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38° Encontro Anual da Anpocs

GT 37 – Sociologia e Antropologia da Moral

O Circuito Comunicacional das Emoções: a Internet como Arquivo e


Tribunal da Cólera Cotidiana

João Freire Filho (ECO/UFRJ)


A Internet figura, na atualidade, como um inexplorado arquivo e tribunal das
mais vastas emoções. Blogs, comunidades e fóruns on-line abarcam narrativas,
performances, flagrantes e testemunhos emotivos de diversos atores e grupos sociais.
As manifestações de alegria, asco, rancor ou tristeza costumam suscitar, por sua vez,
comentários solidários ou desfavoráveis da audiência virtual. Conhecimentos
científicos, a psicologia popular, textos sagrados, o senso comum e experiências
biográficas são acionados para embasar a classificação — célere e taxativa — das
expressões e das condutas emocionais alheias.
Em meu atual projeto de pesquisa, examino discursos conflitantes sobre a
motivação, a legitimidade e o efeito de demonstrações públicas de “fúria”, gravadas
com celular ou câmeras amadoras e disponibilizadas no YouTube. O site de
compartilhamento de vídeos é o mais volumoso arquivo de nossa cólera cotidiana: das
brigas de trânsito à indignação política; da vingança de cônjuges ciumentos à ira de crentes
zelosos; sem se esquecer do acervo de torturas e de linchamentos. Para integrar o corpus
da minha investigação, selecionei flagrantes que acirraram discussões prolongadas e
candentes no próprio YouTube, em plataformas para redes sociais e em outros
ambientes interativos on-line.
Os fóruns do ciberespaço acolhem especulações sobre as posturas, as
contrariedades e as faltas que justificariam a emergência e a expressão da raiva, em
variados contextos — na vida familiar, no ambiente de trabalho, nas transações
comerciais e nas relações com os prestadores de serviços públicos. Delineiam, assim,
um vívido panorama de aspirações sociais, sensos de justiça e horizontes morais
vigentes no Brasil.
Parte considerável dos registros virtuais da cólera cotidiana foi etiquetada com a
expressão “dia de fúria”, numa referência ao título brasileiro de Falling Down, filme
dirigido por Joel Schumacher e protagonizado por Michael Douglas. Lançado em 1993,
Um Dia de Fúria pretendia apresentar um retrato genuíno das agruras do homem branco
comum, em uma Los Angeles multicultural e hostil. Tratava-se, nos termos do cartaz
original, de “um relato sobre a realidade urbana”.
Como observa Gormley (2005), Um Dia de Fúria tentou replicar a sensação de
imediatismo e de autenticidade provocada pelo Novo Realismo Negro — gênero
cinematográfico constituído por Os Donos da Rua (Boyz n the Hood, John Singleton,
1991), Uma Questão de Respeito (Juice, Ernest Dickerson, 1992), Perigo para a

1
Sociedade (Menace II Society, Albert Hughes e Allen Hughes, 1993), entre outras
realizações que almejavam exprimir — em suas imagens e narrativas — uma “‘raiva
negra’ politizada”. Declarações do próprio Schumacher comprovam a intenção de tornar
visíveis sentimentos análogos de frustração e de fúria:

Filmes são um reflexo da sociedade, e surgiram diversas produções nos Estados


Unidos sobre a raiva nas ruas, mas todas elas tinham sido feitas por afro-
americanos. Bem, eles não são as únicas pessoas enraivecidas em nosso país (apud
GORMLEY, 2005, p. 58).

Um Dia de Fúria sugeria, portanto, que o sonho americano deixara de atender


também ao seu formulador — o homem branco de classe média, cuja autoridade fora
emasculada pela crise econômica e pela postura desafiadora das minorias.
Desde o seu lançamento, o filme suscitou inúmeras controvérsias, tornando-se
um referencial cultural de largo alcance: reverenciado em comunidades de fãs nas redes
sociais, inspirou canções e videoclipes de bandas de rock, além de funcionar como
paradigma para a performance e o julgamento de manifestações veementes de
descontentamento, gestos eloquentes de indignação ou esquemas de vingança.
Neste paper, analiso, especificamente, a fenomenal repercussão do vídeo
“Solucionou? Não, mas estou satisfeito. Dia #Fúria”, gravado em 28 de junho de 2013.1 A
filmagem documenta a desforra de Rodrigo Ciríaco, de 32 anos, contra uma filial da
rede Dicico, especializada em material de construção. Após consecutivos adiamentos na
entrega de uma encomenda, Ciríaco resolveu destruir itens do mostruário da loja,
equivalentes aos que havia comprado. No dia 30 de junho, registrou a revanche no
YouTube. A retaliação concebida e irradiada por Ciríaco atiçou a curiosidade de
inumeráveis internautas. Impressiona, de fato, a veemência dos discursos e dos gestos
fixados no vídeo de quatro minutos e 29 segundos. A propagação viral se deveu, ainda,
à intrigante biografia do consumidor “furioso”: graduado em história pela USP, Rodrigo
Ciríaco é professor de escolas públicas da Zona Leste de São Paulo, escritor e ativista
cultural.2
Além de circular, intensamente, pelas redes sociais, o vídeo “Solucionou? Não,
mas estou satisfeito. Dia #Fúria” foi reproduzido e discutido em sites da grande imprensa

1
https://www.youtube.com/watch?v=KNRuuqdRn3c.
2
Autor dos livros de contos Te pego lá fora (2008), baseado em suas experiências como educador na
periferia, e 100 mágoas (2011). Coordenador do coletivo literário MESQUITEIROS e da Edições UM
por TODOS, “selo editorial independente, da quebrada para a quebrada”, cujo objetivo é publicar obras
de escritores da “cena marginal-periférica” (https://www.facebook.com/EdicoesUmPorTodos/info).

2
e em atrações televisivas, tanto do gênero de variedades — Mais Você (Rede Globo),
Programa do Ratinho (SBT) e Morning Show (Rede TV) — quanto da área do
telejornalismo — SBT Brasil e Primeiro Jornal (Band). O tom das reportagens variou
bastante: da crítica legalista ao espanto divertido, da solidariedade populista à avaliação
clínica.
O vídeo polêmico foi realizado com uma câmera amadora. A gravação começa
no amplo estacionamento da Dicico, num horário de pouco movimento. Imagens
trepidantes, enquadramentos imperfeitos, ruídos de carros que cruzam uma avenida...
Ciríaco indica, para a audiência virtual, a localização exata da filmagem. Em seguida,
passa a contar a sua história. A narrativa cria uma atmosfera de inquietação acerca do
que está por ocorrer:

Dicico, Radial Leste, hoje, São Paulo, 28 de junho. Eu juro que eu não queria fazer o
que eu vou fazer. Mas é assim, às vezes a gente é tão humilhado... Eu gastei R$ 4 mil
nesta loja, comprando piso, azulejo, revestimento, comprando tudo...

O cinegrafista-narrador detalha, então, os aborrecimentos e os prejuízos financeiros


ocasionados pela negligência do estabelecimento comercial. A proximidade da câmera e o
ângulo incomum da filmagem lhe desfiguram um pouco o rosto. A inflexão da voz
traduz o ânimo crescentemente exaltado...
Uma humilhação... Esta é a quarta vez que eu venho aqui, já tô passando raiva, já perdi
aula na escola, já perdi meu dia na escola, já perdi gasolina... Eu juro que eu não queria
fazer o que eu vou fazer, mas que a gente tem que honrar nosso nome, a gente tem que
ter dignidade, mostrar pra esses... caras, que eles não podem fazer o que eles querem,
que eles têm que ter respeito com as pessoas.

Ciríaco prepara o revide, mesmo a contragosto. Jura — em duas ocasiões — que


preferiria agir de outra forma. Valores centrais e incontornáveis o impelem, todavia, ao
acerto de contas. O consumidor considera que foi tratado de modo aviltante pela Dicico.
A maior rede de lojas de materiais de construção do país (58 unidades no Estado de São
Paulo) rompera uma relação de confiança, promovida pela publicidade (“Não se deixe
enganar. Negócio bom, só na Dicico”; “A Dicico faz tudo por você”), oficializada no
contrato de compra e amparada pelo Código de Defesa do Consumidor. As promessas
descumpridas teriam acarretado mais do que mera frustração: Ciríaco não se revela
simplesmente aborrecido pelo adiamento do sonho de usufruir de maior conforto e bem-
estar doméstico; declara que se sente humilhado (utiliza o termo duas vezes) pela
administração da loja, que recebera suas reclamações com ostensiva indiferença.
Na perspectiva do sujeito que se crê aviltado, a humilhação é um gesto ou um
processo indevido de rebaixamento (humus, em latim, significa “terra”, “solo”, “chão”).
3
Não é à toa, pois, que nos referimos aos humilhados, alternativamente, como
espezinhados (comprimidos, esmagados com os pés) ou degradados (privados de
graduação; rebaixados de posto ou de posição na hierarquia eclesiástica, militar ou
social). A presumida depreciação da honra ou da dignidade pode gerar condições e
reações emocionais distintas: sobressaem, em alguns casos, o desalento, a consternação
e, até mesmo, a diminuição do amor-próprio; em outros casos, vigoram o ressentimento,
a raiva contida, o desejo de vingança, todo um complexo afetivo que o escritor James
Baldwin denominou “a ira do desprezado” (BALDWIN, 1998, p. 121-122).
Acreditando-se vítima de significativa humilhação, Rodrigo Ciríaco afirma estar
passando raiva — a estrutura frasal designa uma experiência emotiva desagradável e
persistente, em vez de uma breve condição tempestuosa. Ressentido, o consumidor
projeta vingança. É preciso dar uma lição naqueles “caras”, os comerciantes que
ignoraram os seus direitos, subestimaram o seu sofrimento e, ainda por cima,
desprezaram suas tentativas de conciliação. Chegara o momento de Rodrigo Ciríaco
defender a sua honra.
A frase, assim formulada, evoca referências díspares e remotas: epopeias
homéricas; sagas islandesas; relatos de rixas rurais; colunas de faits divers etc. Outrora,
a influência da honra como guia da consciência, regra de conduta e medida de status
social era inquestionável — “a honra”, contabiliza Pitt-Rivers (1992, p. 17), “matou
mais homens do que a peste, suscitou mais controvérsias do que a misericórdia, mais
rixas do que o dinheiro”; para nós, cidadãos do século XXI, a reivindicação da honra
pode soar, todavia, como reminiscência de “um passado morto, o dos cavaleiros
valentes ou dos heróis de capa e espada” (LÉVY et al. 1992, p. 86).
É precipitado, porém, decretar o desaparecimento irrevogável da honra como
motivadora da conduta humana. Elusivo, polissêmico, carregado de peculiaridades
culturais, o ideal perdura, como capital simbólico ou como bússola moral, em diferentes
áreas da vida pública, desdobrando-se e entrelaçando-se, por vezes, com noções mais
modernas. Quando se atira em defesa da própria honra, Ciríaco não é impulsionado pelo
orgulho do pertencimento a uma linhagem nobre (a despeito do arcaísmo “a gente tem
que honrar o nosso nome”); tampouco se encontra obcecado por consertar avarias em
sua reputação ou em sua imagem pública. Um golpe surdo e profundo abalara,
intimamente, o remediado professor. A justificativa moral prévia de sua retaliação

4
conjuga duas noções avaliadas, em geral, como fundamentos antagônicos de sistemas de
valores específicos: honra e dignidade.3
Seria o uso simultâneo dos dois conceitos um mero recurso retórico, acionado
para tornar mais incisiva ou comovente a anunciação da revanche? Não devemos nos
acomodar com esta hipótese interpretativa. Ciríaco parece considerar, de fato, que a
gerência da Dicico atingira sua honra, no sentido específico que
Frank Henderson Stewart conferiu ao termo: a honra como um “direito ao respeito”.

Sugiro que nós encaremos a honra como um direito — de modo genérico, o direito
a ser tratado como detentor de determinado valor. Vou me referir a isto como um
direito ao respeito (...) [P]orque a honra, como eu a defino, é um clamor por um
direito, quer dizer, “um direito de que alguma coisa seja feita por outra”. De um
lado, está o detentor, que traz em si algo que lhe dá um direito ao respeito; do outro
lado, está o mundo, que tem o dever de tratá-lo com respeito (STEWART, 1994, p.
21).

A definição proposta pelo antropólogo (a partir do seu trabalho de campo com


beduínos árabes do Sinai) foi aprofundada por Kwame Anthony Appiah, em sua análise
histórica e filosófica do papel da honra no desenvolvimento de “revoluções morais”.
Appiah ressalta que o respeito concedido a alguém pode admitir inúmeras justificativas,
manifestar-se com tons emocionais bastante variados e vincular-se a duas categorias
diferentes de honra. A estima estaria ligada, esquematicamente, à honra competitiva
(assentada sobre demonstrações de supremacia em atender a critérios de excelência ou
de moralidade); haveria, contudo, uma forma mais elementar de respeito — o respeito
por reconhecimento (“recognition respect”) —, conectada com um tipo de honra que
não se baseia no confronto excludente e hierárquico. Para o filósofo, a dignidade é esta
forma de honra que alicerça o respeito por reconhecimento. Em vez de repetir a tese da
cisão radical e evolutiva entre honra e dignidade, Appiah prefere reconsiderar os pontos
de divergência e de confluência entre os dois conceitos. O autor reitera que é um
equívoco (político, inclusive) admitir que apenas as formas hierárquicas do direito ao
respeito devam ser categorizadas como “honra”:

Honrar especialmente alguns é compatível com o reconhecimento da dignidade de


todos os demais. Essa dignidade não requer as formas comparativas de avaliação,

3
“A era que viu o declínio de honra também viu o surgimento de novas moralidades e de um novo
humanismo, e, mais especificamente, de um interesse historicamente sem precedentes pela dignidade e
pelos direitos do indivíduo. (...) A dignidade, ao contrário da honra, sempre está relacionada com a
humanidade intrínseca, despojada de todos os papéis ou de todas as normas impostas socialmente. Ela
pertence ao self como tal, ao indivíduo, independentemente de sua posição na sociedade. Isto se torna
muito claro nas formulações clássicas de direitos humanos, do Preâmbulo da Declaração de
Independência à Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas” (BERGER, 1984, p.
150 e 153; ver, também, TAYLOR, 1994, p. 127).

5
que acompanham formas mais competitivas de honra. Não é algo que você ganha
ou conquista, e a reação adequada à sua dignidade não é o orgulho, e sim o respeito
próprio. (...) Existem diferenças importantes entre a dignidade, entendida desta
maneira, e outras formas de honra; mas todas têm algo importante em comum. Se
você não agir de maneira compatível com a sua dignidade, as pessoas deixarão de
respeitá-lo, e com razão. Você não tem que ganhar sua dignidade humana; você
não tem que fazer nada de especial para obtê-la. Mas, se não viver à altura de sua
humanidade, você pode perdê-la (APPIAH, 2012, p. 139-140).

Rodrigo Ciríaco não reivindicara um tratamento especial, nenhum tipo de


privilégio; almejara, apenas, que a Dicico levasse a sério sua demanda de reparação de
dano. Tinha expectativa de que os gerentes demonstrariam alguma consideração pelo
consumidor que se mantivera fiel, até aquele instante, às regras e à etiqueta do comércio
capitalista. Porém, ao deliberar sobre o atraso no cumprimento do contrato, os
administradores da loja desdenharam das agruras do professor. Nem mesmo a
informação de que o cliente se tornara pai, há poucos meses, foi capaz de sensibilizá-
los. Zeloso de sua honra, Ciríaco julgou, então, que deveria agir de modo mais
contundente, em vez de perseverar nas negociações que só pareciam rebaixá-lo perante
os comerciantes poderosos (e, por conseguinte, perante a sua própria jurisdição íntima).
Logo depois do enfático discurso de justificação moral, Ciríaco retira, com
dificuldade, um objeto de dentro da mochila (trata-se do instrumento de sua vingança,
como constataremos em breve). O professor caminha, apressadamente, até a entrada da
loja. A decoração festiva do lugar (repleto de bandeirolas, balões e fitas coloridas)
contrasta com a marcha impetuosa do professor. Rapidamente, ele avista alguém
conhecido e transmite o comunicado fatal: “Ô, Robson, se quiser, liga pro Renato e fala
que não precisa me ressarcir não. Eu vim buscar meu prejuízo é agora... Não precisa
mais me reembolsar não, tá? O que vocês me devem eu vou pegar é agora”.
Conservando o tom áspero, mantém distantes os trabalhadores da loja:

Nada contra nenhum funcionário, não quero fazer nada, só que não encosta ni
mim... Aproveita e liga pro 190, que a gente vai agora pra delegacia... Não quero
machucar ninguém, só que não encosta ni mim!

Sem mais delongas, Ciríaco principia a sua retaliação. “Bom, eu comprei uma
cuba dessa, como não me entregaram [ouvimos, por três vezes, o estrondo de
marteladas que estilhaçam a pia do mostruário]... precisa mais entregar não. Tô
levando pra casa...”. Mal conseguimos ver o martelo empunhado por Ciríaco; sentimos,
entretanto, todo o peso de seu simbolismo, como signo do poder criativo e destruidor do
homem. Nas peças de propaganda bolchevique, o martelo representava a força e o
heroísmo do trabalhador, agente da demolição de um mundo ultrapassado e da

6
edificação de uma nova sociedade. Nos tribunais norte-americanos (representados,
constantemente, por Hollywood), o juiz bate o martelo quando precisa impor o silêncio
e a ordem ou quando vai sacramentar uma sentença. Rodrigo Ciríaco decidiu empregá-
lo para impor respeito e fazer justiça, com as próprias mãos.
“Ainda tenho cinco metros de piso... Não vem encostar ni mim, não, que o bicho
vai pegar!” O professor eleva a voz e reitera a advertência: “Não vem encostar ni mim,
não, que o bicho pega! Não tenho nada contra nenhum funcionário, só que não encosta
ni mim, não!”. Um vendedor corpulento questiona, timidamente: “Isso daí vai
solucionar?...”. É interrompido, de maneira abrupta: “Eu vim conversar e ninguém quis
conversar... Não interessa! [golpe certeiro do martelo em mais uma pia do mostruário]
Não conversa comigo, caralho! Não conversa comigo, não!”. Uma voz feminina
intervém, ao fundo: “Não faz isso!”. Sem sucesso: “Não conversa comigo, não!”,
retruca o professor, enquanto transita pelos corredores da loja. O funcionário alto e
gorducho indaga de novo: “Isto daí vai resolver?”. “Não vai, não vai... [mais uma
martelada, aparentemente num mictório]”. Diante da insistência do vendedor (“Isto vai
solucionar o seu problema? Vai solucionar o seu problema?”), Ciríaco se exaspera e
grita: “Chama a polícia! Chama a polícia! [ouvimos o despedaçar de outra cuba]
Chama a polícia, nesta porra!”. Teimoso ou atônito, o funcionário retoma o argumento
pragmático: “Vai solucionar o seu problema?” Encaminhando-se para fora da loja, o
professor esclarece: “Não vai solucionar, mas tô... tô me estressando”.
Ciríaco apresentou, naquele instante, uma justificativa de ordem psicológica para
a sua atitude enérgica, em vez de desenvolver a argumentação moral anterior. Exaltado,
atropelou as palavras; decerto pretendia dizer que estava se “desestressando” — isto é,
extravasando a cólera represada. Mesmo ciente de que a descarga emocional não lhe
renderia benefícios materiais palpáveis, precisava aliviar o peito, purificar-se da raiva,
comumente encarada, na cultura psi contemporânea, como uma “emoção tóxica”.
Descrentes dos resultados terapêuticos imediatos do quebra-quebra, três
funcionários se acercam do cliente estressado. Tentam bloquear seu retorno para o
interior do estabelecimento. A proximidade dos empregados incomoda Ciríaco: “Não
encosta ni mim! Não encosta ni mim! [mais uma martelada, ao que tudo indica, numa
descarga de louça] Não encosta ni mim!”. Na saída, o professor se despede — com
escárnio — dos vendedores que o perseguem: “Pode chamar... O Robson tem meus
dados, vamos lá... Isso... Parabéns... Parabéns...”. Já no estacionamento, é novamente
interpelado pelo trabalhador mais robusto (agora, sem o uniforme da loja, numa atitude

7
suspeita). Mais uma vez, Ciríaco se vale do mote “Não vai solucionar, mas tô
satisfeito.” O funcionário insiste, propõe o diálogo... Em vão: “Amigo, por favor, não é
com você... Eu não quero que torne pessoal... É com a Dicico, não é com você... Não,
amigo, você não tem culpa, é com a Dicico...” O staff da loja finalmente desiste da
abordagem.
Rodrigo Ciríaco continua andando pelo estacionamento. Antes de ir embora,
encontra tempo para uma demonstração de humor rancoroso: ao cruzar com um
potencial cliente da Dicico (cuja expressão de perplexidade é fácil intuir), o consumidor
vingativo previne: “Compra não que eles não entregam nada, viu?”.
Nos últimos segundos de gravação, ouvimos longínquos sons de sirene. Rodrigo
Ciríaco caminha em direção à Avenida Radial Leste. Sua câmera, desnorteada, ainda
capta, de relance, uma última imagem no estacionamento da loja: a palavra “SAÍDA”,
escrita no asfalto, com um amarelo desbotado.
No Twitter, Ciríaco revelou o que ocorreu após o término da filmagem: “Eu saí
da loja andando, fui até o ponto de ônibus, peguei o buzão e fui pra casa.”4 O professor
passou, então, a conjecturar quais seriam as consequências do seu “dia de fúria”: “Até
agora, sem nenhum problema. Aguardando a #Dicico se pronunciar para vermos as
questões judiciais disso daí. Mas, como disse: agora, estou #SATISFEITO.”5 Ficamos
tentados a insistir com a pergunta: satisfeito com o quê? O professor não recuperara, na
prática, os produtos adquiridos; tampouco obtivera uma reparação pecuniária. Estava
ciente de que os estragos materiais que causara — além de irrelevantes, do ponto de
vista dos rendimentos da loja — poderiam resultar em represálias jurídicas e, por
conseguinte, em novas perdas financeiras. Dinheiro, todavia, não era o valor central nas
suas declarações sobre aquele episódio: “Cara: lavei minha honra, lavei minha alma.
Isso, não tem preço”, declarou o professor, em outro Tweet. O argumento da lavagem
da honra foi bem acolhido pela audiência do vídeo na Internet.6
Ciríaco usou as redes sociais para registrar — passo a passo — o desenrolar do
evento na Dicico, antes mesmo da postagem do vídeo “Solucionou? Não, mas estou

4
https://twitter.com/rodrigociriaco. Em 30/06/2013.
5
https://twitter.com/rodrigociriaco. Em 30/06/2013.
6
“Ernani Coutinho: Tá certíssimo professor!! Eh isso mesmo!!! DIGNIDADE e HONRA não tem
preço!!!!”; “Boanarges Brandão: A ofensa a nossa honra não pode ser paga em espécie...É um valor
intangível.” (https://www.youtube.com/watch?b=k8Bqwj4o9ws); “Ailton Ribeiro da Silva: Estou
espalhando o video, como você mesmo destacou, a dignidade e honra valem mais, que a ganancia destes
barões que so visam o lucro” (https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts); “Michel
Duarte: Parabéns Rodrigo, pela atitude kra. Honrou sua dignidade. Muitos tem vontade mas não tem essa
coragem!” (https://www.youtube.com/watch?v=8AMbiusTUv4).

8
satisfeito”. O professor retomou as justificações delineadas no calor da hora, tentando
aprimorá-las; acrescentou informações e introduziu novas linhas de argumentação a seu
favor. No Facebook, publicou, sem perda de tempo, uma versão inicial do imbróglio
com a loja de materiais:

Dia de #FÚRIA na #DICICO construções. Peguei o meu martelo, cobrei o


meu #PREJUÍZO, nenhum funcionário, ninguém machucado e tá tudo certo.
Porque aqui não tem #OTÁRIO, eles tem que respeitar os seus #CLIENTES e se
eles não seguem o que diz o CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, eu
também não sou obrigado a seguir. O que era meu, busquei e quebrei dentro da
loja, e tá tudo certo.
Logo menos disponibilizo o #VÍDEO com imagens. Ficou ruim pra caramba, mas
o importante é mostrar a porcaria de serviço desses caras. E a falta de respeito com
as pessoas.
Comigo, não mexem mais.7

Naquele anúncio inaugural, destaca-se, antes de tudo, a preocupação em alegar


fidelidade aos princípios da lei de talião: olho por olho, dente por dente. Sua revanche
não fora desproporcional, do ponto de vista material, nem atingira inocentes. Conforme
observa Miller (2005, p. 20-21), a clássica formulação bíblica (Êxodo, Levítico e
Deuteronômio) propunha a retaliação como um dispositivo regulatório no campo da
revanche e da rixa de sangue: o sujeito ficava restrito a cobrar apenas um olho por um
olho, uma vida por uma vida — nem duas nem três. Não se tratava, contudo, da
demarcação exclusiva do extremo até onde se poderia conduzir uma vingança: a pena de
talião estabelecia, também, o limite mínimo — nada menos do que um olho ou do que
uma vida; desconsiderar a norma poderia ser interpretado como covardia. A propósito, é
patente o orgulho de Ciríaco, depois da demonstração pública de hombridade — isto é,
da exibição de coragem para ombrear-se com alguém situado, pretensamente, em
posição superior (“Porque aqui não tem otário... Comigo, não mexem mais...”).
Comprovar, para si mesmo e para o judicioso olhar alheio, que era um homem digno de
respeito foi, pois, a primeira fonte de satisfação do consumidor — antes, humilhado e
ofendido; agora, empoderado e destemido.
O ajuste de contas, no entanto, não se encerrou por aí. Na verdade, pode-se dizer
que a revanche de Ciríaco se consumou, efetivamente, com a postagem da gravação do
seu “dia de fúria”. Foi a disseminação do vídeo que lhe permitiu ficar quite com a loja,
desonerar-se da carga de humilhação, transferindo o fardo para o seu devedor. O
professor não economizou esforços, de fato, para desacreditar e rebaixar a empresa
inadimplente, sujando seu nome, maculando sua imagem, conspurcando, enfim, sua
7
https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts.

9
reputação entre os consumidores — “Cara, se devo pra justiça, pago com valor. Mas vou
de cabeça em pé. Não machuquei ninguém, coloquei a loja pra baixo e peguei a minha
dignidade no martelo.” [grifo meu].8
Com visível satisfação, Ciríaco comentou a repercussão imediata que o registro
de sua vingança obteve tanto no YouTube9 quanto em grandes veículos de
comunicação10. Por intermédio do Twitter, além de pressionar a loja de materiais,
buscou o apoio de distintas personalidades da cultura brasileira, como o cientista
político Emir Sader, os rappers e ativistas MV Bill e Mano Brown, o controverso
humorista Rafinha Bastos e a jornalista e escritora Eliane Brum.
O vídeo depositado por Ciríaco obteve mais de 1.400.000 visualizações, antes de
ser retirado do YouTube, por uma ordem judicial. A ação de censura solicitada pela
Dicico não impediu, entretanto, que a gravação continuasse disponível na Internet (em
inúmeros canais no próprio YouTube e em sites de notícia), gerando centenas de
comentários espontâneos e instantâneos, com direito a réplica e tréplicas.
Os espectadores reagiram de modo heterogêneo à força expressiva e às
alegações do vídeo. Houve quem se limitasse a compartilhar a excitação, a hilaridade ou
o espanto experimentado ao assistir à filmagem; a ênfase gráfica foi usada, com
frequência, para traduzir os movimentos de vibração e euforia.11 Gaiatos e valentões

8
https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts. Em 2 de julho de 2013.
9
“Em 24 horas, mais de 3.000 visualizações. E subindo. Ainda aguardando a Dicico se pronunciar sobre
o meu reembolso. Mas, tô começando a pensar que nem assim eles percebem e admitem que estão
errados. Cagada pouca é bobagem” (01/07/2013); “04 dia pós postagem do vídeo: 10.000 votos
POSITIVOS, 168 votos NEGATIVOS, 300.000 visualizações, Contato da Dicico pra pedir desculpas, um
‘foi mal’, deveríamos ter agido diferente: 0 (zero)!” (03/07/2013); “05 dias de postagem, 915.181
visualizações, com 19.696 votos POSITIVOS e 304 NEGATIVOS. Só queria que atingisse a marca de
1.000.000 antes deles censurem. Pra mim, vitória simbólica e completa” (04/07/2013); “1.100.000 (UM
MILHÃO E CEM MIL VIEWS)... Caraca, véi...” (06/07/2013).
10
“Próximo bloco vai passar na BAND. Vamos ver o que vão dizer. Ninguém conversou comigo antes.
Pelo que entendo de jornalismo, ‘ouvir’ as partes faz parte do ofício” (03/07/2013);
“IMPARCIALIDADE é o que há no jornalismo. Matéria no SBT sobre o ocorrido ouviu a DiCirco, ouviu
o PROCON e eu... cri cri, cri cri. Na batalha, prossigo” (03/07/2013); “MEIO
MILHÃO DE VISUALIZAÇÕES. É uma pena que os meios de comunicação, principalmente da TV
aberta, ainda não permitiram que eu desse uma versão mais detalhada dos fatos. Viva as redes sociais!”
(03/07/2013); “Hoje, 16hs, programa Gilberto Barros, RedeTV, terei meu DIREITO DE RESPOSTA e
ESCLARECIMENTOS ao vivo” (06/07/2013); “Fui informado há pouco que por uma questão de ‘tempo
com o programa’, CANCELARAM a minha participação no programa do Gilberto Barros. Vou-me
resguardar apenas a comentar que acho uma falta de respeito desmarcar algo tão em cima da hora. E que
‘forças ocultas’ devem estar por trás disso. Não tem problema. Na luta, seguimos” (06/07/2013).
11
“Rosildo: Pensei que ele fosse quebrar a frente de vidro.... fiquei nervoso. Mas Gostei do suspense,
animou minha tarte...” (https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/em-dia-f%C3%BAria-homem-
destr%C3%B3i-produtos-em-loja-154727548.html); “Pedro Magalhães: CARAAAAAACA VEIO!!!
QUE DEMAIS!!!!”, “Gabriel de Gois: Show!” (https://www.youtube.com/watch?v=8AMbiusTUv4);
“Pedro Luiz: O MELHOR FILME DE AÇÃO DO ANO!!!”; “Mario Marreta: Diz ai, quando vao lançar a
sequencia?!! Vingadodor da Zona Leste Parte II”; “Gabriel Cangemi: MARAVILHOSO, DA ATÉ
VONTADE DE VIVER UNS VIDEOS DESSE!” (https://www.youtube.com/watch?v=Y3xLqn-veVI).

10
virtuais reclamaram da falta de intensidade dramática da performance de Ciríaco e
palpitaram sobre quais artifícios tornariam o vídeo mais interessante.12
Este tipo de manifestação — essencialmente afetiva13 — não predominou,
contudo, nos fóruns virtuais. A maioria dos comentários tinha um caráter avaliador ou
opiniático, gravitando em torno da legalidade, da moralidade e das consequências
pessoais ou das implicações políticas do insólito acontecimento na loja de materiais.
O tom preponderante era de aprovação — muitas vezes, entusiástica. Se
quiséssemos empregar os termos da clássica teoria de Adam Smith, poderíamos dizer
que o vídeo gravado por Ciríaco proporcionou as condições necessárias para aflorar a
solidariedade com o seu “justo e natural ressentimento” (base do senso do demérito
moral e da necessidade de punição do vício, segundo o filósofo escocês). A simpatia
pelo consumidor ofendido e indignado “inflamou e explodiu a animosidade” do público
contra os comerciantes malfeitores e incitou-lhe o “prazer” pela realização do “esquema
de vingança” (SMITH, 2002). A sensibilização dos espectadores foi aguçada, às vezes,
pela lembrança de situações pessoais aflitivas similares à do cliente humilhado; em
outras ocasiões, a indignação empática foi engendrada, simplesmente, pela atitude
especulativa de posicionar-se no lugar de Ciríaco, imaginando a sua dor e a sua revolta
moral.14

12
“Junior Jr: Devia ter quebrado mais...falto ele quebrar com um taco de beisebol pro video fica top heim
rsrsrs” (http://www.youtube.com/watch?v=QOHwCEahp-k); “Patrick: Quebrou foi pouco, aquelas
vidraças ficaríam lindas no vídeo....” (https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/em-dia-
f%C3%BAria-homem-destr%C3%B3i-produtos-em-loja-154727548.html); “Jeferson Marques: se fosse
pra mim ter que fazer isso eu colocaria uma toca ninja pegava uma marreta colocava a música da Amy
Winehouse e quebraria a loja toda” (http://minilua.com/consumidor-dia-furia-quebra-produtos-
loja/#comments); “Doberman Fidalgo: Pena ele não ter uma AK47 para fazer uma peneira como
acontece nos EUA” (https://www.youtube.com/watch?v=szmc7vGIpbo).
13
“Afeto, portanto, tem a ver com a intensidade em vez de identidade; não tem a ver tanto com o fato de
o espectador de um filme compartilhar um ponto de vista com um personagem cinematográfico, mas sim
com o fato de que o espectador se sente conectado, no plano sensível, com um evento na tela” (YOUNG,
2009, p. 7).
14
“Anderson Claro: A galera que critica a atitude deste cara não tem noção nenhuma do que estão falando
EU QUERIA VER SE FOSSE VOCÊS QUE TIVESSEM PASSADO POR ISSO. SERÁ QUE
ESTARIAM CALMINHO?? SERÁ QUE ESTARIAM FALANDO BEM DA LOJINHA??”, “ “Eder: É
realmente indignante! Na hora de vender ninguém fala que você está sujeito a passar tanta raiva e
prejuizos! REVOLTA NELES!” (https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/em-dia-
f%C3%BAria-homem-destr%C3%B3i-produtos-em-loja-154727548.html); “Ricardo Ribeiro: apoiado! só
que passou por algo assim sabe da raiva e sentimentos de desrespeito, desespero e vergonha contraída!”,
“Marcio M França: Parabéns rapaz, não o conheço, mas entendo sua revolta. Lute pelos seus direitos, se
todos nós reagíssemos frente a essas injustiças e desrespeitos certamente estaríamos em um país bem
melhor!”, “Geraldo Pereira: se ponha na situação do cidadão, onde amigavelmente você é afrontado,
humilhado, esbofeteado.....num País onde justiça é para poucos($) às vezes somos obrigados fazer justiça
com as próprias mãos. A atitude do camarada foi louvável, pois somente assim muda-se comportamento”
(https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts); “Erika Santos: eu tambem já tive problemas
em uma das lojas da Dicico e tenho certeza que iram continuar desrespeitando, isto é um insulto, é como
levar uma surra, não física, mas psicológica” (https://www.youtube.com/watch?v=w3Bqwj4o3ws).

11
O vigor da adesão aos motivos (ou à causa) de Rodrigo Ciríaco impressiona.
Como já foi dito aqui, o consumidor prejudicado em seus interesses procurara obter,
através do gesto de retaliação, o respeito por reconhecimento — ou seja, a ratificação de
sua dignidade, mediante a demonstração pública de que não admitia ser tratado com
desprezo. Todavia, com a reação contundente na loja de materiais, ele acabou
angariando, também, uma forma mais restrita de respeito, uma espécie mais exclusiva
de consideração — a estima ou o respeito por avaliação (APPIAH, 2012).
Breve, truncado, conflituoso, “Solucionou? Não, mas estou satisfeito. Dia #Fúria”
trouxe uma glória inesperada para o educador e escritor periférico. Ciríaco foi aclamado,
por muitos comentadores do vídeo, como um herói popular na luta contra indecorosos
detentores do poder econômico15; alguns admiradores foram além, fantasiando a
respeito da reprodução do gesto vingador em covis de políticos velhacos e em outras
instituições públicas corruptas ou inoperantes.16
Conforme observa Asch (2014, p. 10), os padrões de conduta heroica se
tornaram muito mais diversificados e plurais, desde o século XVIII: “Existem, agora,
heróis — ou, quem sabe, meros ídolos ou estrelas — para quase todas as circunstâncias
da vida, tanto do sexo masculino quanto do feminino, nenhum deles inconteste.” Porém,
de modo variavelmente oblíquo ou obscuro, mesmo os controvertidos heróis
contemporâneos tendem a encarnar e a desvelar — ou seja, a simbolizar — um sistema
de valores considerados ideais, uma imagem da qual cada um participa mediante um
processo inconsciente de projeção e de identificação (YPERSELE et al., 2004, p. 1).

15
“gildodorio: Esse cara é meu herói, eu apoio! Se todos fizessem isso, não teríamos mais esse tipo de
sacanagem” (https://www.youtube.com/watch?v=w3Bqwj4o3ws ); “VL Cachimbo: Caramba cara. voce e
HEROI DO POVO. voce e meu idolo.” (https://www.youtube.com/watch?v=Y3xLqn-veVI); “Dennis
Almeida: CARA VOCÊ É MEU HEROI!!!! \o/ Que fodaaa! Agora sim querem resolver o problema>
FDP otários!” (https://www.youtube.com/watch?v=szmc7vGIpbo); “Selma Regina Borges: Cara vc é um
herói. Já passei por situação semelhante e impunidade desta grandes lojas continuam. Parabéns”, “Rafael
Machado Motta: Cara, tu eh um Herói!! Se depender de mim, esse video se torna um viral fudido e se
espalha pelo Brasil. As grandes organizações tem de respeitar o consumidor.”
(https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts).
16
“Éder Oliveira: Velho você é o cara. Queria ver todos os Brasileiros fazendo isso no Congresso
Nacional, naquele ninho de cobras.” (https://www.youtube.com/watch?v=GCyc2TOCgKE); “Danilo
Waissmann Vc e o cara! Parabéns!! Vou te levar pra Brasília lá tem bastante coisa pra quebrar”, “Ana
Paula Ribeiro: Sugestão VAmos Fazer isso na Prefeitura?? Vamos buscar nossos precatórios no Tribunal
de Contas?? Estamos muito passivos.” (https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts);
“BENTO CARNEIRO: VAMOS FAZER ISSO NO CONGRESSO. O BRASIL É NOSSO E OS
DIREITOS TAMBÉM. NÃO VAMOS MAIS DEIXAR MALANDRO NENHUM SAQUER NOSSOS
BOLSOS.”, “Gilson: Seria ótimo se o endereço fosse outro, camara dos deputados em brasília, dar uma
surra em cada um deles pra que tenha recesso o resto da vida e nunca mais pisasse lá”, “Marcos: devia
ter entrado numa repartição publica ! ! ! !” (https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/em-dia-
f%C3%BAria-homem-destr%C3%B3i-produtos-em-loja-154727548.html).

12
Rodrigo Ciríaco se converteu em herói de incontáveis internautas, porque
corporificou o desejo de ultrapassar constrangimentos íntimos e legais para fazer justiça.
Teve a audácia de resolver, diretamente, sua pendência com a administração da Dicico;
alcançou, por conta própria, uma compensação para a sua humilhação, dispensando
intermediários institucionais percebidos como pouco confiáveis, inacessíveis ou
ineficientes.
Dos registros da repercussão do vídeo “Solucionou? Não, mas estou satisfeito”
sobressaem expressões de descrença no sistema institucional de justiça, que vão desde o
inconformismo com a morosidade das tramitações legais à suspeita de influência de
fatores econômicos e sociais na formulação das sentenças. Por vezes, os comentários da
audiência, além de externar a contrariedade com o funcionamento parcial ou precário do
sistema judicial, refletem um desgosto profundo com o próprio arcabouço legal que
orienta as sanções penais.17 A aclamação da revanche se fundamenta, nestes casos, na
percepção de que as punições previstas nas leis brasileiras não contemplam as emoções
e as expectativas da vítima, ignoram a singularidade subjetiva de seu sofrimento; logo,
são insuficientes para restaurar o seu status moral ou a sua “autoestima”.18
Ciríaco despertou admiração pela valentia como agiu, solitariamente, em defesa
de suas convicções morais, apesar dos custos e dos riscos palpáveis. Para enfrentar o

17
“Adilson Diaz: Meios legais, Procon, Pequenas Causas, Delegacias de Polícia, etc, etc...vá tudo prá
puta que o pariu. Quebrou pouco, poderia ter quebrado muito mais. Sabe o que eles dizem quando você
reclama de algo: A CULPA É DO SISTEMA, É ISSO MESMO, A CULPA É DO SISTEMA”, “Higor
Santos: Existiam meios legais para ele recorrer, mas e quando não funcionam? E a burocracia? Te tratam
como otário. E outra, ele quebrou objetos que deviam pra ele, ficou tudo no zero a zero, se teve violência
a principio foi a moral, e da empresa que não respeitou o contrato”, “Marcio Fernandes: O professor
errou, mas a meu ver apenas aos olhos da lei, que na verdade não protege o consumidor, que é quem
PAGA O SALÁRIO DE TODOS OS LEGISLADORES, JUÍZES E ESSA CORJA TODA...”, “Severino
Ramos: você já compareceu numa delegacia ou procon? a coisa não é fácil, por isso, quem sabe, o rapaz
fez justiça com as próprias mãos”, “MarcusJitsu: Procon? não vale a pena! experiência própria. O negócio
é desce o cacete mesmo, se o respeito não é dado, tem que ser conquistado!”
(https://www.youtube.com/watch?v=w3Bqwj4o3ws); “Fernando27184: Parabens! Estamos encurralados
pelos órgãos inúteis de proteção ao consumidor. Não sou violento, mas se as pessoas reagissem mais,
empresas incompetentes não se destacariam” (https://www.youtube.com/watch?v=GCyc2TOCgKE);
“André Brusamolin Wolfgang: NOJO DESSA JUSTIÇA E MAIS NOJO AINDA DESTE PAÍS
IMUNDO” (https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts).
18
“Joel xavier: a justiça muitas vezes resolve.. mas chega uma hora q a humilhação nao se resolve so com
a justiça... independente do q nos aconteça, temos q levar a público o q houve... mostrar quem é quem e
jogar com as armas deles... Pode não ser o ‘considerado’ certo... mas quando não se tem a equivalência de
golias, qualquer pedra é uma ótima solução!”, “Arthur M.: Humilhação e Desrespeito - O que a Dicico
fez com você é mais violento do que a quebra de louças. A violência simbólica e psicológica contra seu
bem-estar e sua honra não será considerada pela justiça porque você é professor e da Zona Leste. Pode
apostar que há preconceito de classe” (https://www.youtube.com/watch?v=GCyc2TOCgKE); “Esdras
Kanetz: Alguém ai acredita que indenizações cobririam os danos morais e psicológicos deste rapaz? Não
tem como”, “Suzy Peçanha: O Poder Judiciario deste país não leve em conta a dor interior, a perda de
autoestima de quem se vê constantemente agredido por comerciante poderosos e não encontra conforto e
proteção dentro dos parâmetros das leis” (https://www.youtube.com/watch?v=KCWc4ATDfPE).

13
Mal — no caso, a Dicico, corporação influente e inescrupulosa — tivera que superar a
fragilidade de sua condição social e de sua compleição física (apenas medianamente
robusta). Por não se deixar intimidar, passou da condição de vítima ao status de herói.
Não por acaso, a palavra-chave de sua consagração, no ciberespaço, foi coragem —
virtude “muito marcial e masculina”, que se revelou tão cativante, ao longo da história,
a ponto de consolidar-se como o tema literário mais frequente (MILLER, 2002).19
Imprevista, improvável e impactante, a bravura punitiva do professor da Zona
Leste lhe rendeu fãs20 e previsões de um futuro prestigioso na política21. No
entendimento de vários observadores, a revanche de Ciríaco, além de afirmar o seu
próprio status moral, comportaria uma dimensão pedagógica: o professor dera uma bela
lição nos administradores da Dicico, instruindo-os como agir corretamente com todos os
clientes. Seu vídeo constituiria, neste sentido, uma demonstração memorável de que
trapaças e descasos não seriam mais tolerados. Era como se, ao confrontar a Dicico, o
professor não tivesse atuado apenas em beneficio próprio, mas agido em favor de uma
causa mais ampla: o direito ao respeito na relação com os prestadores de serviço
públicos ou privados. Declarações do próprio Ciríaco reforçavam este tipo de
percepção: “Já faz tempo que isso deixou de ser um PROBLEMA PESSOAL e, pelo

19
“V de Verdade Vitória: Parabéns ao professor Rodrigo pela coragem e atitude. Se todos os brasileiros
agissem desta maneira tenho certeza que as empresas brasileiras ofereceriam serviços de qualidade. Este
Brasil só mudará quando existirem mais pessoas como você”, “Lucas Vieira de Sousa: O Rodrigo fez o
que todos tem vontade de fazer, mas não tem coragem. PARABÉNS PELA ATITUDE”
(https://www.youtube.com/watch?v=8AMbiusTUv4)”; “Alexsandro Rios: se todos tivesse coragem de
fazer algo desse tipo esses picaretas pensariam duas vezes antes de querer tirar vantagem em cima dos
outros”, “Rosangela: Vamos as lojas fazer compras e nos tratam como se fossemos pedintes e não como
clientes. Nos enganam, nos enrolam pois sabem que as leis no pais são lentas e lerdas para nos
consumidores. Parabens pela coragem”, “william barros: Rodrigo não sei se faria a mesma coisa que vc
fez, mas muitas pessoas gostariam de fazer o mesmo, mas não tem coragem. porque a verdade é que nós
somos muito humilhados em tudo aqui no Brasil” (https://www.youtube.com/watch?v=w3Bqwj4o3ws);
“Alexandre Bina: Parabéns. Você mostrou que é uma exceção ao bundamolismo existente no País que
aceita tudo sem reclamar” (https://www.youtube.com/watch?v=GCyc2TOCgKE).
20
“David Carvalho: Caraca virei seu fã!!!! É assim que tem que se!!!”, “Dora Antonio Dos Santos:
PROFESSOR RODRIGO, VOCÊ É O CARA. NÃO TE CONHEÇO MAS SOU SUA FÃ, QUANDO
CRESCER QUERO SER COMO VOCÊ, PARABÉNS PELA CORAGEM DE DIZER E FAZER O QUE
PENSA.QUE BOM SE APARECESSE MAIS UNS HOMENS COM SUA CORAGEM NA ZONA
LESTE. PARABÉNS PELO SEU ATO DE DIREITO NA DICICO”, “Raissa Chodniewicz: Cara, sou
sua fã! Parabéns pelo caráter e pela coragem. Acredito que o seu feito seja inspirador para muitas
pessoas” (https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts); “GnomoDota: sou seu fã cara!
parabéns! vc eh fod4” (https://www.youtube.com/watch?v=GCyc2TOCgKE); “Neide Assis Uhuuuuuuu
adorei, aqui no Brasil nada funciona pra nós simples mortais, deveríamos todos agir assim. Sou sua fã!”
(https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/em-dia-f%C3%BAria-homem-destr%C3%B3i-
produtos-em-loja-154727548.html).
21
“Carlos: Rodrigo Cirico para Presidente!!! Eu voto nele!! É isso aí, turma de safados, avarentos que
quanto mais têm, mais querem!”, “£Eo Dias: Sr. Rodrigo Ciríaco PRESIDENTE!!!!” “Natelo: Rodrigo
Presidente 2014” (https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/em-dia-f%C3%BAria-homem-
destr%C3%B3i-produtos-em-loja-154727548.html).

14
andar das denúncias e reclamações, tornou-se uma questão política: RESPEITO ao
cidadão e ao consumidor.”22
O foco dos comentários dos internautas extrapolou, por vezes, o perímetro
restrito do evento na loja de materiais. Foram estabelecidos paralelos entre a atitude do
professor e as manifestações que haviam eclodido em todo o país — naquele exato mês
de junho — reivindicando serviços públicos de qualidade e o combate efetivo à
corrupção, entre outras demandas difusas. Manchetes da imprensa estrangeira
destacavam “la colère populaire” ou “la rabia social” que se espraiava pelo “país da
alegria”. A irritação das massas contrariava não só o clima de festa previsto para a
chegada de grandes eventos esportivos, como também as pesquisas que apontavam o
crescimento dos índices de otimismo e de felicidade da população, graças a recentes
conquistas econômicas. Analistas políticos, aqui e alhures, interpretavam as “jornadas
de junho” como sintoma da crise da democracia representativa brasileira, evidenciada
pela repulsa à interferência de legendas partidárias na articulação dos protestos.
Recentes admiradores transformaram Rodrigo Ciríaco em símbolo do cidadão
que havia despertado para a necessidade de lutar pelos seus direitos, rechaçando a
intermediação de agentes e de instituições tradicionais.23 Espectadores do vídeo
“Solucionou? Não, mas estou satisfeito” propuseram, de imediato, correlações entre as
supostas emoções experimentadas pelo protagonista e o clima de irritação e de
indignação coletiva vigente no país. Mais precisamente, foram feitas associações entre a
fúria particular do consumidor vilipendiado e a “raiva cívica” (SILBER, 2011, 2012)
dos manifestantes — emoção moral e política que mobilizava a ação coletiva não só de

22
https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts. Em 13 de julho de 2013.
23
“Luiz Carlos de Oliveira: O Brasil acordou Dicico e demais varejistas, atacadistas, políticos, etc... pisou
na bola é marretada na loja, é povo nas ruas”, “Alessandro Mendes: Não foi só pelos R$ 600,00. esse Sr.
vai ter agora a devida atenção. A mesma coisa aconteceu nas ruas mês passado: A Presidenta,
Governadores, prefeitos e o Congresso só se mexeram porque viram que as manifestações iam ficar mais
violentas e numerosas” (http://www.comenteai.com.br/noticia/1052748?page=5); “Adriano: Boa o
Gigante acordou eles acham que o consumidor e otário!!! vamos fazer valer o nosso direito!!”, “Vanessa
Cristina: O brasileiro cansou GERAL, não só contra governo e políticos, mas contra tudo quanto é tipo
de falcatrua e desrespeito em qualquer tipo de relação. O pavio do povo anda curto e o clamor por
JUSTIÇA não vai parar mais” (https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/em-dia-f%C3%BAria-
homem-destr%C3%B3i-produtos-em-loja-154727548.html); “Marcelo Berquó: o momento de protesto
com o povo às ruas demonstra que não há mais lugar para políticos demagogos e corruptos, bancos
gananciosos e empresas como o Dicico. Se tivesse me chamado iria ajudá-lo a quebrar a loja toda!”
(https://www.youtube.com/watch?v=GCyc2TOCgKE); “David Crabbe: ele mostrou o descaso para o
Brasil inteiro de uma forma que seria ouvido. Cometeu o crime? Sim, mas tenho certeza que agora a
Dicico tá com o cu na mão. Aqui no Brasil só se faz algo quando se quebra as coisas. Vide as
manifestações recentes contra o aumento da passagem”
(https://www.youtube.com/watch?v=w3Bqwj4o3ws); “Kaian Mello: quando esta escrito nas ruas, não é
só por 20 centavos, é disso que falamos, um professor passando aperto se fudendo! enquanto os burgueses
da empresa riam juntos em seus resorts” (https://www.youtube.com/watch?v=GCyc2TOCgKE).

15
representantes de segmentos oprimidos, mas também de membros das elites
socioeconômicas, tendo como alvo as mazelas estruturais do Estado e a incompetência
ou a improbidade administrativa de ocupantes de cargos públicos.
A retórica consagrada nas ruas para repudiar os representantes parlamentares
ressoou, fortemente, pelos comentários da revanche na Dicico.24 Testemunhamos uma
esquemática e apaixonada atribuição de vícios e virtudes: Rodrigo Ciríaco — que
transpassara a lei, no combate em prol de valores excelsos — inspirava respeito e
gratidão; era o representante da ira justa dos homens de bem, um exemplo a ser
seguido; a classe política — que traía a confiança do povo, criando e burlando leis em
benefício próprio, locupletando-se com o dinheiro público — despertava a raiva e o
asco, figurando como uma alteridade impura.
Fração minoritária dos comentários na Internet, as objeções à vingança de
Ciríaco também foram influenciadas pelas polêmicas em torno dos protestos de junho.
Nos fóruns do ciberespaço, ecoava a interpretação prevalente na grande mídia a respeito
dos enfrentamentos entre manifestantes e policiais. O evento na Dicico foi qualificado
como uma brusca eclosão de barbarismo, cuja emulação poderia redundar em um ciclo
arcaico e infindável de violência. O elogio do “heroísmo” do consumidor indignado
cedia lugar à condenação do “vandalismo” — isto é, do impulso depredador, da ação
violenta desajuizada e politicamente estéril.25

24
“Pedro Avelar: Me senti representado por vc professor. Não adianta esperar q a RAÇA NOJENTA
DOS POLÍTICOS, LEGISLADORES, GOVERNANTES ETC façam alguma coisa por nós”, “Bruno
Baader: Cara, vc representa todos os consumidores descontentes nesse seu ato!”
(https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts); “Giselle: VOCÊ ME REPRESENTOU
MUITO COMO CONSUMIDORA” (http://www.comenteai.com.br/noticia/1052676); “Nayara
Gonçalves: adorei representou o povo brasileiro que nao tem mais direito de nada nessa merda de pais”,
“MarcusJitsu: Obrigado por representar vários Brasileiros com atitude e que não engolem sapo”
(https://www.youtube.com/watch?v=GCyc2TOCgKE); “Lucia: Sr.Rodrigo Ciríaco, obrigada por me
representar e a tantos brasileiros que diariamente são desrespeitados. Sua indignação é a de todos nós que
aceitamos passivamente sermos privados de nossos direitos mais básicos”
(https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/em-dia-f%C3%BAria-homem-destr%C3%B3i-
produtos-em-loja-154727548.html).
25
“Rafael K: Mais um manifestante exaltado doido vândalo causando prejuízos ao comércio”, “João
Claudio Martins da Silva: E VAI FICAR POR ISSO MESMO, É? AH, SIM, É PROIBIDO REPRIMIR A
AÇÃO DE VÂNDALOS. FERE OS DIREITOS HUMANOS!”
(http://www.comenteai.com.br/noticia/1052748?page=5); “Carlos Alberto Teixeira: Se cada um de nós
pegarmos uma marreta e sairmos quebrando coisas nas lojas por vingança contra mau atendimento, aí
sim, teremos um problema, o caos. (...) É claro que isso não vai acabar bem, especialmente num momento
em que vemos dia sim dia não na TV manifestações em diversas cidades brasileiras que degeneram para
quebra-quebra e vandalismo” (https://plus.google.com/+CarlosAlbertoTeixeira/posts/G78DwBu5NEG);
“haroldo oliveira: O professor em questão tá na cara que é um lixo, um vândalo”
(https://www.youtube.com/watch?v=w3Bqwj4o3ws); “Nicole: destruição, vandalismo e agressividade
nunca vão ajudar nosso país a crescer!!” (https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/em-dia-
f%C3%BAria-homem-destr%C3%B3i-produtos-em-loja-154727548.html).

16
A atuação profissional de Ciríaco tornava o seu “dia de fúria” mais passível de
repreensão. O comportamento explosivo na loja de materiais destoava, inteiramente, das
expectativas sobre o perfil emocional desejável para um educador: notória capacidade
de supressão ou de domínio das “emoções negativas” e franca expressão das “emoções
positivas”, ligadas à empolgação laboral, à abnegação e ao cuidado com outro.26
Circularam comparações entre a conduta desarvorada do professor e o característico
comportamento de criaturas “primitivas”, supostamente norteadas pela emotividade. Ao
sucumbir ao ataque de fúria, Ciríaco assumira um aspecto bestial, assemelhara-se às
feras, regredira ao nível evolutivo dos selvagens.27 Diante do flagrante de “alteração
emocional”, houve quem se lembrasse das histéricas vitorianas.28 A revanche na loja de

26
“Guilherme O: Me parece um homem desequilibrado. Deveria ser retirado de sala de aula, ter sua
CNH cassada e ser afastado de qualquer situação em que possa ser um perigo social enquanto faz um
tratamento”, “Cmp: descontrolado totalmente, não se pode agir assim nunca, essa pessoa ainda é
professor, meu deus, onde chegamos” (https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/em-dia-
f%C3%BAria-homem-destr%C3%B3i-produtos-em-loja-154727548.html); “Herbet Frantinelli: Eu não
deixaria meus filhos estudarem com um professor sem equilíbrio Emocional. Logo vai quebrar a
Prefeitura! Se não é que não esteve nas manifestações entre os baderneiros”
(https://www.youtube.com/watch?v=4abwkO9fB9U); “ANTONIO VELOSO: Lamentável um professor
se comportar como Vândalo, que vai passar para seus alunoa? Quebrem tudo! Deveria ser demitido”,
“Vilmar1980: Professor de verdade não faz isso. Mostrou que é um desequilibrado e sem condições de
atuar como docente”, “Rodrigo Santos: Esse troglodita é professor, veja que bacana, seus filhos podem
estar aprendendo esse tipo de valor... logo logo quebraremos as escolas, se a aula nao for boa,
espancaremos o médico, se a espera for longa” (http://www.comenteai.com.br/noticia/1052748?page=5);
“Dorisvaldo Junior: quando um aluno não entender a matéria ou não acatar algo que esse PROFESSOR
disser o que vai acontecer? Será que ele vai perder a cabeça novamente e dar uma cadeirada no aluno?”
(https://www.youtube.com/watch?v=w3Bqwj4o3ws); “WELLINGTON BRAGA LIMA: Com certeza é
um professorzinho de merda! Um indivíduo descontrolado que não consegue resolver um problema ‘tão
pequeno’ de forma civilizada” (http://economia.ig.com.br/2013-07-02/em-video-consumidor-mostra-dia-
de-furia-em-loja-de-material-de-construcao.html).
27
“Itsmemario: A loja atrasar a entrega dele n da o direito dele quebrar tudo se for assim viveremos igual
selvagens fodendo a porra toda porque atrasaram meu hotdog, comportamento escroto que leva a emoção
acima da razão e se fode” (http://www.hardmob.com.br/boteco-hardmob/515719-fallingdownmob-
cliente-entra-dicico-quebra-tudo-video.html); “pReD@ToR: o cara perdeu completamente a razão e quem
concorda com a atitude deve voltar pro século doze” (http://www.hardmob.com.br/boteco-
hardmob/515719-fallingdownmob-cliente-entra-dicico-quebra-tudo-video.html); “Leonardo Cesar: E
resolveu alguma coisa? Seu animal! perdeu a razão com essa atitude estúpida”, “Alessandro Medina:
Mete uma mordaça neste pitbull que ele ta babando de raiva!” (http://minilua.com/consumidor-dia-furia-
quebra-produtos-loja/).
28
“Macedo FRT: Por que não jogaram logo um balde de água fria nesta histérica? Ia ficar calminha
calimnha.. Pode crer.... Freud explica” (http://www.comenteai.com.br/noticia/1052748?page=5); “Antero
Magalhães Oliveira: Mais um ataque de histeria no comércio.... Meu deus onde isso vai parar!?”
(https://www.youtube.com/watch?v=w3Bqwj4o3ws); “wilson.diorato: Não passa de um histérico
revoltado e flagrantemente com desvios de humor, psicológicos e etc. Nada justifica essa atitude. Agora
irá responder pelos danos causados a imagem da empresa....” (http://economia.ig.com.br/2013-07-02/em-
video-consumidor-mostra-dia-de-furia-em-loja-de-material-de-construcao.html); “Dulcidio Lemme: ‘AH,
QUE ISSO, ELAS ESTÃO DESCONTROLADAS’ [trecho da letra do funk “Descontroladas”]... PURA
HISTERIA CARA.... SEM NOÇÃO!!!” (https://www.youtube.com/watch?v=szmc7vGIpbo).

17
materiais — celebrada, por muitos, como gesto de coragem varonil — foi redefinida e
ridicularizada, por outros, como exteriorização de uma feminilidade enrustida...29
Como observou Lutz (1990), a “retórica do controle”, tão assídua nas conversas
e nos discursos sobre as emoções, é também uma narrativa sobre a “dupla natureza” —
fraca e perigosa — dos grupos dominados. A tese da antropóloga é corroborada por
distintas sondagens históricas. Tratados filosóficos e diferentes gêneros literários da
antiguidade clássica reiteraram a imagem da mulher como o “sexo irascível” (HARRIS,
2004a, p. 264-284, 2004b). Homens gregos e romanos afirmavam que as mulheres, da
mesma forma que os bárbaros e as crianças, se encolerizavam com facilidade e não
conseguiam conter a fúria. Sua raiva raramente tinha justificativa e nunca era expressa
de maneira digna. Plutarco (c. 45-125 d.C.) aventou uma explicação para a
incomparável iracúndia feminina, baseando-se em uma típica analogia corpórea:

Assim como, em um corpo, um machucado é consequência de uma grande


pancada, a inclinação para infligir dor produz, nas almas mais delicadas, uma
maior explosão de raiva, na exata proporção de sua maior fraqueza. Por isso as
mulheres são mais irascíveis do que os homens (apud HARRIS, 2004, p. 273)

Percorrendo textos filosóficos e enciclopédias alemães do século XVIII e XIX


(responsáveis por processar, condensar e legitimar o conhecimento produzido em todos
os campos de pesquisa empírica e de reflexão metafísica), Frevert (2011, p. 89-100) se
deparou com visões alternativas acerca das ligações perigosas entre as mulheres e a ira.
Alguns autores conjecturavam, naquela época, que as mulheres eram incapazes, por
natureza, de experimentar a raiva: devido à estrutura frágil, elas estariam
desqualificadas — constitutivamente — para atuar, de modo enérgico, em benefício
próprio, tendendo mais para a astenia. Na opinião de outros observadores, o traço
diferencial não era a ausência de vigor físico, mas a incapacidade de autocontrole
emocional. Faltavam às mulheres força de vontade e disciplina moral para comedir seus
29
“HugoUltra: A biba ficou furiosa!!!!! Meu, retardado esse nego ai, nada justifica... isso porque foram 4
mil reais... Tomara que tenha sido preso!” (https://www.youtube.com/watch?v=szmc7vGIpbo); “Redox:
Bicha burra, ia receber a grana mas agora vai tomar um protesto no cu”
(http://forum.lolesporte.com/viewtopic.php?f=8&t=34579&sid=39102bba6d75ce88206bef1bbd1fd0bd);
“Duryel: acredito que ele é viado militante ativo/passivo das causas homo-afetivas”
(http://www.players.com.br/forum/topic/122792-dia-de-f%C3%BAria-vers%C3%A3o-brasileira-ou-red-
faction-dicico/); “Wingman: Oloko, este kra eh casado e tem filho? ta na moda entao se comportar como
uma moça....”, “Miomart: Funcionário é uma desgraça mesmo... Ficou tudo olhando o cara quebrar tudo,
e ninguém chegou junto com medinho de apanhar da moçoila irritadinha”
(http://www.hardmob.com.br/boteco-hardmob/515719-fallingdownmob-cliente-entra-dicico-quebra-tudo-
video.html); “Designer Pobre: e essa vozinha de bee dando piti kkkk”
(http://topassada.virgula.uol.com.br/2013/07/04/cliente-destroi-loja-apos-comprar-pagar-e-nao-receber-a-
mercadoria-video-bomba-no-youtube/).

18
impulsos ou para direcionar o ímpeto da raiva em direção a objetivos públicos nobres
— como reparar injustiças, defender a nação e proteger os mais fracos. A propagação
destes diagnósticos impôs às mulheres ciosas de sua reputação um “trabalho emocional”
imprescindível: evitar ou ocultar a raiva, no ambiente doméstico e na esfera pública.
As enfáticas condenações da raiva feminina (que irrompia em torrentes de
palavras e de ameaças) tinham um conteúdo paradoxal: por um lado, eram concedidos
às mulheres sentimentos que possuíam um “efeito empoderador” — “As mulheres,
aqui, entraram no palco como atores vigorosos que atacaram e assustaram os seus
adversários, mesmo que a sua agressão fosse somente verbal” (idem, p. 95). A fúria,
portanto, transformava a fraqueza das mulheres em força. Por outro lado, essa mesma
força era, cada vez mais, julgada inconveniente. As mulheres que não conseguiam
resistir à emergência da cólera violavam, ao mesmo tempo, o padrão burguês de
civilidade e o de feminilidade (assentado na expectativa de que as mulheres fossem
movidas pelas “paixões ternas”, experimentando a raiva apenas com um “sentimento de
impotência”, que redundava, amiúde, em lágrimas). Além de causar danos à imagem
pública, a raiva das mulheres podia trazer consequências perniciosas para a sua prole.
De acordo com a opinião médica hegemônica no século XVIII, lactantes enraivecidas
punham em risco a saúde e quiçá a própria vida de seus filhos: “O leite iria azedar e
causar convulsões que podiam, eventualmente, matar o bebê” (idem, ibidem).
Aquele diagnóstico nos parece, hoje em dia, anacrônico e risível; persiste,
entretanto, no pensamento ocidental, a representação das emoções como “entidades
paradoxais”, que consistem, simultaneamente, em um “sinal de fraqueza” e em uma
“força poderosa”:

Por um lado, a emoção enfraquece a pessoa que a experimenta. A emoção é capaz


disso por servir como sinal de uma espécie de defeito de caráter (p. ex., “Ela não
podia se manter acima de suas emoções”) e por ser um sinal de desorganização
intrapsíquica, pelo menos temporária (p. ex., “Ela estava fragilizada” ou “Ela
desabou”). A pessoa que desmorona, é desnecessário dizer, não consegue funcionar
de modo eficaz ou potente. Por outro lado, as emoções são, literalmente, forças
físicas que nos empurram para a ação vigorosa. “Ela estava elétrica”, dizemos;
“Ondas de emoção sacudiram seu corpo”. (LUTZ, 1990, p. 69)

A conceituação ambivalente das emoções perpassa o conjunto dos pareceres


sobre o evento na Dicico. Alguns comentários frisaram o impacto negativo das emoções
nas tomadas de decisão. A raiva foi considerada, neste caso, uma influência debilitante,

19
que diminui ou impede o discernimento.30 A pressão da cólera armazenada teria
induzido Rodrigo Ciríaco ao erro, compelindo-o a agir contra os seus próprios interesses
financeiros. Estávamos diante de um fenômeno natural, palpável e caótico: a liberação
automática de uma crescente força interior destrutiva que fugia do domínio do
indivíduo e afastava-o do cultivo da virtude (“a raiva falou mais alto do que a
paciência”). A manifestação pública da raiva constituía, em suma, um obstáculo para a
realização da justiça.
Este tipo de comentário endossa, implicitamente, o “paradigma hidráulico” de
compreensão da dinâmica emotiva, em que as emoções são concebidas como forças
instintivas, energias explosivas ou pulsões imprevisíveis, cuja “descarga” precisa ser
contida, controlada ou canalizada (ALLEN, 2003; ROSENWEIN, 2007, p. 13 e 33). O
modelo hidráulico retrata a psique humana, quase literalmente, como um caldeirão de
pressões que exigem desprendimento ou desafogo, por meio de gestos e de atitudes:

Elas [as emoções] demandam uma descarga na ação, seja direta (por exemplo, dar
um soco no patrão, que acabou de nos deixar furiosos), simbólica (chutar a mesa,
porque o patrão acabou de nos deixar furiosos) ou disparatada e difusa (pular para
cima e para baixo, gritar, arrancar os cabelos, porque o patrão acabou de nos deixar
furiosos). (SOLOMON, 1993, p. 83).

A passividade do sujeito é um pressuposto fundamental deste esquema


explanatório: as emoções são infligidas sobre nós (ou causadas em nós) por forças
psíquicas, corporais e ambientais fora do nosso controle; não raro, obrigam-nos a
proceder de certas maneiras facilmente reconhecíveis. O paradigma hidráulico estrutura,
com metáforas atraentes e dramáticas, a linguagem e o pensamento sobre as emoções. A
raiva costuma ser conceituada, experimentada e narrada, por exemplo, como um líquido
quente retido em um container ou em uma panela de pressão (fervente, fumegante,
prestes a rebentar).

30
“Lucas Rodrigues: O cara tá certo, tem que exigir seus direitos de consumidor, mas não precisava ter
agido dessa forma, pelo visto a raiva falou mais alto do que a paciência no momento”
(http://minilua.com/consumidor-dia-furia-quebra-produtos-loja/#comments); “Fabiana Alves: Não que ele
esteja errado. Mais isso ele poderia ter resolvido na justiça, ter recebido o DOBRO do que devem pra ele
e com PRAZO de pagamento. Mais nada que a raiva acumulada não faça né?”
(http://fposts.com/fbpost/298280080217390_169508809898138); “Fernando Oliveira: O que adiantou?
descontou a raiva? tudo bem, mas não saiu com seus direitos nem com seu dinheiro de volta. essas lojas
que só enrolam os clientes é realmente uma merda e dá raiva mesmo, mas não é assim que se resolve,
perdendo a razão o controle e o DINHEIRO!” (http://www.youtube.com/watch?v=bG0K0cPNDkA);
“Heron Reis dos Santos: Ele poderia ter conseguido um dinheiro bom com isso, mas preferiu ir pelas vias
mais ‘grosseiras’, assim esfriando o sangue que tava fervendo!” (http://comenteai.com.br/usuario/30265);
“Homer dos Brothers: o cara tava fora de si mesmo. foda fazer qualquer coisa nessas horas”
(http://forum.lolesporte.com/viewtopic.php?f=8&t=34579&sid=39102bba6d75ce88206bef1bbd1fd0bd).

20
A ideia de que as emoções são fluídas e voláteis provoca inquietações, já que
sugere o rompimento das fronteiras entre o exterior e o interior. Com frequência,
afastamos as emoções como se fossem “poluentes”, que desafiam limites corporais,
inspirando horror e medo: “Como os fluidos corporais, as emoções ‘fluem, escapam,
infiltram-se; seu controle é uma questão de vigilância, nunca garantida’” (LUPTON,
2005, p. 97). Esta perda de fronteiras possui forte conotação genérica, devido às
associações culturais que vinculam as mulheres com “a corporalidade descontrolada, a
liquidez e a suavidade” e os homens com “o controle racional, a secura e a dureza”
(idem, p. 97-98).
Nos comentários vistos anteriormente, sucumbir ao influxo da fúria implica uma
série de derrotas para o indivíduo: equivale a perder a razão ou o juízo; a dissipar a
capacidade de avaliar com correção; a deixar de ter o direito de que suas motivações e
reivindicações sejam levadas a sério. Outras avaliações, em compensação, salientaram
justamente o potencial liberatório da manifestação da raiva — não no sentido da catarse
psicológica ou do alívio terapêutico, mas no da produção de relações comerciais mais
respeitosas.31 A fúria foi avaliada, aqui, como uma resposta lúcida, incisiva e profícua
(ainda que extrema) a uma situação de injustiça. Tratava-se de uma energia ou de uma
pulsão combativa particularmente útil para o “povo”, interessado em sinalizar sua
insatisfação e afirmar sua dignidade.
As possibilidades interpretativas do evento na Dicico não se encerram nestas
visões contrastantes sobre os significados e os efeitos da raiva. Diversos comentários
levantaram dúvidas acerca do próprio fundo emotivo da retaliação — quer dizer,
puseram em xeque a sinceridade e a espontaneidade do rompante na loja de materiais.
Os espectadores mais céticos contestaram a hipótese de que o vídeo tivesse captado um
instante genuíno de tomada do psiquismo pela cólera. A própria execução da filmagem

31
“Fred R Curi: chegamos num ponto em que a falta de respeito e a violência moral cometida pelas
empresas estão sendo rebatidas com o que o povo tem pra rebater....a violência física e a ira.....acho até
justo” (http://www.bhaz.com.br/consumidor-revoltado-com-atraso-em-entrega-destroi-produtos-em-loja-
de-material-de-construcao/); “Lucas Kronig: Parabéns professor!!!! o povo tem que botar pra quebrar
mesmo, fazer da raiva e da indignação arma para combater as safadezas neste país de picaretas”
(https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts); “Danilinho Boaventura: gente, o professor
soube usar a raiva dele para fazer justiça. ás vezes é o único recurso que resta”
(http://www.youtube.com/watch?v=bG0K0cPNDkA); “João Maria Martins: Se ele tivesse ficado
mansinho, se ele não tivesse ficado puto e demonstrado toda fúria dele, ninguém iria se importar com o
seu problema.”, “Hamilton Pereira: Só a extravasação da raiva podia mudar aquele quadro de humilhação.
Na conversa mole não vai mudar nada entendeu?!! Alguém duvida que agora os caras da loja ficaram
cheios de cagaço e vão procurar o professor para tentar consertar as coisas!!!”
(https://www.youtube.com/watch?v=szmc7vGIpbo).

21
constituiria uma evidência de que o professor não fora movido por um acesso de ira —
imprevisto e indomável. Sob o aparente estado de desorganização mental e a conspícua
exibição de fúria, ocultavam-se espúrios propósitos políticos ou mercantis.32
Outros espectadores admitiram o caráter teatral da represália, mantendo-se
favoráveis, porém, à exibição pragmática dos signos culturais da agitação colérica
(modos insolentes, atitude exaltada, prolixidade agressiva etc.). A mimese do frenesi da
fúria foi considerada uma forma estratégica e correta de comunicação — tornava
palpável o descontentamento dos humilhados e ofendidos; impressionava e intimidava
os malfeitores. Mais do que isso: alegou-se que, no Brasil, a dramatização do desvario
raivoso figurava, em muitas oportunidades, como a única opção racional para fazer
valer os direitos do cidadão. Em que pese o paradoxo aparente, o indivíduo precisava
mostrar-se fora de si para receber ou reaver aquilo que lhe pertencia, bens e benefícios
que lhe eram devidos.33 A desmesura do comportamento do reivindicante deveria
corresponder à gravidade da ofensa. Um comentador generoso chegou a alinhavar
conselhos para converter a demonstração da raiva em método profícuo de persuasão:

32
“Paulo Roberto Barbosa Junior: Ele fez e ele mesmo filmou?! Isso não se chama ‘Dia de Fúria’... Isso
se chama ‘vandalismo premeditado somado à uma vontade absurda de aparecer’!”, “Robson Lamas: se a
loja ja tinha um acordo com ele pra que ele fez isso? e mais pra mim ele premeditou isso só pra aparecer e
lançar um livro. a justiça tem que ficar de olho nestes casos”
(http://www.comenteai.com.br/noticia/1052748?page=5); “JOEL GIANERI: Será ninguém percebe que
este energumeno está tentando se promover para vender seu livrinho de
merda??”(http://economia.ig.com.br/2013-07-02/em-video-consumidor-mostra-dia-de-furia-em-loja-de-
material-de-construcao.html), “Riachogrande: FURIA É UMA COISA, PREMEDITAÇÃO É OUTRA...
ACHO QUE ELE VAI SE FERRAR”, “Geraldo Majjela: Vontade dá mas não é dessa forma que
resolvemos os problemas, ele quis aparecer para ter filmado, foi premeditado não foi algo de momento.”,
“Marreta: Isso tudo é mentira é uma jogada de Marketing da Loja Dicico que tá caidinha. Bem bolado,
parabéns Dicico e professor, você deveria quebrar mais coisas para dar veracidade a representação
fraquinha por sinal” (https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-internet/em-dia-f%C3%BAria-homem-
destr%C3%B3i-produtos-em-loja-154727548.html).
33
“ReidoGado: As vezes eh preciso #$%$ o loko, dar uma de exagero pois quem aguenta tanta enrolação
dessas, ainda dizem que o cliente é o mais importante” (https://br.noticias.yahoo.com/blogs/vi-na-
internet/em-dia-f%C3%BAria-homem-destr%C3%B3i-produtos-em-loja-154727548.html); “Marquinhos
TD: Tem q se fazer de loco as vezes armar um barraco mesmo pros caras se ligarem e darem ouvido pra
sua raiva” (http://www.bhaz.com.br/consumidor-revoltado-com-atraso-em-entrega-destroi-produtos-em-
loja-de-material-de-construcao/); “Cássia Reis Liane: Parabéns ao consumidor revoltado. Nós
consumidores só somos ouvidos depois de ‘enlouquecemos’”, “Leonardo Santos Suzart: Consumidor está
precisando dar uma de louco nesse país, porque as empresas fazem o que querem e as agencias
fiscalizadoras assistem a tudo de camarote” (http://www.comenteai.com.br/noticia/1052748?page=5);
“João Victor Sarmento: Incrível como depois de dar uma de ‘doido’ o que não falta é gente querendo
conversa e resolver o problema na hora, é só da um jeito deles sentirem no bolso que tudo muda”
(http://fposts.com/fbpost/298280080217390_169508809898138); “Karina Tavares: Um Brasil sem leis
que possam resguardar os mais fracos, infelizmente essa e a unica solucao. DAR UMA DE LOUCO...”
(http://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2013/07/04/video-de-consumidor-enfurecido-gera-crise-
para-empresa-veja-como-evitar.html); “Ricardo Prado: Eu ja fiz isso no hospital candido Fontoura...
infelizmente os juristas nao vivem no mundo real! Ai quando você da uma de louco as vezes da
resultado...” (https://www.youtube.com/watch?v=w3Bqwj4o3ws).

22
Justice: (...) Se você acha incontornável o piti, aja de forma a usar toda a energia a
seu favor, e tente ficar no centro do controle, se é que dar piti é falar de controle:
grite! mas grite para uma loja cheia, ou sempre perto da maior muvuca de clientes.
Perto do caixa, perto da alimentação, perto do banheiro, que seja. Grite com
relação ao seu problema. Repita mil vezes, fale como se tivesse depondo no Procon
e trocasse de atendente a cada 3 minutos. Não perca os preciosos segundos de
atenção falando com os funcionários. Se chegarem perto demonstre que baixou a
bola e evada para perto dos consumidores. No momento oportuno comece de
novo. Outra coisa: não tem essa de “funcionário não tem nada a ver com isso”. Não
tem é o cacete! (...) É claro que ele não tem culpa, que é um sistema perverso. Mas
ele não é inocente. Ele não está do TEU lado. Resultado: não o ataque, mas não
tenha pena. Quem é receber atenção é você. Simplesmente ignore qualquer energia
em direção ao profissional.34

A expressão da raiva foi inserida, aqui, diretamente no cerne das disputas


cotidianas de poder. Comentários desta natureza não se dedicam a discutir a
consonância entre a manifestação observável de fúria e a vivência interna de
sentimentos de indignação; em vez de debater a realidade psicológica da condição
emocional exteriorizada, preferem enfocar a pertinência e a eficácia da performance
emotiva, no âmbito de penosas batalhas por direitos fundamentais.
Inteirado dos comentários discrepantes sobre as motivações, a legalidade e a
moralidade de seu ato de revolta, Rodrigo Ciríaco produziu o vídeo
“ESCLARECIMENTOS - DIA DE #FÚRIA – DICICO”, com 22 minutos e quatro
segundos de duração (espaço de tempo incomum para depoimentos endereçados aos
dispersivos navegantes da Internet).35 A gravação e a postagem no YouTube foram
efetuadas nove dias depois do acontecimento que expusera o professor à consagração e
ao opróbrio público. O cenário da filmagem — uma paisagem bucólica, com direito a
orquestra de passarinhos ao fundo — era propício para ajudar a desfazer a imagem de
irascível, sedimentada por comentaristas do vídeo precedente. Ciríaco parecia à vontade
para defender seu próprio ponto de vista sobre o evento polêmico: de maneira serena e
didática, articulou explicações razoáveis para o alegado “dia de fúria”, apresentando
fatos e argumentos, reflexões e sentimentos que se encaixariam no quadro de referência
de crenças, regras e expectativas culturamente compartilhadas.
Devido à sua suposta irracionalidade e à sua tendência para romper o curso
ordinário da interação social, as emoções demandam, quase sempre, uma “prestação de
contas”, condizente com os padrões de explanação racional (FISCHER & JANSZ,
2008). Para granjear a simpatia ou a concordância de outrem, os indivíduos procuram

34
http://www.hardmob.com.br/boteco-hardmob/515719-fallingdownmob-cliente-entra-dicico-quebra-
tudo-video.html.
35
https://www.youtube.com/watch?v=GCyc2TOCgKE.

23
desfiar — na forma sequencial de uma narrativa — causas plausíveis e razões
incontroversas para seu comportamento emocional. Tentam convencer o interlocutor ou
um público mais amplo de que sua conduta não fora tão irracional, estranha, exorbitante
ou anormal quanto podia parecer à primeira vista.
A função precípua das “narrativas sobre emoções” é assegurar o status do
indivíduo como membro responsável da sociedade e, mais especificamente, resguardar
uma identidade social ou profissional ameaçada. Sabedora do que é uma reação
emocional conveniente, uma pessoa pode enfatizar, em seu relato, elementos que
configuram a sua conduta emotiva como a mais natural e óbvia possível, em um
determinado contexto. O indivíduo evitaria, assim, a pecha de “primitivo”, “irracional”,
“chorão”, “cabeça-quente” ou “infantil” (idem, p. 166).
A “narrativa sobre as emoções” vai ao encontro do ideal de racionalidade não
apenas por fornecer razões para as emoções do indivíduo; o ato de narrar constitui, em
si mesmo, uma prova de que o indivíduo está, mais uma vez, no comando da situação.
O vídeo “ESCLARECIMENTOS - DIA DE #FÚRIA – DICICO” segue à risca os
preceitos do “trabalho de reparação”, esmiuçados por Fischer & Jansz (2008). Rodrigo
Ciríaco se mostra disposto, de fato, a restaurar a reputação potencialmente arranhada,
tanto pelas críticas incisivas quanto pelas homenagens dúbias ou obtusas dos fóruns
virtuais. Ele explica sua atitude veemente de uma forma que, além de mantê-lo próximo
do ideal de homem maduro (ordeiro, confiável e responsável), confirma a posse dos
atributos que habilitam ao exercício do magistério. Para firmar a sua imagem de sujeito
racional e sensível, batalhador e altruísta, o professor rememorou os bons antecedentes:

Sou uma pessoa do bem, trabalho desde os 14 anos, carteira registrada, sou a
primeira pessoa da minha família que fez um curso superior, nunca tive nenhum
problema com passagem... ficha criminal, nunca tive nenhuma briga de trânsito,
sou educador, sou escritor, tenho um trabalho na comunidade em que eu atuo com
literatura e teatro, sou uma pessoa bem reconhecida dentro da comunidade em que
eu vivo, no Jardim Verônia, ali na Zona Leste.

A construção de uma convincente “narrativa emocional” não pode basear-se,


somente, no relato da impecável conduta social anterior. É necessário enfeixar
circunstâncias ou acontecimentos prévios que funcionariam como causas plausíveis para
a reação emotiva controversa. Fiel a esta norma, Rodrigo Ciríaco delineou uma série de
problemas pessoais que contribuíram para exasperar sua revolta contra os lojistas
desonestos e desdenhosos: a dificuldade para a realização do parto da filha pelo Sistema
Único de Saúde (SUS); o atraso de nove meses na entrega de seu apartamento,

24
financiado pelo programa governamental de habitação Minha Casa Minha Vida; a
irritação da mulher lactante com as “falsas promessas” da Dicico; o “estresse” de sua
mãe, que ajudava a supervisionar a obra na nova moradia.
Com sobriedade, sem cair no melodrama rasgado, Ciríaco descortinou um
quadro mais abrangente de agonia, sensação de impotência e ressentimento,
fermentados pelo descaso de administradores privados e públicos. A recapitulação de
episódios antecedentes dolorosos tornaria a sua “fúria” mais compreensível: o professor
suportara muito sofrimento, tolerara diversos abusos, antes de partir para a revanche. A
tensão no ambiente doméstico e o “esgotamento financeiro” não foram, todavia, os
únicos fatores explanatórios listados. Ciríaco destacou os “valores familiares” (palavra
empenhada; honestidade; integridade; dignidade) que a “onipotente” Dicico havia
“quebrado ao meio”: “Eles estavam me colocando debaixo da sola do sapato deles,
estavam pisando em cima de mim, pisando em cima destes meus valores”. O tratamento
“humilhante” (“eles me fizeram de gato e sapato”) teria infringido, também, o
regulamento do “jogo capitalista”:

Se eu tô num jogo... no jogo capitalista, em que o jogador se coloca acima das


regras, o jogador não respeita o adversário, como é que você joga de maneira leal
com esse jogador? É meio difícil, né? E foi isso que a Dicico estava fazendo. Eles
se colocam acima da regra do jogo, eles estavam se colocando acima do Código de
Defesa do Consumidor, eles estavam se colocando acima de mim. Então, eu tive
que tomar uma atitude extrema e surpreender, para reverter este jogo.

Chama a atenção, neste ponto da narrativa, o emprego reiterado das metáforas


espaciais da humilhação: “Eles estavam me colocando debaixo da sola do sapato deles...
eles estavam se colocando acima de mim”. Outro aspecto digno de nota é a forma pela
qual o professor evidencia o caráter tático da sua investida contra a Dicico: “tive que
tomar uma atitude extrema e surpreender, para reverter este jogo”. A descrição sugere a
execução de uma manobra que apanha o adversário desarmado e altera posições na
balança de poder. A julgar por este trecho do relato, seria impreciso dizer que Ciríaco
“perdera a cabeça” ou “ficara cego de raiva”. Como as negociações com os
administradores da loja se revelaram infrutíferas e aviltantes, o consumidor teria
apelado, de maneira consciente, para uma drástica demonstração de força. Àquela
altura, dar um espetáculo parecia a única alternativa para recobrar o direito ao respeito.
Ambos os termos estão associados, etimologicamente, ao direcionamento do
olhar e à conquista da atenção. A palavra respeito provém do verbo latino respicere, que
significa “a ação de olhar para trás”, “olhar atentamente”; respicio equivale a “olhar

25
com consideração”; respectus, ao resultado do olhar cuidadoso. De acordo com Esquirol
(2008), o respeito corresponde a um “olhar ético”, sustentado pelo vínculo entre
atenção e pensamento moral (o que o diferenciaria do olhar insistente e intrometido de
bisbilhoteiros). Percorrendo a mesma trilha etimológica, Dillon (2007, p. 202) assinala
que o respeito é “um modo de atenção, percepção e reconhecimento de um objeto, como
sendo dotado de importância, valor, autoridade, status e poder”.
Espetáculo advém do latim spetaculum, substantivo derivado, por sua vez, do
mesmo verbo spectáre, “olhar, observar, contemplar”. Desde a antiguidade, o vocábulo
é usado para designar eventos, encenações e edificações que captam a atenção pela
singularidade, beleza, engenhosidade, magnificência ou vibração — das sete maravilhas
do mundo às performances dos gladiadores nas arenas romanas. A organização de um
campo e de uma experiência visual fascinante gera, amiúde, desconfianças de natureza
política ou moral. A teoria crítica do espetáculo tende a relacioná-lo com estratégias não
coercitivas de poder e persuasão — tanto em regimes monárquicos pré-modernos quanto
em formações estatais modernas e pós-modernas (CRARY, 2006). São denunciadas,
também, as comoções e os assombros preconcebidos com a finalidade de mesmerizar as
audiências da indústria cultural. O problema do espetáculo, por este prisma, consiste em
sua capacidade de minar a perspectiva crítica dos cidadãos. Já na defesa cotidiana da
moralidade, qualifica-se de espetaculoso o indivíduo que monopoliza a atenção
mediante uma apresentação pública inapropriada: cenas escandalosas, roupas
espalhafatosas, gestos exagerados. Em contrapartida, movimentos sociais e grupos de
pressão se valem do apelo da linguagem do espetáculo, hoje em dia, para promover atos
que atraiam os holofotes da mídia, fixando a atenção do público em determinados
problemas e demandas.
De maneira análoga, Rodrigo Ciríaco recorrera a uma ação estrondosa para
tornar relevante o embate contra a Dicico. Em vez de gravar, primeiramente, um relato
pormenorizado (e, talvez, tedioso) sobre as fontes de seu ressentimento, protagonizou
uma retaliação espetacular. Para arrematar a vingança, difundiu a gravação da

26
represália, elaborando, como reclamo publicitário, um título que associava o script do
vídeo ao enredo vertiginoso do filme de Schumacher.36
Seja na esfera da indústria cultural, seja no âmbito da política, a assimilação
estratégica do espetáculo nem sempre produz os sentidos e os resultados previstos. Foi
o que se sucedeu, de certa maneira, com o evento na Dicico. Em diferentes ocasiões,
Ciríaco declarou que seu intento era constranger o estabelecimento comercial a recuar
da postura arrogante, reconhecendo e reparando, prontamente, prejuízos financeiros e
morais. Por meio desta argumentação redentora, a manifestação de fúria do consumidor
era dissociada da destruição inconsequente. Redefinia-se a revanche como uma medida
extrema para a restauração de uma ordem moral de consideração e de
comprometimento.
Houve internautas, contudo, que desfrutaram da retaliação como um
entretenimento fugaz, apropriado para espantar o tédio. Em outros momentos,
reprovações do descontrole emocional do professor se confrontaram com condenações
do caráter instrumental do seu “dia de fúria”. Para alguns observadores, a própria
veemência da reação de Ciríaco lhe conferia naturalidade e credibilidade — era o selo
de garantia romântico de que suas emoções irromperam de um núcleo íntimo profundo,
de um recesso obscuro, alheio ou adverso à influência das normas sociais. No
entendimento de outros espectadores, o discurso e a força expressiva de Ciríaco não
eram congruentes com os seus “verdadeiros sentimentos”. A explosão de raiva havia
sido coreografada para atender apenas a um anseio de visibilidade, socialmente
instigado.
O desacordo entre os comentários do vídeo chega a ser desconcertante:
deveríamos apreciar o “dia de fúria” na Dicico como um show ou criticá-lo por não
passar de puro teatro? Afinal, o professor dera um vexame (isto é, uma ridícula

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A alusão não passou despercebida pela audiência do vídeo: “Eduardo Silva: tá igual o filme: Um dia de
Fúria”, “William Junior: William foster, é vc?” (https://www.youtube.com/watch?v=w3Bqwj4o3ws);
“Mauricio Alves: Me lembrei do filme Falling Down... Realmente, foda pacarai. Tanto o vídeo quanto o
filme.” (http://www.youtube.com/watch?v=wzG3smmhWfA); “Não importa a ordem dos fatores, se a
vida imita a arte ou vice-versa, mas o acontecimento que hoje venho compartilhar com vocês, lembra um
filme muito conhecido chamado: ‘Um dia de fúria’, onde Michael Douglas encarna um personagem que
parece não estar ‘no seu dia’ e resolve fazer aquilo que muitos de nós um dia já sentimos vontade, mas
obviamente não partimos para a esfera real deixando apenas no imaginário como seria se resolvêssemos
tudo como antigos povos que não haviam leis a seguir fazendo aquilo que julgavam ser justo em
determinada situação” (http://tornosubito8.blogspot.com.br/2013_07_01_archive.html); “Pensa em um
cara puto. Um cara que perdeu dinheiro, ta devendo na praça, tenta falar com a empresa e só é enrolado e
resolve tomar medidas drásticas. Pois é, o que vc esta prestes a ver é uma versão brasileira do filme Um
dia de Furia no Brasil!” (http://www.youtube.com/watch?v=wzG3smmhWfA).

27
demonstração de desequilíbrio interior) ou uma lição (quer dizer, um espetáculo
marcante, destinado a reforçar a importância do respeito e da coragem)?
Como foi demonstrado aqui, Rodrigo Ciríaco participou, com afinco, do circuito
de reverberação do seu “dia de fúria”, buscando influir na apreensão dos sentidos do
acontecimento. Preocupava-lhe, em especial, que sua represália fosse interpretada como
um gesto tresloucado. No vídeo de “esclarecimentos”, o professor sustentou a
razoabilidade do ato praticado, repelindo a hipótese do lapso momentâneo da razão ou
de um quadro de transtorno mental. Mais uma vez, ele ressaltou que, além de ter bons
motivos para ficar com raiva, conseguira manter sob controle a expressão da sua cólera
(“quebrei apenas o que era meu... não machuquei ninguém”). Ele demonstrara, enfim,
uma ira justa, cuja penalização, até no campo jurídico, era questionável:

Se a justiça entender que eu errei, que eu deva pagar de alguma forma, eu vou
aceitar, eu vou fazer tudo que a lei determina, porque eu acho que é o certo, mas eu
vou de cabeça erguida. Porque ali, na minha concepção, eu não tive nenhum surto,
não foi um ato de loucura, eu agi em legítima defesa, né? Em defesa da minha
família, em defesa da minha honra, em defesa dos valores em que eu acredito.
Qualquer pessoa que tem valores e princípios que sejam dignos tem o direito de
defender, sim, estes princípios, seja lá a maneira como for. A própria justiça
entende que em situações extremas a pessoa pode agir com um ato extremo e este
ser considerado como legítima defesa.

O estigma da loucura teimava, contudo, em insinuar-se nas avaliações do evento


na Dicico. Em 09 de julho de 2013, o acontecimento foi debatido, durante quase meia
hora, no programa Mais Você, da TV Globo. Na abertura da matéria, a apresentadora
Ana Maria Braga exibiu um trecho de Um dia de fúria (“um filme muito clássico... se
você não assistiu, eu até recomendo, porque tem grandes ensinamentos”). A escolha da
cena que ilustra a comparação entre o filme estadunidense (no qual o protagonista “vive
um dia muito difícil e perde a cabeça”) e o vídeo brasileiro (“um momento de fúria da
vida real”) foi a mais óbvia possível: Michael Douglas usa um taco de beisebol para
destruir produtos com preços abusivos, à venda na loja de um coreano pouco gentil. “A
história é comprida”, comentou Ana Maria Braga, “você entenderá, quando você vir o
filme, porque o cara chegou a este ponto aí, mas ele fez coisas incríveis”... “Nossa,
maluco geral!”, interrompeu o assistente Louro José. “Maluco geral”, repete a
apresentadora, como se fosse ela o papagaio em cena.
Nádia Bocchi, repórter da atração matinal, se dirigiu até a casa de Ciríaco, para
conversar a respeito do “vídeo que deixou ele famoso no Brasil inteiro”. A intenção era
“descobrir o que está por trás deste rapaz... como ele chegou ao dia de fúria”. Sentada à

28
mesa posta para o café da manhã, a jornalista sondou os motivos do “acesso de muita
raiva, de muito nervoso” sofrido pelo professor. “Você é muito diferente daquelas
imagens, dá para perceber aqui no seu dia a dia, com a sua filhinha de seis meses... Você
normalmente é assim, tranquilo?”. “É, a gente tem aqueles momentos em que pode ficar
bronqueado, mas, a maior parte do tempo, eu sou bem tranquilo, bem racional.” A
conversa prosseguiu com o relato das contrariedades que culminaram no célebre rompante.
Como era previsível, a repórter tentou extrair uma confissão de arrependimento: “Você
acha que a forma com que você agiu foi a melhor?”. Ciríaco tergiversou:

Olha, a forma como eu agi não foi a melhor, porque se eu falar que foi a melhor, eu
vou estar incitando... Não acho... Não acho que isso foi o certo, mas eu também
acho que, apesar de ter a lei... perdido de certa maneira o controle, eu ainda fui
racional, porque eu entrei... eu deixei bem claro que eu não queria machucar
ninguém. Eu procurei ainda quebrar as coisas que eram minhas. E é aquela coisa,
se eu ia levar o produto quebrado ou inteiro, eu resolvia ali, no calor da hora. Mas o
material era meu, me pertencia, já estava pago. Nesta história eu costumo dizer que
eu, eu... As pessoas falam “ah, teve um surto”... Não, eu não tive um surto, eu agi
em legítima defesa.
Na conclusão da reportagem, entretanto, o psiquiatra Hermano Tavares teve o
privilégio de proferir a palavra final sobre o acontecimento na Dicico (abordado, até
então, de maneira cautelosamente compreensiva por Ana Maria Braga). O médico
discorria sobre as características distintivas do “transtorno explosivo intermitente”
(conhecido, popularmente, como “síndrome do pavio curto”), quando foi interrompido
pela apresentadora:

Eu vou levar esse assunto para o momento político do país agora, onde a gente
viveu pessoas indignadas, pedindo direitos para várias áreas, para várias profissões
e que saíram pacificamente às ruas, com seus cartazes, exigindo tudo o que a
democracia permite. E aquele outro bando... O senhor, como médico, como é que o
senhor enxerga aquilo, além do vandalismo? Existe ali, infiltrado naquilo, o senhor
reconhece isso, pessoas com este impulso mais exacerbado de agredir por agredir?

Surpreso, Hermano Tavares, de início, desconversou: “Olha, eu acho que ali era
um saco de gatos, tinham os manifestantes... os vândalos...”. Rapidamente, porém, o
especialista retomou a trilha sinalizada por Ana Maria Braga:

Olha, o transtorno explosivo intermitente é muito mais comum do que a gente sabia
antes e muito mais do que a gente gostaria que fosse... Fale-se em torno de 5% da
população. Em cada 20 pessoas, tem um cara ali de pavio curto, que, por qualquer
coisinha, ele vai perder... Imagina uma aglomeração... Então, vão estar lá pessoas
com transtorno explosivo intermitente, vai ter vândalo e vai ter até malfeitor,
bandido mesmo, esperando uma oportunidade para... Como, aliás, a gente viu,
saques, coisas que não tinham nada a ver com o protesto...

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O diagnóstico não contentou a entrevistadora:

Mas ali podia ser uma oportunidade, de repente, daquelas pessoas que já estão
reclamando dos direitos do consumidor — porque a gente paga imposto e tão se
sentindo insatisfeitos com os serviços públicos —, e aí essa pessoa está imbuída
deste fenômeno, deste negócio pessoal de falar “bom, então eu vou botar pra
quebrar”...

Tavares ensaiou uma nova conjectura: “Vamos dizer que tenha um sujeito lá que
tenha este problema...”, mas foi atalhado, mais uma vez, por Ana Maria Braga: “Pode
incitar os outros... E aí, quer dizer, a partir do momento que desencadeia,
principalmente estando numa multidão, aquilo, o bando sempre provoca uma reação
maior do que teria individualmente qualquer pessoa...”. No fim das contas, a velha
“psicologia das massas” figurava mais útil para compreender o rumo das manifestações
do que todas as laboriosas análises dos cientistas políticos.
O desfecho clínico da reportagem não agradou a Rodrigo Ciríaco37 e aos seus
aliados virtuais38. Uma internauta preferiu encaminhar, diretamente para Ana Maria
Braga, a sua contestação do enquadramento patologizante adotado pelo Mais Você:

Ola Ana Maria Braga!


Gostaria de postar aqui a minha tristeza e indignação pela matéria apresentada na
terça feira sobre o rapaz que quebrou a loja de materiais de construção! Sei que ele
foi ouvido primeiro na matéria, mas não gostamos nada nada, do Psiquiatra falando
depois de transtorno de pavio curto.!
Desculpe, não somos a favor de brigas ou de quebra quebra, mas infelizmente
nosso pais esta todo errado! onde uma grande rede sempre vira pra vc e fala pra
procurar os seus direitos!? (...) E depois em rede nacional, ainda ser chamado de
PAVIO CURTO!?

37
“Gostaria de falar ao vivo também mas, daí é pedir demais. Não tô curtindo a ‘análise psiquiátrica’ e a
síndrome do PAVIO CURTO mas, não dá pra ter tudo o que a gente quer”, “Se teve o psiquiatra, faltou
alguém analisando os casoS de ABUSO DOS DIREITOS DO CIDADÃO/CONSUMIDOR”, “Querem
DIAGNOSTICAR e TRATAR a nossa revolta? Melhorem os serviços públicos, privados, atenda as
pessoas de maneira digna. POLÍTICOS: não roubem, não desviem o nosso dinheiro, invistam
decentemente em educação, saúde, moradia, cumpram com as leis. EMPRESAS, TERCEIRO SETOR:
cumpram com aquilo que prometem, entreguem aquilo que vendem, respeitem as regras, respeitem as
leis. Se os ‘GRANDES, OS PODEROSOS’, sejam do serviço PÚBLICO ou PRIVADO fizerem isso,
ninguém vai ter a necessidade de ser ‘diagnosticado’ com síndrome nenhuma.
(https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts).
38
“Silvana Terra: Enviei essa mensagem para o Mais (Menos) Você: Vcs perderam uma excelente
oportunidade ao tratarem mal o professor! Pq chamaram um psiquiatra e não o PROCOM, o Ministério
Público e a Polícia??? Vcs só reforçaram o direito das empresas em tratarem mal seus clientes e darem
pra eles a força de chamar o cliente de psicótico!”, “Giovani Verazzani: Fiquei triste (e muito puto!) com
a abordagem da senhora Rede GLobo. A questão não era ‘comportamento explosivo’, explicações
psiquiátricas. Parece que o programa preferiu coadunar com a empresa. Uma pena. Ainda bem que temos
as redes!” (https://www.facebook.com/rodrigociriacoprofessor?fref=ts); “Naara Rissatto: Rodrigo você
fez certinho, não foi um acesso de fúria como esta sendo apresentado no programa da Ana Maria, vc não
bateu em ninguém, foi apenas um desabafo e justiça”, “Alessandra Arruda: Essa bosta de globo ao invés
de ter falado da falta de atitude do procon, ou lentidao da justiça, vem me falar de psicologia? Me poupe!”
(http://www.youtube.com/watch?v=bG0K0cPNDkA).

30
Desculpe, mas a TV poderia sim, fazer a grande loja de materiais se responsabilizar
pelo que foi falado ao cliente, para deixa-lo tão furioso e não simplesmente ainda
trata-lo com disturbio..QUE É ISSO?
Lembrando tb que! SE NÃO TIVESSE TIDO INFELIZMENTE O QUEBRA
QUEBRA, nossos políticos, que só entendem este tipo de conversa, não teriam
baixado os R$ 0,20 centavos da condução.39

De acordo com a típica definição metafórica de Grasso (2002, p. 12), a pessoa


enraivecida assume o papel de juiz em um julgamento que submete ao escrutínio
público a conduta e as ações de malfeitores. Não raro, todavia, o pretenso portador da
ira justa é posto na berlinda, encarado como réu, devido à impetuosidade com que
promovera o desmascaramento e a punição de seus alegados algozes. Os fóruns do
ciberespaço iluminam bem os meandros desta paixão judiciária: uma legião de assíduos
árbitros informais se pronuncia sobre os atos daqueles que — com veemência marcante
— reclamaram ou realizaram justiça. O tom arrebatado das sentenças excede, em muitos
casos, o fervor das ações em julgamento. Membros dos júris virtuais conferem, ao
sujeito furioso, o emblema de “herói”, o atestado de “louco”, os rótulos de “ignorante”,
“nervosinho”, “brigão” ou “baderneiro” — num nítido exemplo de como o discurso
sobre as emoções atua, significativamente, nos processos de categorização dos
indivíduos e de absolvição ou descrédito de suas ações na esfera pública.
Tais condenações nem sempre são inapeláveis. Como demonstra o estudo de
caso desenvolvido aqui, o sujeito furioso reúne, às vezes, capital cultural e
conhecimento tecnológico para rebater os julgamentos negativos. Motivos pessoais e
razões sociais ou políticas são trazidas à baila, a fim de garantir a inteligibilidade, a
correção e, quem sabe, até mesmo a grandeza dos atos praticados.
Os arquivos e os tribunais da Internet propiciam, assim, um rico material
empírico para o exame dos quadros de referência em que os indivíduos se apoiam
quando praticam, racionalizam ou julgam ações classificadas como “furiosas”. Além
dos discursos justificativos esboçados durante os eventos, podemos contemplar, em
alguns casos, todo um “trabalho de reparação” da imagem, realizado a posteriori, com a
finalidade de dar testemunho de uma íntegra consciência ética e de conquistar a
chancela da ira justa, o carimbo da cólera louvável.
Os fóruns virtuais põem em relevo, também, formas consideradas ideais ou
legítimas para fazer funcionar a justiça ou para que a justiça seja feita, no Brasil
contemporâneo. Emparelham-se distinções teóricas e apologéticas entre a raiva e a

39
https://www.facebook.com/AnaMariaBraga/posts/640411865971407?stream_ref=5.

31
indignação, a vingança e a justiça, ancoradas em pressupostos do contraste fundamental
entre emoção e razão. Um debate apaixonado e instigante, que recompensa o esforço
para percorrer os circuitos de reverberação da cólera cotidiana, em toda a sua
desafiadora amplitude.

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