:: a grande crise dos fundamentos ::

Prof. Dr. Luís Carlos Petry

Programa de Pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital
da PUCSP :: NuPHPUCSP :: Núcleo de Pesquisas em Hipermídia da PUCSP
O presente texto se constitui em um
excerto de um texto maior, publicado com
o título Do porque nada funciona. Sua
referência bibliográfica é a seguinte:
PETRY, Luís Carlos (1998). Do porque nada
funciona. In: Psicanálise e Sintoma Social
II, Mário Fleig (Org.). São Leopoldo. Editora
UNISINOS. pp. 257-291. IBNS:
8585580593.
O texto apresentou um relatório parcial de
uma investigação acerca dos fundamentos
lógicos da teoria lacaniana, suas relações
com o desenvolvimento da filosofia da
linguagem e a lógica, de Boole a Gödel,
elementos estes discutidos nas inúmeras
sessões do seminário de Lacan.
Oferecemos o excerto, observando que ele
ajusta-se a um contexto reflexivo e, neste
sentido, deve ser considerado como
elementos selecionados de uma área de
investigação que realiza o que hoje muitas
vezes é denominado como uma interface.
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Nomina no sunt consequentia rerum
O dantesco trabalho do Dr. Lacan é
construído no processo de uma grande
crise que se desenvolve na passagem do
século XIX para os inícios do nosso século.
Esta crise compreende uma modificação
substancial dentro das ciências empírico-
matemáticas e nas ciências do espírito (tal
como eram intituladas na época). Ela deve
ser compreendida como uma profunda
crise filosófica, na qual colocava-se em
questão todos os pressupostos
orientadores do século XIX, que rezava
que as ciências do espírito deveriam guiar-
se e, mesmo espelhar-se, no método das
ciências positivas, principalmente os da
matemática(03). Se de um lado, o
questionamento da teoria da fisica
newtoniana não mais oferecia os
instrumentos para nossa compreensão do
mundo, por outro lado, é na região da
lógica, da matemática e, igualmente no
próprio campo da filosofia que se produzirá
a crise que modificará o modo de ser do
compreender do homem moderno.
Apresentaremos esta situação enfocando
aqui seus principais aspectos críticos.
A. A Crise das Matemáticas
Se a crise gerada dentro da física - o
questionamento da teoria newtoniana, o
surgimento de uma física quântica, etc. -
teve como resultado a demonstração de
que a ciência não era dotada do
pressuposto da infalibilidade e,
conseqüentemente a perda de parte de sua
autoridade, o mesmo podendo ser dito das
matemáticas. Os séculos XIX e XX podem
ser vistos como os séculos da revisão dos
pressupostos matemáticos que até então
se achavam seguros. Inicialmente
podemos referir os descobrimentos nas
áreas das geometrias não-euclidianas e na
teoria dos conjuntos de G. Cantor (1845-
1918). Ambos descobrimentos colocaram
que, muitas das coisas que eram aceitas
sem nenhum questionamento, ou seja,
como pressupostos óbvios da matemática,
seriam na realidade fundamentos
inseguros, necessitando, desta forma, de
um sistemático trabalho de análise e
clarificação de conceitos, além de um
processo de elaboração das estruturas
axiomáticas confiáveis. Foi então que no
domínio da lógica matemática, ao final do
século XIX, foram descobertos os famosos
paradoxos (ou antinomias). Com estes, os
próprios fundamentos da matemática
foram colocados em questão (04).
B. O Nascimento da Estrutura
Algébrica:
o Algorítmo e o Projeto de Boole
Com os trabalhos de Boole iniciamos a
perspectiva da algebrização, ou melhor, a
utilização de algorítmos algébricos para a
descrição do raciocínio e do pensamento
como tal. Com o livro Análise Matemática
da Lógica (1847), Georg Boole buscava
demonstrar que toda a Lógica poderia ser
reduzida a um cálculo algébrico e, que as
operações lógicas poderiam ser
compreendidas como processos
matemáticos elementares. Com Boole
iniciamos um período na história da lógica
matemática, designado por Bochenski
como período de Boole “que se diferencia
do posterior, (o fregeano) sobretudo pelo
fato de que seus representantes não
tomam por objeto de investigação os
métodos das matemáticas, mas sim pelo
fato de que os aplicam detalhadamente à
lógica” .
Universo do discurso: U(d)
O conceito de Universo do discurso [U(d)],
foi utilizado por Boole, em seu livro Análise
Matemática da Lógica (1847), partindo da
consideração de uma certa classe ou
conjunto, a que chamava “o universo do
discurso”, o que quer dizer o seguinte: a
totalidade das coisas suscetíveis de
constituir o objeto de um discurso. Boole
atribuiu a este U(d) a notação «1». Lacan
irá utilizar este conceito de Universo do
discurso, no seminário 14, A Lógica do
Fantasma (na discussão de seu axioma
“nenhum significante saberia significar a si
mesmo” em relação ao paradoxo de
Russell e o inefável wittgensteiniano do
Tractatus) e no seminário 17, O Avesso da
Psicanálise (na estruturação do Universo
do discurso que compõe o conjunto das
possibilidades do discurso - matemas do
quatro discursos).
C. O Rompimento de Peano e Frege
com Boole
O trabalho de Peano consistiu basicamente
no rompimento com a tradição booleana de
encarar a lógica como uma álgebra
(particularmente uma álgebra das classes).
Para Peano, tal como para Frege, a lógica
deveria se ocupar da formalização da
nossa linguagem. Um dos trabalhos do
lógico seria o de buscar construir uma
linguagem simbólica, ou seja, uma solução
ideal, isenta de todo e qualquer caráter
ambíguo inevitável na linguagem ordinária,
na qual todas as demonstrações dedutivas
podem ser efetuadas de acordo com regras
exatas para a manipulação de símbolos.
Ambos propunham um objetivo ideal de
uma matemática puramente simbólica, na
qual desde os axiomas até a conclusão,
devessem ser obtidos a partir das linhas
precedentes mediante regras rigorosas
para a transformação de símbolos que, em
nenhum momento fizessem apelo à
intuição.
É neste sentido que, na busca de um
caminho para a melhor formalização de
problemas e na procura dos fundamentos
lógicos das matemáticas, vamos encontrar
Bertrand Russell que, durante o Congresso
Internacional de Filosofia em Paris (1900),
toma contato com Peano e seus trabalhos.
Lá Russell percebeu que o método adotado
por Peano fornecia o instrumento
procurado para trabalhar de forma rigorosa
os problemas da fundamentação lógica da
matemática. Um dos efeitos deste contato
pode ser encontrado no texto A Lógica
Matemática e seu Fundamento na Teoria
dos Tipos (1908)(05).
Por este rigoroso caminho de formalização
se darão os projetos dos três filósofos:
Peano, Frege e Russell. Quanto aos dois
primeiros, os vemos inaugurar um
ambicioso projeto. Este ambicioso
programa de Frege e Peano consistia na
pretensão de inventar uma notação
simbólica e um conjunto de regras que
fossem adequadas para todas as
demonstrações dedutivas - e, em
particular, para a análise das
demonstrações matemáticas. Neste
sentido, a álgebra booleana, ainda que
constituindo um enorme progresso frente
ao aristotelismo, jamais chegou perto de
seu objetivo. Frege, segundo Putnam(06),
fora o primeiro a escrever as regras de
derivação para aquilo que a lógica
essencialmente é, ou seja, a teoria possível
da dedução, tal como é utilizada em todas
as ciências, incluindo a matemática. Esta
será a via seguida por Russell e
Whitehead, a partir da qual escreverão os
Principia Matematica, buscando fornecer
axiomas para o cálculo proposicional, etc.
D. O Aspecto Vulnerável do Projeto de
Frege
O grande projeto de Frege, o de reduzir
toda a matemática à lógica pura, era
especialmente vulnerável ao perigo de
possuir hipóteses escondidas de caráter
matemático serem inconscientemente
utilizadas em demonstrações. Por esta
razão, Frege antes de produzir a análise do
conceito de número publicou
primeiramente um sistema completamente
formalizado de lógica, que intitulou de
Begriffschrift [1879]. As preocupações de
Frege no que diz respeito aos perigos da
axiomatização na linguagem natural eram
procedentes e justificadas. Hilbert(07), ao
formalizar completamente a geometria
euclidiana, descobriu diversas hipóteses
que o próprio Euclides tinha simplesmente
usado em demonstrações, mas que não
tinha conseguido tornar explícitas dentro
da sua lista de axiomas e postulados.
E. Um Grande Problema:
Permanece a Pergunta pela Verdade
Putnam(08) considera que é possível
encarar a questão da convergência das
tendências algorítmicas e axiomáticas no
fim do século XIX da seguinte forma: é
possível termos algorítmos para
resolvermos problemas matemáticos
particulares sem necessitarmos de
axiomas para o ramo da matemática em
que estes problemas surgem. Entretanto,
estamos impossibilitados de reduzir toda a
matemática à algorítmos lógicos, devido a
ausência de um método de decisão para a
verdade matemática. Todas as tentativas,
em nosso século, de assegurar as
condições mínimas para determinar a
verdade matemática, fracassaram. O
próprio Gödel, após demonstrar a
consistência e completude das lógicas de
primeira ordem, por exemplo, a
Begriffschrift de Frege, demonstrou, logo
depois, que não podemos, do ponto de
vista de um sistema formal completo e
consistente, decidir sobre a verdade de
todas suas proposições. Haverão
proposições no sistema que serão
“indecidíveis”, ou seja, não podemos
decidir, sobre elas, se são verdadeiras ou
falsas. Trata-se aqui do segundo teorema
de Gödel acerca dos Principia Matematica
de Russell-Whitehead(09). Esta questão
deixa em aberto a possibilidade de
respondermos a pergunta: o que é
verdade matemática, permanecendo a
questão da verdade enquanto tal.
F. A Crise dos Fundamentos
Fregeanos:
O Paradoxo de Russell
A Begriffschrift já havia sido publicada por
Frege, bem como Os Fundamentos da
Aritmética. O filósofo preparava-se então
para publicar o segundo volume do seu
grande e definitivo trabalho: As Leis
Fundamentais da Aritmética
(Grundgesetze), onde procedia a largos
passos o programa de reduzir toda a
matemática (Aritmética) à lógica
elementar.
Frege havia alcançado em grande parte o
objetivo de demonstrar que a Aritmética é
uma espécie de lógica disfarçada. É neste
sentido que irá escrever os Grundgesetze.
Ele foi o primeiro a dar-se conta de que a
Aritmética não poderia ser separada da
teoria dos conjuntos. Além disso podemos
levantar duas contribuições fundamentais
do trabalho de Frege de valor duradouro:
[1] como contribuição à matemática,
mostrando o que significa para uma
classe ser finita;
[2] como contribuição à filosofia:
mostrando a estreita conexão (embora
não de identidade como Frege
pensava) entre lógica e matemática.
Não obstante o grande trabalho de Frege
estar próximo da sua conclusão, quando
estava prestes a publicar o segundo
volume d’As Leis Fundamentais da
Aritmética, recebe uma carta de um então
jovem filósofo chamado Bertrand Russell
que lhe mostra que em sua construção
subsistia um paradoxo (ou antinomia). As
Leis Fundamentais... transformavam a
relação de “antepassado de” (princípio)
numa regra geral segundo a qual: “para
toda a condição exprimível num sistema
lógico existe uma classe correspondente”.
Sobre este ponto irá operar o paradoxo de
Russell.
Em 1901, Russell viria a fornecer um
exemplo simples que demonstra que a
assunção, segundo a qual toda a condição
(exprimível no sistema) determina uma
classe, conduz a uma contradição. De fato,
uma das coisas que é possível dizer no
sistema de Frege é que uma classe F não
se contém a si própria:
(em rigor, isto significa que o conceito F
não se aplica à sua própria extensão, de
acordo com a interpretação que Frege dava
do seu próprio simbolismo). Se esta
condição determina uma classe - isto é, se
existe uma classe Z, que contém
exatamente aquelas F, tais que F não
pertence a F -, então a classe Z pertence
ou não a si própria? Ambas as hipóteses
resultantes (SIM/NÃO) resultam numa
contradição. Desta forma, a hipótese da
existência de uma tal classe deveria ser
abandonada! Eis o grande problema. Em
termos simbólicos podemos colocá-lo da
seguinte forma:
a condição que define Z é:
da qual se obtém (substituindo F por Z,
como caso particular de F):
o que é uma contradição.
Esta descoberta foi de um resultado
catastrófico para o sistema de Frege. A
questão da falha detectada no axioma de
compreensão mostra que ele é
contraditório. Desta forma, a enunciação
do paradoxo, na sua forma abreviada, diz
o seguinte:
 “o conjunto de todos os conjuntos
que não contém a si mesmos”.
Surge estão a pergunta: qual princípio
pode dizer-nos quais as condições que
determinam conjuntos? Frente ao
paradoxo proposto por Russell, Frege lhe
responderá em carta (22 de junho de
1902) que parecia “desaparecer, não
somente a fundamentação da minha
aritmética, mas também a única
fundamentação possível da aritmética”.
Esta questão será de grande interesse para
Lacan, isto na medida em que o
psicanalista fará dela um ponto importante
de discussão, por exemplo, na Lógica do
Fantasma, quando confronta o paradoxo
de Russell com seu axioma:
“nenhum significante pode
significar a si mesmo”.
Este axioma coloca a questão do Universo
do discurso [U(d)] já explicado acima e,
leva a Lacan, ao mesmo tempo relacionar
o paradoxo de Russell com seu axioma,
confrontando-o com a sétima proposição
do Tractatus de Wittgenstein. Vejamos o
texto de Lacan:
“Meu propósito é este: qual é a
conseqüência deste universo do discurso,
deste princípio, que o significante não
poderia significar-se a si mesmo, que
especifica este axioma neste universo do
discurso, na medida em que está
constituído por tudo aquilo que pode ser
dito. Qual seria a classe de especificação
que este axioma determina? Forma parte
do universo do discurso? Se não forma
parte, é seguramente para nós um
problema. O que especifica, eu o repito, o
enunciado axiomático, que o significante
não poderia significar-se a si mesmo, teria
por conseqüência especificar algo que,
como tal, não estaria no universo do
discurso, enquanto que, precisamente, nós
vamos admitir (...) que engloba tudo o que
pode ser dito. Nos encontramos com algo
divertido que significaria isto: que isto que
assim não pode formar parte do universo
do discurso, não poderia ser dito de
maneira alguma, posto que falamos disto
no que lhes introduzo, isto não é
evidentemente senão para dizer-lhes que é
o inefável. Temática da qual se sabe que
por pura coerência, sem ir por isto com a
escola de Mr. Wittgenstein, da qual é inútil
falar, antes de chegar a isto, numa tal
fórmula na qual vocês bem vêem que não
é o relevo, nem o obstáculo, que ele
constitui, posto que também nos vai ser
necessário voltar ali, trazendo tudo para
que as vias lhes sejam franqueadas,
naquilo que trato de vocês me
seguirem”(10).
Esta questão levantada por Lacan merece
um desenvolvimento detalhado. Como o
leitor pode ter observado, ela se situa no
centro nevrálgico das questões da lógica
matemática de Frege a Russell. Mais
adiante procuraremos extrair algumas
conseqüências dela, relacionado-a com a
questão do matema e da incompreensão
matemática. Seguimos agora pensando
alguns elementos sobre Kurt Gödel.
G. Uma Questão em Kurt Gödel
A obra de Kurt Gödel recorta os domínios
entre a ciência (fundamental) e a filosofia.
Para ele, ambas se preocupam com
problemas conceituais básicos e, ao
mesmo tempo procuram alcançar o
desenvolvimento de teorias axiomáticas.
Se por um lado, a filosofia analisa
conceitos, por outro a ciência emprega
conceitos - mas ambas atividades se
encontram estreitamente relacionadas, isto
na medida em que ambas se constituem
em estudos fundamentais que vinculam
uma e outra àrea. Um destes pontos, que
constitui um coração entre uma e outra,
ciência e filosofia, é a questão da
formalização.
Gödel seguiu por toda sua vida acreditando
que a lógica matemática se constituía em
ferramenta de extrema utilidade para o
método axiomático, sendo o seu método
predileto para a caraterização de
conceitos, tanto nas suas reflexões
científicas bem como filosóficas(11).
Quanto mais avançamos na formalização
lógica, no sentido de expandí-la, mais
podemos fazer algo com ela. Porém, é
importante observar em relação a Gödel
que o “ideal de sua filosofia é ser «precisa,
porém não técnica» ”(12).
Esta questão nos direciona para o princípio
de formalização. Podemos dizer que um
sistema formal completo, dentro da
acepção de Gödel, é uma realização plena
do ideal de “pureza” de método, isto na
medida em que ele se propõe (e consegue)
resolver todas as questões que podem se
expressar nele(13). Desta forma, o ideal
de formalização parece perseguir um tipo
de homogeneidade - como forma de
pureza - nos confins mesmo da
inteligência.
O primero grande exemplo de formalização
alcançado (de significação considerável) foi
o sistema formal construído por Frege
(para a lógica elementar) na Begriffschrift
(1879). Neste sistema torna-se possível
escrever-se deduções de uma tal forma
como se processássemos computações
numéricas em linguagem de computadores
(Exemplos, C++ e as linguagem
orientadas a objetos). O sistema da
Begriffschrift pretende permitir que
somente proposições válidas sejam
possíveis de serem escritas dentro do
sistema e a partir dele. O teorema de
completude nos mostra que Frege alcança
seu propósito final(14).
Retornamos então ao ideal de Gödel: a
filosofia deve ser precisa, porém não
técnica. Wang que passou muitos anos em
convívio pessoal e diálogo produtivo com
Gödel, nos oferece uma visão bastante
clara sobre seus pontos de vista. Precisão
conceitual e recusa do tecnicismo - como
pensar esta questão? Vejamos o que ele
nos ensina: Ainda que também encontro
atrativo neste ideal, não sou capaz de
vislumbrar uma via plausível que leve ao
requisito da precisão de Gödel na forma de
uma teoria axiomática que requer a
determinação de conceitos primitivos e
daqueles axiomas percebidos como
verdadeiros por nossa intuição. Não cabe
dúvida de que a maioria de nós tem a
tendência de sobrecarregar-se de dados
inúteis, quando, em geral, o essencial
pode ser percebido com toda clareza com
a ajuda de uma reflexão mais detalhada
ou por meio de uma análise com muito
menos dados. Porém, não sou capaz de
ver porque o método axiomático é
particularmente apto para a filosofia. Mas,
me inclino muito mais no sentido de
pensar que existem inúmeras idéias
sugestivas e fatos que requerem ser
encaixados de qualquer forma, de modo
que nos resultem atrativos. Por outro lado,
sinto muito mais respeito pela
contingência da experiência humana e,
como um todo pela experiência de cada
indivíduo. Buscar uma teoria axiomática
em filosofia me parece menos frutífera que
aceitar o conteúdo para determinar a
forma. O espírito mesmo da idéia de
ajustar entre si todas as partes é distinto
do que anima o requisito de Gödel de que
deve ser “completamente sistemática”.
Se A pudesse selecionar um pequeno
número de indivíduos, cada um deles com
uma boa compreensão da experiência
humana e, se A pudesse ler todas estas
mentes, então poder-se-ia dizer que A
possui os dados suficientes e ficariam
estes somente para A(!) a formidável
tarefa de encaixar todas as partes entre si.
Dado que, como é óbvio, semelhante
estado de coisas é humanamente
impossível, A somente pode procurar
alcançar algum substituto aproximado. Na
prática, o processo consiste numa
seqüência de interações entre o ato de
encontrar as partes e o de encaixá-las
entre si.
Gödel diz que sua filosofia é, em linhas
gerais, uma monadalogia leibniziana. Ele
parece dar a entender que o incremento
da experiência humana durante um quarto
de milênio supõe pouca diferença
quantitativa para o que é filosóficamente
essencial e que toda a tarefa consiste em
tratar de perceber com mais clareza os
mesmos conceitos básicos (de acordo com
o ponto de vista de Heidegger -que em
filosofia damos um passo atrás, voltamos
aos princípios). Segundo Gödel, a filosofia
analisa conceitos na medida em que a
ciência os usa. Retendo esta diferença na
mente é provável que visse uma analogia
entre os esforços no sentido de
transcender Platão. Esta idéia tão atrativa
do caráter perene da intuições e conceitos
filosóficos indica a estabilidade de certas
profundas preocupações humanas e define
uma área de estudo que goza de
tranqüilidade e continuidade. É verdade
que muitos de nós temos justificadas
dúvidas de que a prática de seguir de
perto todas as voltas e mudanças da moda
atual possam ser realmente frutíferas. Ao
mesmo tempo, algumas mudanças
importantes na compreensão humana
parecem afetar nossa perspectiva
filosófica, na medida em que deslocam
nossos interesses principais e abrem
nossas perspectivas frente às tradicionais
(15).
Notas
3. Aqui seguimos principalmente os passos de
Hans-Georg Gadamer, in Verdad y Metodo,
tomos 1 e 2. Cabe salientar que a visão de
Gadamer, Verdad y Metodo 2, de Lacan é
muito positiva. Analisamos esta na versão
completa de nosso texto, principalmente no
tocante aos conceitos de Explicação e
Compreensão.
4. Estes paradoxos são:
(1) Paradoxo de Burali-Forti(1895);
(2) Paradoxo de Cantor(1899);
(3) Paradoxo de Russell(1899-1905)
Russell nos dá uma visão de vários paradoxos
no seu texto, A Lógica Matemática e seu
Fundamento na Teoria dos Tipos, de 1908.
Nosso texto U(d): Universo do Discurso e as
Proposições Sobre Algo, analisa o contexto
da crise das matemáticas no detalhe.
5. É claro que os textos:
1. Os Princípios da Matemática e,
2. Principia Matematica
são extremamente influenciados pela notação
de Peano. Russell nos informa sobre isto nos
próprios textos, além de realizar uma
avaliação disto, no seu livro Meu
Desenvolvimento Filosófico.
6. Putnam [1988].
7. Trata-se de uma questão extremamente
complexa e de grande valor histórico,
dizendo respeito ao grande projeto de
rigorização das matemáticas no século XIX.
Nosso texto, U(d): Universo do Discurso e as
Proposições sobre Algo, aborda esta questão,
do qual extraímos uma das partes referentes
às contribuições de D. Hilbert: Uma das
conseqüências do conceito de funções
variáveis complexas foi a alteração na
concepção das bases das matemáticas.
Desde o ano 200 a.C. até, mais ou menos o
ano de 1870 d.C., as matemáticas eram
concebidas como sendo suportadas em uma
base empírica e pragmática,
conseqüentemente o conceito de
demonstração dedutiva (apoiado em
axiomas) era freqüentemente perdido de
vista. Desta forma, um dos avanços decisivos
foi o do incremento do rigor dedutivo na
extração dos resultados. Com isto houve um
progressivo aumento da necessidade da
fundamentação das matemáticas, fazendo
com que ela seja possível a partir de axiomas
precisos e suas regras. Nesta perspectiva,
foram de grande impacto, a criação das
geometrias não-euclidianas que tiveram o
mérito de destruir a noção sacramentada da
auto-evidência dos axiomas, demonstrando
que esta perspectiva era demasiada
superficial e igualmente baseada em
pressupostos não racionais. Trata-se de uma
perspectiva de alicerçar as matemáticas em
sólidas fundações - sendo elas demonstráveis
e não de apelo à intuição. Hilbert foi um dos
grandes contribuidores desta perspectiva
quando demonstrou que muitas das
premissas dadas como evidentes por
Euclides, tinham seu fundamento não
demonstrado e não eram auto-evidentes
como se supunha. Foi o começo do fim do
maior pecado matemático: o excesso de
credulidade matemática. Começava-se a
tomar uma atitude de suspeita frente ao
dado pela tradição antiga. Estava então posto
o começo da Crise dos Fundamentos
Matemáticos.
8. Putman [1988], p. 157.
9. O texto onde Gödel procede a esta
demonstração é: Acerca de Proposições
Formalmente Indecidíveis nos Principia
Mathematica e Sistemas Formais.
10. Seminário 14, A Lógica do Fantasma,
conferência de 231166, p. 27. Até onde
nossa pesquisa alcança, esta é a primeira
referência a Wittgenstein encontrada por nós
no seminário de Lacan.
11. Wang [1987], p. 113.
12. Wang [1987], p. 324.
13. Wang [1987], p. 240.
14. Wang [1987], p. 246.
15. Wang [1987], p. 325-326.
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