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CAPÍTULO III.

O AMOR ROMÂNTICO E OUTRAS LIGAÇÕES

No início do terceiro capítulo de sua obra, Anthony Giddens define o que entende por
amor apaixonado, amour passion, algo que, como mostrará mais adiante, difere do chamando
amor romântico. Para o sociólogo, o amor apaixonado seria resultado da associação entre o
amor e os vínculos sexuais, tendo essa relação um caráter invasivo, que por sua intensidade,
pode dissociar o sujeito de suas responsabilidades cotidianas, rompendo com as rotinas e
conflitando com as mesmas. Giddens explica que o tipo de encantamento proporcionado pelo
amor apaixonado aproxima-se daquela paixão religiosa e é algo que desestabiliza as relações
de cunho pessoal. Nesse sentido, o amor apaixonado é entendido como uma ameaça a ordem e
aos deveres sociais, justamente pelo seu viés perturbador e urgente. O autor pontua ainda que,
o amor apaixonado é um elemento quase que universal, enquanto o amor apaixonado é um
aspecto particular em termos culturais.

Tópico I

Casamento, sexualidade e amor romântico

Giddens afirma que na pré-modernidade europeia, a atração sexual entre os sujeitos


não era um elemento presente no estabelecimento dos matrimônios, isso porque estes se
determinavam a partir de aspectos econômicos. Em camadas desprovidas, por exemplo, o
casamento era uma forma de ordenação do trabalho no campo e manifestações físicas de afeto
como o beijo e a carícia, não eram elementos comumente observados no interior dos
casamentos. Mas, entre os homens, haviam ocasiões altamente favoráveis para que eles se
mantivessem relações externas ao matrimônio.
Nas camadas aristocráticas da população, a situação das mulheres as permitia possuir
uma licenciosidade sexual, sendo que em algumas condições específicas, em termos de
espaço e tempo, as mulheres dessas camadas eram isentas das obrigações relacionadas à
reprodução e atividades do lar para poderem ir me busca do prazer sexual. A questão da
liberdade sexual, afirma Giddens, é vinculada ao poder, pois o manifesta e o acompanha. O
autor ressalta ainda que esse tipo de acontecimento não é algo relacionado ao casamento.
Giddens afirma que um aspecto particular da Europa é a associação do amor aos
princípios morais cristãos, de modo que para ter acesso a esse amor, era necessário dedicar-se
a Deus, o que proporcionaria ao sujeito um conhecimento acerca de si mesmo. Esses
elementos, explica Giddens, formaram a unidade mística entre o homem e a mulher. No amor
apaixonado, a idealização do outro é temporária. Com o amor romântico, ocorre um tipo de
envolvimento mais duradouro, em que já estaria presente, precedentemente, uma certa
reflexividade.
O amor romântico passou a ter proeminência a partir do século XVIII, tendo se
apropriado de alguns aspectos do amor apaixonado, mas diferindo dele. Entre os elementos
trazidos pelo amor romântico está a inclusão da noção de uma narrativa para uma vida
individual. Nas palavras do autor “contar uma história é um dos sentidos do ‘romance’, mas
esta história tornava-se agora individualizada, inserindo o eu e o outro em uma narrativa
pessoal, sem ligação particular com processos sociais mais amplos.” (p.50). Para o autor, a
emergência do amor romântico foi concomitante ao surgimento da novela, como uma nova
forma de narrativa.
O autor explica que esse conjunto de noções vinculadas ao amor romântico associou
amor e liberdade de forma pioneira, sendo que esses estados eram considerados como
desejáveis. O amor romântico e seus princípios forma inseridos nos vínculos entre a liberdade
e a auto-realização. Já o amor apaixonado, também libertador, tinha em si a ruptura em
relação a rotina e ao dever.
No amor romântico, o amor sublime é um aspecto preponderante em relação ao ardor
sexual. Aspectos como a sexualidade e o amor adquirem novos significados, pois ele rompe
com a primeira e a segunda passa a significar qualidade que diferencia uma pessoa enquanto
especial. Já a atração imediata, quando associada ao amor romântico, deve ser dissociada de
impulsões e compulsões sexuais/eróticos, característicos do amor apaixonado, de maneira que
esse primeiro contato visual, enquanto um aspecto comunicativo, signifique uma assimilação
dos atributos de outrem. “É um processo de atração por alguém que pode tornar a vida de
outro alguém, digamos assim, ‘completa’”. (p. 51)
Giddens explica que a noção que o romance obteve a partir do século XIX teve
importantes impactos no social, sendo tanto a expressão quanto efeito de amplas mudanças.
Razão e modernidade são elementos que caminharam juntos, sendo que no período tudo
aquilo que estava na ordem do emocional estava, por conseguinte, longe do que se poderia
chamar de racional. A compreensão de diversos fenômenos estava alicerçada na razão,
distanciando-se do dogma e do caráter místico. O autor afirma que, nesse sentido, a dimensão
emocional passou por uma reordenação, em consonância com as circunstâncias particulares
das atividades rotineiras. Os laços pessoais, em períodos precedentes ao século XVIII,
estavam vinculados a uma ordem cósmica mais ampla, esse elemento sendo entendido em
termos do destino do envolvimento do sujeito com outro indivíduo, apesar da existência da
possiblidade de direcionar-se até outros indivíduos que ofereciam “assistência” no que
concerne aos envolvimentos que elas pretendiam estabelecer. Posteriormente a esse período, o
destino passa a estar e a ansiar por liberdade, mesmo que ainda, de certa maneira, vinculado a
esse destino cósmico. Nas palavras do autor:
Um romance não era mais, como em geral havia sido antes, uma invocação
de possibilidades especificamente reais em um reino de ficção. Em vez
disso, converteu-se em uma via potencial para o controle do futuro, assim
como uma forma de segurança psicológica (em princípio) para aqueles cujas
vidas eram por ele afetadas. (p. 52)

Tópico II

O Gênero e o Amor

Giddens afirma que a partir do século XIX houve uma radicalização da criação de
novelas e enredos românticos. Isso mostra como a ideia que a noção de amor romântico teria
sido inventada pelos homens não se fundamenta.
O autor aponta três consequências importantes para as mulheres, no período posterior
ao século XVIII e que não podem ser pensadas de forma dissociada da emergência da noção
de amor romântico. A primeira consequência diz respeito ao lar, a segunda a alterações nas
interações pai-filho e a terceira concerne à maternidade.
O aspecto relacionado relação pai-filho, sociólogo explica que essa alteração teria se
dado em todas as camadas sociais no período vitoriano repressivo. Giddens explica que o
poder patriarcal teria iniciado seu declínio no final do século XIX, algo que foi produto da
dissociação entre o lar e o ambiente de trabalho. Assim, o homem deixa de ser o núcleo do
sistema de produção passando, por conseguinte, a perder a preponderância que possuía
anteriormente. Uma emergente relevância depositada no ardor emocional propiciou uma
atenuação do poder do pai, associado a uma maior responsabilidade dada à mulher em relação
a criação dos filhos, resultado da diminuição do tamanho das famílias e da modificação do
status dado às crianças.
Outro aspecto vinculado ao amor romântico foi a maternidade que foi uma edificação
que constituiu a imagem da mãe ideal, composta pelos elementos “esposa” e “mãe”. A
construção desse ideal trouxe à tona a existência de um duplo padrão, tanto no que concerne a
dimensão dos sentimentos, quanto das tarefas. Para Giddens, a sociedade ocidental tem como
característica peculiar a vinculação da maternidade e feminilidade como qualidades que
compõem a personalidade do sujeito. De acordo com concepções como essas, as mulheres
eram dotadas de certos atributos e comportamentos, distintos daqueles possuídos pelo sexo
masculino.
O estabelecimento desse binarismo colocou sobre as costas da mulher a efetivação do
amor, de modo que o amor romântico era um elemento associado a feminilidade, ele era um
amor feminilizado, estando vinculado a ideias como o caráter submisso da mulher. Entretanto,
afirma Giddens, a emergência dessas noções expressou tanto uma privação quanto uma
autonomia.
O que Giddens mostra nesse momento é que a associação da maternidade com o amor
romântico propiciou às mulheres o desenvolvimento de novos domínios de intimidade. Para os
homens, existia o amor romântico e o amor paixão, expresso no âmbito doméstico e na
relação com a amante, respectivamente, e a amizade, no sentido da camaradagem estabelecida
com outros homens, também declinou durante o período vitoriano. No que concerne às
mulheres, a amizade foi um fenômeno que radicalizou-se e o contato estabelecido entre elas
se deu em termos de igualdade pessoal e social, colaborando em situações de frustração no
casamento, mas sendo, também, importantes por si mesmas.
Em relação as histórias românticas e novelas, o autor afirma que elas são uma mistura
de fraqueza, em termos da incapacidade de se chegar a uma auto-identidade estável na vida
real e de esperança, no sentido de negação do padrão socialmente estabelecido, como a ideia
de domesticidade.
O amor romântico, como já ressaltado, é um elemento que possui aspectos do amor
apaixonado, mas difere dele por ser, como apontou Giddens, uma força social genérica desde
o século XVIII. Estabeleceu, desde o seu surgimento, uma conexão com transformações
sociais, bem como com transições no que diz respeito aos casamentos e na vida intima dos
sujeitos. É um elemento relacionado ao autoquestionado e proporciona situações em que o
sujeito se desliga do mundo social que o rodeio, mas de uma forma distinta da proporcionada
pelo amor apaixonado, pois sua orientação para o futuro ocorre de maneira prevista e que
poder ser moldada, além da edificação de uma história compartilhada que difere a dimensão
matrimonial de outras esferas do âmbito familiar.
Para nosso autor, a relação do amor romântico com a intimidade se dá pelo caráter
reparador do primeiro, ou seja, uma comunicação psíquica que faz com que o sujeito, outrora
fragmentado, venha a se tornar, após o estabelecimento da relação, um sujeito completo,
inteiro. Esse é um fator que está intimamente relacionado à auto-identidade, ao eu.
O amor romântico, afirma-nos Giddens, está fundamentado em uma idealização tanto
de si quanto do outro, engendrando uma trajetória direcionada ao futuro. Essa projeção
ulterior é elemento importante, algo presente nos romances literários que, na abordagem de
Giddens, estão para além de uma simples fuga da realidade, situando-se, antes, como um
modo de ver contrafactual do carente. Esse modo de ver, afirmou, foi, a partir do século XIX,
parte importante de uma reestruturação das condições da vida social.
Para Giddens, o amor romântico tem um sentido de busca, uma busca em uma situação
em que os eventos são desconhecidos e, a partir do encontro e da descoberta do outro, se dá a
validação da auto-identidade. Diferente dos romances medievais, no contexto moderno o
caráter ativo é uma evidencia e a conquista, para as mulheres, se direcionado não para a
dimensão sexual, mas para a substituição da indiferença pela devoção, pelo amor. Tanto na
literatura quanto na realidade vivida, conquistar o outro significa a construção tanto de si
quanto de uma biografia mútua.
O amor romântico possui um caráter subversivo, mas este elemento foi controlado
pela sua associação com o casamento, a maternidade e a noção de que o amor seria eterno.
Desse modo, com o amor romântico e a parceria sexual, enquanto uma concordância
estrutural mantinha-se estabelecida de forma eficaz. Mas de acordo com o autor, o vinculo
entre o amor e as necessidades para a manutenção e seguimento do matrimonio eram frágeis,
entretanto, mesmo diante dessas circunstâncias, o casamento eficaz se tornava possível devido
à divisão sexual do trabalho. Nesse sentido, a mulher “respeitável” aparece com sua
sexualidade limitada ao casamento, com este fato tornando-se um símbolo para essa
caracterização da imagem feminina. Esses fatores, para o autor, faziam com que os homens
conservassem uma distancia em relação a esfera emergente da intimidade e, no que concerne
a dimensão feminina, fazia com que o casamento fosse um propósito primordial para as
mulheres.

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