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Cavell e a Filosofia da Linguagem Ordinária

Para se entender a filosofia de Stanley Cavell é imprescindível entender a importância


da filosofia da linguagem ordinário para o seu itinerário filosófico. Neste pequeno ensaio
pretendo apresentar a resposta cavelliana frente a duas objeções do filósofo Benson Mates a
filosofia da linguagem ordinária. A primeira, diz respeito à adequação do método empregado
pelos filósofos da linguagem ordinária para resolver problemas filosóficos. A segunda, diz
respeito a natureza das implicações das declarações dos filósofos da linguagem ordinária. O
ensaio está organizado de modo a apresentar cada objeção seguida da sua respectiva resposta
cavelliana.
Primeira Objeção
O método da Filosofia da linguagem ordinária é tipicamente um procedimento que
lida com problemas filosóficos apontando para palavras que estão sendo usadas de forma não
padrão, ao mesmo tempo que restaura o emprego ordinário delas. Restaurar o emprego
ordinário das palavras nada mais é do que: primeiro, apontar para instâncias do que é
ordinariamente dito pelo o “homem comum” e, segundo, quando necessário, propor
explicações do que é implicado performaticamente pela instância do que é ordinariamente
dito (HAMMER, p 4). O “homem comum” deve ser compreendido como equivalente ao que
“nós normalmente dizemos quando”. Mates, contudo, entende que o método da filosofia da
linguagem ordinária é inadequado para tratar de questões filosóficas. Para sustentar seu ponto
ele parte do desacordo entre Ryle e Austin sobre quais situações é apropriado usar a palavra
“voluntário”. De acordo com Mates, tal desacordo é sintomático da inadequação do método
da filosofia da linguagem ordinária. No que se segue apresento o desacordo seguido da
objeção de Mates.
Para Ryle os filósofos tradicionalmente usam a palavra “voluntário” de forma
não-ordinária e, portanto, permitem que obscuridades, tais como o problema da liberdade do
querer, emerjam. Segundo Ryle, caso atentemos para o uso ordinário dessa palavra essas
obscuridades são dissolvidas. Com relação ao uso da palavra “voluntário” nós apenas a
usamos em circunstâncias excepcionais. Circunstâncias em que faz sentido culpar ou não
uma pessoa, ou seja em circunstâncias que uma ação não deve ser feita (MATES, p 162).
Nessas circunstâncias excepcionais existe a dificuldade em atribuir responsabilidade a uma
pessoa, pois essa atribuição depende de julgarmos se o seu ato foi voluntário ou involuntário.
No entanto, a generalidade dos filósofos desconsidera essas circunstâncias excepcionais e
amplia uso da palavra “voluntário” para além do uso ordinário, para cobrir, por exemplo,
ações meritórias. Ryle entende que essa ampliação é o que origina obscuridades relacionadas
ao “problema da liberdade do querer” e que podem justamente serem evitadas caso se atente
aos limites do uso ordinário de “voluntário”. Faz sentido, por exemplo, dizer de uma criança
que ela foi responsável por quebrar a janela, mas não que ela foi responsável por terminar seu
dever de casa em um ótimo tempo (MATES, p 162).
A explicação de Ryle supõe que situações excepcionais do uso da palavra
“voluntário” são constituídas apenas por ações que “não devem serem feitas”, ou seja,
situações nas quais se exige um difícil julgamento moral. Entretanto, ao que parece Austin
apresentou exemplos de situações excepcionais nas quais não se trata de ações que “não
devem serem feitas”. Nomeadamente, quando nos alistamos voluntariamente no exército ou
damos um presente voluntariamente. Nessas situações não faz sentido alegar que somos
culpados ou responsáveis pelo nossos atos. Elas não exigem um julgamento moral. Portanto,
nem sempre é o caso que empregamos a palavra “voluntário” em situações excepcionais que
exigem um julgamento moral.
Se o método da filosofia da linguagem ordinária é um método adequado, então deve
haver acordo sobre quais usos são instâncias do que é ordinariamente dito pelo “homem
comum”. No entanto, o que se percebe é que ambos filósofos que apelam para o que é
ordinariamente dito discordam justamente sobre quais instâncias são ordinárias. Tanto Ryle
quanto Austin supõem enunciar verdades acerca do uso ordinário da expressão “voluntário”.
Portanto, o método da filosofia da linguagem ordinária não é um método adequado. De
acordo com Mates, o que explica o desacordo é a seguinte suposição: Ambos filósofos da
linguagem ordinária supõem que o “homem comum” coletou uma quantidade suficiente de
informações sobre o uso ordinário das expressões em jogo e, portanto, pode confiar na sua
intuição e memória para citar instâncias do que é ordinariamente dito (MATES, p 165).
Porém, a própria suposição de que o homem médio está de posse de uma quantidade de
informação suficiente acerca do uso de uma determinada expressão é uma hipótese empírica
e não pode ser assumida aprioristicamente pelos filósofos da linguagem ordinária. Ainda que
se assuma essa hipótese pelo menos duas objeções podem serem feitas. Primeiro, não é
manifestamente claro que os indivíduos são enunciadores confiáveis daquilo que eles
consideram que é o uso corrente de uma determinada expressão. Segundo, o próprio
desacordo entre experts, tais como Austin e Ryle, já é uma amostra (ainda que pequena) do
amplo desacordo que pode existir na linguagem ordinária. Portanto, o procedimento de apelar
para o que é ordinariamente dito não é adequado. Para saber o que o “homem comum” diz é
necessário, antes, recorrer a procedimentos estatísticos (MATES, p 165).
A resposta cavelliana para as objeções envolve, primeiro, mostrar que a explicação
para o desacordo, proposta por Mates, entre Ryle e Austin é falsa. Segundo, envolve
apresentar uma outra explicação para o desacordo que não implica na inadequação do método
da filosofia da linguagem ordinária. Cavell rejeita a suposta pressuposição que Mates atribui
aos filósofos da linguagem ordinária. Para mostrar a falsidade da explicação de Mates do
desacordo, Cavell oferece pelo menos três objeções. Primeiro, o método da filosofia da
linguagem ordinária não depende da suposição de que o “homem comum” precisa já estar de
posse de uma “quantidade suficiente de informação” para fazer declarações do que
normalmente é dito. Depende, apenas, que o “homem comum” seja um falante competente da
sua língua. Quando um estrangeiro nos pede para explicar uma determinada expressão, ele
não supõem que sejamos linguistas ou gramáticos. Ele supõe (o que soa uma trivialidade) que
sejamos capazes de falar bem a nossa língua e, portanto, saibamos apontar o uso correto da
expressão. Saber se temos “uma grande quantidade de informação sobre nossa língua é
irrelevante” para os procedimentos da filosofia da linguagem ordinária. Segundo, na
realidade se as intuições do “homem comum” não são suficientes para determinar o uso
correto de uma determinada expressão, então torna-se impossível a própria construção de
uma gramática. Mesmo que se recorra a procedimentos estatísticos, o linguista descritivo que
empreende uma pesquisa empírica está fadado a confiar nas intuições do falante nativo.
Terceiro, o homem comum não confia na sua memória. Ele pode até esquecer e lembrar
algumas expressões, mas ele não esquece ou relembra a sua língua (HAMMER, p 5). Para se
falar uma língua não é necessário estar de posse de uma grande quantidade de informação
empírica, se requer apenas que seja verdade a proposição de que a linguagem natural é que
os falantes nativos desta linguagem falam (MWM, p 5).
É ponto pacífico entre Ryle e Austin que a questão sobre a “voluntariedade da ação”
só pode emergir em situações excepcionais. A falha de Ryle, segundo Cavell, reside em
caracterizar insuficientemente essas situações excepcionais. Ryle não percebe a existências de
uma ampla gama de “situações excepcionais” que não dizem respeito a “ações que não
devem serem feitas”. Se meu vizinho dá de presente um carro para seu filho de três anos, é
plausível que nos perguntemos, dada a estranheza da ação, se ele está fazendo isso
voluntariamente. Embora, Ryle, ao discordar dos filósofos acerca de quais ações são
voluntárias, corretamente aponte que o termo “voluntário” está sendo usado para além do seu
uso ordinário, ele é incapaz de especificar com precisão em quais circunstâncias a questão da
inteligibilidade do uso do termo emerge. Portanto, os contra-exemplos de Austin não revelam
um sintoma da inadequação do método da filosofia da linguagem ordinária, mas revelam
justamente essa insuficiência rylena em perceber a variedade de circunstâncias em que é
inteligível levantar a questão da voluntariedade. Tendo em vista que parte do esforço dos
filósofos quando se valem dos procedimentos da filosofia da linguagem ordinária é chamar a
atenção para aspectos negligenciados do uso das palavras (HAMMER, p 6), nada impediria
Ryle de reconhecer a insuficiência do seu tratamento e, portanto, conceder o ponto ao Austin.
Segunda Objeção
Existe na filosofia um par de distinções que supostamente ajuda a elucidar certos
tipos de proferimentos. Ele é conhecido como semântica e pragmática. A grosso modo a
semântica é o que é propriamente dito o “significado” de um termo, enquanto que a
pragmática diz respeito ao contexto do proferimento. Mates vale-se da distinção para
defender que ao proferir declarações tais como “ele não diria isso… a menos que implicasse
isso…” ou “nós dizemos isso… quando queremos implicar isso…” os filósofos da linguagem
ordinária não estariam explicando o uso da expressão. Salientar o que é “implicado” não é a
forma correta de explicar o significado ordinário de um termo (MULHALL,p xx). É verdade
que nós damos um presente voluntariamente apenas em situações excepcionais, mas isso
revela apenas um fato contingente acerca do uso dessa expressão. Não diz nada acerca do seu
significado. A relação entre a expressão e o contexto de proferimento não é lógica. Não é
possível derivar essa “implicação” da expressão, nem indutivamente, nem dedutivamente
(MULHALL, p xx). Dado que não se trata de uma relação lógica, segue-se que é uma
relação convencional que refere-se apenas a pragmática. Consequentemente, não pertence ao
significado ordinário da expressão.
A resposta cavelliana consistem em primeiro fazer notar que a explicação do Mates
não faz justiça a “necessidade” que é revelada pelas declarações do tipo que são feitas pelos
filósofos da linguagem ordinária. Simplesmente apelar para distinção semântica e pragmática
não explica o tipo de relação existente entre a expressão e o contexto de proferimento. Se
minha prima me pergunta se me vesti voluntariamente, certamente não vou interpretá-la
como querendo saber algo acerca dos meus processos psicológicos, mas como sugerindo
(ironicamente) que me vesti de forma peculiar. Isso não significa que “peculiar” faça parte do
significado de “voluntário”, mas “peculiar” nessa circunstância é uma condição de
inteligibilidade linguística do seu proferimento (HAMMER, p 8). Caso eu sistematicamente
desconsidere as implicações de questionamentos como esse que minha prima fez, isso não
faria ela revisar suas intuições linguísticas. Pelo contrário, revelaria, primeiro, uma
deficiência no meu aprendizado linguístico, pois aprender as “implicações do que nós
devemos dizer quando” também faz parte do aprendizado da linguagem (MWM, p 11-12).
Segundo, revelaria minha inabilidade em arcar com a responsabilidade das implicações dos
meus proferimentos e dos outros (HAMMER, p 8).
Referências:
Must We Mean What We Say - Stanley Cavell.
On The Verification of Statements About Ordinary Language - Benson Mates.
Introduction to the French edition of Must We Mean What We Say? - Sandra Laugier.
Skepticism, Subjectivity, and the Ordinary - Esper Hammer.
Philosophy’s Recouting of Ordinary - Stephen Mulhall.

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