeiro trabalho em Toledo.

58
Jorge THEOTOCOPULI. Jueves. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El Greco. p 142
A contrapartida de Orsini em Toledo foi Antônio de Covarrubias e Leiva
(1524-1602) um teólogo, jurista e historiador que participou do Concílio de Trento.
Por seus extraordinários conhecimentos El Greco o chamava de “um milagre da
natureza”.59 Covarrubias que era filho do arquiteto Alonso Covarrubias, construtor da
Capela dos Reis e da Catedral de Toledo, foi um dos vários amigos retratados por El
Greco. O irmão mais velho, Diego de Covarrubias, bispo de Segóvia que participou
também do Concílio de Trento, foi retratado por El Greco.

Jerônimo Cevallos (1562-1614) estudou direito em Salamanca e era advogado


em Toledo. Em 1623 publicou o livro Arte real para um bom governo a fim de ajudar
ao novo rei Felipe IV a deter a decadência do mundo hispânico. Pedro Salazar e
Mendonça (1550-1627) era doutor em direito canônico e escritor. Possuiu várias
obras de El Greco, dentre elas a Vista de Toledo hoje no Metropolitan Museum de
Nova York. Em 1596, como administrador do Hospital San Juan Batista encomendou
vários trabalhos ao pintor.60

O poeta Luis de Gôngora dedicou um soneto ao túmulo do pintor. O frei


Hortênsio Felix Paravicino, cuja família era de origem italiana, aos 21 anos já era
professor de Retórica de Salamanca. Em suas Obras póstumas divinas e humanas
publicada em 1641, encontram-se quatro poemas dedicados à arte de El Greco e um
dedicado ao quadro no qual o pintor o retrata já citado no item 3. O arcebispo de
Toledo, Dom Gaspar Quiroga; o Inquisidor Niño de Guevara; o sacerdote Francisco
de Pisa que perseguia na época os escritos de Teresa de Ávila; o Cardeal Tavera que
ocupara importantes cargos como clérigo no reinado de Carlos V e morreu em 1545,
todos eles foram retratados por El Greco.

Há ainda o influente Benito Árias Montano, que foi bibliotecário do Escorial,


capelão e confessor de Felipe II. Sua amizade com El Greco será mais bem explorada
no capítulo 4, nos itens que se referem à espiritualidade e a uma seita a qual o pintor
teria pertencido.

Francisco Pacheco um pintor e tratadista que morava em Sevilha, foi mestre de


Velásquez e posteriormente viria a ser seu sogro. Em 1611, esteve em Toledo e
visitou o ateliê de El Greco. Pacheco deixou relatado em seu livro El Arte de la
pintura, a boa impressão que teve do pintor nessa visita. Ficou impressionado ao ver a
59
Jonathan BROWN. Pintura na Espanha 1500-1700. p.70
60
Jonathan BROWN. Pintura na Espanha 1500-1700 p.70
obra que El Greco já havia realizado, guardada em minúsculas telas que serviam de
modelo para os clientes.

Domenico Greco me mostrou no ano de 1611 vários modelos de barro


feitos por ele para servir-se deles em suas obras. Mas, o que excede a
toda a admiração são os originais de tudo o quanto havia pintado em sua
vida, pintados a óleo em minúsculas telas [...]61

A arte do retrato que aprendeu ainda em Veneza, foi reconhecida em vida,


como fica evidente pelo número de amigos e personalidades marcantes da época que
lhe fizeram encomendas desse estilo. El Greco com elegância conseguia captar nos
traços fisionômicos o perfil psicológico de seus clientes e amigos. Talvez esse tenha
sido o segredo do quanto a arte de El Greco agradou aos amigos e do seu sucesso na
arte do retrato.

1.5.4. Teresa de Jesus e El Greco

Em muitas biografias, El Greco é retratado como um asceta, um místico. Para


alguns pesquisadores, estes adjetivos não condizem com a realidade, pois seria
impossível, — fazendo um juízo de valor — , julgam paradoxais as atitudes
extravagantes, perdulárias e litigiosas do artista, para uma alma que busca a
comunhão com Deus.

Comprovando a primeira hipótese, nos escritos de seu filho Jorge Manuel, há


várias citações que mostram um El Greco religioso, de hábitos rigorosos, seguidor da
Regra de São Bento, que guardava sempre no bolso uma oração que recebeu de uma
monja carmelita com a qual se encontrou casualmente. Este encontro teria sido na
casa de Garcia Loaysa, canônico da Catedral de Toledo. El Greco lá estava para tratar
da encomenda de O Espólio e ela, de seu novo convento. Ao serem citados os versos
da oração, pode-se identificar a monja carmelita, cujo nome não está citado no relato
de Jorge Manuel. Trata-se de Teresa de Ávila em sua Eficácia da Paciência.62

Nada te turbe

Nada te espante

Pois tudo passa

Só Deus não muda.

61
Francisco PACHECO. Arte de la pintura. p.440
62
TERESA DE ÁVILA, Santa. Obras Completas Teresa de Jesus. p.981
Tudo a paciência

Por fim alcança.

Quem a Deus tenha,

Nada lhe falta,

Pois só Deus basta.

“Este versinho foi uma monja carmelita descalça que viera fundar um
convento em Toledo quem o escreveu sobre o papel”. Ele estava recém
chegado e coincidiu de encontrar-se com ela na casa do canônico da
Catedral, Garcia de Loayasa.[...] Meu Pai dizia que ela era uma mulher
preparada, com grande desembaraço apesar de sua avançada idade, pois
curvada e escrava de uma muletinha, mostrava grande energia e firmeza
no trato, ao mesmo tempo doçura e mansidão.63

Teresa de Ávila estava realmente em Toledo nos anos 1576 e 1577, ano em
que El Greco chegou à Espanha. Em suas Obras Completas há uma série de cartas
que ela escreve nesse ano de Toledo. As datas dessas cartas começam em fins de
junho de 1576 até julho de 1577.64 E O Espólio, obra que teria sido o motivo de El
Greco encontrar-se com Teresa de Ávila, foi o primeiro trabalho do pintor ao chegar
em Toledo, em julho de 1577.

63
Jorge Manuel THEOTOCOPULI. Lunes. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El Greco.
p.55
64
TERESA DE ÁVILA, Santa. Obras Completas Teresa de Jesus. p.1181-1338
Um fato também intrigante em relação à Teresa de Ávila é que durante muitos
séculos, ficou oculto que sua família pertencia à baixa nobreza e o avô se convertera
do judaísmo ao cristianismo. Na Espanha da Inquisição, a descendência judaica
significava desonra. Teresa recebeu o seu nome em homenagem à avó, Teresa de las
Cuevas. O pai de Teresa, Afonso Sanchez Cepeda, era natural de Toledo e era
conhecido em Ávila como “o toledano.”65 El Greco instalou-se em um antigo bairro
de judeus em Toledo. Doña Jerônima de las Cuevas, ousam alguns pesquisadores, era
neta de um irmão de Teresa de las Cuevas, avó de Teresa de Ávila, portanto há
evidências de que Doña Jerônima poderia ser sobrinha de Teresa de Ávila.

Não eram Santa Teresa e Jerônima parentes próximas ao ser o pai de


Jerônima, Miguel de las Cuevas, sobrinho de Teresa de las Cuevas (avó
de Santa Teresa)?66

A não ser o relato de seu filho Jorge Manuel sobre o encontro de El Greco e
Teresa de Ávila, não há nenhum documento que comprove que ambos se conheciam,
porém é interessante que seja comum nas biografias do pintor Teresa de Ávila ser
citada, pois para alguns a espiritualidade de Teresa foi bem retratada na obra do
pintor.

Durante séculos os historiadores da arte menosprezaram as pinturas de El


Greco, eram pinturas bastardas, mostrando assim, a mesma
incompreensão da teologia da Inquisição em relação à Teresa. As figuras
extáticas e distendidas de El Greco transcendem intencionalmente a
realidade comum, ostentando, febricitantes, seus êxtases, não muito
diferentes dos de Teresa de Jesus. Artista e monja falam a mesma
linguagem da mística, uma linguagem que o pensamento pragmatista não
é capaz de entender, porque nada se sabe da eternidade. Não foi por
acaso que ambos foram declarados “loucos” pelo homem mediano.
Teresa e El Greco viveram uma realidade mística voltada para o céu e
interpretavam a partir dali os acontecimentos terrestres.67

Para Nigg, as pinturas de El Greco traduzem em cores as palavras de Teresa de


Ávila. A pintura de El Greco é tão divergente dos espanhóis contemporâneos a ele,
porque talvez procedem das visões de uma alma extática.

Teresa de Ávila, também deixou registrado em sua obra a devoção à Santa


Maria Madalena, cuja conversão lembrava-se sempre, sobretudo quando comungava.

65
Marcelle AUCLAIR. Teresa de Ávila. p.10
66
J. SANCHEZ LUENGO. Los enigmas de Domenico Theotocopoulos, El Greco. p.112
67
Walter NIGG. Teresa de Ávila, Teresa de Jesus. p.53
Esse é apenas um exemplo da importância que Maria Madalena teve, não só nas artes,
mas nos escritos de teólogos e devotos da época.

Há uma divisão de opiniões quanto à mística de El Greco. Este item apenas


demonstra que não teria sido impossível um encontro do artista com a monja
carmelita. O que já foi aventado por estudiosos seria que a mística de Teresa de Ávila
e de São João da Cruz teria na obra de El Greco sua representação artística. Enquanto
alguns aproximam a mística expressa por Teresa de Ávila em seus escritos à obra de
El Greco, outros rejeitaram essa idéia porque o consideram um intelectual. “Do modo
como articulado e acolhido, o misticismo de El Greco tornou-se sinônimo de anti-
intelectualismo”. No Renascimento, porém “não havia pensador que não se visse às
voltas com a magia, a cabala e outras ciências mais ou menos ocultas”.68

Sob esse prisma, há ainda quem relacione a mística de Teresa de Ávila ao


neoplatonismo italiano, pois nos “dois pensamentos o espírito deve realizar uma
ascese que leve à integração perfeita com Deus – fonte de toda luz — gerando assim
uma realização mimética literalmente divina”. 69 Talvez El Greco não tenha
participado desse desejo mimético de ser coautor na obra do Criador, mas suas figuras
deformadas, distorcidas e coloridas sempre foram associadas à espiritualização da
matéria.

Emile Mâle ao falar sobre o fogo místico vindo do céu que abrasa o peito
numa experiência mística, quando descreve uma estátua de São Felipe Néri em
êxtase, na Basílica de São Pedro em Roma, faz um poético desabafo ao se referir à
Santa Teresa de Ávila:

Quantas cenas formosas poderiam representar os artistas que tivessem


que narrar a sua vida. Poderiam fazê-la reviver nessa Ávila austera , em
seus muros de granito, de onde na primavera se respira o ar puro e gelado
das alturas. Podiam-na mostrar em Castilla vestida de negro [...],
conversando com personagens parecidos com as fervorosas figuras de El
Greco,[...]70

1.5.5 Jorge Manuel Theotokopoulos

68
Rodrigo NAVES. El Greco. p.84
69
Ibid. p.87
70
Emile MÂLE. El arte religioso de la Contrarreforma. p.158
Jorge Manuel, o filho ilegítimo de El Greco, foi uma grande figura na vida do
pintor. No que se refere ao nome composto, reafirmando sua raiz grega, Jorge,
corresponde sem dúvida ao nome do pai do cretense e, Manuel, de seu irmão mais
velho ou talvez do pai de Doña Jerônima, Manuel de las Cuevas.

El Greco revelou ao longo de sua vida uma grande proximidade com seu filho.
Retratou-o como pajem na famosa obra O enterro do Conde de Orgaz, em O retrato
de um pintor onde o retrata de forma idealizada, no qual Jorge Manuel aparece com a
postura e qualidades que não possuía, porém eram as que seu pai desejaria que
tivesse.71

Jorge Manuel foi companheiro, colaborador discípulo e sócio de El Greco.


Formou-se em arquitetura e aprendeu com seu pai a arte da pintura e da escultura, não
foi, porém, nem grande pintor, nem escultor, nem se sobressaiu como arquiteto.

A forte personalidade de El Greco foi um traço marcante na vida de Jorge


Manuel que tinha grande admiração pelo pai, cuidou dele na velhice, viveu sob sua
dependência até a morte dele em 1614. O que induz a pensar que Jorge Manuel viveu
à sombra do pai durante sua vida, porém esse afeto foi recompensado. El Greco teve
ao final da vida o filho como auxiliar em seu ateliê no lugar de Preboste, o discípulo
que acompanhou o cretense desde Roma e, ainda contou com a alegria da convivência
do neto querido.

Gabriel de los Morales72 nasceu em 1603, primeiro filho de Jorge Manuel com
Alfonsa de los Morales, a primeira de suas três esposas. Gabriel foi uma grande
alegria na vida do agora velho pintor. Em suas memórias, Jorge Manuel atribui ao pai,
El Greco, a responsabilidade pela escolha da vida sacerdotal de seu único filho.
Segundo Jorge Manuel, havia uma grande afinidade entre o avô e o neto. El Greco
ensinou ao neto as Regras de São Bento, guia espiritual de sua vida, que também
ensinara ao filho. Gabriel, no entanto, ao contrário do pai, levava a sério cada preceito
das normas beneditinas e, em seu relato, Jorge Manuel deixa transparecer um certo
desencanto com a escolha do filho pelo noviciado. Em 1617, fazia três anos que El
Greco havia morrido, morre Alfonsa o que torna mais intensa a vontade de Gabriel de
ingressar no seminário.

71
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.79
72
Jorge Manuel THEOTOCOPULI. Viernes. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El
Greco. p.170-171
Agora está no Convento de Piedrahita de Ávila. Escreve-me dizendo o
gozo da mortificação pelo frio invernal de sua cela. Se pudesse aspirar a
alcançar a santidade, mas não estar louco, pobre filho meu.73

Jorge Manuel lamenta a escolha do filho pela vida monástica, e responsabiliza


ao pai, El Greco, que muita influência exerceu sobre Gabriel, devido à grande
afinidade que possuíam, pela educação religiosa severa que dera ao neto. Gabriel
assume definitivamente o nome da mãe e se torna Frei Gabriel de los Morales, tirando
o nome do pai, externou o seu ressentimento pelo segundo casamento de seu pai com
Gregória de Gusman.

O segundo casamento de Jorge Manuel foi em 1621, quando ele contava com
43 e Gregória com 22 anos que era viúva também e tinha um filho, Tomás de
Gusman. Jorge Manuel e Gregória tiveram duas filhas, Maria e Claudia e no terceiro
parto, Gregória falece, dando à luz Jorge em 1629. O menino morre após seis meses.

Após oito meses da segunda viuvez, casa-se com Isabel de Villegas, em 1630,
que era viúva e tinha uma filha. É neste ano que se esconde da justiça no Hospital
aonde escreve o diário encontrado por Serrano Pintado que assim se inicia:

Na cidade de Toledo a 20 de abril de 1630, escondido da justiça neste


Hospital de São João Batista, extramuros desta cidade.74

A sorte de Jorge Manuel declina pouco a pouco após a morte de El Greco.


Tinha seus bens comprometidos pelas dívidas. O hospital manteve seus bens
embargados. Um vizinho, Juan Dávalos de Ayala, reclama diante da justiça o
pagamento de uma dívida de Jorge Manuel e também o irmão de Gregória, sua
segunda mulher, reclama os bens de Jorge Manuel porque é o curador dos
sobrinhos.75

Ao final de sua vida com suas quatro filhas e dois filhos de casamentos
anteriores de suas mulheres, Gregória e Isabel, Jorge Manuel morre aos 53 anos
doente e arruinado, em 1631 um ano após ter se casado pela terceira vez.

73
Ibid. p.171
74
Jorge Manuel THEOTOCOPULI. Domingo. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El
Greco. p.17
75
Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El Greco. p.218
1.6 A morte de El Greco e as homenagens póstumas
[...] estando deitado numa cama, enfermo de doença que Deus nosso Senhor
foi servido de me dar [...] crendo e confessando como tenho, creio e confesso
tudo aquilo que crê e confessa a Santa Madre Igreja de Roma [...] afirmo
viver e morrer como bom , fiel católico cristão [...]76

Nesse documento, escrito e assinado por El Greco em 31 de março de 1614,


quando o estado de saúde do cretense se agravou, ele se declarou católico e outorgou
plenos poderes a seu filho Jorge Manuel .

El Greco morreu poucos dias depois em 4 de abril de 1614. Seu enterro teve as
honrarias destinadas a um grande cidadão toledano. Era considerado um homem
culto, bem relacionado, socialmente respeitado, que seria para sempre, o grande pintor
de Toledo.

O inventário completo de seus bens, dos mais de cem quadros e dos livros de
sua biblioteca representou um registro importante para se conhecer com mais detalhes
a vida do pintor.

El Greco recebeu homenagens póstumas de ilustres amigos que o admiravam.


Frei Hortênsio Paravicino, que já havia lhe dedicado um soneto pelo retrato em que
foi retratado pelo pintor, para o túmulo funerário redigiu os versos:

Do Greco aqui o que encerrar-se pôde


jaz, piedade o esconde, fé o sela,
suave o oprime, suave como vestígio
safira o parte que se apoderou do mundo

Sua fama o Orbe não reserva mudo


humano clima, bem que para obscurecê-la,
se arma uma inveja, pois uma tal estrela
névoa não espera de horizonte rudo.

Obrou a século maior, maior que Apeles,


Não o aplauso venal, e sua estranheza
admirarão não imitarão idades.

76
El Greco. Apud José Luis MORALES Y MARIN. El Greco. p.58
Creta lhe deu a vida e os pincéis
Toledo, melhor pátria, onde começa
a lograr, com a morte eternidades.77

Luis Gongora também dedicou um soneto ao túmulo do pintor:

Está em forma elegante o peregrino


de pórfiro luzente dura chave
o pincel nega ao mundo mais suave
que deu espírito ao lenho, vida ao linho

O seu nome ainda de maior vigor digno


que nos clarins da fama cabe
o campo ilustre desse mármore grave:
Venera-o e prossegue o teu caminho.

Jaz o Grego. Herdou natureza


arte e a arte estudo. Íris cores.
Febo luzes, senão sombras Morfeu.

Tanta urna apesar da sua dureza,


Lágrima beba e quantos aromas sue
O córtex funeral de árvore sábia.78

Toledo continuou mantendo viva a memória de El Grego, o mesmo porém não


sucedeu fora da cidade. Ficou quase três séculos esquecido e seu nome não constou da
lista dos pintores importantes dos séculos XVIII e XIX.

O louco, extravagante e enigmático pintor só seria redescoberto séculos mais


tarde.

77
José Luis MORALES Y MARIN. El Greco. p.58
78
José Luis MORALES Y MARIN. El Greco. p.19
REFERÊNCIAS
ALVAREZ LOPERA, José (Ed.) El Greco: identity and transformation – Crete,
Italy, Spain. Milano : Skira, 1999.

ALVAREZ LOPERA, José. El Greco: la obra esencial. Madrid : Sílex, 1993.

AUCLAIR, Marcelle. Teresa De Ávila. São Paulo : Quadrante, 1995.

CASTIGLIONE, Baldassare. O cortesão. São Paulo : Martins Fontes, 1997.

CHASTEL, André. Arte e humanismo. In: ARGAN, Giulio Carlo. História da arte
italiana: de Michelangelo ao futurismo. São Paulo : Cosac & Naif, 1988. v.2.

CHASTEL, André. A arte italiana. São Paulo : Martins Fontes, 1991.

COSSIO, Manuel B. El Greco. 4.ed. Madrid : Espasa-Calpe, 1983.

CREMADES, Fernando Checa. A imagem do santo na Espanha da contra-reforma.


In: POMMIER, Edouard; CREMADES, Fernando Checa; ARAÚJO, Emanoel
(Curadoria) Luzes do século de ouro na pintura espanhola. São Paulo : Pinacoteca
do Estado, 1998. Exposição realizada na Pinacoteca do Estado de 18 de maio a 14 de
junho de 1998.

GAYA NUÑO, Juan Antonio. Pequena história de la valoración de El Greco. In: EL


GRECO: antologia de textos em torno a su vida y obra. Madrid : Taurus, 1960. (Ser
y tiempo: temas de España, 10).

GOMBRICH, Ernst H. A história da arte. 16.ed. São Paulo : LTC, 1999.

A GRANDE ARTE NA PINTURA. Rio de Janeiro : Salvat, 1987.

EL GRECO: antologia de textos em torno a su vida y obra. Madrid : Taurus, 1960.


(Ser y tiempo: temas de España, 10)

EL GRECO: L ´eroe malincolico di una aventura mediterranea. MiIlano : Leonardo


Arte, 2000.

GUINARD, Paul. El Greco: étude biographique et critique. Genève : Skira, 1956.

HAUSER, Arnold. Maneirismo: a crise da renascença e o surgimento da arte


moderna. 2. ed. São Paulo : Perspectiva, 1993.

JAGUARIBE, Helio. Um estudo crítico da história. São Paulo : Paz e Terra, 2001.

JANSON, Anthony E. História geral da arte: renascimento e barroco. 2. ed. São


Paulo : Martins Fontes, 2001. v.2.

JANSON, H.W.; JANSON, Anthony. E. Iniciação à história da arte.


São Paulo : Martins Fontes, 1996.
KAGAN, Richard L. El Greco y la ley. In: BROWN, Jonathan et al. Visiones del
pensamiento: El Greco como intérprete de la historia, la tradición y las ideas.
Madrid : Alianza, 1984.

LECALDANO, Paolo (Ed.) L’opera completa del Greco. Milão : Rizzoli, 1969.

MÂLE, Emile. L’art religieux de la fin du XVIe , du XVIIe et du XVIIIe : étude sur
l’iconographie après le Concile de Trente – Italie, France, Espagne, Flandres. 12.
ed. Paris : Armand Colin, 1951.

MÂLE, Emile. L’art religieux du XII siècle en France. Paris : Armand Colin, 1998.

MÂLE, Emile. El arte religioso de la contrarreforma: estudios sobre la iconografía


del final del siglo XVI y de los siglos XVII y XVIII. Madrid : Ediciones Encuentro,
2001.

MANN, Richard. G. Los retablos para el Hospital de San Juan Bautista de Afuera
(Toledo). In: BROWN, Jonathan et al. Visiones del pensamiento: El Greco como
intérprete dela historia, la tradición y las ideas. Madrid : Alianza Editorial, 1984.

MARAÑON, Gregorio. La mujer del Greco. In: EL GRECO: antologia de textos em


torno a su vida y obra. Madrid : Taurus, 1960. (Ser y tiempo: temas de España, 10).

MARÍAS, Fernando. El Greco: biografía de un pintor extravagante. Madri : Nerea,


1997.

MARÍAS, Fernando; BUSTAMANTE GARCÍA, Agustín. Las ideas artísticas de El


Greco: comentarios a un texto inédito. Madrid : Ediciones Cátedra, 1981.

MORALES Y MARÍN, José Luis. El Greco. Madri : Editorial, 1997.

NAVES, Rodrigo. El Greco: o mundo turvo. São Paulo : Brasiliense, 1985.

NIGG, Walter. Teresa de Ávila, Teresa de Jesus. São Paulo : Loyola, 1995.

PACHECO, Francisco. Arte de la pintura. 2.ed. Madrid : Ediciones Cátedra, 2001.

PANOFSKY, Erwin. Estudos de iconologia: temas humanísticos na arte do


renascimento. 2.ed. Lisboa : Editorial Estampa, 1995. (Teoria da Arte, 9).

PECCATORI, Stefano; ZUFFI, Stefano (Ed.) El Greco: l´eroe malincolico di uma


aventura mediterranea. Milano : Leonardo Arte, 2000.

LA PITTURA ITALIANA: i maestri di ogni tempi e i loro capolavori. Verona :


Mondadori, 1997.

POMMIER, Edouard; CREMADES, Fernando Checa; ARAÚJO, Emanoel


(Curadoria) Luzes do século de ouro na pintura espanhola. São Paulo : Pinacoteca
do Estado, 1998. Exposição realizada na Pinacoteca do Estado de 18 de maio a 14 de
junho de 1998.
SÁNCHEZ CANTON, J. El Greco: mythe de la couleur. Paris : Plon, 1961.

SÁNCHEZ LUENGO, J. Los enigmas de Doménico Theotocopoulos, El Greco.


Madri : Harthur, 1988.

SERRANO PINTADO, Mariano. Mi padre El Greco: Jorge Manuel Theotocopuli.


Toledo : Azacanes, 1999.

SCHOLZ-HÄNSEL, Michael. El Greco: Domenikos Theotokopoulos, 1541-1614.


Köln : Taschen, 2004.

SCHROTH, Sarah. El entierro del conde de Orgaz. In: BROWN, Jonathan et al.
Visiones del pensamiento: El Greco como intérprete de la historia, la tradición y las
ideas. Madrid : Alianza, 1984.

THEOTOCOPULI, Jorge Manuel. Domingo. In: SERRANO PINTADO, Mariano.


Mi padre El Greco: Jorge Manuel Theotocopuli. Toledo : Azacanes, 1999.

TERESA DE ÁVILA, Santa. Obras completas Teresa de Jesus; texto estabelecido


por Tomas Alvarez. São Paulo : Loyola, 1995.

VENTURI, Lionello. La pittura del Rinascimento. Roma : Skira, 1989.

VILLEGAS LÓPEZ, Manuel. (Comp.) El Greco: antologia de textos en torno a su


vida y obra. Madrid : Taurus, 1960.

-------------------------------------------------------------------------------------------------------

Você também pode gostar