Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O Problema Ontológico
2009
c Décio Krause
http://www.cfh.ufsc.br/~dkrause
Conteúdo
1 As duas faces do problema ontológico 2
4 As crı́ticas de Russell 15
5 Exercı́cios 16
1
2 Tópicos em Ontologia Analı́tica
filosofia deve conhecer. O que faremos neste capı́tulo será introduzir as prin-
cipais idéias que antecedem Quine neste tipo de questão. Com efeito, ele
vai usar muito da teoria das descrições de Russell, que veremos no próximo
capı́tulo, e para introduzı́-la, devemos retornar um pouco, correndo o risco
da imprecisão, a Alexius Meinong e sua teoria de objetos.
“ II
Pois bem, agora vou eu falar, e tu, prestes atenção ouvindo a [palavra]
acerca das únicas vias de questionamento que são a pensar:
uma, para o que é e, como tal, não é para não ser,
é o caminho de Persuasão —pois segue pela Verdade—,
outra, para o que não é e, como tal, é preciso não ser,
esta via afirmo-te que é uma trilha inteiramente insondável;
pois nem ao menos se conheceria o não ente, pois não é
realizável , nem tampouco se o diria:
III
...pois o mesmo é a pensar e também ser.”2
ser, pois nada se falso seria possı́vel sem esta condição” (O Sofista, 237a; [6,
loc.cit.]). O assunto, como se percebe, invade as discussões ontológicas até
mesmo nos dias de hoje, e apresentam questões as mais relevantes para a
filosofia da ciência, a filosofia da linguagem, bem como à epistemologia, à
lógica e à ontologia.
Com efeito, as investigações da ciência atual estão repletas de entidades
que não sabemos ao certo se de fato são, como partı́culas virtuais e outras
entidades como ‘cordas’, ‘supercordas’, etc. Seria apenas ficções úteis ou
teriam algum significado ontológico? A que se reduz a ontologia de uma
teoria? O que significa ‘existir’ ? (ver as questões postas no inı́cio da seção
seguinte).
Desde os desenvolvimentos da lógica e da filosofia analı́tica em geral, es-
sas questões ganharam uma perspectiva que não é meramente especulativa,
mas que podem ser analisadas em consoância com o uso que fazemos das lin-
guagens. É precisamente nesse contexto que o critério de comprometimento
ontológico de Quine aparece.
O que são nomes próprios, como ‘Maria’, e como eles são (ou podem ser)
usados? Podemos usá-los em qualquer contexto?
Essas são apenas algumas das questões que podem ser colocadas como
relevantes para a discussão ontológica atual. Não podemos esperar dar res-
postas a todas elas, e nem aprofundar qualquer delas o suficiente para uma
discussão filosófica detalhada em notas de caráter introdutório como estas.
O que objetivamos é apresentar algumas dessas questões de maneira mais
geral possı́vel, visando introduzir a problemática e despertar o interesse do
estudante.
Um dos problemas que a filosofia analı́tica enfrenta em questões como
essas é o do uso essencial que faz da lógica como auxiliar em questões
linguı́sticas e filosóficas. Até meados do século passado, as lógicas não-
clássicas não haviam sido suficientemente desenvolvidas para que se perce-
besse o seu alcance e uso em áreas como a filosofia da linguagem, a filosofia
da ciência e a epistemologia. Isso mudou sobremaneira nos últimos 50 ou 60
anos, mas as relações desses sistemas com a ontologia constituem ainda um
tema que requer estudo e aprofundamento, principalmente devido à enorme
transformação que está ocorrendo no campo cientı́fico devido às teorias fı́sicas
mais recentes, que (como sustentam alguns) não são passı́veis nem mesmo
6 Tópicos em Ontologia Analı́tica
2. Formulaçõs semânticas:
O leitor deve notar que essas formulações não são todas equivalentes, de
forma que, quando se fala do ‘princı́pio da identidade’ (e o mesmo vale
para os demais princı́pios apresentados abaixo), deve-se especificar de qual
formulação se está falando, ou deixar isso bem claro pelo contexto.
(1) Há objetos que não ‘existem’ (mas que meramente subsistem).
(2) Qualquer coisa que possa ser alvo de um processo mental, experienci-
ado de algum modo, é um objeto.
10
Para mais detalhes, consultar [9].
12 Tópicos em Ontologia Analı́tica
(4) Pode haver sentenças verdadeiras acerca daquilo que não tem ser.
Meinong distinguiu entre duas formas básicas de ser: os objetos que estão
localizados no espaço e no tempo existem; os demais subsistem. Assim, Sher-
lock Holmes, o Saci Pererê e Pégaso apenas subsistem. Apesar do que disse-
mos em (2), na verdade é dúbio se para Meinong objetos impossı́veis como o
triângulo quadrado subsistem.11 Voltaremos a este assunto abaixo. A maio-
ria dos autores interpreta Meinong aceitando que objetos impossı́veis, objetos
contraditórios, como certos casos de pensamento auto-referencial (como o que
origina o paradoxo do mentiroso) de fato subsistem, dado ao fato de que Mei-
nong tentou dar sentido à sua frase “Há objetos para os quais é verdade que
não há tais objetos.”
Claro que a questão básica está ligada ao sentido de existe (em ‘há’).
Mesmo se entendermos, como aparentemente ele pretendeu, que os obje-
tos ‘reais’ existam, como o Empire State em Nova Iorque, é problemática
a questão de se saber se supercordas existem.12 Como se vê facilmente, as
discussões são muito vagas, e é em assuntos dessa natureza que a filosofia
analı́tica mostra a sua força.
11
Alguns autores como Stroll sustentam que, para Meinong, objetos contraditórios como
o quadrado redondo nem existem e nem subsistem, ainda que tivessam algum tipo de ser
[15, p.23].
12
Entidades supostas pelas teorias de cordas, um dos campos mais atuais da fı́sica
moderna—ver [5].
O Problema Ontológico 13
Sem pretender uma análise detalhada de suas idéias, vamos tentar es-
quematizar a teoria de objetos de Meinong como segue. Iniciemos com uma
distinção entre ser e existir. Por exemplo, tomemos a sentença
assim (∼ V )(x) e ‘é falso que x seja verde’, que seria ¬V (x) (note que usamos
dois sı́mbolos de negação). Deste modo, Meinong aceitaria o princı́pio da
contradição na forma
(1) Quanto aos sujeitos gramaticais das frases significativas, eles existem
ou subsistem. Em ‘O atual presidente do Brasil é populista’, o sujeito
existe. Já em ‘O atual rei da França é careca’, o sujeito subsiste. O
mesmo se daria com ‘O quadrado redondo é quadrado’.
14
O leitor pode ver as indicações de [9] ou [4], onde os autores propoõem o uso de uma
lógica paraconsistente para elaborar uma teoria de objetos—como o quadrado redondo—
inconsistentes.
O Problema Ontológico 15
(2) Com respeito às frases existenciais negativas, haveria sentenças que
negam a existência espaço temporal de objetos que apenas subsistem, e
que seriam verdadeiras, como ‘O atual rei do Brasil não existe.’
4 As crı́ticas de Russell
Em 1905, Russell publicou um artigo célebre, ‘On denoting’ [13], e mais
tarde desenvolveu as mesmas idéias em outros trabalhos, no qual critica a
teoria de Meinong. Segundo Russell, “a teoria de Meinong reputa qualquer
frase gramaticalmente correta como representando (standing for ) um objeto.
Ento, ‘o presente Rei da França’, ‘o quadrado redondo’, etc., são supostos
serem objetos genuı́nos.” [13, pp.482-3]. Um pouco mais adiante, ele comenta
que “é aceito, por exemplo, que o existente presente Rei da França existe, e
também que não existe; que o quadrado redondo é redondo, e também não é
redondo, etc.. Mas isto é inadmisı́vel.” (op.cit., p. 483).
Para Russell, alguns objetos, como o quadrado redondo, so contraditórios.
O quadrado redondo, sendo quadrado e redondo (logo, não quadrado), fere
o princı́pio da contradição. Por outro lado, se o rei da França tem alguma
forma de existência (já que subsiste, e isso é uma forma de ser), ele fere o
princı́pio (3) das condições (3), pois existiria e não existiria.
Russell apresenta então sua teoria das descrições (que veremos no capı́tulo
seguinte) para contornar essas objeções. Em sı́ntese, ele apresenta as des-
crições (definidas e indefinidas) como sı́mbolos incompletos, elimináveis em
uma linguagem envolvendo quantificadores. Para ele (fielmente dentro da
tradição analı́tica), como salienta Marek [9], os problemas que surgem com
a teoria de Meinong devem-se a uma confusão entre a forma gramatical da
linguagem usual e a sua forma lógica, e que portanto se uma sentença da
linguagem natural afirma a existência de algo, infere-se que esse algo deve
de algum modo existir. Como ele mostrará com a sua teoria, expressões
da forma ‘o assim e assim’ (uma descrição definida) nada implicam nesse
sentido, quando devidamente parafraseada em uma linguagem lógica conve-
niente. Contrariamente ao que acreditava Meinong, tais expressões não são
via de regra expressões que denotem, e se assim forem concebidas, ferirão as
leis da lógica clássica.
Meinong tentou responder a essas questões. Como resume Marek (op.cit.),
à primeira objeção ele respondeu que somente os objetos que existem no
espaço e no tempo podem ferir as leis da lógica, enquanto que os objetos
16 Tópicos em Ontologia Analı́tica
impossı́veis fariam mesmo com que certas leis, como o princı́pio da con-
tradição, não pudessem vigorar. Lembrando a distinção entre as duas for-
mas de negação apresentadas acima, ∼ (a negação de um predicado) e ¬ (a
negação de uma sentença), podemos tentar entender o seu ponto. Para ele, o
quadrado redondo é quadrado (Q(x)) e redondo (R(x)), mas isso não implica
que seja redondo (R(x)) e não-redondo ((∼ R)(x)). O que não poderı́amos
ter é que ele seja redondo R(x) e ¬R(x), pois ele aceitaria o princı́pio da con-
tradição na forma (1). Como comenta Marek, da mesma forma, “O triângulo
não é nem verde e nen não-verde, porém ele é ou verde ou não é verde.” Em
suma, Meinong não aceitaria a equivalência entre (∼ P )(x) e ¬P (x) no caso
dos objetos que não existem no espaço e no tempo.
Com relação à segunda objeção, Meinong distinguiu entre o que chamarei
de ser-existente (Existieren-sein), que tem alguma forma de existência, ou
subsistência, e existência (Existieren), como determinação do ser. Isso leva-o
a distinguir entre objetos como a montanha de ouro ou o quadrado redondo,
que são seres-existentes, mas não seres, de objetos que existem no espao e
no tempo, esses sim podendo-se dizer que existem. Claro está que Russell,
apegado à lógica clássica, não poderia aceitar uma tal distinção.
A filosofia de Meinong, e não somente a sua teoria de objetos, é algo
bastante sofisticada, mas pelo que sabemos pouco estudada. No capı́tulo
seguinte, veremos mais sobre Russell e a sua teoria das descrições.
5 Exercı́cios
1. Quais são as duas facetas do problema ontológico, na acepção de Simp-
son?
Referências
[1] da Costa, N. C. A. [1994], Ensaio sobre os Fundamentos da Lógica, 2a.
ed., S. Paulo, Hucitec.
[12] Quine, W. V. [1980], ‘Sobre o que há’, em Ryle, Strawson, Austin, Quine,
Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural.
[13] Russell, B. [1905], ‘On denoting’, Mind, Mind 14, 479-493. Reimpresso
várias vezes, por exemplo em Logic and Knowledge (Routledge, 1956).
Nossas referências são da versão original.
[15] Stroll, A. [2002], La Filosofı́a Analı́itica del Siglo XX, Madrid: Siglo
Veintiuno de España Ed.