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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA

Departamento de Ciências Biológicas


Laboratório de Fisiologia Animal

Disciplina: Fisiologia Animal Comparada II – BIO368 – 2017-2


Prof. Brandão.

3a Reflexão de Fisiologia Animal Comparada II – BIO368

Nome: Fernando Rocha Santana

O mosquito Aedes aegypti possui diferenças no sistema digestório em relação ao gênero,


por causa do tipo de alimentação que ele possui, sendo a fêmea hematófaga e o macho
não-hematófago. Explique como essa adaptação pôde ter se estabelecido nessa e em
outras espécies semelhantes.

Bom trabalho !!!


3ª Reflexão- Fisiologia Animal Comparativa II: Integração de Sistemas Fisiológicos

Contextualização: explicação dos mecanismos evolutivos/ adaptativos a nível


bioquímico, biofísico e biomolecular

Dimorfismos em relação ao sexo dentro de uma espécie pode conferir diversas


vantagens como, por exemplo, possibilitar a ocupação de nichos ecológicos diferentes,
diminuindo a competição interespecífica, aumentando a aptidão e contribuindo para a
sobrevivência da espécie.
Diversas espécies de mosquitos (família Culicidae) possuem dimorfismos sexuais
relacionados ao sistema digestivo, essas modificações envolvem diversos aspectos do
sistema, passando por aspectos morfológicos e fisiológicos, esse último, envolvendo
processos bioquímicos, biofísicos e biomoleculares que, juntos, fazem desse dimorfismo
um mecanismo adaptativo eficaz e conferidor de fitness.
As adaptações acima mencionadas logram, em sumo, a capacidade e
especialização das fêmeas de metabolizarem o sangue ingerido dos seus parasitados de
forma eficaz e sem reações adversas e, no caso dos machos, a capacidade de
metabolizarem outros recursos alimentares, variando desde néctar a outros metabólitos
vegetais.
O surgimento de dimorfismos desse tipo que envolve fatores comportamentais,
morfológicos e fisiológicos integrados pode ser muitas vezes complexo de ser explicado,
pois, muitas vezes, faltam indícios ontogenéticos e evolutivos para postular uma hipótese
biologicamente possível e cientificamente aceitável.
Muito provavelmente, a característica ancestral é se alimentar de recursos
vegetais, uma vez que os Culicidae já existiam antes do surgimento de animais terrestres
possuidores de sangue, sendo desse modo, a hematofagia um comportamento alimentar
secundário nos membros da família Culicidae, podendo haver surgido diversas vezes
independentemente dentre as espécies dessa família.
Três características, provavelmente foram iniciais para o surgimento no hábito
hematófago: a capacidade de sentir a presença de um animal possuidor de sangue e de
detectar o vaso sanguíneo, o desenvolvimento de um aparato bucal apropriado para
inserção no tecido animal e a capacidade de gerar pressão suficiente para sugar.
Secundariamente, é necessário ser capaz de sentir quando iniciar a ingestão do sangue e
quando parar, isso pode ser possível através do uso de receptores de tensão no abdômen

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das fêmeas, evitando que essas explodam por excesso de sangue ingerido.
A habilidade de detectar a presença de uma fonte potencial de sangue pode ser
conseguida através de receptores odorantes ou ainda, no caso de parasitados
endotérmicos, pode-se fazer uso de termorreceptores, esses presentes em todos os
metazoários. No primeiro caso, o processo pode ser complexo, mas como sabemos os
receptores olfativos, em vez de ligar a moléculas específicas, esses exibem afinidade por
uma variedade de moléculas odorantes e, inversamente, uma única molécula odorante
pode se ligar a uma série de receptores olfativos com diferentes afinidades a depender de
propriedades fisioquímicas. Assim, há considerável possibilidade que esses animais antes
mesmo de desenvolver o hábito hematófago já fossem capaz de perceber certas
moléculas odoríficas de animais possuidores de sangue, nesse caso a seleção natural
pode somente haver favorecido as espécies mais eficazes em localizar seus potenciais
parasitados, culminando na especialização desses animais. O modo de surgimento de
cada adaptação será descrita posteriormente, uma vez que, como sabemos, os
mecanismos que culminam no surgimento de genes/fenótipo são os mesmos e não há
dados científicos sobre todos, levando-nos a apenas postular.
A geração de um gradiente de pressão suficiente para transportar o sangue
extraído através do canal alimentar foi conseguida possivelmente pela bomba cibarial e a
bomba faríngea localizadas na cabeça e presentes em vários artrópodes, sendo, no caso
das fêmeas de mosquitos, adaptadas ao longo de anos de pressão seletiva e seleção
positiva para a viscosidade e temperatura do sangue.
Claramente, de nada serve ser capaz de detectar, picar e sugar o sangue se não
for capaz de metabolizá-lo, assim, não menos importante foi a capacidade de produzir
enzimas que degradem as diferentes proteínas, lipídeos e carboidratos presentes no
sangue. A digestão é um processo enzimático em todos os outros seres vivos, portanto
necessitará de enzimas específicas para sua metabolização. Partindo do pressuposto que
a característica ancestral dos culicídeos é alimentação de metabólitos vegetais, é pouco
provável que possuíam tais vias enzimáticas específicas, assim, postulo que o surgimento
das enzimas para a digestão eficaz do sangue foi desenvolvendo-se ao longo do
processo evolutivo através de seleção positiva, aquela possuidora de uma força motriz
importante na expansão das famílias de genes para uma função específica, onde a
evolução adaptativa ocorre com frequência. Como em todo processo evolutivo, é
necessário haver variabilidade genético-fenotípica para que seleção natural possa agir de
acordo com as condições ambientais momentâneas, logo, é aceitável propor que, de certa

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forma, algumas enzimas produzidas ou pelo menos liberadas no sistema digestivo do
ancestral desses animais já eram capazes de metabolizar o sangue e por pressão seletiva
ao longo do tempo de relação parasita-hospedeiro à medida que surgiam inovações
metabólicas (genes para codificação de enzimas mais eficazes na degradação dos
substratos presentes no sangue), essas eram favorecidas e fixadas na população de
fêmeas, garantindo o aperfeiçoamento.
Ainda sobre o desenvolvimento de vias enzimáticas eficazes na digestão do
sangue, um estudo desenvolvido por WU et al (2009) encontrou evidências de seleção
positiva entre os genes Tryp_SPc (cujo os produtos gênicos são enzimas que, entre
várias funções, possibilitam a metabolização do sangue) sugerindo que a evolução
adaptativa foi uma força que impulsionou a evolução do traço hematófago para digerir
sangue exógeno, isso é consistente com a crença de que os genes hospedeiros
envolvidos no reconhecimento e interação com fatores ambientais são alvos preferenciais
para a diversificação adaptativa. Esses mesmos pesquisadores, demonstraram outra
função dos produtos gênicos de Tryo_SPc, esses quando tem sua expressão bloqueada
levam os mosquitos a perderem seu interesse em sangue, e mesmo quando ingerem
levam um longo período digerindo-o. Esse último dado demonstra um papel importante
desses genes na modulação do comportamento desses animais, podendo ser talvez o
iniciador do comportamento hematófago
Um fator biofísico de extrema importância é o gradiente osmótico gerado pela
ingestão de sangue, o sangue possui inúmeras moléculas osmoticamente ativas que
levam a uma pressão osmótica, podendo ocasionar a perda de soluto da hemolinfa e das
células que compõem os tecidos do estômago. Desse modo, as fêmeas hematófagas
devem possuir um mecanismo para impedir a perda de soluto intracelular e extracelular
ou ainda reverter a situação. Primeiramente, poderia haver plasticidade fenotípica
(variabilidade de mecanismos osmorreguladores com diferentes eficiências) dentro da
população de fêmeas e a seleção natural favoreceu aquelas que melhor faziam
osmorregulação (não importa aqui qual mecanismo utilizado inicialmente), sendo esses
genes passando adiante. Assim, randomicamente, os mecanismos criadores de novos
genes poderiam gerar genes, por exemplo, para a codificação de proteínas de membrana
na forma de canais iônicos que, a custo de energia e contra o gradiente de concentração,
possibilitassem a reabsorção de solutos importantes que foram perdidos para o sangue
ingerido. Esse processo aparentemente energeticamente dispendioso poderia ser viável e
recompensador, uma vez que possibilitaria melhor homeostasia ao longo da ingestão e

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metabolização do sangue, um alimento energeticamente gratificante.
Apesar das adaptações metabólicas acima descritas, o desenvolvimento de fatores
comportamentais também foi importante para otimização do hábito hematófago. Animais
usualmente fazem algum movimento brusco ao receber um dano tecidual, nesse caso, a
picada do mosquito, podendo inviabilizar a alimentação ou até causar danos fatais para o
mosquito. Baseado nisso, é plausível propormos que nesses mosquitos hajam estratégias
que levem o mosquito fêmea a se alimentar quando seus parasitados estão adormecidos.
Essa estratégia torna-se possível através da modulação do ritmo circadiano, mais uma
vez, a seleção deve haver favorecido as fêmeas possuidoras de genes que em conjunto
com os fatores ambientais as faziam capazes de se alimentar nos momentos que os
parasitados estivem menos ativos, diminuindo a chance de danos e otimizando a
quantidade de sangue ingerido.
A hematofagia traz muitas vantagens adaptativas, como já mencionadas acima,
mas traz consigo vários fatores aversivos. Esses fatores são, por exemplo, o aumento da
temperatura corpórea durante a alimentação de sangue de mamíferos e aves, e a
metabolização e excreção eficaz do íon ferro, esse último presente em abundância no
sangue e pode ser tóxico. Assim, para que o comportamento hematófago fosse
estabelecido na população, estratégias para lidar com tais situações devem ter surgido ao
longo da evolução e estarem sob altas pressões seletivas.
A regulação da temperatura corpórea durante a alimentação de sangue de
organismos endotérmicos é de essencial importância, uma vez que, mosquitos, como
todos os insetos, são ectotérmicos e seus processos metabólicos estão especializados
para funcionarem em uma faixa de temperatura bastante inferior a temperatura do sangue
que está sendo ingerido. Desse modo, para evitar, por exemplo, a desnaturação de suas
proteínas, ácidos nucléicos e manter a fluidez de suas membranas celulares, as fêmeas
devem possuir um mecanismo para diminuir a temperatura corporal nessas ocasiões.
Uma forma eficaz e que pode está presente é a evaporação de gotículas de fluido
corporal, desencadeada diretamente pela elevação da temperatura, sendo necessário que
a pele permita a passagem do fluido. Esse mecanismo condiz com os estudos
desenvolvidos por LAHONDÈRE & LAZZARI (2012).
Embora o íon ferro possua um papel importante no desenvolvimento e no estágio
inicial de vida dos mosquitos, a metabolização do íon ferro presente no sangue é
extremamente necessária, pois o ferro é corrosivo para as células, além de poder alterar o
pH do meio extracelular, levando a diversos problemas para vários componentes celulares

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e afetando a homeostase do soma. Assim, a pressão seletiva pode ter levado ao
surgimento de estratégias para aumento da tolerância direta ao íon ferro ou aos seus
efeitos secundários, como por exemplo, aumento da permeabilidade dos túbulos de
Malpighi ao íon ferro ou ainda o surgimento de uma substância com efeito similar a
deferoxamina, capaz de formar complexos com íon ferro, facilitando sua eliminação. Esse
levantamento vai de encontro ao desenvolvido por ZHOU et al., (2007), onde os
pesquisadores demonstraram que os mosquitos controlam as consequências da carga de
ferro da refeição de sangue através do bloqueio a absorção, excretando o excesso de
ferro, armazenando ferro absorvido em ferritina que é secretada na hemolinfa e através
da distribuição do ferro aos ovos e a tecidos diversos.
Podemos concluir que a habilidade de se alimentar de sangue, lograda graças à
junção de todas as adaptações do sistema digestivo, foi de extrema importância para o
desenvolvimento e especialização das espécies que a possuem, pois além de diminuir a
competição intraespecífica, aumentou a qualidade do alimento das fêmeas, uma vez que
o sangue é um tecido extremamente rico em proteínas e lipídeos, possibilitando a postura
de maior quantidade de ovos viáveis e consequentemente maior número de prole.
Considerando que, no nível molecular, a maioria das mudanças evolutivas e a
maior parte da variabilidade dentro de uma espécie não são causadas pela seleção, mas
pela derivação randômica de genes mutantes que são seletivamente equivalentes, o
processo de surgimento de cada característica fenotípica anteriormente mencionada deve
ter sido gradual. Isso se deve, como sabemos, às taxas de ocorrência de mecanismos
que possam levar ao surgimento de novos genes e fixação destes (mutação, duplicação
gênica, deriva genética, por exemplo) são baixas e dependem do tamanho da população
ancestral.
Esses mecanismos acima descritos, provavelmente foi o primeiro passo, abrindo
então a possibilidade de surgimento, randomicamente, de outros comportamentos e
adaptações metabólicas, que ao passo que conferiam fitness e tornavam as fêmeas e as
espécies que as possuem mais competitivas, aumentavam a chance de sobrevivência e
fixavam-se na população, estabelecendo assim o dimorfismo de sistema digestivo nos
diferentes táxons de culicídeos.

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Referências bibliográficas

LAHONDÈRE, C.; LAZZARI, C. Mosquitoes Cool Down during Blood Feeding to Avoid
Overheating. Current Biology, v. 22, n. 1, p. 40-45, 2012. DOI: 10.1016/j.cub.2011.11.029

ZHOU, G. et al. Fate of blood meal iron in mosquitoes. Journal of Insect Physiology, v.
53, n. 11, p. 1169-1178, 2007. DOI: 10.1016/j.jinsphys.2007.06.009

WU, D. et al. A Profound Role for the Expansion of Trypsin-Like Serine Protease Family in
the Evolution of Hematophagy in Mosquito. Molecular Biology and Evolution, v. 26, n.
10, p. 2333-2341, 2009. DOI: 10.1093/molbev/msp139

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