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Após sua morte em 1614, El Greco caiu no ostracismo e, sua arte foi
considerada extravagante pelos artistas neoclássicos que exigiam um rigor anatômico
das figuras retratadas. Em El Greco, essas figuras eram dotadas de uma verticalidade
fluida que contrariava as regras. Assim, sua arte acabou sendo desvalorizada por seus
sucessores. Somente depois de dois séculos, ressurgiu o interesse pela arte do artista
no romantismo francês, tendo à frente Delacroix e o poeta Baudelaire. Veio, enfim, a
ser reconhecido como um grande mestre da pintura no século XX.
Estes séculos de esquecimento apagaram importantes informações sobre El
Greco, que muito trabalho custou a seus biógrafos na busca de documentos que
pudessem esclarecer alguns mistérios de sua vida na Grécia, na Itália e na Espanha.
Alvarez Lopera em sua obra “El Greco: la obra esencial” denomina de anos
obscuros (1541 – 1567) o período em que El Greco viveu na Grécia pela escassez de
dados sobre sua infância e juventude.
Foi em 1908 que Manuel de Cossío, um intelectual espanhol, entregou para ser
publicada a primeira monografia sobre El Greco. Em 1914 após a pesquisa feita por
San Roman Fernandes de documentos sobre o pintor, tais como os testamentos
4
Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El Greco. p.67
5
Jorge Manuel THEOTOCOPULI. Domingo. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El
Greco.
p.17. O emprego da palavra Pai em maiúsculas demonstra a dependência e a admiração que Jorge
Manuel teve pelo pai. “Ao deixar-me meu Pai, com ele se foi: meu amigo, meu companheiro, meu
mestre, meu protetor e toda a minha vida a seu lado”.
encontrados, Cossío publica Lo que se sabe sobre a vida de El Greco, parodiando o
primeiro capítulo de sua primeira publicação, que se intitulava Lo que se ignora de la
vida del Greco.6
A carta de Giulio Clovio e os documentos sobre a cidade natal e o ano de
nascimento de El Greco eram os únicos documentos conhecidos até os anos sessenta
do século XX. As descobertas documentais de Konstantin Mértzios, em 1966 e Maria
Constantoudaki, em 1973 7 proporcionaram por fim alguns primeiros e muito
significativos pontos de certeza.
Sabe-se agora por esses documentos que El Greco se formou como pintor
em Creta, obtendo o título de Mestre Pintor, e que parte de sua atividade artística em
Creta se deu dentro da forma tradicional pós-bizantina e que seus trabalhos neste
estilo foram altamente reconhecidos, pelo elevado preço que constava de seus quadros
nos registros.
6
Manuel B. COSSIO. El Greco. p.27.
7
Fernando MARÍAS. El Greco. p. 298, nota 13.
8
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.10
9
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial p.13
O conhecimento da família de Domenikos Theotokopoulos vem da geração
anterior. Seu pai, Georgios (Zorzi) Theotokopoulos dedicava-se ao comércio
marítimo e estava a serviço da administração veneziana do ducado. A família
Theotokopoulos, a única com este sobrenome na ilha, se estabeleceu em Cândia nos
anos trinta do século XVI.10
Há algum tempo, muitos estudiosos de El Greco supunham que ele teria sido
educado em algum monastério ortodoxo. Essa hipótese, entretanto, não considera o
fato de que os Theotokopoulos eram católicos.
10
Fernando MARÍAS. El Greco. p.26
11
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.16
12
Ibid. p.16
pode indicar uma tendência ao catolicismo e não uma prova. O mesmo pode se dizer
com respeito ao nome Domenikos que seria a forma latina para Kyriakós (Ciriaco).13
Manussos Theotokopoulos, irmão dez anos mais velho, personagem que mais
se conhece da família Theotokopoulos pela quantidade de documentos encontrados,
teria desempenhado papel importante na vida de El Greco. Em 1566, o pai Giorgio já
havia falecido e de sua mãe, nada se sabe. Manussos foi coletor de impostos entre
1566-1583 pela República de Veneza e, nos anos 1569 e 1577, é citado em várias
ocasiões como Presidente da Confraria de navegantes da cidade. Era um homem de
destaque na sociedade candióta e claramente comprometido com o poder veneziano.
Alguns autores julgam que à morte do pai, o irmão mais velho encarregou-se
da educação de Domenikos, outros atribuem a ele a decisão de o jovem pintor ir rumo
a Veneza e, através de suas importantes relações, conseguir instalar-se no ateliê de
Ticiano. Há ainda quem supunha que os dois irmãos foram juntos a Veneza por
ocasião da nomeação de Manussos como coletor de impostos. Estas, no entanto, são
simples hipóteses não fundamentadas. Lopera afirma que havia um profundo afeto
que unia os irmãos e essa união se manteve ao longo da vida de ambos. Quando o
filho de El Greco nasceu em Toledo o pai lhe deu o nome do avô, Jorge, conforme a
13
Fernando MARÍAS. El Greco. p.30
14
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.14
15
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.14
tradição grega, mas acrescentou também o de seu irmão, Manuel. Porém, nos escritos
encontrados por Serrano Pintado, das memórias de Jorge Manuel, o filho de El Greco
escreve sobre o tio, Manussos, com tom de ironia, dando-lhe outra imagem
Meu tio foi o bom filho. Era o irmão mais velho e aquele que seguiu com o
negócio de arrecadação de seu pai. Para ele, Domenikos, o rebelde, o
inconformado, o aventureiro, assim o chamavam, foi deserdado. Mas a vida
e os desígnios de Deus são inescrutáveis. Meu tio Manuel, o virtuoso
herdeiro da família, uma vez morto o meu avô, e com seu irmão distante
em outras terras, gasta mais do que tem, dispôs do que foi arrecadado para
o Regidor, motivo pelo qual o encarceraram. E, foi seu irmão, meu Pai,
quem pagou sua dívida, comprometendo-se a fazê-lo em doze anos.16
Jorge Manuel ainda prossegue, dando detalhes de como foi a liberação de seu
tio do cárcere, e como o chamado padre Mariano, através da comunidade e de
conhecidos na Itália, interveio no translado de seu tio para Toledo. Confessa também
que El Greco nunca reprovou seu pai nem seu irmão pelo sofrimento que lhe
causaram. Lopera reforça esta afirmação: E em 1591, quando Manussos se encontrava
em situação desesperadora, o recolheu em sua casa dando-lhe guarida até o final de
seus dias. Na última frase:
Talvez com isso não tenha feito nada mais do que pagar a grande dívida
contraída com ele na juventude.17
Fernando Marías, em sua obra El Greco deixa claro que houve um certo
romantismo que serviu para construir uma imagem do artista que satisfizesse as
16
Jorge Manuel THEOTOCOPULI. Martes. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El
Greco.
p. 79
17
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p. 14
18
Fernando MARÍAS. El Greco. p. 38
pretensões culturais da Espanha da época. Na interpretação de Marías, que teve
acesso aos mesmos documentos já citados, lemos:
19
Fernando MARÍAS. El Greco. p.18
20
Ibid. p.45
21
Fernando MARÍAS. El Greco. p.21
Figure 2 El Greco. Dormição. Igreja de Koimesis de Ermopoles, ilha de Sira, Grecia. 1566.
O jovem cretense chega a Veneza para continuar sua carreira artística e com a
intenção de tornar-se Mestre da pintura renascentista, o que já seria uma meta muito
ousada, ou, conquistar a fama ou, talvez, como uma forma de dar vazão a seus ideais.
Este é um episódio que torna El Greco um caso diferente. Não o fato de ter
saído de Creta e ter ido a Veneza, muitos gregos, artistas ou não, fizeram o mesmo.
Ao chegar em Veneza, já mestre “à grega”, abandona o universo artístico e cultural de
origem, dando um salto corajoso para converter-se em um homem ocidental, em um
pintor renascentista. A partir daí não seria mais considerado um artista oriental e
muito menos um bizantino.
22
Michael SCHOLZ-HÄNSEL. El Greco. p.12
23
José Luis MORALES Y MARIN. El Greco. p.8
24
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.25
25
Jonathan BROWN. Pintura na Espanha 1500-1700. p.62
causar um prejuízo ao jovem recém chegado da Grécia, pois Veneza continuava a ser
um importante centro cultural da Europa e, por isso foi para El Greco um período
marcante para a sua formação e desenvolvimento como pintor.
Por uma carta enviada ao Cardeal Alessandro Farnese, Giulio Clovio apresenta
El Greco como “discípulo de Ticiano”. Saber se El Greco foi um discípulo que
conviveu com Ticiano empenhado em suas obras, em seu ateliê, ou se foi apenas um
seguidor de seu estilo, foi para os pesquisadores uma tarefa árdua.
26
Fernando MARÍAS. El Greco. p.58-59
27 Michael SCHOLZ-HÄNSEL. El Greco. p.22-23
vida dos artistas, de Vasari, não deixam dúvidas quanto à admiração que El Greco
nutria por Ticiano e por seu sucessor Tintoretto (1519-1595). Tintoretto tinha gravado
nas paredes de seu ateliê a idéia de conciliar o desenho de Michelangelo e as cores de
Ticiano, El Greco, fez também sua essa pretensão e “foi capaz de harmonizar estes
dois aspectos básicos, e ao mesmo tempo aparentemente irreconciliáveis, da
pintura”. 28 A arte de Veneza diferia-se da arte de Roma e de Florença porque
privilegiava as cores em detrimento do desenho.
O que se pode concluir é que houve uma real influência de Ticiano na arte de
El Greco, porém o que se contesta é que tenha participado nas obras do grande pintor
em seu ateliê em Veneza. Quanto à carta de Giulio Clovio que o denomina como
“discípulo de Ticiano” ao pedir ao Cardeal Farnese uma acomodação para o jovem
cretense em Roma, o uso do nome de Ticiano pode ter duas hipóteses: o renome de
Ticiano elevaria o conceito de Domenikos e facilitaria a aceitação do pedido de
Clovio pelo Cardeal ou, a segunda; o termo “discípulo” além de significar aluno,
também pode pressupor “seguidor”. 29 Ticiano representava a opção clássica,
Tintoretto ao contrário era mais atual e por isso capaz de expressar as inquietações e
contradições de seu tempo, o que sem dúvida deve ter encantado a Domenikos.
28
Fernando MARÍAS. El Greco. p.58-59
29
Rodrigo NAVES. El Greco. p.36
30
Arnold HAUSER. Maneirismo. p.343
31
Michael SCHOLZ-HÄNSEL. El Greco. p.12
permanência em Veneza, embora curta, deixou marcas no seu estilo durante toda a
vida do pintor.
El Greco realiza neste período veneziano alguns temas que viria a repetir
durante sua vida, tais como: A adoração dos Reis, A fuga para o Egito, A Anunciação,
São Francisco e o Irmão Leão, A expulsão dos vendilhões do Templo entre outros. É
pela repetição de temas que ficou evidente a evolução artística de Domenikos.
32
Anthony E. JANSON. História geral da arte. p. 677
1.4 El Greco em Roma
[...] pertencer ao círculo orsiniano deve ter sido fator determinante para
fortalecer a autoestima do cretense e reforçar sua convicção de que a arte
é uma atividade cognitiva, eminentemente intelectual, e o artista,
portanto, um filósofo, um homem superior cujos conhecimentos devem
abarcar os campos mais diversos e elevados ,por conseguinte da mesma
estima social que os humanistas e literatos.34
33
José Luis MORALES Y MARIN. El Greco. p.61
34
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.35
Não se sabe quanto tempo El Greco permaneceu sob a tutela do Cardeal no
Palácio Farnese. Há um fato porém que permite supor que tenha sido por volta de
1572. Neste ano, Domenikos ingressou na Academia São Lucas, que era uma
congregação de artistas que se reuniam para defender seus direitos em Roma. Os
aspirantes eram submetidos a rigorosos testes para demonstrar suas capacitações e
uma vez, quando aprovados, pagavam pelo direito ao ingresso, podiam ostentar o
título de padrone e abrir um ateliê próprio na cidade.
35
Jonathan BROWN. Pintura na Espanha 1500-1770. p.65
36
Francisco PACHECO. Arte de la pintura. p.349
El Greco desprezou o Juízo Final mas tomou suas marcantes figuras como modelo,
sem perder por isso a coerência.37
37
José ÁLVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.39
38
Giulio MANCINI. Apud José ÁLVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.39
39
José ÁLVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial p.38
De qualquer forma, o que se pode dizer é que mesmo admirando Michelangelo
na arte do desenho humano e na escultura, as críticas irreverentes que El Greco teria
feito sobre a arte da pintura do venerável artista, suscitou ódios ferozes entre alguns
artistas e esta circunstância teria forçado o cretense a abandonar Roma e a mudar-se
para a Espanha.
40
Fernando MARÍAS. El Greco. p.120
Os espanhóis haviam falado a Domenico de suas possibilidades de êxito
em seu país, onde não existiam pintores de seu nível, onde os
italianizados como — Alonso Barruguete ou Gaspar Becerra, ao que
citava Vasari — alcançavam os melhores encargos e os favores do rei, e
onde também dois italianos o criminal Leone 1509-1590 e seu filho
herege Pompeo Leoni 1533-1608, monopolizavam a cultura real.41
El Greco não queria viver como um artista italiano sem o reconhecimento que
ele julgava ter, era apenas um estrangeiro grego que havia abandonado Creta por não
querer ser só mais um artesão. Decidido a enfrentar um novo desafio, pois o primeiro
foi há dez anos em 1567 quando deixou sua terra natal, deixa então Roma. Em 1577,
com trinta e cinco anos parte da Itália onde aprendeu a ser um artista diferente, havia
penetrado profundamente na cultura, na pintura e na língua italiana, participado da
nata da sociedade acadêmica romana e conhecido importantes clérigos.
Paradoxalmente estava como há dez anos, tinha seu material de pintura, algumas
cartas de recomendação, os livros adquiridos em Veneza e Roma e algumas roupas.
Talvez, sua alma sentisse a frustração de um sonho não realizado, mas já não era o
mesmo homem, tampouco o mesmo pintor. Os dez anos em que permaneceu na Itália
acrescentaram-lhe uma vasta e rica experiência cultural, artística e porque não social.
41
Fernando MARÍAS. El Greco p.121.
“Para expressar minha gratidão concordo em aceitar 1000 ducados ao
invés dos 1500 oferecidos.” El Greco, no contrato para seu primeiro
trabalho na Espanha.42
Nada se sabe sobre o que teria ocorrido com o pintor em Madri, ir a busca de
trabalho no Escorial seria uma tarefa improdutiva, pois Alonso Sanchez Coelho e
Juan Fernandez de Navarrete “o Mudo” ocupavam os postos de trabalho como
pintores reais.
Toledo havia pouco tempo, desde 1561, já não era mais a corte imperial da
Espanha. A instalação da corte em Madri afetou pouco a vida toledana. “Era apenas a
capital teórica de uma monarquia nômade”.43 Porém, a Toledo que El Greco encontra
é ainda uma cidade próspera que girava em torno de sua catedral primada da Espanha.
Depois do Vaticano, Toledo tinha a catedral mais poderosa em renda e poder. A
catedral era uma máquina de bombear dinheiro sobre a cidade à margem de qualquer
outra atividade econômica. O arcebispo primaz da Espanha era o segundo em
importância na órbita católica e, depois do Papa, suas rendas o tornavam no clérigo
mais rico da Espanha.
Esta metrópole, além do poder eclesial, dos numerosos conventos, era também
um importante centro industrial e comercial. A sua economia só seria abalada quando
os mouros foram expulsos, um pouco antes da morte de El Greco em 1614. Toledo
também continuou sendo a capital intelectual, pois lá viviam muitos poetas,
humanistas e juristas importantes.
42
Philip TROUTMAN. El Greco. p.10
43
Paul GUINARD. El Greco. p.22
Espanha foi a nação líder na obra da Contrarreforma, uma vez que a união
nacionalismo e religião concorria para consolidar e unificar o estado espanhol.44
Os artistas espanhóis, pintores e escultores não sentiram tanto o peso das ações
coercitivas da Contrarreforma, pois ainda eram considerados artesões. Enquanto na
Itália, Leonardo Da Vinci já havia dito fazia quase um século que “o artista pinta com
a mente”, a arte da pintura e da escultura espanhola ainda não participava das ciências
liberais.
44
Rodrigo NAVES. El Greco. p.91-92
45
Michael SHOELZ-HÄNSEL. El Greco. p 42-46
46
Jonathan BROWN ; Richard L. KAGAN. La “Vista de Toledo”. In: Jonathan BROWN et al.
Visiones del pensamiento. p. 42
Espanha, o que significava que tanto os dirigentes do Estado assim como os da Igreja
lá residiriam.
Toledo era descrita como centro e coração da Espanha, sede dos poderes
político e espiritual e ainda que o primeiro pudesse ter se ausentado, — Felipe II
havia mudado a capital para Madri, — continuava sendo considerada a “Segunda
Roma”. 47 Por outro lado, a Toledo que El Greco conheceu, era uma cidade
fundamentalmente orientalizada, representante fiel da visão mítica da Espanha
medieval onde haviam convivido pacífica e produtivamente as três culturas: cristã,
judia e muçulmana.
47
Fernando MARÍAS. El Greco. p.170
equiparando Toledo às cidades de Salamanca e Alcalá, sede das importantes
universidades da época. No que se refere às Artes Plásticas, no entanto, a pintura que
se produz em Toledo por ocasião da chegada de El Greco, é de baixa qualidade.48
48
José Luis MORALES Y MARIN. El Greco. p.17
49
Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El Greco. p.130
50
J. SANCHEZ LUENGO. Los enigmas de Doménico Theotocopoulos, El Greco. p.97
processo foi julgado inocente. A segunda vez foi após o fracasso como pintor do
Escorial, e se tratou do intento de El Greco encontrar um ou mais mecenas
procedentes do clero toledano. Desse encontro resultou o famoso retrato do Cardeal
Niño de Guevara, já citado no item 3, em 1600.51 Contrariando os planos de El
Greco, o famoso cardeal da Inquisição que poderia ter se tornado útil ao pintor, foi
em 1601 elevado à Cátedra de Sevilha.
Em Toledo conheceu Doña Jerônima de las Cuevas com quem teve seu único
filho, Jorge Manuel, fez diversos amigos clérigos e intelectuais que também foram
seus patronos e lá viveu até a sua morte em 1614.
El Greco chega a Toledo em 1577 e, em 1578, nascia seu único filho, Jorge
Manuel Theotokopoulos. Possivelmente, logo ao chegar a Toledo El Greco deve ter
conhecido Doña Jerônima de las Cuevas. As informações que se têm sobre o
relacionamento do pintor com a mãe de seu filho são contraditórias, pois só se teve
conhecimento desse fato porque em 1614, o pintor deu a Jorge Manuel o poder de
realizar o testamento em seu nome. Nesta ocasião, El Greco deixou documentado que
Jorge Manuel era seu filho e de Doña Jerônima de las Cuevas, declarando que ele
seria seu herdeiro universal.
51
Michael SHOLZ-HÄNSEL. El Greco. p.46
aristocrata por causa do título “Doña”, mas no século XVII, esse título já estava
generalizado e não designava mais as mulheres procedentes da aristocracia52. Não há
documentos que atestem que ela foi casada com o pintor, nem referência sobre a sua
morte, ou ao menos do local onde tenha sido enterrada.
Extraindo-se do texto a visão idealizada de um filho por seus pais, temos como
fatos confirmados: Doña Jerônima era irmã de Juan de las Cuevas, um comerciante de
sedas, casado com Petronilha de Madrid. O pintor conheceu a mãe de seu filho em
uma missa, e após um ano, nasce Jorge Manuel e Doña Jerônima morre no parto. O
trauma causado pela morte prematura da mulher amada no parto de seu único filho,
teria sido a razão de nunca mais El Greco voltar a se relacionar com outras mulheres.
52
Fernando MARÍAS. El Greco. p.164
53
Jorge Manuel THETOCOPULI. Domingo. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El
Greco. p.22-23
Essa frase que Jorge Manuel atribui a seu pai, pode explicar alguns pontos
obscuros para os pesquisadores da vida do cretense como: de que ele não se casara
por já ter deixado uma suposta esposa em Creta ou na Itália; elucida a omissão sobre
ela em toda sua vida em Toledo; porque ele nada dispôs a ela em seu testamento e
que El Greco, realmente, prosseguiu sua vida em Toledo relacionando-se com a
família Cuevas até sua morte.
Alvarez Lopera54 e Marías55 citam Juan de las Cuevas, casado com Petronila
de Madrid como possível irmão de Doña Jerônima. O casal teve um filho, Manuel de
las Cuevas e consta que seu primo Jorge Manuel aparece como tutor da pessoa e dos
bens de Manuel em 1603. Ao se emancipar em 1610, Jorge Manuel devia ao primo,
Manuel, de quem era tutor, 164.000 marevides, o que denota uma certa posição
econômica da família Cuevas.
Devem ter chegado aos ouvidos de Felipe II que El Grego não tinha
escrúpulos de se relacionar com os conversos. Sua vida no bairro judeu,
sua relação com Jerônima de antecedentes pouco claros. Felipe II
desagradou-se com essas informações e, sem desqualificar a arte evidente
do quadro, não colocou o quadro no altar para o qual se destinava. Como
poderia colocar no Escorial, templo máximo do catolicismo, um quadro
de um grego que não se resguardava e andava com conversos. Que não
havia batizado seu filho e não se arrepende nem mostra escrúpulos de
relacionar-se com tipos de clara antecedência hebréia.56
54
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.78
55
Fernando MARÍAS. El Greco. p.164
56
J. SANCHES LUENGO. Los enigmas de Doménico Theotocopoulos, El Greco. p.116
Sanches Luengo também considera o comentário do Padre Sigüenza sobre El
Greco em relação à sua obra O Martírio de São Maurício como pouco confiável. Seja
como for, as portas do Escorial se fecharam para o cretense, como será mais bem
detalhado no item 2 do capítulo 3 desta pesquisa. El Greco devia conhecer a vontade e
o temperamento do poderoso monarca, desta feita, a possibilidade de um próximo
trabalho real era praticamente nula.
Sua vida em Toledo foi permeada por litígios, El Greco não se submetia à
vontade de seus clientes, tinha consciência de que não era apenas um artesão, mas um
intelectual e mestre em pintura. Estudos recentes sobre os litígios, mostram que houve
uma interpretação errônea, quando alguns estudiosos foram muito duros e
precipitados ao tirarem conclusões adversas sobre a personalidade do cretense. El
Greco esteve longe de ser um proscrito na sociedade toledana, como se verá no
próximo item sobre suas relações sociais. Era um artista a frente dos espanhóis de seu
tempo, que ainda consideravam a pintura um artesanato, arte mecânica. Diego
Velazquez (1599-1660), um artista posterior a El Greco, porém protegido de Felipe
IV, teve dificuldade para entrar em La orden de los caballeros de Santiago, por
indicação do rei, pois a mesma excluía aqueles que tivessem pais ou avós com
atividades mecânicas, dentre as quais se incluía a pintura. Apesar de tentar demonstrar
sua origem nobre e de ter o apoio de Felipe IV, a admissão de Velazquez à ordem só
foi possível porque obteve uma dispensa especial do Papa.57
57
Richard L. KAGAN. El Greco y la ley. In: BROWN, Jonathan et al. Visiones del pensamiento.
p.131
Nós, os toledanos, somos retraídos e desconfiados: fechamos nossas
portas, receosos aos estranhos; mas uma vez que neles confiamos,
fazemos do estrangeiro centro das atenções e cortesias [...] Assim fizeram
com meu Pai os toledanos, o acolheram e lhe ofereceram amizade.58
Jorge Manuel define assim a maneira como El Greco foi acolhido e admirado
em Toledo e justifica porque o pintor em sua famosa obra O enterro do Conde de
Orgaz quis retratar alguns amigos toledanos.
Em Roma, após ter sido hóspede do cardeal Farnese pela intervenção de seu
amigo Julio Clovio, tornou-se amigo do influente Fulvio Orsini, bibliotecário do
palácio Farnese, que lhe propiciou uma vida cultural da mais alta qualidade na cidade
dos Papas.
58
Jorge THEOTOCOPULI. Jueves. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El Greco. p 142
A contrapartida de Orsini em Toledo foi Antônio de Covarrubias e Leiva
(1524-1602) um teólogo, jurista e historiador que participou do Concílio de Trento.
Por seus extraordinários conhecimentos El Greco o chamava de “um milagre da
natureza”.59 Covarrubias que era filho do arquiteto Alonso Covarrubias, construtor da
Capela dos Reis e da Catedral de Toledo, foi um dos vários amigos retratados por El
Greco. O irmão mais velho, Diego de Covarrubias, bispo de Segóvia que participou
também do Concílio de Trento, foi retratado por El Greco.
Nada te turbe
Nada te espante
61
Francisco PACHECO. Arte de la pintura. p.440
62
TERESA DE ÁVILA, Santa. Obras Completas Teresa de Jesus. p.981
Tudo a paciência
“Este versinho foi uma monja carmelita descalça que viera fundar um
convento em Toledo quem o escreveu sobre o papel”. Ele estava recém
chegado e coincidiu de encontrar-se com ela na casa do canônico da
Catedral, Garcia de Loayasa.[...] Meu Pai dizia que ela era uma mulher
preparada, com grande desembaraço apesar de sua avançada idade, pois
curvada e escrava de uma muletinha, mostrava grande energia e firmeza
no trato, ao mesmo tempo doçura e mansidão.63
Teresa de Ávila estava realmente em Toledo nos anos 1576 e 1577, ano em
que El Greco chegou à Espanha. Em suas Obras Completas há uma série de cartas
que ela escreve nesse ano de Toledo. As datas dessas cartas começam em fins de
junho de 1576 até julho de 1577.64 E O Espólio, obra que teria sido o motivo de El
Greco encontrar-se com Teresa de Ávila, foi o primeiro trabalho do pintor ao chegar
em Toledo, em julho de 1577.
63
Jorge Manuel THEOTOCOPULI. Lunes. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El Greco.
p.55
64
TERESA DE ÁVILA, Santa. Obras Completas Teresa de Jesus. p.1181-1338
Um fato também intrigante em relação à Teresa de Ávila é que durante muitos
séculos, ficou oculto que sua família pertencia à baixa nobreza e o avô se convertera
do judaísmo ao cristianismo. Na Espanha da Inquisição, a descendência judaica
significava desonra. Teresa recebeu o seu nome em homenagem à avó, Teresa de las
Cuevas. O pai de Teresa, Afonso Sanchez Cepeda, era natural de Toledo e era
conhecido em Ávila como “o toledano.”65 El Greco instalou-se em um antigo bairro
de judeus em Toledo. Doña Jerônima de las Cuevas, ousam alguns pesquisadores, era
neta de um irmão de Teresa de las Cuevas, avó de Teresa de Ávila, portanto há
evidências de que Doña Jerônima poderia ser sobrinha de Teresa de Ávila.
A não ser o relato de seu filho Jorge Manuel sobre o encontro de El Greco e
Teresa de Ávila, não há nenhum documento que comprove que ambos se conheciam,
porém é interessante que seja comum nas biografias do pintor Teresa de Ávila ser
citada, pois para alguns a espiritualidade de Teresa foi bem retratada na obra do
pintor.
65
Marcelle AUCLAIR. Teresa de Ávila. p.10
66
J. SANCHEZ LUENGO. Los enigmas de Domenico Theotocopoulos, El Greco. p.112
67
Walter NIGG. Teresa de Ávila, Teresa de Jesus. p.53
Esse é apenas um exemplo da importância que Maria Madalena teve, não só nas artes,
mas nos escritos de teólogos e devotos da época.
Emile Mâle ao falar sobre o fogo místico vindo do céu que abrasa o peito
numa experiência mística, quando descreve uma estátua de São Felipe Néri em
êxtase, na Basílica de São Pedro em Roma, faz um poético desabafo ao se referir à
Santa Teresa de Ávila:
68
Rodrigo NAVES. El Greco. p.84
69
Ibid. p.87
70
Emile MÂLE. El arte religioso de la Contrarreforma. p.158
Jorge Manuel, o filho ilegítimo de El Greco, foi uma grande figura na vida do
pintor. No que se refere ao nome composto, reafirmando sua raiz grega, Jorge,
corresponde sem dúvida ao nome do pai do cretense e, Manuel, de seu irmão mais
velho ou talvez do pai de Doña Jerônima, Manuel de las Cuevas.
El Greco revelou ao longo de sua vida uma grande proximidade com seu filho.
Retratou-o como pajem na famosa obra O enterro do Conde de Orgaz, em O retrato
de um pintor onde o retrata de forma idealizada, no qual Jorge Manuel aparece com a
postura e qualidades que não possuía, porém eram as que seu pai desejaria que
tivesse.71
Gabriel de los Morales72 nasceu em 1603, primeiro filho de Jorge Manuel com
Alfonsa de los Morales, a primeira de suas três esposas. Gabriel foi uma grande
alegria na vida do agora velho pintor. Em suas memórias, Jorge Manuel atribui ao pai,
El Greco, a responsabilidade pela escolha da vida sacerdotal de seu único filho.
Segundo Jorge Manuel, havia uma grande afinidade entre o avô e o neto. El Greco
ensinou ao neto as Regras de São Bento, guia espiritual de sua vida, que também
ensinara ao filho. Gabriel, no entanto, ao contrário do pai, levava a sério cada preceito
das normas beneditinas e, em seu relato, Jorge Manuel deixa transparecer um certo
desencanto com a escolha do filho pelo noviciado. Em 1617, fazia três anos que El
Greco havia morrido, morre Alfonsa o que torna mais intensa a vontade de Gabriel de
ingressar no seminário.
71
José ALVAREZ LOPERA. El Greco: la obra esencial. p.79
72
Jorge Manuel THEOTOCOPULI. Viernes. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El
Greco. p.170-171
Agora está no Convento de Piedrahita de Ávila. Escreve-me dizendo o
gozo da mortificação pelo frio invernal de sua cela. Se pudesse aspirar a
alcançar a santidade, mas não estar louco, pobre filho meu.73
O segundo casamento de Jorge Manuel foi em 1621, quando ele contava com
43 e Gregória com 22 anos que era viúva também e tinha um filho, Tomás de
Gusman. Jorge Manuel e Gregória tiveram duas filhas, Maria e Claudia e no terceiro
parto, Gregória falece, dando à luz Jorge em 1629. O menino morre após seis meses.
Após oito meses da segunda viuvez, casa-se com Isabel de Villegas, em 1630,
que era viúva e tinha uma filha. É neste ano que se esconde da justiça no Hospital
aonde escreve o diário encontrado por Serrano Pintado que assim se inicia:
Ao final de sua vida com suas quatro filhas e dois filhos de casamentos
anteriores de suas mulheres, Gregória e Isabel, Jorge Manuel morre aos 53 anos
doente e arruinado, em 1631 um ano após ter se casado pela terceira vez.
73
Ibid. p.171
74
Jorge Manuel THEOTOCOPULI. Domingo. In: Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El
Greco. p.17
75
Mariano SERRANO PINTADO. Mi padre El Greco. p.218
1.6 A morte de El Greco e as homenagens póstumas
[...] estando deitado numa cama, enfermo de doença que Deus nosso Senhor
foi servido de me dar [...] crendo e confessando como tenho, creio e confesso
tudo aquilo que crê e confessa a Santa Madre Igreja de Roma [...] afirmo
viver e morrer como bom , fiel católico cristão [...]76
El Greco morreu poucos dias depois em 4 de abril de 1614. Seu enterro teve as
honrarias destinadas a um grande cidadão toledano. Era considerado um homem
culto, bem relacionado, socialmente respeitado, que seria para sempre, o grande pintor
de Toledo.
O inventário completo de seus bens, dos mais de cem quadros e dos livros de
sua biblioteca representou um registro importante para se conhecer com mais detalhes
a vida do pintor.
76
El Greco. Apud José Luis MORALES Y MARIN. El Greco. p.58
Creta lhe deu a vida e os pincéis
Toledo, melhor pátria, onde começa
a lograr, com a morte eternidades.77
77
José Luis MORALES Y MARIN. El Greco. p.58
78
José Luis MORALES Y MARIN. El Greco. p.19
REFERÊNCIAS
ALVAREZ LOPERA, José (Ed.) El Greco: identity and transformation – Crete,
Italy, Spain. Milano : Skira, 1999.
CHASTEL, André. Arte e humanismo. In: ARGAN, Giulio Carlo. História da arte
italiana: de Michelangelo ao futurismo. São Paulo : Cosac & Naif, 1988. v.2.
JAGUARIBE, Helio. Um estudo crítico da história. São Paulo : Paz e Terra, 2001.
LECALDANO, Paolo (Ed.) L’opera completa del Greco. Milão : Rizzoli, 1969.
MÂLE, Emile. L’art religieux de la fin du XVIe , du XVIIe et du XVIIIe : étude sur
l’iconographie après le Concile de Trente – Italie, France, Espagne, Flandres. 12.
ed. Paris : Armand Colin, 1951.
MÂLE, Emile. L’art religieux du XII siècle en France. Paris : Armand Colin, 1998.
MANN, Richard. G. Los retablos para el Hospital de San Juan Bautista de Afuera
(Toledo). In: BROWN, Jonathan et al. Visiones del pensamiento: El Greco como
intérprete dela historia, la tradición y las ideas. Madrid : Alianza Editorial, 1984.
NIGG, Walter. Teresa de Ávila, Teresa de Jesus. São Paulo : Loyola, 1995.
SCHROTH, Sarah. El entierro del conde de Orgaz. In: BROWN, Jonathan et al.
Visiones del pensamiento: El Greco como intérprete de la historia, la tradición y las
ideas. Madrid : Alianza, 1984.
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