No que reside o aspecto trágico de O Pagador de Promessas? Responder essa pergunta
envolve atentar com cuidado para o herói da peça. O “ Zé do Burro” foi construído por Dias Gomes de modo a não possuir defeitos. Seu caráter é desprovido de vícios e tanto seu objetivo, quanto sua motivação são nobres. Com relação ao seu caráter, ele é honesto diferentemente do Bonitão, ele é fiel ao contrário da sua esposa, sua bondade é ampla para contemplar humanos e não humanos. Algo que parece não fazer parte do repertório do Padre. Com relação ao seu objetivo, levar a cruz ao altar da Igreja de Santa Bárbara, após carregá-la por quilômetros, poderia parecer um ato exibicionista se não se conhecesse a sua motivação. Zé do Burro não quer imitar Cristo, não no sentido alegado pelo Padre, o cumprimento da sua promessa é fruto de gratidão para com a santa. Se seu objetivo e sua motivação são nobres, isso deve-se ao seu caráter ironicamente constituído pelas típicas virtudes cristãs. Isso ecoa não apenas na experiência do leitor da peça, mas também nos próprios personagens. Cada personagem é impactado de alguma forma pela “santidade” de Zé do burro. Sua mulher sente culpa, o padre se ressente, Bonitão o inveja, Minha Tia se apieda. Todos reagem à força do seu caráter. Entretanto, ainda que Zé do Burro não disponha de vicios, disso não segue-se que ele não disponha de vulnerabilidades. Que nesse caso não decorrem estritamente da sua personalidade. Ele não é inculto porque não gosta de estudar. Até porque não se importar com o conhecimento seria um defeito e a peça não da pistas de que seja o caso de Zé do Burro. Num exercício de imaginação coerente com texto da peça, pode-se supor que sua falta de conhecimento sobre a Igreja e seus dogmas, sua falta de conhecimento da dinâmica da cidade e as suas particularidades não são resultado da sua falta de interesse ou da sua indiferença, mas da sua condição social. Zé do Burro é um pobre agricultor sem educação formal que mora distante da cidade. Suas reclamações de falta de compreensão por parte dos habitantes revelam justamente sua carência de conhecimento do modus operandi do lugar. Ele é um sujeito estranho para aquelas pessoas. Mesmo que, a medida que a peça avança, personagens começam a se identificar com causa de Zé do Burro, pelas mais variadas razões, aqueles que detêm o poder, no caso a Igreja, não se identificam. Em nenhum momento, exceto na morte, o Padre realmente se conecta com o Zé do Burro. A falta de conhecimento do modus operandi da cidade, resultado da sua condição social, aliada a um “carater de santo” é o que torna Zé do Burro um personagem trágico por oposição a, por exemplo, João Grilo, personagem cômico, em O Auto da Compadecida. Para além das diferenças óbvias de gênero, João Grilo, como Zé do Burro, é pobre e sua condição social impede o acesso a uma série de bens. Contudo, os pontos em comum terminam por aí. Primeiro, contrariamente a Zé do Burro que é movido por gratidão e dever, a carência de bens é um dos motivos que movem João Grilo. Segundo, João Grilo não é “santo”. E ele próprio sabe disso, como fica nítido na cena do julgamento final. Ao mesmo tempo, João Grilo conhece a cidade, seus habitantes e suas particularidades. É esse conhecimento que permite a ele manipular os habitantes em benefício próprio. Se não fosse sua condição social, seu laço de amizade com Chicó, seu humor afiado, João Grilo poderia bem ser um vilão da estatura de Edmundo e Iago. Portanto, se para Dias Gomes ser bom como “santo” leva a tragédia, pois o mundo rejeita santo, Cristo talvez seja a melhor referência nesse caso, para Suassuna, no mundo, consegue-se viver somente com humor e muita esperteza. E até os santos sabem disso.