Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Rudolf Carnap
1. Introdução
Muitos têm sido, dos céticos gregos aos empiristas do século 19, os oponentes da
metafísica. Críticas de diversos tipos têm sido apresentadas. Muitos declararam
que a doutrina da metafísica é falsa, pois contradiz nosso conhecimento empírico.
Outros acreditam que ela é incerta, sob a alegação de que seus problemas
transcendem os limites do conhecimento humano. Muitos anti-metafísicos têm
afirmado que a ocupação com as questões metafísicas é estéril. Se estas
questões podem ser respondidas ou não, é desnecessário de qualquer modo nos
aborrecermos com elas; devotemo-nos inteiramente às tarefas práticas que os
homens laboriosos enfrentam diariamente por toda sua vida!
O desenvolvimento da lógica moderna tornou possível dar uma nova e mais
nítida resposta à questão da validade e justificação da metafísica. As pesquisas da
lógica aplicada ou da teoria do conhecimento, que têm por objetivo tornar claro o
conteúdo cognitivo dos enunciados científicos e, desta forma, tornar claro o
significado dos termos que ocorrem nestes enunciados conduziram, por meio da
análise lógica, a um resultado positivo e um resultado negativo. O resultado
positivo alcançado está no domínio da ciência empírica; os vários conceitos de
vários ramos da ciência tornam-se límpidos; suas conexões lógico-formais e
epistemológicas são explicitadas. No domínio da metafísica, incluindo toda
filosofia do valor e teoria normativa, a análise lógica implica o resultado negativo
de que todos alegados enunciados neste domínio são inteiramente sem
significado. Com isso, se obtém uma eliminação radical da metafísica, o que não
era possível a partir dos antigos pontos de vista anti-metafísicos. É verdade que
idéias relacionadas podiam ser encontradas em diversas linhas teóricas, por
exemplo, aquelas de um tipo nominalístico; mas é só agora, com o fornecimento
de uma ferramenta suficientemente afiada pelo desenvolvimento da lógica durante
recentes décadas, que o passo decisivo pode ser dado.
Ao afirmar que os assim chamados enunciados da metafísica são sem
significado, compreendemos esta palavra no seu sentido estrito. Num sentido livre
da palavra, um enunciado ou uma questão é por vezes chamado sem significado
se é inteiramente estéril afirmá-lo ou questioná-la. Podemos dizer isto, por
exemplo, para a questão “qual é o peso médio dos habitantes de Viena cujo
número de telefone termina com „3‟?” ou acerca de um enunciado que é
obviamente falso como “em 1910 Viena tinha seis habitantes” ou acerca de um
enunciado que não é apenas falso empiricamente, mas também logicamente,
como um enunciado contraditório tal como “as pessoas A e B são, cada uma
delas, um ano mais velha uma do que a outra”. Tais sentenças são realmente
significativas, embora sejam desinteressantes ou falsas; pois são apenas
sentenças significativas que são divisíveis em (teoricamente) proveitosas e
1
Este artigo, originalmente intitulado “Überwindung der Metaphysik dursch Logische Analyse der
Sprache”, apareceu em Erkenntnis, Vol. II (1932). Está publicado aqui com a gentil permissão do
Professor Carnap.
estéreis, verdadeiras e falsas. No sentido estrito, contudo, uma seqüência de
palavras é sem significado se ela não constitui, dentro de uma linguagem
específica, um enunciado. Pode ocorrer que uma tal seqüência de palavras se
assemelhe, à primeira vista, com um enunciado; neste caso a denominaremos de
pseudo-enunciado. Nossa tese, agora, é de que a análise lógica revela que os
alegados enunciados da metafísica são pseudo-enunciados.
Uma linguagem consiste de um vocabulário e uma sintaxe, isto é, um
conjunto de palavras que têm significados e regras para formação de sentenças.
Estas regras indicam como sentenças podem ser formadas com vários tipos de
palavras. Desta forma, existem dois tipos de pseudo-enunicados: ou eles contêm
uma palavra que erroneamente acreditamos que possua um significado, ou as
palavras constituintes são significativas mas estão colocadas de forma contra-
sintática, de modo que elas não produzem um enunciado significativo.
Mostraremos, por meio de exemplos, que ambos tipos de pseudo-enunciados
ocorrem na metafísica. Depois mostraremos que devemos investigar as razões
que sustentam nossa contenda de que a metafísica, em sua totalidade, consiste
de tais pseudo-enunciados.
2
Para uma concepção lógica e epistemológica que subjaz nossa exposição, mas pode apenas
resumidamente ser sugerida aqui, cf. Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 1922, e
3. Palavras Metafísicas sem Significado
Muitas palavras da metafísica, agora, podem ser exibidas como não preenchendo
a exigência acima, e portanto como sendo destituídas de significado.
Tomemos como um exemplo o termo metafísico “princípio” (no sentido do
princípio do ser, e não princípio do conhecimento ou axioma). Diversos
metafísicos oferecem uma resposta à questão de qual é o (mais alto) “princípio do
mundo” (ou das “coisas”, da “existência”, do “ser”), por exemplo a água, o número,
a forma, o movimento, a vida, o espírito, a idéia, o inconsciente, a atividade, o bom
etc. A fim de se descobrir o significado da palavra “princípio” nesta questão
metafísica, devemos perguntar ao metafísico sob quais condições um enunciado
da forma “x é o princípio de y” seria verdadeiro e sob quais condições seria falso.
Em outras palavras: devemos perguntar pelo critério de aplicação ou pela
definição da palavra “princípio”. O metafísico replica mais ou menos assim: “x é o
princípio de y” significa “y se origina de x”, “o ser de y reside no ser de x”, “y existe
em função de x” etc. Mas estas palavras são ambíguas e vagas. Freqüentemente
elas têm um significado claro; por exemplo, dizemos de uma coisa ou processo y
que ele “se origina de” x quando observamos que as coisas ou processos do tipo x
são em geral ou invariavelmente seguidas pelas coisas ou processos do tipo y
(conexão causal no sentido de sucessão por leis). Mas o metafísico afirma-nos
que ele não entende esta relação como empiricamente observável. Pois neste
caso suas teses metafísicas seriam apenas proposições empíricas do mesmo tipo
das proposições da física. A expressão “se origina de” não é pretendida, aqui,
como uma relação de seqüência temporal ou causal, que é o que normalmente a
palavra significa. Além disso, nenhum critério é especificado para qualquer outro
significado. Consequentemente, o alegado significado “metafísico”, no qual a
palavra supostamente tem um significado que aqui contrasta com o significado
empírico mencionado, não existe. Se nós refletimos acerca do significado original
da palavra “principium” (e da palavra grega correspondente, _________),
percebemos o mesmo desenvolvimento. A palavra é explicitamente destituída de
seu significado original “início”; ela supostamente não significa o temporariamente
anterior a qualquer coisa, mas anterior em algum outro, especificamente
metafísico, aspecto. Contudo faltam, neste “aspecto metafísico”, os critérios. Em
ambos os casos, então, a palavra foi destituída de seu significado anterior sem
receber um novo significado; a palavra permanece como um casco vazio. A partir
de um período anterior de uso significante, a palavra está ainda conectada
associativamente com várias imagens mentais; estas, por sua vez, foram
associadas com novas imagens e sentimentos mentais no novo contexto de uso.
Mas a palavra não torna-se, por isso, significativa; e permanece sem significado
na medida em que nenhum método de verificação pode ser descrito.
Outro exemplo é a palavra “Deus”. Devemos aqui, exceto as variações de
seu uso em cada domínio, distinguir o uso lingüístico em três diferentes contextos
ou épocas históricas que, no entanto, sobreporam-se temporariamente. Em seu
uso mitológico, a palavra tem um significado claro. Ela, ou palavras paralelas em
outras linguagens, é algumas vezes usada para denotar seres físicos que são
5. Pseudo-enunciados Metafísicos
Avaliemos agora alguns exemplos de pseudo-enunciados metafísicos de um tipo
onde a violação da sintaxe lógica é especialmente óbvia, embora eles estejam de
acordo com a sintaxe histórico-gramatical. Selecionamos algumas sentenças a
partir da escola metafísica que atualmente exerce a influência mais forte na
Alemanha.3
“O que deve ser investigado é apenas o ser e – nada mais; o ser sozinho e
além disso –nada; apenas o ser, e nada além do ser – nada. O que ocorre com o
Nada? .... O Nada existe apenas porque o Não, isto é, a Negação existe? Ou ele
está de outra forma em volta? A Negação e o Não existem apenas porque o Nada
existe?... Nós afirmamos: O Nada é anterior ao Não e à Negação...... Onde
devemos procurar o Nada? Como descobrimos o Nada..... Nós conhecemos o
Nada......A antigüidade revela o Nada.....Por causa disso e porque houve os
antigos, havia „realmente‟ – nada. De fato: o Nada em si mesmo – como tal –
estava presente. ....O que ocorre com o Nada? – O Nada em si mesmo nadifica.”
Para mostrar que a possibilidade de formar pseudo-enunciados está
baseada num defeito lógico da linguagem, apresentamos o esquema abaixo. As
sentenças sob I são tanto gramaticalmente quanto logicamente impecáveis,
portanto significativas. As sentenças sob II (com exceção de B3) estão, em
aspectos gramaticais, em perfeita analogia às que estão sob I. A sentença da
forma IIA (como questão e resposta) não satisfaz, com efeito, as exigências
impostas por uma linguagem logicamente correta. No entanto, ela é significativa,
pois é tradutível numa linguagem correta. Isto é mostrado pela sentença IIIA, que
possui o mesmo significado de IIA. A forma sentencial IIA prova então ser
indesejável, pois podemos ser conduzidos, a partir dela, por meio de operações
gramaticalmente impecáveis, a formas sentenciais sem significado IIB, que são
tomadas da citação acima. Estas formas não podem nem mesmo ser construídas
na linguagem correta da coluna III. Não obstante, sua falta de sentido não é óbvia
à primeira vista, pois alguém facilmente se iludiria pela analogia com as sentenças
significativas IB. O defeito de nossa linguagem identificado aqui reside, portanto,
nas circunstâncias de que, em contraste com uma linguagem logicamente correta,
ela admite a mesma forma gramatical para seqüências de palavras significativas e
sem significado. Para cada sentença de palavras nós acrescentamos uma fórmula
correspondente na notação da lógica simbólica; estas fórmulas facilitam o
reconhecimento da indesejável analogia entre IA e IIA e desta forma da origem
das construções sem significado IIB.
3
As citações que seguem (com itálicos do original) são tomadas de M. Heidegger, Was Ist
Metaphysik? 1929. Nós poderíamos muito bem selecionar passagens de quaisquer outros
numerosos metafísicos do presente ou do passado; contudo, as passagens selecionadas parecem-
nos ilustrar nossa tese especialmente bem.
Numa inspeção mais cuidadosa dos pseudo-enunciados sob IIB, nós também
encontramos algumas diferenças. A construção da sentença (1) está
simplesmente baseada no erro de empregar a palavra “nada” como um
substantivo, pois é usual, na linguagem ordinária, usá-la desta forma a fim de se
construir um enunciado existencial negativo (ver IIA). Numa linguagem correta, por
outro lado, ela não é um nome particular, mas uma certa forma lógica da sentença
que serve a este propósito (ver IIIA). A sentença IIB2 acrescenta algo novo, a
saber, a fabricação da palavra sem significado “para nada”. Esta sentença,
portanto, é sem sentido por uma dupla razão. Nós apontamos antes que as
palavras sem significado da metafísica, geralmente devem sua origem ao fato de
que uma palavra significativa é destituída de seu significado por meio de seu uso
metafórico na metafísica. Mas aqui nos confrontamos com um dos raros casos
onde uma nova palavra é introduzida sem nunca ter tido um significado anterior.
Da mesma forma a sentença IIB3 deve ser rejeitada por duas razões. Com
respeito ao erro do uso da palavra “nada” como um substantivo, ela é igual às
sentenças anteriores. Mas além disso ela envolve uma contradição. Pois mesmo
que fosse admissível introduzir “nada” como um nome ou descrição de uma
entidade, ainda assim a existência desta entidade seria negada em sua própria
definição, ao passo que a sentença (3) continua afirmando sua existência. Esta
sentença, portanto, seria contraditória, e por isso absurda, mesmo se já não fosse
sem significado.
Ao percebermos grosseiros erros lógicos que encontramos nas sentenças
IIB, podemos ser levados à conjectura de que talvez a palavra “nada” possua, no
tratado de Heidegger, um significado inteiramente diferente do significado
costumeiro. E esta pressuposição é posteriormente robustecida assim que lemos
que a antigüidade revela o Nada, que o Nada em si mesmo está presente como tal
na antigüidade. Pois aqui a palavra “nada” parece referir-se a uma certa
constituição emocional, possivelmente de um tipo religioso, ou alguma coisa ou
outra que subjaz a tais emoções. Se isto fosse o caso, então os erros lógicos
mencionados das sentenças IIB não seriam cometidos. Mas a primeira sentença
da citação no início desta seção prova que esta interpretação não é possível. A
combinação de “apenas” e “nada mais” mostra inequivocamente que a palavra
“nada”, aqui, tem o significado usual de uma partícula lógica que serve para a
formulação de um enunciado existencial negativo. Esta introdução da palavra
“nada” é então imediatamente seguida pela seguinte questão do tratado: “O que
ocorre com o Nada?”.
Mas nossa dúvidas em relação a uma possível má interpretação são
completamente dissolvidas quando percebemos que o autor do tratado está
claramente consciente do conflito entre suas questões e enunciados, e a lógica.
“Questão e resposta em consideração ao Nada são igualmente absurdas em si
mesmas...... A regra fundamental do pensamento comumente apelada à lei da
contradição proibida, „lógica‟ geral, destrói a questão.” Tanto pior para a lógica!
Nós devemos abolir sua soberania: “Se desta forma o poder do entendimento no
campo das questões acerca do Nada e do Ser é quebrado, então a fé na
soberania da „lógica‟ dentro da filosofia é portanto igualmente quebrada. A própria
idéia de „lógica‟ dissolve-se na confusão do mais básico questionamento.” Mas a
ciência permaneceria sóbria tolerando a confusão do questionamento contra-
lógico? A esta questão existe também uma rápida resposta: “A alegada
sobriedade e superioridade da ciência tornam-se ridículas se não levamos o Nada
a sério.” Assim descobrimos aqui uma boa confirmação de nossa tese; um
metafísico enuncia aqui suas questões e respostas são irreconciliáveis com a
lógica e com a forma científica de pensar.
A diferença entre nossa tese e a dos antigos anti-metafísicos torna-se agora
clara. Nós não consideramos a metafísica como “mera especulação” ou “conto de
fadas”. Os enunciados de um conto de fadas não entram em conflito com a lógica,
mas apenas com a experiência; eles são perfeitamente significativos, ainda que
falsos. A metafísica não é “superstição”; é possível acreditar em proposições
verdadeiras ou falsas, mas não é possível acreditar em seqüências de palavras
sem sentido. Enunciados metafísicos nem mesmo são aceitáveis como “hipóteses
de trabalho”; pois uma hipótese deve ser capaz de travar relações de
dedutibilidade com enunciados empíricos (verdadeiros ou falsos), que é o que os
pseudo-enunciados não podem fazer.
Com referência a assim chamada limitação do conhecimento humano, por
vezes se tenta salvar a metafísica por meio da seguinte objeção: enunciados
metafísicos não são, de fato, verificáveis pelo homem nem por qualquer outro ser
finito; no entanto, eles poderiam ser construídos como conjecturas acerca das
respostas que um ser com os mais altos ou mesmo perfeitos poderes de
conhecimento dariam a nossas questões, e tais conjecturas seriam, apesar de
tudo, significativas. Para dar conta desta objeção, consideremos o seguinte. Se o
significado de uma palavra não pode ser especificado, ou se a seqüência de
palavras não está de acordo com as regras da sintaxe, então ele nem mesmo
respondeu uma questão. (Apenas pense nas pesudo-questões: “Esta mesa é
teavy?”, “o número sete é sagrado?”, “que números são mais escuros, os mesmos
ou os mais estranhos?”). Onde não há questão, nem mesmo um ser onisciente
pode dar uma resposta. Mas o contendor poderia replicar: assim como alguém
que enxerga pode comunicar novo conhecimento ao cego, um ser mais poderoso
poderia talvez informar-nos sobre conhecimento metafísico, por exemplo, se o
mundo visível é a manifestação de um espírito. Aqui devemos refletir sobre o
significado de “novo conhecimento”. É de fato concebível que podemos encontrar
animais que informem-nos sobre um novo sentido. Se estes seres provassem a
nós o teorema de Fermat ou se inventassem um novo instrumento físico ou se
estabelecessem uma nova e desconhecida lei da natureza, então nosso
conhecimento seria ampliado com sua ajuda. Pois nós podemos testar este tipo de
coisa, do mesmo modo que um cego pode compreender e testar a totalidade da
física (e portanto qualquer enunciado produzido por aqueles podem ver). Mas se
estes seres hipotéticos informam-nos de algo que não possamos verificar, então
não podemos entendê-los; neste caso nenhuma informação foi-nos comunicada,
mas apenas sons verbais destituídos de significado, ainda que possivelmente
associados com imagens. Segue-se que nosso entendimento pode apenas ser
quantitativamente aumentado por outros seres, não importa se eles conhecem
mais ou menos ou tudo, mas nenhum conhecimento de um tipo essencialmente
diferente pode ser acrescentado. O que nós não conhecemos com certeza,
podemos chegar a conhecer com grande certeza por meio da assistência de
outros seres; mas o que é ininteligível, sem significado para nós, não pode tornar-
se significativo por meio da assistência de alguém, conquanto possa ser vasto seu
conhecimento. Portanto, nem o bem nem o mal podem nos dar conhecimento
metafísico.
Exemplo: 1. “Esta mesa é mais larga do que aquela”. 2. “A altura desta mesa é
maior do que a altura daquela”. Aqui as palavras “maior do que” são usadas em
(1) como uma relação entre objetos, em (2) como uma relação entre números,
portanto para duas categorias sintaticamente distintas. O engano não tem
importância aqui; ele poderia ser eliminado, por exemplo, escrevendo “maior do
que 1” e “maior do que 2”; “maior do que 1” é então definido em termos de “maior
do que 2” declarando-se que a forma do enunciado (1) é sinônima de (2) (e de
outros de um tipo similar).