Você está na página 1de 2

Luis Filipe Maciel - 244416

No que reside o aspecto trágico de O Pagador de Promessas? Responder essa pergunta


envolve atentar com cuidado para o herói da peça. O “ Zé do Burro” foi construído por Dias Gomes
de modo a não possuir defeitos. Seu caráter é desprovido de vícios e tanto seu objetivo, quanto sua
motivação são nobres. Com relação ao seu caráter, ele é honesto diferentemente do Bonitão, ele é fiel
ao contrário da sua esposa, sua bondade é ampla para contemplar humanos e não humanos. Algo que
parece não fazer parte do repertório do Padre. Com relação ao seu objetivo, levar a cruz ao altar da
Igreja de Santa Bárbara, após carregá-la por quilômetros, poderia parecer um ato exibicionista se não
se conhecesse a sua motivação. Zé do Burro não quer imitar Cristo, não no sentido alegado pelo
Padre, o cumprimento da sua promessa é fruto de gratidão para com a santa.
Se seu objetivo e sua motivação são nobres, isso deve-se ao seu caráter ironicamente
constituído pelas típicas virtudes cristãs. Isso ecoa não apenas na experiência do leitor da peça, mas
também nos próprios personagens. Cada personagem é impactado de alguma forma pela “santidade”
de Zé do burro. Sua mulher sente culpa, o padre se ressente, Bonitão o inveja, Minha Tia se apieda.
Todos reagem à força do seu caráter. Entretanto, ainda que Zé do Burro não disponha de vicios, disso
não segue-se que ele não disponha de vulnerabilidades. Que nesse caso não decorrem estritamente da
sua personalidade. Ele não é inculto porque não gosta de estudar. Até porque não se importar com o
conhecimento seria um defeito e a peça não da pistas de que seja o caso de Zé do Burro. Num
exercício de imaginação coerente com texto da peça, pode-se supor que sua falta de conhecimento
sobre a Igreja e seus dogmas, sua falta de conhecimento da dinâmica da cidade e as suas
particularidades não são resultado da sua falta de interesse ou da sua indiferença, mas da sua condição
social. Zé do Burro é um pobre agricultor sem educação formal que mora distante da cidade. Suas
reclamações de falta de compreensão por parte dos habitantes revelam justamente sua carência de
conhecimento do modus operandi do lugar. Ele é um sujeito estranho para aquelas pessoas. Mesmo
que, a medida que a peça avança, personagens começam a se identificar com causa de Zé do Burro,
pelas mais variadas razões, aqueles que detêm o poder, no caso a Igreja, não se identificam. Em
nenhum momento, exceto na morte, o Padre realmente se conecta com o Zé do Burro.
A falta de conhecimento do modus operandi da cidade, resultado da sua condição social,
aliada a um “carater de santo” é o que torna Zé do Burro um personagem trágico por oposição a, por
exemplo, João Grilo, personagem cômico, em O Auto da Compadecida. Para além das diferenças
óbvias de gênero, João Grilo, como Zé do Burro, é pobre e sua condição social impede o acesso a uma
série de bens. Contudo, os pontos em comum terminam por aí. Primeiro, contrariamente a Zé do
Burro que é movido por gratidão e dever, a carência de bens é um dos motivos que movem João
Grilo. Segundo, João Grilo não é “santo”. E ele próprio sabe disso, como fica nítido na cena do
julgamento final. Ao mesmo tempo, João Grilo conhece a cidade, seus habitantes e suas
particularidades. É esse conhecimento que permite a ele manipular os habitantes em benefício
próprio. Se não fosse sua condição social, seu laço de amizade com Chicó, seu humor afiado, João
Grilo poderia bem ser um vilão da estatura de Edmundo e Iago. Portanto, se para Dias Gomes ser
bom como “santo” leva a tragédia, pois o mundo rejeita santo, Cristo talvez seja a melhor referência
nesse caso, para Suassuna, no mundo, consegue-se viver somente com humor e muita esperteza. E até
os santos sabem disso.

Você também pode gostar