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UFRGS

Instituto de Letras
Estudos Linguísticos II
Prof. Marcos Goldnadel

3.2 A Teoria das implicaturas de Grice

3.2.1 Preâmbulo: limitações explanatórias da teoria dos atos de fala

Parte da importância da teoria dos atos de fala foi colocar no centro do debate sobre a
linguagem o fato de que as línguas humanas servem para muito mais do que expressar uma
realidade externa. Falamos com expectativas interacionais, de modo que não são apenas
respostas linguísticas que, muitas vezes, esperamos em reação a uma fala nossa, mas também
respostas comportamentais. Por exemplo, se alguém com um pacote de salgadinhos pergunta:
“Quer um salgado?” e o interlocutor responde “Quero”, o gesto esperado é o de que estenda o
pacote para que o interlocutor se sirva. Se não o fizer, será considerado mal educado. Ou seja,
o enunciado “Quer um salgado?” não se trata apenas de uma pergunta com o desejo de saber
sobre um desejo do interlocutor. Se o falante manifesta uma dúvida sobre um desejo que se
encontra em condições de satisfazer, sua pergunta será considerada uma oferta. Sendo uma
oferta, então, nada mais natural que ela se expresse não apenas em palavras, mas também em
gestos.
O tipo de raciocínio que fizemos no parágrafo anterior constitui um primeiro passo de
uma explicação mais articulada para o fato de que certas perguntas acabam por constituir
ofertas nas trocas conversacionais. Mas é bom que se saiba que se trata apenas de um passo
inicial. Uma abordagem teórica séria sobre os mecanismos envolvidos na interpretação de
certas perguntas como ofertas exigiria a consideração de uma quantidade maior de casos, com
a identificação de semelhanças formais entre as sentenças consideradas e a suposição de
mecanismos regulares responsáveis pela produção da inferência (de oferta) reconhecida. O
mesmo vale para qualquer outro tipo de sentença associado regularmente a qualquer outra
força ilocucionária. Ou seja, uma boa teoria dos atos de fala, além de ser descritivamente
adequada (identificando todos os tipos de atos de fala que existem), deve ser explanatoriamente
adequada. Uma teoria explanatoriamente adequada é aquela que explica por que os fenômenos
são como são.
Você já deve estar percebendo que oferecer uma explicação é um passo bem mais difícil
do que oferecer uma descrição dos fatos. Um médico, por exemplo, quando atende um
paciente, pede que ele faça uma descrição de seus sintomas. Cabe ao médico encontrar uma
explicação para o quadro descrito, de modo que possa prescrever o tratamento adequado. Aqui
já se pode perceber que a importância da descrição (a enumeração dos sintomas) reside no fato
de ela ser o caminho para se encontrar uma explicação (a identificação da causa, ou seja, da
doença que aflige o paciente e que precisa ser combatida). Quando se trata de estudar a
linguagem, não resta dúvida de que uma boa descrição dos fenômenos é um passo essencial
(assim como é a descrição dos sintomas para o médico), mas a tarefa do cientista da linguagem
não se esgota nisso. Depois de uma boa descrição dos fatos linguísticos, é necessário partir para
a sua explicação. A teoria proposta por Austin no livro “Quando dizer é fazer” é descritivamente
muito boa. Grande parte de seu reconhecimento repousa no fato de que Austin soube enxergar
(descrever) fatos para os quais os filósofos de seu tempo deram pouca atenção. Austin
descortinou um campo fenomenológico nas línguas humanas absolutamente negligenciado pelo
pensamento de seu tempo.
Mas, no campo da explicação, o que se pode dizer da teoria dos atos de fala? Bem, não
se pode negar que Austin oferece alguma explicação para a produção de atos com forças
ilocucionárias particulares. O que se pode questionar é o alcance dessa explicação. Em “Quando
dizer é fazer”, Austin começa pela abordagem dos atos de fala explícitos, aqueles produzidos
por enunciados com um verbo performativo conjugado na primeira pessoa do presente do
indicativo. Os primeiros exemplos de Austin, portanto, constituem casos em que existem
fórmulas aceitas pela comunidade como meios de executar os diversos atos de fala. Mas não é
só isso. Não basta a fórmula adequada para a concretização do ato; é necessário ainda o
cumprimento de uma série de condições, que dizem respeito às pessoas e às circunstâncias do
proferimento. Não é por outra razão que o proferimento do enunciado “Declaro o réu culpado
e o condeno a 12 anos de prisão” sói constitui, de fato, uma condenação se realizada pelo juiz
responsável por conduzir o julgamento e na circunstância em que o corpo de jurados já se reuniu
para dar seu veredito. Tudo isso, a existência de uma fórmula linguística e de um conjunto de
procedimentos adequados, aponta para um tipo de explicação para a produção do ato de fala:
o que produz o ato é um conjunto de convenções. Essa é, no fundo, a saída explanatória de uma
teoria dos atos de fala. Os atos resultam de convenções compartilhadas entre os usuários da
língua. Essas convenções dizem respeito a fórmulas linguísticas e a outros tipos de convenções
associadas a essas fórmulas linguísticas.
Mas note que, se a explicação que apela para a existência de conjuntos de convenções
associadas a cada tipo de ato funciona bem com os atos de fala mais ritualizados, de natureza
mais contratual, como condenar, casar, batizar, ela deixa a desejar quando se trata de atos de
fala mais cotidianos, que Austin também soube muito bem identificar. Vejamos o caso do elogio.
Podemos elogiar as pessoas das mais diversas formas, como se observa nos exemplos a seguir,
mas não com um performativo explícito.

(45a) Puxa. Que casaco!


(45b) Meus Deus, onde você comprou esse casaco?
(45c) Arrasou com esse casaco!
(45d) Eu nunca vi um casaco lindo como esse.
(45e) Você precisa me dizer onde comprou esse casaco.
(45f) Ah... Para. Esse casaco aí é covardia.
(45g) * Eu o elogio pela beleza desse casaco.

Veja que o único enunciado que não funciona como um elogio é (45g), em que há o que
seria uma fórmula típica para a produção do enunciado performativo explícito. Ou seja, elogios
contam com a criatividade de quem elogia em sua formulação, e não com a fórmula prevista por
Austin (verbo performativo conjugado na primeira pessoa do singular do presente do indicativo).
Elogios também servem para ilustrar um tipo de ato que não depende de convenções relativas
a pessoas e circunstâncias. Enquanto apenas um juiz pode condenar e apenas um réu pode ser
condenado, qualquer um pode elogiar e ser elogiado. Ou seja, o apelo a convenções (linguísticas
ou situacionais) simplesmente não serve para explicar como os enunciados (45a)-(45f) chegam
a ser interpretados como atos de fala de elogiar. E os casos não se limitam aos elogios. Muitos
outros atos de fala podem ser identificados sem o uso de uma fórmula linguística convencional,
mesmo que ela exista, como é o caso do ato de desafiar.

(46a) Eu o desafio a atravessar esse canal a nado.


(46b) Eu duvido que você atravesse esse canal a nado.
(46c) Você não atravessa esse canal a nado.

Evidentemente, Austin reconheceu a existência desses casos, e sua reflexão ao longo de


sua obra mais conhecida também revela, em muitos momentos, um esforço para compreender
o que está por trás dessas interpretações. Mas o fato é que não se encontra em “Quando dizer
é fazer” um pensamento que procure articular uma explicação para os casos em que não se
pode apelar para convenções. Isso não diminui sua importância, mas aponta para um campo
exploratório que o próprio Austin, com seus exemplos, ajudou a perceber: o das inferências na
produção de sentido pragmático. Coube a outro filósofo, Herbert Paul Grice, dedicar-se a pensar
em um modelo de análise que extrapolasse o papel da convenção e avançasse para uma análise
do papel de aspectos conversacionais na produção de sentidos pragmáticos.

3.2.2 Inferências na conversação: o caso da conjunção “e” (submáxima Seja Ordenado)

Assim como Austin, Grice era um filósofo. Do mesmo modo que o pai da teoria dos atos
de fala, Grice também dá início à sua reflexão sobre o significado na linguagem verbal em função
de um debate existente no campo filosófico. Grice propõe um modo novo de pensar que se
constituiu em uma terceira via entre o que ele chamou de vertente formalista e vertente
informalista sobre a linguagem. De um modo extremamente resumido, a vertente formalista
preocupava-se com as imprecisões da linguagem verbal, o que comprometeria seu uso como
meio de expressão do pensamento científico e filosófico. Eles defendiam a necessidade, para a
filosofia e para a ciência, da adoção de linguagens formais artificiais (como a da Lógica), livres
das imperfeições da linguagem verbal. Já os informalistas se opunham a esse ponto de vista por
considerarem que a linguagem verbal permite a realização de muitas inferências válidas e que a
linguagem verbal serve para muitos outros propósitos além dos científicos. Para eles, era
possível que a linguagem verbal se orientasse por regras próprias, que poderiam inclusive estar
em conflito com as regras da Lógica Clássica.
Grice, descontente com essas duas visões, propôs uma terceira via analítica, um modo
de explicar os processos de produção de sentido com a linguagem que preserva parte das ideias
dos formalistas e parte das ideias dos informalistas. A novidade da perspectiva griceana foi
propor que o significado total de um enunciado linguístico é resultado da ação de duas camadas
interpretativas: uma camada de interpretação semântica em uma camada de interpretação
pragmática. De acordo com essa forma de enxergar os processos de produção de sentido, a
camada semântica de interpretação produz um significado condizente com a Lógica defendida
pelos formalistas. Já a camada pragmática de interpretação toma como input o resultado do
processamento semântico e realiza sobre ele operações interpretativas decorrentes da ação de
uma racionalidade comunicativa. São essas operações que eventualmente distanciam o
resultado interpretativo final de enunciados linguísticos (a interpretação intuitiva do falante
comum) do padrão defendido pelos formalistas.
Para sair do terreno abstrato, vamos a um exemplo concreto: a análise dos possíveis
sentidos associados à conjunção “e”. Todas as línguas possuem uma conjunção aditiva análoga
ao “e” da língua portuguesa. Como o nome já revela, uma conjunção serve para unir no interior
de uma frase duas ou mais unidades linguísticas de mesma natureza. Há várias conjunções nas
línguas; várias formas, portanto, de unir unidades linguísticas no interior de uma frase. De todas
as conjunções possíveis, há um conjunto pequeno, composto por 3 conjunções, que têm uma
regularidade surpreendente de sentido entre as línguas: as conjunções “e”, “ou” e “se”. Essas
três conjunções possuem propriedades lógicas bem precisas, bastante úteis à realização de
inferências válidas, cumprindo a mesma função lógica em todas as línguas em que se encontram
(evidentemente, com alguma forma fonológica particular para cada língua). Cada uma dessas
três conjunções possui uma contraparte na Lógica: as conjunções “&”, “V” e “→”. Todos os
sistemas lógicos contam com essas conjunções como elementos de sentido fundamentais no
estudo de inferências válidas. Mas não é preciso conhecer muito a Lógica como disciplina
acadêmica para identificar o valor dessas conjunções para as nossas inferências cotidianas. Para
perceber isso, vamos supor duas situações e enunciados associados a cada uma delas.

(47a) Situação 1: Lucas leu um folheto divulgando a oferta de bolsas de estudos na área de
Biologia em uma universidade francesa. Esse documento informa o pré-requisito para concorrer
à bolsa: ter concluído um curso de francês. Lucas encontrou-se com uma amiga, a Gabi, que
cursa Biologia.

Lucas: Você viu que uma universidade francesa está oferecendo bolsas para a área de Biologia.
Gabi: Sério?! Será que eu posso concorrer?
Lucas: Se você concluiu um curso de francês, pode.

(47b) Situação 2: Lucas leu um folheto divulgando a oferta de bolsas de estudos na área de
Biologia em uma universidade francesa. Esse documento informa os pré-requisitos para
concorrer à bolsa: ter concluído um curso de francês e ter concluído a graduação em Biologia.
Lucas encontrou-se com uma amiga, a Gabi. Ele sabe que a Gabi ingressou no curso de Biologia,
mas não está certo de que ela já esteja formada.

Lucas: Você viu que uma universidade francesa está oferecendo bolsas para a área de Biologia.
Gabi: Sério?! Será que eu posso concorrer?
Lucas: Se você concluiu um curso de francês e concluiu a graduação em Biologia, pode.
A estas alturas, já sabemos que, nos dois casos imaginados, o último enunciado consiste
no proferimento de uma sentença condicional. Formalmente, uma das orações de uma sentença
condicional inicia com a conjunção “se”. Sabemos que a oração introduzida pela conjunção “se”
é o antecedente da sentença condicional e que a outra oração é o consequente. Sabemos
também que o antecedente de um condicional expressa uma condição suficiente para o
consequente. Isso é o mesmo que dizer que, se a sentença condicional for verdadeira, a verdade
do antecedente basta para que o consequente seja verdadeiro.
No caso particular (47a), o enunciado condicional de Lucas estabelece que basta a Gabi
ter concluído um curso de francês para poder concorrer a uma bolsa. Ou seja, a conclusão de
um curso de francês é suficiente para poder concorrer à bolsa na universidade francesa. Já em
(47b) são duas condições que, sendo satisfeitas, bastam para poder concorrer à bolsa na mesma
universidade. Neste caso, é necessário ter concluído um curso de francês e a graduação em
biologia. Enfim, a conjunção aditiva “e” colabora, no segundo caso, para produzir um
antecedente mais complexo, que estabelece mais de uma condição para a possibilidade de
concorrer a uma determinada bolsa.
Sabemos que a verdade do enunciado condicional de (47b) e a verdade do antecedente
acarreta a verdade do consequente, como se vê em (48).

(48) Se Gabi concluiu um curso de francês e Gabi concluiu a graduação em Biologia, então
pode concorrer a uma bolsa.
Gabi concluiu um curso de francês e Gabi concluiu a graduação em Biologia.
Logo, Gabi pode concorrer a uma bolsa.

Também sabemos que a verdade da segunda premissa do argumento acima, por ser uma
conjunção, depende de que sejam verdadeiros os seus dois conjuntos, ou seja, para que essa
premissa seja verdadeira, é necessário que Gabi tenha concluído um curso de francês e que Gabi
tenha concluído a graduação em Biologia. Em termos lógico-inferenciais, essas condições não
dependem do ordenamento dos conteúdos apresentados nas sentenças. Se o argumento (48)
fosse reescrito como (49), isso em nada mudaria a validade do argumento.

(49) Se Gabi concluiu um curso de francês e Gabi concluiu a graduação em Biologia, então
pode concorrer a uma bolsa.
Gabi concluiu a graduação em Biologia e Gabi concluiu um curso de francês.
Logo, Gabi pode concorrer a uma bolsa.

Note que, em (49), na segunda premissa, a ordem das orações é oposta à apresentada
na segunda premissa do argumento (48). Isso em nada muda o argumento, dado que, de um
ponto de vista lógico, uma proposição com a forma P&Q equivale (vale o mesmo, tem o mesmo
sentido) que a proposição com a forma Q&P. Ou seja, de um ponto de vista lógico, não existe
diferença entre P&Q e Q&P. além disso, no caso particular que estamos considerando, não faz
a menor diferença a ordem em que o candidato à referida bolsa realizou seus dois cursos (o de
biologia e o de francês). O candidato que fez o curso de francês (e o concluiu) depois de terminar
a graduação tem o mesmo direito a concorrer a uma bolsa na universidade francesa que o
candidato que fez o curso de francês antes de entrar na faculdade e de concluir a graduação e
Biologia. Para o argumento em questão, essa ordem não tem a menor importância.
Até aqui, com o exemplo do diálogo em (47b), a conjunção “e” tem um valor equivalente
ao “&” da Lógica. O enunciado final de (47b), proferido por Lucas, não sugere qualquer
ordenamento temporal, de modo equivalente ao que ocorre com o “&” da Lógica. O que se
depreende do enunciado final de (47b) é que Gabi, para poder concorrer à bolsa na universidade
francesa, precisa ter concluído dois cursos, o de graduação em biologia e o de língua francesa,
não importando a ordem em que isso ocorreu. Aqui, para um daqueles filósofos de orientação
formalista, a interpretação do enunciado linguístico estaria de acordo com o que ele esperaria
para que se pudesse considerar a linguagem verbal um meio “confiável” de expressão do
pensamento rigoroso. Isso porque, nesse caso, o “e” da língua portuguesa equivale ao “e” lógico
(nos dois casos, há apenas uma ideia de adição veiculada).
Nem sempre, no entanto, enunciados com a conjunção “e” expressam uma simples ideia
de adição. Veja, por exemplo, o caso em (50).
(50) [Situação: Gabi já é uma bióloga de prestígio, tanto que está sendo entrevistada em um
programa de televisão.]

Entrevistador: Gabi, conte-nos um pouco de sua trajetória.


Gabi: Bem, eu sempre gostei de Biologia, desde os primeiros contatos na escola. Já no início do
ensino médio, havia decidido fazer vestibular para a graduação em ciências biológicas. Foi
quando descobri que grande parte da vanguarda no conhecimento biológico estava na França.
Entrevistador: E o que você fez então?
Gabi: Bem... Fiz o curso de francês e fiz o curso de graduação em Biologia.

Nosso interesse com esse diálogo está no último enunciado, parte do discurso de Gabi sobre sua
trajetória intelectual. Aqui, pela forma como o diálogo se desenrola, fica uma sugestão bastante
forte de que Gabi ingressou primeiro no curso de francês e depois no curso de graduação em
Biologia. Há, portanto, no último enunciado do diálogo, um sentido de ordenamento temporal
entre os acontecimentos que extrapola o sentido nuclear de simples adição. A ideia que passa é
a de que Gabi primeiro ingressou no curso de Francês e depois no curso de graduação em
Biologia.
Essa ideia de ordem temporal associada a certos enunciados compostos por mais de
uma oração unida com a conjunção “e” era motivo para que os formalistas, desejosos de uma
equivalência entre linguagem verbal e Lógica, considerassem as línguas humanas como
instrumentos imperfeitos para o pensamento. Haveria, segundo eles, uma certa imprecisão na
expressão de ideias pela linguagem verbal, ilustrada aqui através do reconhecimento do que
seria uma polissemia da conjunção “e”, prejudicial a sua adoção como forma de expressão do
pensamento científico. Já para os informalistas, exemplos como o que vimos em (50) seriam
uma demonstração de que a Lógica não serve como paradigma para compreender a linguagem
verbal. Grice discordou desses dois pontos de vista e apresentou uma alternativa de análise
muito interessante.
Grice reconheceu que, em alguns enunciados de orações unidas pela conjunção “e”, há
sentido de ordenamento temporal e que, em outros, esse sentido está ausente. Mas,
diferentemente do que supunham formalistas e informalistas, não atribuiu essa “instabilidade”
de sentido à semântica das línguas naturais (aqui, o português). Grice defendeu uma análise
segundo a qual o significado semântico da conjunção “e” das línguas humanas é análogo ao
significado do “&” lógico. Ou seja, semanticamente, um enunciado com a conjunção “e” veicula
a ideia de uma simples conjunção lógica, sem qualquer informação relativa à ordem temporal
dos acontecimentos expressos pelas orações individuais.
Mas de onde viria, então, a ideia de temporalidade associada a enunciados como o que
se vê em (50) e em tantos outros, como ilustram os exemplos a seguir?

(51) Zorro montou seu cavalo e rumou para oeste.


(52) Jonas caiu e quebrou a perna.

Quem lê (51) dificilmente vai pensar no herói Zorro rumando para o oeste e montando seu
cavalo apenas depois de chegar ao seu destino. A ideia aqui parece ser a de que Zorro tenha
montado em seu cavalo e apenas depois disso tenha rumado para a direção oeste. Além disso,
o enunciado nos leva a pensar que Zorro tenha usado o cavalo em que montou como meio de
locomoção para realizar sua jornada na direção do oeste. Em (52), pensamos em uma queda de
Jonas anterior à fratura de sua perna. Mais do que isso, tendemos a considerar a queda como
causa da fratura. Nenhuma dessas informações, para um formalista, é veiculada pela conjunção
“e”. Para Grice também não.
Grice defendeu a posição de acordo com a qual a semântica da conjunção “e” das línguas
naturais equivale à semântica da conjunção “&” das linguagens lógicas, ou seja, expressa apenas
as condições de verdade usuais, segundo as quais a conjunção é verdadeira apenas se os seus
conjuntos também forem verdadeiros, independentemente das relações de ordem temporal ou
de causa e consequência entre os acontecimentos expressos pelas orações que compõem o
enunciado. Os outros conteúdos, ou seja, as ideias de ordenamento temporal e de causalidade,
seriam sentidos pragmáticos que se acrescentam ao sentido semântico mais elementar da
conjunção lógica.
Mas Grice sabia que o simples reconhecimento de sentidos acrescentados constituía
apenas uma descrição dos fatos, não uma explicação. A mera suposição de que ideias como
ordenamento de acontecimentos e causalidade entre acontecimentos constituem sentidos
pragmáticos (e não semânticos), sem qualquer qualificação, seria uma saída fácil, mas pouco
esclarecedora, com um valor teórico muito limitado. Era necessário, portanto, explicar o
processo que origina os outros sentidos identificados, que extrapolam o sentido semântico da
conjunção “e”. Era necessário explicitar o mecanismo pragmático responsável pela produção
dessas ideias associadas à conjunção “&”.
É na solução encontrada para o tipo de problema posto pelo significado total de
conjunções que reside a genialidade de Grice. Grice percebeu que, para além da lógica
tradicional associada ao significado semântico das palavras e construções, há um outro tipo de
lógica que preside a conversação. Há uma racionalidade comunicativa, que se expressa através
de um conjunto de estratégias de compreensão responsáveis por uma certa amplificação dos
sentidos semânticos associados às sentenças proferidas pelos falantes. A partir de agora, vamos
compreender que estratégias são essas, bem como a natureza da lógica conversacional que
subjaz a adoção dessas estratégias. Como estamos discutindo um caso particular, vamos
prosseguir abordando-o apenas para dar uma ideia inicial da abordagem griceana. Depois de
apresentar uma forma griceana de explicar a produção de sentidos da conjunção “e”, vamos
abordar muitos outros fenômenos que podem ser tratados adotando a mesma perspectiva mais
geral.
Para compreender a solução griceana, vamos reproduzir os enunciados vistos
anteriormente.

(53) Se você concluiu um curso de francês e concluiu a graduação em Biologia, pode concorrer
a uma bolsa na França.

(54) Fiz o curso de francês e fiz o curso de graduação em Biologia.

Como vimos antes, o enunciado (53) não sugere a necessidade de qualquer ordenamento
temporal entre a conclusão do curso de francês e a conclusão do curso de graduação em
biologia. O mesmo não acontece em (54), que, no contexto do diálogo (50), sugere que Gabi
ingressou no curso de francês antes de ingressar no curso de graduação em Biologia. Para
compreender a diferença, é importante perceber que, ao proferir o enunciado (54), Gabi está
expondo sua trajetória acadêmica, comprometida, portanto, com uma narração de fatos de sua
vida. Quando narramos fatos, procuramos nos referir a eles na ordem em que aconteceram, o
que facilita substancialmente a compreensão dos acontecimentos. Existe, portanto, um modo
de narrar mais fácil de compreender, aquele em que os fatos narrados são apresentados na
ordem em que aconteceram. E parece lógico que seja assim, parece que esse modo de organizar
os conteúdos nos enunciados obedece a uma racionalidade comunicativa.
De acordo com Grice, então, o significado semântico da conjunção “e” é o mesmo do
“&” lógico. Quando a conjunção “e” une orações de uma sequência narrativa, a esse significado
semântico soma-se um significado pragmático relativo à ordem dos acontecimentos que
espelha a ordem de apresentação dos conteúdos na cadeia linear da frase. Essa seria uma entre
outras tantas estratégias interpretativas que os usuários das línguas usam para se comunicarem
de modo eficiente. Grice chamou essas estratégias de interpretação de Máximas
Conversacionais. As máximas griceanas nada mais são que heurísticas úteis para “decifrar” os
conteúdos veiculados por um enunciado linguístico. Uma dessas máximas identificadas pelo
filósofo é a Máxima do Modo. O nome dessa máxima decorre da compreensão de que os
significados que dela dependem são consequência das opções que o falante faz relativamente
ao modo como está organizado o conteúdo do enunciado. A máxima do modo, apresentada a
seguir, contém quatro submáximas.

Máxima do Modo
1. Evite a obscuridade de expressão.
2. Evite a ambiguidade.
3. Seja breve (evite prolixidade desnecessária).
4. Seja ordenado.
No caso do sentido de ordenamento temporal frequentemente associado a enunciados
com a conjunção “e”, é a quarta submáxima da Máxima do Modo que está em ação. De acordo
com essa submáxima, quando a ordem dos acontecimentos é relevante para a compreensão (o
que acontece nos discursos narrativos), eles devem ser expressos linguisticamente na ordem em
que ocorreram. Sendo assim, acontecimentos de uma sequência narrativa unidos pela
conjunção “e”, ou até mesmo divididos em enunciados distintos, são interpretados, no que diz
respeito ao seu ordenamento temporal, com base na ordem em que são dispostos
linguisticamente.

(55) Ana foi ao supermercado, comprou uma tequila e bebeu com os amigos.

Um enunciado como (55) sugere uma ordem entre os acontecimentos referidos.


Ninguém, depois de ler (55), imaginaria Ana bebendo com os amigos antes de ir ao
supermercado, comprando uma tequila antes de ir ao supermercado ou bebendo com os amigos
antes de comprar a tequila. É claro que o fato de tequilas serem vendidas em supermercados
favorece a interpretação de que a sua aquisição ocorreu em decorrência da ida ao
supermercado. Também é verdade que o fato de tequila ser um líquido favorece a interpretação
de tenha sido o líquido ingerido por Ana e seus amigos, o que, por sua vez, favorece a
interpretação de que a tequila foi comprada antes da reunião com os amigos. Mas nada disso é
suficiente para evitar que enunciados como (56), (57) e (58), por exemplo, tenha, no que diz
respeito à ordem dos acontecimentos, uma interpretação distinta.

(56) Ana comprou uma tequila, bebeu com os amigos e foi ao supermercado.
(57) Ana bebeu com os amigos, foi ao supermercado e comprou uma tequila.
(58) Ana bebeu com os amigos, comprou uma tequila e foi ao supermercado.

O que a interpretação destes enunciados sugere é que, independentemente das


relações mais ou menos estereotipadas entre supermercados e produtos e entre tipos de
produtos e seu consumo pelas pessoas, em enunciados que integram sequências narrativas, a
ordem linear de apresentação dos acontecimentos tem consequências para a interpretação da
ordem temporal em que ocorreram esses acontecimentos. Mas, note, essa interpretação
relativa à ordem temporal dos acontecimentos nada tem a ver com a conjunção “e”. O que
motiva a interpretação de ordenamento temporal é uma regra interpretativa, aquela expressa
na quarta submáxima do modo. Trata-se, sem dúvida, de uma regra muito útil aos participantes
das trocas conversacionais, já que constitui uma forma de diminuir o esforço necessário para
compreender o que os falantes querem dizer com seus enunciados.
Com essa solução (o reconhecimento de máximas), Grice assume que a semântica da
conjunção “e” é sempre a mesma (análoga à semântica do “&” da Lógica), independentemente
do enunciado em que ocorra. Nos enunciados que integram sequências narrativas, soma-se ao
significado mais básico (semântico) dessa conjunção um significado pragmático (de ordem
temporal ou até mesmo de causalidade). Esse significado pragmático não decorre do uso da
conjunção “e”, mas sim da ordem linear de apresentação dos acontecimentos escolhida pelo
falante, tanto que a mesma ordem vai existir em sequências sem essa conjunção.

(59a) Caio foi morar na França. Casou-se com uma francesa.


(59b) Caio casou-se com uma francesa. Foi morar na França.

Nos enunciados acima, não há conjunções. O que indica a ordem dos acontecimentos é a sua
ordem de apresentação.
Com esse tipo de explicação, Grice logrou manter uma semântica estável e unívoca para
a conjunção “e”, demonstrando que certos significados (relativos a ordenamento temporal e
relações de causalidade) decorrem da ação de princípios mais gerais de interpretação, que não
estão restritos ao uso dessa conjunção. Grice chamou esses princípios de máximas
conversacionais porque são procedimentos interpretativos que auxiliam a interpretação
durante as conversas entre as pessoas. Além disso, percebeu que os significados resultantes da
ação desses princípios interpretativos são inferências, mas de um tipo diferente dos
acarretamentos (as inferências que decorrem das regras de interpretação semânticas). Essas
ideias de ordenamento temporal e causa decorrentes da ordem de apresentação dos estímulos
linguísticos na frase são inferências conversacionais porque decorrem de princípios
interpretativos que facilitam a compreensão nas trocas conversacionais. Para diferenciar esse
tipo de inferência das implicações lógicas (as inferências semânticas), Grice cunhou o termo
implicatura conversacional. As implicaturas conversacionais são inferências pragmáticas
decorrentes da ação de princípios interpretativos gerais, que orientam a compreensão dos
enunciados linguísticos, amplificando o conteúdo semântico da sentença proferida. É
importante registrar que esse modo de explicar os fatos garante o lugar para uma semântica de
fundamentação lógica nos estudos linguísticos, ou seja, um lugar para uma semântica das
condições de verdade, mas acrescenta um nível de análise adicional, o nível pragmático,
responsável pela explicação da produção de uma série de sentidos com que o nível semântico
de análise não seria capaz de lidar.

3.2.3 O modelo de análise griceano

3.2.3.1 O Princípio da Cooperação

Não é apenas nos enunciados com a conjunção “e” que sentidos são acrescentados a
enunciados. Se nos detivermos com maior atenção sobre os enunciados linguísticos com que
nos deparamos no exercício da comunicação através de uma língua, vamos perceber que grande
parte do que interpretamos como decorrência do uso desses enunciados não está literalmente
expresso na sentença utilizada, de modo que essa fatia adicional de sentido não pode ser
considerada como resultado de interpretação semântica. Grice elaborou um modelo de análise
com a pretensão de explicar o modo de produção dessa densa camada de sentidos que
extrapolam a interpretação semântica, indo muito além dos significados relativos a
ordenamento temporal e causalidade associados a enunciados coma conjunção “e”. A Teoria
das Implicaturas, proposta por Grice, é o modelo de análise da produção de significados
pragmáticos que vamos começar a considerar a parti deste ponto.
O ponto de partida da Teoria das Implicaturas é um princípio comunicacional geral que,
de acordo com Grice, subjaz a toda forma de comunicação. Grice chamou-o de Princípio da
Cooperação.

Princípio da Cooperação
Faça sua contribuição conversacional tal como é requerido, no estágio em que ocorre, pela
direção ou propósito da troca em que está engajado.

O que um tal princípio reconhece é que, quando participamos de uma troca conversacional,
assumimos uma postura colaborativa. Ou seja, tendemos a colaborar para que haja
compreensão mútua e continuidade na comunicação, razão pela qual procuramos agir do modo
requerido pelos propósitos da conversa. Um interlocutor que participe de uma conversa com
enunciados absolutamente irrelevantes para o tópico em curso será tomado como não
cooperativo. Sua falta de cooperação impedirá que se perceba o sentido de seus proferimentos,
como se observa em (60).

(60) Dênis: Alguém sabe a data limite de entrega do trabalho de Geografia?


Fernanda: Eu faltei à aula em que o professor deu o aviso.
Carlos: As tortas de morango são as melhores.

Em (60), o proferimento de Fernanda, mesmo não sendo uma resposta capaz de


satisfazer a dúvida de Dênis, faz sentido por estar de acordo com os propósitos estabelecidos
pela pergunta. Já a fala de Carlos não faz sentido, justamente por não estar ajustada a esses
propósitos, sendo tomada, portanto, como uma recusa em cooperar com o desenvolvimento do
tema inicialmente proposto. O máximo que se pode depreender do proferimento de Carlos é
uma manifestação de desejo de mudar de assunto. Isso até pode acontecer, mas essa não é a
regra: podemos, eventualmente, manifestar o desejo de mudar de assunto, mas apenas como
um recurso extraordinário, do qual não podemos abusar sem o risco de prejudicar a efetiva
comunicação entre interlocutores.
O Princípio de Cooperação proposto por Grice constitui uma orientação geral, que
parecemos seguir de bom grado em nome da comunicação efetiva, mas insuficiente ainda como
recurso teórico para explicar os sentidos particulares que (logo vamos ver) se acrescentam ao
sentido semântico de sentenças proferidas. Grice percebeu que, tendo aderido ao Princípio da
Cooperação, os interlocutores em uma conversa ainda precisariam valer-se de recursos
interpretativos (como a Máxima do Modo, que já vimos) mais específicos para derivar todos os
sentidos particulares produzidos nas situações de comunicação. Como já vimos, Grice chamou
esses recursos de máximas conversacionais.
As máximas conversacionais propostas por Grice são como regras (de interpretação) que
parecemos seguir quando interpretamos os proferimentos de nossos interlocutores. Mas qual
seria a natureza dessas regras? São regras que precisamos aprender formalmente (na escola,
por exemplo) para sermos capazes de interpretar os enunciados linguísticos? Não. Grice deixa
muito claro que não se trata de regras estipuladas, ou seja, regras que devem ser seguidas por
alguma imposição. Ao contrário, são regras que seguimos intuitivamente por resultarem de uma
racionalidade comunicativa. As máximas conversacionais não precisam ser aprendidas
formalmente porque a própria dinâmica da conversação trata de revelar a sua utilidade prática
para a comunicação. Em outras palavras, em função de nossa racionalidade (nossa e de nossos
interlocutores) e de nossos objetivos comunicacionais, vamos nos tornando proficientes não
apenas em relação ao domínio das estruturas gramaticais das sentenças de uma língua, mas
também em relação ao domínio de estratégias comunicacionais capazes de otimizar o
intercâmbio simbólico representado pelo uso efetivo da linguagem verbal.
Já vimos antes como essa racionalidade comunicativa justifica o reconhecimento da
Máxima do Modo, mais especificamente da submáxima Seja Ordenado. Quando contamos uma
história, representamos para os nossos interlocutores uma série de acontecimentos que
ocorreram em uma certa ordem temporal. Não faria sentido apresentar os acontecimentos em
uma ordem distinta daquela em que aconteceram, deixando ao ouvinte a tarefa inglória de
colocar as coisas na ordem certa. A submáxima Seja Ordenado, então, é uma regra que vale a
pena seguir porque ela diminui substancialmente o esforço dos ouvintes na execução da tarefa
de interpretar um conjunto de enunciados em uma sequência narrativa. Além disso, ela reduz
brutalmente a possibilidade de ocorrência de equívocos. Imagine a quantidade de mal
entendidos que ocorreriam se os falantes contassem suas histórias sem qualquer preocupação
em respeitar narrativamente a ordem dos acontecimentos.
E isso não parece racional? Claro que sim! Diminuir as possibilidades de equívocos e
facilitar a compreensão do interlocutor são objetivos fundamentais se queremos garantir uma
comunicação eficiente. É por essa razão que Grice considera suas máximas e submáximas a
expressão de uma racionalidade comunicativa. Pois é a esse tipo de racionalidade que o filósofo
quis dar expressão com o reconhecimento das máximas conversacionais. Como as máximas são
regras que decorrem da razão e como já nascemos racionais, não são regras que precisam ser
ensinadas. As crianças crescem participando de interações que respeitam essas regras, aderindo
a elas sem questioná-las.
Tendo refletido sobre a natureza das máximas, é chegado o momento de abordá-las
com exemplos. Grice propôs 4 máximas conversacionais, a maioria delas divididas em
submáximas. Cada uma dessas submáximas cumpre uma função interpretativa. Grice tratou de
verificar sentidos que enunciados, em seu proferimento, acrescentam ao sentido literal da
sentença proferida e procurou explicar a produção desses sentidos a partir da ação de máximas
conversacionais (em alguns casos, mais de uma máxima entra em ação). Vamos começar a
explorar sua proposta com a Máxima da Qualidade, que tem um estatuto especial entre as
Máximas.

3.2.3.2 A Máxima da Qualidade

Quando estudamos Semântica, vimos que as sentenças de uma língua podem ser
verdadeiras ou falsas. Um pouco depois, quando começamos a estudar Pragmática,
acrescentamos ao conceito de sentença os conceitos de enunciado e proposição. Foi quando
aprofundamos um pouco nossa reflexão para constatar que é o proferimento de uma sentença
que, em última instância, produz uma proposição, que pode ser verdadeira ou falsa. Sendo assim
uma sentença como (61), que faz parte das sentenças gramaticais da língua portuguesa, pode
ser proferida por qualquer falante para expressar uma proposição.

(61) O cachorro está no pátio.

Vista como uma sentença, (61) expressa um conteúdo perfeitamente compreensível para um
falante de língua portuguesa. Qualquer um que saiba português sabe o significado de (61) e, por
isso, pode fazer uso dessa sentença para seus objetivos comunicativos. Como (61) pode ser
usada por qualquer falante nas situações necessárias, ela pode converter-se em um enunciado.
Quando isso corre, ou seja, quando alguém usa (61) numa situação específica de comunicação,
expressa uma proposição. A proposição específica que é produzida pelo proferimento de (61)
depende crucialmente das circunstâncias de sua enunciação. Se (61) tiver sido proferida por
Ângelo, o tutor do cachorro Sansão, em sua casa, então tudo indica que o cachorro Sansão está
no pátio da casa de Ângelo. Já se tiver sido proferida por Carolina, a tutora do cachorro Golias,
em sua casa, então tudo indica que o cachorro Golias está no pátio da casa de Carolina.
Agora vamos supor uma cena em que Adriana, a irmã de Carolina, a tutora do cachorro
Golias, está andando pela casa com produtos para dar banho em cachorros. Vendo que Adriana
percorre a casa com os produtos de dar banho em cachorro, Carolina conclui que sua irmã está
procurando Golias para dar um banho nele. Querendo colaborar com Adriana, Carolina profere
a sentença (61). Bem, sabemos que, com essa sentença, Carolina está se referindo a Golias e ao
pátio da casa em que se encontram. Com o proferimento de (61), Carolina trata de transmitir
uma informação útil à sua irmã, que está em busca de Golias. Ao ouvir (61), Adriana, por confiar
na informação prestada por Carolina, dirige-se ao pátio diretamente para encontrar Golias a fim
de levá-lo ao banho. Não se pode negar que, com seu enunciado, Carolina colaborou para que
Adriana atingisse seu objetivo, encontrar Golias, realizando menor esforço do que seria
necessário para procurá-lo em todas as partes da casa.
Bem, você acaba de ser colocado diante de uma cena corriqueira, em que um enunciado
é proferido por um falante com o objetivo de colaborar com o ouvinte. Esse é um uso
colaborativo da linguagem verbal com o qual estamos tão acostumados que não chegamos nem
mesmo a nos questionar o que é necessário para que esse tipo de colaboração verbal seja
efetiva. Carolina percebe que sua irmã, por estar à procura do cachorro da casa, não sabe onde
está esse cachorro; Carolina sabe que o cachorro está no pátio; Carolina sabe que essa
informação tem algum valor para Adriana e decide compartilhá-la através da linguagem (para
colaborar com Adriana); Adriana, por confiar na irmã, passa a acreditar que o cachorro da casa
está no pátio e dirige-se até lá convicta de que o irá encontrar.
Bem, nesse quadro que acaba de ser revelado, o enunciado (61) funciona como premissa
para a decisão prática que Adriana toma de ir até o pátio em busca de Golias. Se chegamos a
tomar algum conteúdo como premissa para algo (uma conclusão ou uma decisão prática), é
porque acreditamos que esse conteúdo seja a expressão de uma verdade. Nunca vamos,
evidentemente, tomar atitudes ou formular conclusões a partir de conteúdos que consideramos
falsos; seria um caminho sem volta para o insucesso de qualquer pretensão que pudéssemos
ter. Ou seja, ao decidir ir ao pátio em busca de Golias, Adriana aceita como verdadeira a premissa
de que Golias está no pátio. Não faria sentido ela ir ao pátio procurar por Golias se considerasse
falsa a proposição expressa pelo proferimento de (61) por sua irmã. Mas como Adriana
considera o proferimento de (61) a expressão de uma verdade, sente-se segura por optar por
dar continuidade a sua busca por Golias indo diretamente ao pátio e desconsiderando todos os
demais cômodos da casa.
Mas só um pouco... Por que Adriana precisa aceitar como verdadeira a proposição
produzida pelo proferimento de (61) por parte de sua irmã? Ela poderia desconfiar da própria
irmã. É verdade. Algumas vezes, desconfiamos que nossos interlocutores estejam
deliberadamente realizando afirmações que não consideram verdadeiras. Poderia ser, por
exemplo, que Carolina se solidarizasse com Golias, que odeia tomar banho, e estivesse mentindo
para a irmã, tentando levá-la a procurar o cachorro nos lugares errados. Essa é uma
possibilidade. Mas note que é uma possibilidade que obrigaria Adriana a identificar motivos que
justificassem de modo razoável alguma desconfiança em relação à própria irmã. Geralmente,
nossas desconfianças em relação à falta de compromisso com a verdade por parte de nossos
interlocutores resultam de processos inferenciais que nos levam a concluir pela falsidade da
proposição produzida pelo seu proferimento.
O fato é que, mesmo que possamos, vez ou outra, desconfiar da verdade de algum
proferimento por parte de alguém, nossa tendência é considerar a grande maioria dos
proferimentos dos outros como expressão de sua crença na verdade. Mesmo havendo casos em
que desconfiamos do compromisso de nosso interlocutor com a verdade de determinada
afirmação, como no exemplo acima, nossa tendência é considerar um conjunto muito restrito
de enunciados como falsos. No caso imaginado acima, o fato de Adriana desconfiar que sua irmã
mente para proteger o cachorro do pavoroso banho semanal não macula de modo absoluto sua
confiança nela. Minutos depois, Adriana pode rir-se da tentativa frustrada de sua irmã de
proteger Golias do banho e, mesmo assim, seguir conversando com ela com a convicção de que
os demais conteúdos veiculados por seus enunciados são expressão genuína de suas crenças. Se
uma mentirinha minasse a confiança que temos nas pessoas, todas as relações seriam
inviabilizadas. O fato é que a própria vida em coletividade e a necessidade que temos de
colaborar uns com os outros nos impele a sermos verdadeiros na maior parte das vezes e a
considerarmos que o mesmo ocorre em relação aos nossos interlocutores. Afinal, a mentira é a
exceção que só pode ser eventualmente identificada por estar rodeada por uma quantidade
impressionante de verdades1. É por essa (e por muitas outras) razões que Grice identifica a
Máxima da Qualidade, que, como veremos mais adiante, cumpre um papel importante na
produção de inferências pragmáticas.

Máxima da Qualidade
Tente fazer sua contribuição verdadeira.

Submáxima 1: Não diga o que acredita ser falso.


Submáxima 2: Não diga algo de que você não tem evidência adequada.

De acordo com as duas submáximas, há dois tipos de situação nos quais estaremos
desrespeitando o que a máxima exige. Para compreender melhor, vamos preliminarmente
pensar no que constitui nosso universo de crenças. Bem, temos uma série de crenças positivas,
conteúdos que tomamos como verdadeiros. Não vamos aqui discutir os modos como formamos
nossas crenças. Acreditamos num conjunto astronômico de proposições, e os mecanismos
responsáveis pelo grau de certeza que temos em relação a essas crenças é estudado pela área
da filosofia chamada de epistemologia. O fato é que nossas crenças vão das experiências mais
particulares, como a crença de que um tio querido nos deu um presente inesquecível no
aniversário de 15 anos, às compartilhadas em função de práticas sociais (no ensino, por
exemplo), como a crença de que o Brasil foi descoberto em 1500 pelos portugueses. A primeira
submáxima da qualidade diz respeito a essas crenças. Segundo essa primeira submáxima, não
devemos expressar o que acreditamos ser falso, ou seja, não devemos proferir enunciados que
sejam contraditórios com nossas crenças positivas.
Há, no entanto, um segundo tipo de violação à Máxima da Qualidade. Há uma série de
conteúdos sobre os quais ainda não temos crença formada. Se alguém perguntar a você se, no
instante em que lê estas linhas de texto, está chovendo em Tóquio, você provavelmente não
será capaz de responder. Isso porque você é agnóstico em relação a esse conteúdo. Sendo assim,
mesmo que você quisesse, não poderia cooperar com quem fez a pergunta. Isso pelo simples
fato de não ter qualquer crença em relação ao clima em Tóquio neste momento. Se você
respondesse que está chovendo em Tóquio, estaria infringindo a segunda submáxima de
qualidade. As duas submáximas de qualidade poderiam ser reunidas em uma só recomendação:

1
Se a quantidade de enunciados falsos de um falante qualquer for parecida com a quantidade de
enunciados verdadeiros, será impossível desconfiar do que é de fato falso. Não vamos explorar uma tal
possibilidade aqui, mas é inquestionável que um tal falante não poderia existir, tendo em vista o fato de
que boa parte dos conteúdos veiculados é resultado de inferências. Como as inferências (lógicas ou não
lógicas) dependem da confiança nas premissas, um falante que falasse verdades e falsidades
aleatoriamente não poderia participar de qualquer comunicação inferencial, o que representaria a
aniquilação de sua capacidade de se comunicar.
não diga aquilo que você não acredita ser verdadeiro (por considerar falso ou por não saber se
é verdadeiro o falso).
Bem, mesmo que você já esteja convencido, pelos argumentos expostos, da
conveniência de uma adesão cega à Máxima da Qualidade, talvez esteja se perguntando que
sentidos pragmáticos essa regra de interpretação permite derivar. Embora nossa compreensão
em relação ao alcance dessa máxima só vá completar-se quando a considerarmos em conjunto
com outras máximas, já podemos, antes disso, reconhecer o papel da Máxima da Qualidade na
geração de certas implicaturas. Para compreender o modo como a Máxima da Qualidade
colabora com a produção de um conjunto bastante interessante de inferências pragmáticas, no
entanto, precisamos compreender um outro ponto do modelo griceano: a distinção entre
respeito e exploração de uma máxima.
Quando assumimos que uma máxima conversacional é uma regra que vale a pena seguir
para que a comunicação ocorra de modo eficiente, parece que estamos assumindo também que
é uma regra que, se não for respeitada, vai gerar incompreensão. As coisas não funcionam
exatamente assim no modelo griceano de análise. Nesse modelo, uma máxima pode ser
desrespeitada. Isso pode acontecer em alguns tipos de situação. Vamos, aqui, explorar dois
desses tipos apenas. Uma máxima pode ser desrespeitada porque é necessário respeitar outra
máxima. São casos em que o respeito a uma máxima acarreta o desrespeito a outra. Nesses
casos, vence a máxima mais importante. Não é isso que ocorre quando há desrespeito à Máxima
da Qualidade, porque essa é a máxima mais importante, que não pode “perder” na disputa com
nenhuma outra (vamos ver casos de disputa mais adiante). Há, contudo, a possibilidade de
desrespeitar uma máxima apenas superficialmente, de modo que, para além da superfície, se
reconheça que houve, de fato, respeito. É nessa categoria que entra o desrespeito à Máxima da
Qualidade, que vamos identificar no diálogo a seguir.

(62) Clara: Álvaro, não sabia que você tinha se atrasado hoje.
Álvaro: Quase ninguém sabia. Nem o chefe. Mas o Lucas viu e contou pra ele.
Clara: Nossa, que sacanagem! Logo agora que, com a redução de recitas, eles precisam
escolher alguém pra demitir.
Álvaro: Pois é... Lucas é um grande amigo.

Aqui interessa-nos o último enunciado do diálogo. Se tomarmos ao pé da letra a Primeira


Submáxima da Qualidade, somos obrigados a considerar que Álvaro a desrespeitou. Afinal,
tendo sido prejudicado por Lucas, está claro que não pode considerá-lo um grande amigo. Não
resta dúvida de que, com último enunciado do diálogo (62), Álvaro veicula um conteúdo que
considera falso. E mais, ao que tudo indica, considerando o conteúdo dos enunciados
precedentes, não apenas Álvaro, mas qualquer um dos participantes dessa conversa considerará
falso o enunciado final. Como conciliar esse fato com a proposta de uma máxima que estabelece
que interlocutores devem veicular apenas enunciados que expressem conteúdos em que
acreditam?
A resposta está na própria Máxima da Qualidade considerada no contexto da conversa
(62). A troca que se estabelece com os três primeiros enunciados de (62) evidencia de modo
cristalino que Lucas não é amigo de Álvaro. É justamente por isso que se deve admitir como
evidente a falsidade do último enunciado. Ora, a Máxima da Qualidade não admite enunciados
falsos. Para respeitar essa máxima, então, a única alternativa que resta aos intérpretes do
enunciado é retificá-lo, é considerar que ele veicula a ideia oposta à que, na superfície, veicula:
a de que o Lucas é um grande inimigo. Estamos aqui diante de um caso muito evidente de uma
asserção irônica, uma asserção que deve ser compreendida como veiculando o oposto do que
pensa seu enunciador. A interpretação do enunciado como uma ironia reestabelece a validade
da Máxima da Qualidade, que foi desrespeitada em um nível superficial, mas respeitada em um
nível mais profundo, no qual surge a interpretação irônica. Com seu enunciado, Álvaro quer
dizer que Lucas é um grande inimigo. Essa é uma implicatura que decorre do desrespeito
aparente da Máxima da Qualidade.
Grice entendeu que esse desrespeito aparente à Máxima da Qualidade está na base da
interpretação de uma série de figuras de linguagem, como a metáfora, a metonímia e a
hipérbole, ilustradas nos diálogos a seguir.
(63) A: O Luiz veio à reunião.
B: Não.
A: Sério?! E o que ele alegou?
B: Ah... Deu mil desculpas.

(64) A: O Dênis não gostou que a gente mudou o lugar da mesa dele?
B: Não gostou?! Ele virou uma onça!

(65) A: Afinal, o Dinho gostou do almoço.


C: Claro! Comeu três pratos.

Todos os enunciados sublinhados acima expressam falsidades evidentes. Ninguém


conseguiria inventar mil desculpas para a ausência em uma reunião, e, mesmo que conseguisse,
dificilmente teria a abertura de seu interlocutor para apresentá-las. Do mesmo modo, é
impossível que alguém se transforme em uma onça, pelo menos fora das histórias fantásticas
da Literatura. E ninguém come pratos, mas sim o conteúdo que neles se coloca em refeições.
Enfim, todas essas figuras de linguagem partem da enunciação de falsidades evidentes, que
precisam ser retificadas por conteúdos verdadeiros para que, num nível mais profundo, a
Máxima da Qualidade seja respeitada.

3.2.3.3 Uma pausa necessária: o conceito de common ground

Quando leu o diálogo (62) acima, você deve ter notado que só pode interpretar o último
enunciado como irônico porque leu os enunciados precedentes. Se você não soubesse que o
Lucas denunciou o atraso do colega em um momento em que podem ocorrer demissões na
empresa, não teria como saber que, com o enunciado “Lucas é um grande amigo”, Álvaro quis
dizer o oposto, que Lucas não é seu amigo coisa nenhuma. Ou seja, a ironia só pode ser
percebida porque, no momento em que o enunciado que a veicula é proferido, já está claro para
os interlocutores que Lucas não é amigo de Álvaro. No momento do proferimento do último
enunciado, todos os interlocutores da conversa já (Álvaro e Clara) já compartilham a crença de
que Lucas não é amigo de Álvaro. Quando temos uma mesma crença que nossos interlocutores
e, além disso, temos consciência de que compartilhamos essa crença, dizemos que o conteúdo
que é objeto dessa crença faz parte do common ground dos interlocutores.
O common ground entre dois ou mais interlocutores, então, é o conjunto de conteúdos
que esses interlocutores consideram verdadeiros (ou provavelmente verdadeiros) e que
consideram compartilhados (ou seja, que consideram como abertamente sustentados por todos
os interlocutores). O tamanho do common ground entre dois interlocutores varia em função de
sua história interacional. O common ground de duas pessoas que estão se conhecendo tende a
ser bem menor que o de duas pessoas já com algum convívio. Mas mesmo no caso de pessoas
que estão se conhecendo o common ground pode ser bastante robusto. Afinal, certas
suposições socialmente compartilhadas costumam existir antes mesmo de conhecermos as
pessoas (como, por exemplo, suposições sobre o funcionamento de estruturas da sociedade em
que vivemos). Além disso, elementos capturados nas próprias circunstâncias dos contatos
humanos, como os dados que chegam através dos sentidos (visão, audição, olfato) e as
suposições que esses dados permitem realizar constituem elementos de conteúdo que, por
estarem evidentes para todos os participantes de uma conversa, integram o common ground.
Á medida que avançamos na compreensão das máximas griceanas, veremos que não é
apenas na interpretação de enunciados irônicos que a identificação dos conteúdos pertencentes
ao common ground tem um papel importante. Além das implicaturas decorrentes da ação da
máxima da qualidade, muitas outras inferências pragmáticas dependem crucialmente da
identificação, por parte do intérprete, de conteúdos pertencentes ao common ground.

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