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Sarah Pinborough, escritora e guionista, vive em Milton Keynes e é um dos mais destacados nomes da nova geração de escritores de

thriller psicológico. Na sua ainda curta carreira, foi-se impondo como autora de contos e novelas e por isso, em 2009, conquistou o
British Fantasy Award na categoria de conto e, em 2010 e 2014, ganhou o mesmo prémio na categoria de novela.
O seu nome aparece também associado à escrita para cinema e televisão, nomeadamente para a BBC.
Título original: 13 Minutes
1.ª edição em papel: maio de 2017
Autora: Sarah Pinborough
Tradução: Cláudia Brito
Revisão: João Pedro Tapada
Design da capa: craigfraserdesign.com
Imagens da capa: © Shutterstock Images

© Sarah Pinborough, 2016


First published 2016 by Gollancz an imprint of the Orion Publishing Group
[Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, exceto Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda.]

Esta edição segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Bertrand Editora
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
www.bertrandeditora.pt
editora@bertrand.pt
Tel. 217 626 000

ISBN: 978-972-25-3446-8
Para Baria,
Gonzo para o meu Duke
e Pats/Eds para os meus Eds/Pats,
com muito amor.
PARTE UM
1

Ofélia.
Era jovem. Não teria mais do que dezoito anos. Provavelmente menos. O seu cabelo podia ser
louro ou castanho, não se percebia bem, ensopado como estava ao lusco-fusco. Tinha roupa branca,
que contrastava com a negrura do rio, quase um realce da neve fresca e pesada que cobria o solo. O
rosto pálido, com os lábios azuis ligeiramente entreabertos, estava virado para o céu manchado.
Estava enredada em galhos, como se os ramos inclinados, despojados de folhas e fraturados pelo
inverno, a tivessem agarrado para a salvar e para a manter à superfície.
A respiração dele libertava uma névoa espessa.
Conseguia ouvir a pieira forte no peito, embora o ladrar frenético de Biscuit, o alarme que o
levara a ir do caminho até à margem do rio, parecesse vir de um local distante. Estava petrificado.
Eram cinco e quarenta e cinco da manhã e estava uma rapariga morta no rio.
Sou um lugar-comum, foi o pensamento coerente que lhe ocorreu. Sou o homem que vai passear
o cão de madrugada e encontra um cadáver.
Biscuit corria de um lado para o outro sobre a neve suja à beira da água. Exasperado, ansioso,
perturbado por aquela alteração da rotina diária. Por aquela irregularidade. O cão voltou-se e ganiu
para o dono, mas o homem não conseguia despregar os olhos e tinha os dedos enterrados no telefone
enfiado no fundo do bolso do casaco grosso.
E foi então que viu. Uma ligeiríssima contração da mão dela. E alguns momentos depois, outra.
Costumava ir passear Biscuit de manhã cedo, não por necessidade, mas por causa do silêncio.
Porque o tempo avançava mais devagar nas horas antes do despertar do mundo. A tranquilidade era
absoluta e, assim como assim, nunca fora muito de dormir.
O passeio do fim do dia era para as conversas cordiais com outros donos, enquanto os cães
corriam pelo bosque e pelos espaços verdes. As manhãs eram para ele. Era a sua rotina, regular,
nunca quebrada pelo estado do tempo e só raramente quando estava doente. Acordar às cinco, mesmo
que só tivesse terminado as gravações às duas da manhã. Café. Sair às cinco e vinte em ponto.
Naquela manhã, porém, tinham-se atrasado cinco minutos, o que era raro. Biscuit escondera a
coleira, que ele acabara por encontrar debaixo do sofá. Atravessavam o prado, passavam pelo rio
serpenteante, uma hora e pouco no bosque e comprava depois os jornais a caminho de casa, para ler
ao pequeno-almoço. Se estivessem prontos, levava também um croissant quente da padaria. Aqueles
momentos eram sagrados e pertenciam apenas a ele e a Biscuit. Eram horas suplementares de vida
preciosa. Às vezes, ligava à irmã mais nova, em Nova Iorque, apanhava-a antes de ela ir para a
cama, para se certificar de que o seu mundo estava a girar na direção certa, e tinham um momento de
dor e de prazer, antes de o rio da vida dela a reclamar e a transportar para longe. Algumas manhãs,
era ela que o surpreendia com um telefonema, e essas eram as melhores.
A mão marmoreada teve outro espasmo e, de repente, ele sentiu o frio na pele, o coração a bater,
ouvia perfeitamente os latidos estridentes de Biscuit, e pouco depois tinha o telefone no ouvido e a
sua voz juntou-se ao alarido. Quando terminou, atirou o telefone para o chão e despiu o casaco. O rio
não levaria aquela rapariga antes de a hora dela ter chegado.

O resto foi uma névoa indistinta. O choque da água fria contra as pernas, que lhe tirou o ar dos
pulmões. Sentir-se a escorregar. Quase a submergir. A respiração ofegante. Os dedos dormentes a
puxarem-na para a margem. O peso das roupas encharcadas da rapariga, o peso inesperado das suas.
Embrulhar o corpo murcho dela no casaco. A firmeza do cabelo ensopado. O ar quente que não lhe
saía da boca. Falar com ela com os dentes a bater. Biscuit a lamber o rosto gelado dela. As sirenes.
O cobertor embrulhado à sua volta. Acompanhe-me, por favor, senhor McMahon. Isso, vou ajudá-
lo. Descanse, nós tratamos disto agora. Pôr-se de pé sobre pernas vacilantes e ser levado para a
ambulância. Mas não antes de ver os rostos sombrios. Um abanar de cabeça. O desfibrilhador.
Afastem-se!
O silêncio sinistro enquanto eles trabalhavam. Ele, o mundo, a natureza: tudo imobilizado. Mas o
tempo, não. O tempo continuara. Quantos minutos? Quanto tempo haviam estado sentados na margem
sem que ela respirasse? Quanto tempo antes de a ambulância chegar? Dez minutos? Mais? Menos?
Sinto-lhe o pulso! Sinto-lhe o pulso!
E depois as lágrimas dele, quentes e súbitas, a irromperem do fundo de si.
Biscuit, ao seu lado, aproximou mais o pelo encharcado e malcheiroso, com as patas a rasparem-
lhe o rosto, a língua na sua face, e lambia, farejava e gania. Pôs um braço à volta do cão, puxou-o
para debaixo do cobertor, olhou para o céu de inverno, que não era de noite nem de dia, e pensou que
nunca gostara tanto dele.
2

Sábado, 09h03
Jenny
N estás a atender. Atende!

09h08
Jenny
Tens o tlmv no silêncio? ACORDA!

09h13
Jenny
Estou a passar-me. A minha mãe está
a chorar. Acho que ainda está bêbeda.
Diz que quer ir ao hospital.

09h15
Jenny
ATENDE, PORRA!!!!!
Que se passa?

09h17
Hayley
Desculpa, o meu pai estava aqui!!!
Acordou-me.
Estou a tremer.
Ligo-te do duche. Apaga SMS.
Os 2 de ontem. Fds!

09h18
Jenny
OK.

09h19
Hayley
NÃO DIGAS NADA.
3

— Rebecca!
A voz da mãe, aguda e severa, era um espinho no cérebro de Rebecca. Tapou a cabeça com o
edredão para não ouvir e voltou a mergulhar num sono parcial. Era sábado. Era cedo demais. Fosse
qual fosse a hora, era cedo demais. E, além disso, estava frio. Tinha os dedos dos pés gelados, e uma
corrente de ar entrava sorrateiramente por entre as aberturas da roupa da cama. Prendeu-a melhor
com o pé e enrolou-se bem.
— Rebecca! Vem cá abaixo! É importante!
Não se mexeu. Fosse o que fosse, podia esperar. Mais cinco minutos, pelo menos. Respirou
devagarinho para não ter de destapar a cabeça para respirar. O cabelo tresandava a fumo e sentia
uma ligeira dor de cabeça, uma prenda de despedida da erva e do tabaco que fumara na noite
anterior. Se ainda não fosse meio-dia, matava a mãe. Os sábados eram seus. Era isso que tinham
combinado.
— Vem cá abaixo! Estou a falar a sério!
Afastou o edredão e sentou-se, furiosa. O que seria assim tão urgente? Vasculhou a memória
turvada. Não tinha comido nada ao chegar, por isso não deixara caixas de piza nem latas de Coca-
Cola espalhadas pela cozinha. Não deixara a televisão ligada. Dera duas voltas à chave. Fora
simplesmente para casa, entrara no quarto sem fazer barulho e fumara um último charro à janela,
antes de perder a consciência à frente de uma comédia merdosa qualquer na Netflix. Nem sequer
tinha chegado a casa atrasada. Olhou pela janela aberta e suspirou. Boa, Bex. Não admira que isto
pareça a Antártida. Pelo menos, não havia ponta de cheiro de cigarro no ar.
— Becca! — Uma pausa. — Por favor, querida!
— Já vou! — gritou, com a voz como gravilha e a cabeça a latejar do esforço. Acabaram-se os
cigarros, pensou, enquanto puxava as calças de fato de treino e enfiava pela cabeça a camisola da
noite anterior. Sentia o peito cheio de porcaria. O quarto parecia uma arca frigorífica e tinha a pele
toda arrepiada. Sumo. Precisava de sumo. E de uma caneca de chá. E de uma sanduíche de toucinho.
Talvez ir lá abaixo não fosse assim tão má ideia. Pelo menos, estava quente. Mas ainda assim,
conversar com a mãe logo ao acordar não era nunca do que ela precisava. Preferia sair da cama
quando já não estava ninguém em casa. Ter um bocado de sossego que não exigisse trancar-se no
quarto. Mais dois anos e podia escapar para a universidade. Sair daquela casa, daquela cidade
sufocante, e partir para a liberdade. Londres, talvez. Uma grande cidade, isso sem dúvida. Um sítio
para onde o Aiden pudesse ir com ela e trabalhar na sua carreira musical.
Viveriam como boémios e, um dia, as revistas haviam de escrever artigos sobre o casal de
celebridades que em tempos se alimentara de massas de pacote, algures num apartamento degradado
e encardido (mas todo estiloso), enquanto perseguia os seus sonhos. Era assim que ia ser. Mas
faltavam ainda dois longos anos antes de isso ser mais do que uma fantasia de ganzada.
Prendeu o cabelo numa coisa parecida com um rabo de cavalo, vaporizou-o com desodorizante e
saiu aos tropeções do seu refúgio, agarrando no telefone que estava em cima da mesa de cabeceira.
Carregou no botão para ver as horas. Dez e trinta e quatro.
Catorze mensagens, mais seis no WhatsApp e duas chamadas perdidas. Franziu o sobrolho,
perplexa com a lista de nomes que apareceu. Não era assim tão popular. Nunca acordava com catorze
mensagens, a menos que fossem do Aiden, se estivesse pedrado e com tusa. Inspecionou-as enquanto
descia as escadas. Eram quase todas mensagens de grupo. Logo vira. Era um adereço social. Não
deixou que as minúsculas agulhas a picassem. Estava-se nas tintas.

Já souberam?

Viram o que aconteceu à Tasha Howland?

Que cena! Veio nas notícias!


Têm de ver!

Quando as leu todas e chegou à cozinha já estava completamente desperta. Tinha a boca seca.
A mãe estava de pé, ao lado da ilha da cozinha, a olhar para a pequena televisão ao canto, aquela
que o pai tentara tanto que elas não comprassem — são televisões a mais, computadores a mais,
telefones a mais, é só tecnologia, já ninguém fala com ninguém. Mas perdera a batalha, dois contra
um. Tinha à frente um prato com uma torrada, mas não estava a comê-la. Nem sequer virou a cabeça,
limitou-se a fixar o televisor, com o rosto pálido.
Becca sentiu um formigueiro na pele, em parte de apreensão, em parte de excitação.
— Que aconteceu à Tasha? — perguntou. — O meu telefone passou-se.
A mãe voltou-se então e abraçou o corpo hirto de Becca, envolvendo-a no aroma quente de base
e de perfume cítrico. Mesmo aos sábados, Julia Crisp fazia um esforço. Os seus braços esguios eram
todos eles músculos e tendões por baixo da camisola de caxemira, e Becca sentiu-se logo novamente
a criança gorda que fora em tempos. Tal mãe, tal filha era uma expressão que não se aplicava a elas.
— É horrível. Está em coma. Vem em todos os noticiários.
A mão da mãe afagou-lhe as costas, mas Becca afastou-se, fingindo ver melhor do sofá. A mãe
incomodava-a. Os anos de adolescência tinham desenhado fronteiras entre elas que nenhuma das duas
sabia como transpor.
— Tenho a certeza de que ela vai ficar bem, querida. Tenho a certeza.
— Foi um acidente de carro?
A Natasha em coma? Não podia ser verdade. Essas cenas não aconteciam a raparigas como
Natasha. Aconteciam a raparigas como Becca.
Puxou um banco e sentou-se a ver, ignorando o zumbido do telefone e a mãe a esvoaçar à sua
volta. No ecrã estavam Hayley e Jenny, de olhos vermelhos, mas ainda assim perfeitas, a entrar no
hospital, com os respetivos pais agarrados a elas como folhas de outono agarradas a lã. As outras
duas Barbies. Claro que tinham de lá estar. A correr para a cabeceira da sua adorada chefe.
— Sei que vocês já foram muito amigas, querida, queres que…
— Chiu.
Mandou calar a mãe sem sequer olhar para ela, enquanto a jornalista, com o nariz vermelho
devido ao frio intenso, afastava o cabelo que o vento lhe atirava para o rosto e falava ao microfone
com aquela falta de sinceridade que só os jornalistas da televisão têm.

Uma hora mais tarde, Becca estava de pé na pequena varanda do apartamento de Aiden, a tremer
ao seu lado enquanto ele acendia um Marlboro Light. Estendeu-lhe o maço, e ela tirou um, mandando
para as urtigas a primeira decisão da manhã. Que se lixe. De qualquer maneira, era cedo demais para
um charro e mesmo na atmosfera desleixada e descontraída da casa da mãe de Aiden não era
permitido consumir drogas às claras. Ela podia suspeitar que ele fumava — devia sentir o cheiro que
saía do quarto dele — mas estava longe de o consentir.
— Dizem que ela esteve morta durante treze minutos. — Becca mudou o peso de um pé para o
outro para espantar o frio enquanto fumavam. — Dizem que foi um milagre terem conseguido
reanimá-la.
— Foi uma sorte ter ficado tanto frio.
Aiden olhou pela janela, para lá da neve que caía com intensidade desde a madrugada. Becca
pensou que ele parecia quase angélico, perfilado contra o branco e cinzento que cobria o mundo.
Talvez não um anjo aos olhos de outros, mas o seu anjo. Rosto pálido, traços vincados, cabelo escuro
e espesso e aqueles olhos claros, de um azul brilhante, por baixo da franja comprida. Um anjo ou um
vampiro. Becca ainda tinha de se beliscar às vezes para acreditar que ele era seu.
— Deve ter sido o que a salvou — disse ele. — A água devia estar gelada e baixou-lhe a
temperatura tão depressa que lhe pôs o coração numa espécie de hibernação.
— Como sabes essas coisas? — perguntou Becca.
Ele sorriu, envergonhado.
— Vi num filme antigo de extraterrestres, passado debaixo de água.
— Mas não é estranho? Ter morrido e não morrer — disse Becca. — Treze minutos é muito
tempo.
— Será que ela viu alguma coisa? Sabes, luzes brilhantes, esse género de cenas.
— Conhecendo a Natasha, mesmo que não tenha visto, quando acordar dirá que viu.
Era um comentário mordaz, mas Becca não o conseguiu evitar. Os seus sentimentos por Natasha
eram uma bola de arame que não conseguia desenredar. Tinha saudades da sua amiga de infância,
mas não reconhecia a nova Natasha Barbie. A sua Natasha usava aparelho nos dentes e gostava do
Clube de Xadrez. A sua Natasha fora a sua Melhor Amiga Para Sempre. Na altura, Becca não
percebera que Para Sempre só duraria até os seios de Natasha crescerem, ela tirar o aparelho e se
transformar subitamente numa brasa, e Becca continuar uma pateta rechonchuda, que rapidamente foi
descartada.
— Se ela acordar — disse Aiden, soltando uma longa nuvem de fumo. — Disseram no noticiário
que estava inconsciente. Pode ter ficado com lesões cerebrais ou coisa do género.
Becca pôs-se a imaginar. Já vira imagens de pessoas com lesões cerebrais na televisão e nunca
ficavam exatamente iguais ao que eram antes. Natasha morta teria, pelo menos, uma certa beleza
trágica. Natasha com lesões cerebrais e ligada para o resto da vida a máquinas que a ajudavam a
cagar e a mijar enquanto se babava para dentro da sopa era uma imagem horrenda.
— Mas que estava ela a fazer lá? — perguntou Aiden. — No bosque, à noite? Achas que alguém
a levou para lá?
— Não faço a mínima. — Becca encolheu os ombros. — Parece que ninguém sabe. Estão todos
tão histéricos que não dizem nada de jeito.
A colmeia, como ela pensava na escola às vezes, estava em alvoroço desde que a notícia se
soubera. SMS, WhatsApp, fotografias de Instagram do rosto bonito e sorridente de Natasha, tweets
de toda a gente em choque e perturbada, a escola toda a proclamar o quanto a adorava, como se, de
alguma maneira, parte do que lhe acontecera lhes pertencesse também. #TashaParaSempre já devia
andar a circular por todo o lado. O zunzum era elétrico. Fervia-lhe debaixo da pele.
Becca não tinha carregado nenhumas fotografias antigas para a conta de Instagram, nem para o
Facebook ou para o Twitter. Em parte porque não tivera tempo. A verdade é que não tinha assim
tantos seguidores e também por receio da enxurrada de mensagens publicadas nas suas costas que,
sem dúvida, se seguiriam, a dizer Viram o que a Becca Crisp publicou? Agarrada aos seus dias de
glória!
Embora tivesse odiado Natasha durante uns tempos, quando esta a trocara tão descaradamente
por Jenny, o novo membro do trio de Barbies perfeitas, isso acontecera há muito tempo, e Tasha
havia de ficar furiosa se o mundo recordasse o cabelo feio e os dentes tortos da sua infância. Nem
naquele momento Becca seria capaz de lhe fazer isso.
— Houve uma rapariga que desapareceu em Maypoole há uns meses — disse Aiden. — Talvez
seja o mesmo tipo.
— O mais certo é ela ter fugido.
Becca atirou a ponta de cigarro para a caneca que estava em cima da mesa, onde já outras
apodreciam nos dois centímetros de água castanha espessa no fundo. Sentia a boca seca e os pés
gelados. Fungou.
— Vamos para dentro? Ver um filme?
Quando Aiden olhou para ela, pensativo, Becca sentiu os cabelos da nuca eriçarem-se
ligeiramente.
— Não queres ir ao hospital? — perguntou ele.
— Porquê? — retorquiu ela num tom impertinente. — Tu queres? Sentes que tens de ir ver como
está a donzela em perigo?
Ele riu-se e puxou-a para si.
— Meu Deus, como és idiota! Convidei-a para sair uma vez. Há quase dois anos. Agora tenho
mais bom gosto.
Ela inspirou o cheiro a cabedal do casaco dele. Ele pertencia-lhe. Ela sabia. Não havia nada pior
do que parecer carente; não havia nada pior do que sentir-se carente. Porque não ficara de boca
calada?
— Eu sei.
Expirou ar quente para o seu próprio rosto escondido. Ele recuou.
— Além disso, ela foi uma cabra. Estou-me nas tintas para a Natasha Howland. Mas ela foi a tua
melhor amiga durante uns anos. Devias lá ir. Nem que seja pelos pais dela.
A mãe dissera-lhe quase exatamente a mesma coisa quando Becca agarrara no casaco, anunciando
que ia sair. Por alguma razão, parecia mais aceitável vindo de Aiden.
— Está bem — acedeu, relutante. — Está bem, se calhar devíamos lá ir. — Ergueu os olhos para
ele e deu-lhe um beijo na boca que cheirava a cigarro frio. — Mas podemos parar no McDonald’s a
caminho? Estou cheia de fome.
Ele sorriu.
— É por isso que és a minha miúda. É só classe.
O telefone dele vibrou, e ele franziu o sobrolho enquanto lia a mensagem.
— Que cena, isto é estranho.
— O quê?
— Também tenho de ir ao hospital. Mas tenho de ir buscar uma coisa primeiro. É o Jamie.
Também lá está.
4

Era estranho ver Alison Howland, a mãe de Natasha, tão frágil e chorosa. Becca deu por si a
chorar também e a soltar grandes soluços que lhe vinham do nada e lhe magoavam o peito. Gary
Howland estava entre as duas, com as mãos desajeitadamente pousadas sobre as costas de cada uma,
incerto do seu papel naquele mar de emoção feminina. Tinha os maxilares contraídos e os olhos um
bocadinho abertos demais, mas com exceção disso e das costas hirtas, era difícil perceber se sentia
alguma coisa. Mas Becca nunca o conhecera bem. Ele estava sempre a entrar e a sair de casa,
desaparecia no escritório ou no clube de ténis e sorria-lhes quando as via brincar, mas claramente
com a cabeça noutro lugar. Becca achava que era assim que uma pessoa se tornava rica e bem-
sucedida. Ele não era daqueles pais envolvidos. Natasha estava, por certo, infinitamente grata por
isso.
— Que bom teres vindo, Rebecca — disse Alison, limpando mais umas lágrimas ranhosas. A
senhora Howland tratava-a sempre por Rebecca, nunca por Becca ou Bex, tal como Tasha era sempre
Natasha. — És um amor. Foste uma boa amiga da Natasha. — Foste. Becca não fez nenhum
comentário, limitou-se a um assentir vago. Como toda a gente, Alison tinha consciência de que Becca
já não fazia parte do círculo íntimo. O círculo íntimo estava ali ao lado, com os olhos delicadamente
cansados bem maquilhados, as duas a consultar o telemóvel. Hayley e Jenny. Tão idênticas e, no
entanto, tão diferentes.
Jenny possuía uma sensualidade discreta e uma elegância aristocrata, Hayley tinha uma aparência
atlética de classe média. Um corpo firme. Já não trepava a árvores, mas quando abandonara os
modos de maria-rapaz não desistira do desporto. Era a corredora mais rápida da escola. Nunca a
viam sem batom. E usava sempre os calções mais curtos, por muito que a mandassem vestir outros.
As duas raparigas não olharam para Becca, e esta dirigiu a atenção para Alison Howland.
— Só vim cá… dar o meu apoio — acabou Becca por dizer. — A minha mãe também manda
cumprimentos. — Aquilo era suficientemente neutro. — Tenho a certeza de que a Tasha vai ficar
bem. Tenho a certeza.
— Não percebo que estava ela lá a fazer. — O olhar de Alison deslocou-se para trás de Becca e
mergulhou no seu pesadelo pessoal, mas as mãos agarraram-se às da rapariga como se ela fosse uma
âncora, a única coisa que a impedia de ser completamente arrastada. Tinha as palmas das mãos secas
e ásperas, como se toda a humidade do seu corpo se tivesse esvaído com o pranto. — Que fazia ela
naquele sítio àquela hora? Com aquele tempo?
Qualquer coisa no tom de voz de Alison, e na ausência de resposta de Hayley, de Jenny e de
Gary, levou Becca a pensar que aquilo eram perguntas que a mãe de Natasha repetira em voz alta
durante as últimas horas.
Becca começou a sentir-se claustrofóbica na atmosfera tensa da pequena sala de espera do
hospital. As luzes pareceram-lhe de súbito demasiado vivas e o ar demasiado quente e rarefeito. Por
baixo do pesado casaco acolchoado, sentia o suor a picar-lhe a pele. O seu lugar não era ali.
No momento em que pensou que ia ter de se libertar das mãos de Alison Howland e sentar-se por
um instante, a porta abriu-se. A cabeça de Alison voltou-se num ápice, mas logo a seguir os seus
ombros descaíram. Não era um médico.
— Inspetora Bennett, há alguma coisa que…? — começou Gary, mas a inspetora abanou a
cabeça.
— Não — respondeu. — Só queria dar uma palavrinha às raparigas. — A inspetora Bennett não
tinha maquilhagem e usava o cabelo apanhado num rabo de cavalo prático. Parecia cansada quando
dirigiu a Alison um ligeiro sorriso. — Vamos ver se conseguimos reconstituir os movimentos da
Natasha. Os médicos dizem que, se quiserem, podem entrar e estar um bocadinho com ela.
— Obrigado — disse Gary, com uma mão sobre o ombro da mulher.
A inspetora segurou a porta, e os pais de Natasha apressaram-se a sair. Alison estava novamente
lavada em lágrimas. Era horrível, concluiu Becca. Claro, objetivo, real e, no entanto, irreal. Natasha
estava ali algures a lutar pela vida. Natasha. A Natasha perfeita e inquebrável.
— É melhor esperar lá fora? — perguntou Becca.
— És amiga da Natasha?
Becca não sabia bem como responder com franqueza.
— Mais ou menos. Já fomos amigas. Andamos na mesma escola, mas há alguns anos que não nos
damos muito. — Lançou um olhar às duas louras. — A Hayley e a Jenny são as melhores amigas
dela.
Hayley baixou os olhos. Hayley, que costumava atirar-se de ramo em ramo até Tasha e Becca
guincharem de medo e de riso com receio de que ela caísse. Hayley, que vacilara ligeiramente
quando Natasha cerrara fileiras contra Becca. Fora lá a casa jantar furtivamente uma ou duas vezes,
mas acabara por escolher o lado da outra e lá se mantivera. O lado dos vencedores. O lado com
pinta. O lado de Natasha. Sim, Hayley bem podia ir dar uma curva.
Os olhos da inspetora saltaram das duas Barbies para Becca e vice-versa enquanto encaixava
mentalmente as peças da história. Não era propriamente invulgar. A amiga enfadonha é trocada por
amigas mais bonitas e mais populares. A avaliar pela aparência desalinhada da inspetora — Que
idade teria? Trinta? Menos? Já é velha, de qualquer maneira —, talvez tivesse sido vítima de um
tratamento semelhante quando andava na escola.
— Também podes ficar — disse a mulher. — Isto não é um interrogatório formal. E talvez tenhas
uma perspetiva diferente.
Pois, pensou Becca. Pode crer que tenho.
— Que acha que aconteceu? — perguntou Jenny.
— Ainda não temos a certeza. Pode ter sido apenas um acidente. Uma brincadeira que deu para o
torto.
— Alguém lhe terá feito mal? — Hayley tinha os olhos muito abertos. — O Gary contou-me que a
senhora lhes disse que ela não foi… Que ninguém a tinha…
— Não foi violada, não. — A resposta direta da inspetora Bennett sobressaltou Becca e fê-la
desviar-se da careta interna que fizera ao ouvir Hayley pronunciar Gary. Tão falsamente adulto. Até
àquele momento, nem tinha pensado em violação. O que era estranho porque, muito frequentemente,
era disso que se falava, mesmo que fosse apenas nas entrelinhas. Não bebas demasiado porque pode
acontecer qualquer coisa. Não vistas isso, vais dar a ideia errada. Volta sempre para casa com uma
amiga ou de táxi. Não te ponhas com seduções. Blá-blá-blá. Pelo menos, desde que andava com
Aiden a mãe tinha parado de dizer aquelas coisas. Como se agora que tinha um namorado tivesse
quem a protegesse. Perguntou a si mesma se a mãe teria consciência de como essa ideia era idiota.
— Temos de perceber o que a Natasha fez a noite passada e durante as primeiras horas desta
manhã. — A inspetora sentou-se e, quais ovelhas, as três raparigas imitaram-na. — Aqui não há
culpas, ninguém vai arranjar problemas, mas se ela foi atacada, é vital que consigamos o máximo de
informação possível.
— Então ela está ferida? — perguntou Becca. — Quero dizer, além de… — Não terminou a
frase. Além de ter estado morta durante treze minutos.
— Tem uns cortes e umas nódoas negras, talvez causados por ter estado no rio. Como disse, não
sabemos se terá sido um acidente, se foi intencional, ou um incidente que envolveu mais alguém.
Intencional. A palavra, que não se adequava bem, ecoou na cabeça de Becca, tentando ganhar
sentido. Surpreendentemente, Jenny foi a primeira a reagir e soltou uma gargalhada áspera que
destoou da solenidade da sala.
— Acha que a Tash pode ter tentado suicidar-se?
— Estamos a considerar todas as possibilidades.
— Não — disse Jenny, abanando a cabeça categoricamente. O seu cabelo não era tão comprido
nem tão perfeitamente liso como o de Hayley. Prendeu uma madeixa encaracolada atrás de uma
delicada orelha furada. A pedra do brinco era vidro barato, não era diamante. A Barbie Cinderela, da
zona pobre da cidade.
— Não, a Natasha não faria isso. E muito menos dessa maneira. Não se atiraria a um rio gelado.
— Pois não — acrescentou Hayley, como se os três «nãos» não fossem suficientemente
perentórios.
A inspetora Bennett virou-se para Becca. Esta encolheu os ombros, hesitante. Para ela, o que ali
se passava transcendia a investigação policial. Tinha de escolher as palavras com cuidado. Não
queria aborrecer as Barbies, nem parecer que estava a dar-lhes graxa. Sobretudo Hayley. Hayley fora
amiga dela e sabia irritá-la de uma maneira que Jenny não conseguia. Jenny era insignificante. Mas o
que quer que Becca dissesse naquele momento poderia virar-se contra ela sob a forma de
comentários maldosos no Twitter, atualizações de estados e olhares eloquentes. As palavras corriam
como uma vedação de arame farpado na comunidade adolescente daquela pequena cidade, prontas a
arranhar, a rasgar e a destruir.
— Não me parece. — E tinha razão. Se Tasha tencionasse suicidar-se, escolheria uma coisa
muito mais romântica. E Natasha não era do género suicida. — As pessoas incham quando se afogam,
não é? — perguntou. — Se não fosse encontrada depressa, teria ficado com um aspeto horroroso. Ela
não ia gostar disso.
O rosto de Hayley endureceu. Cabra. Cabra de merda. Becca conseguiu ler-lhe perfeitamente os
pensamentos na faísca verde do olhar. Olhou-a fixamente também. E então? Era exatamente o que
Jenny queria dizer. Era o que Hayley estava a pensar. Becca teve vontade de se rir delas. Mesmo com
a sua chefe inconsciente, não suportavam ouvir uma palavra contra ela. Eram patéticas.
— Quando foi a última vez que viram a Natasha?
A inspetora Bennett não olhou para Becca quando fez a pergunta.
— Foi na escola — respondeu Hayley, e Jenny confirmou com um movimento de cabeça. —
Tínhamos combinado encontrar-nos talvez hoje à noite, mas ela tinha uma combinação qualquer com
a família, os anos da avó ou coisa do género, de modo que dependia das horas a que estivesse
despachada.
— Não trocaram mensagens, nem falaram com ela depois disso? — A inspetora esboçou um
pequeno sorriso. — Pensei que vocês passavam a vida coladas aos telefones.
Era uma afirmação para alivar a tensão, mas continha uma interrogação.
Jenny abanou a cabeça.
— Não.
— Vocês saíram ontem à noite?
Mais meneios de cabeça.
— O tempo estava uma porcaria. E tínhamos trabalhos de casa para fazer. — Hayley assumia a
chefia, a delegada de Natasha ocupava a ribalta. — Às vezes, é preciso fazer o que os pais querem
— disse com um sorriso malandro. — E tínhamos as duas de trabalhar para as audições da peça da
escola. E a Natasha também. Vamos apresentar As Bruxas de Salém. Vai ser incrível.
— Então a Natasha não lhes disse nada?
— Não.
Becca, quase esquecida, reparou na repetição da pergunta.
— Não tem o telefone dela? — perguntou. — Não pode ver quem lhe telefonou?
A inspetora lançou-lhe um olhar avaliador.
— Estragou-se por causa da água. Ela tinha-o no bolso. Estamos à espera de que cheguem os
registos das chamadas. — Fez uma pausa. — Presumo que não a tenhas visto. Também ficaste em
casa?
Becca abanou a cabeça. O tom da inspetora era leve, mas Becca sentiu-se a corar com a pergunta,
como se fosse culpada, como se tivesse empurrado Natasha para a água gelada e a tivesse deixado lá
a morrer.
— Fui a casa do meu namorado e voltei por volta da meia-noite. Ele deu-me boleia de carro, e eu
fui para a cama. Pode perguntar-lhe, se quiser, ele está por aí algures. Tivemos de trazer umas roupas
para o senhor McMahon.
Os olhos dela estreitaram-se.
— Jamie McMahon?
Becca anuiu.
— O Aiden trabalha para ele. Toca guitarra e baixo para as bandas sonoras que o Jamie faz.
— Quem? — perguntou Hayley.
Becca sentiu um arrepio de euforia. Tinha algo que as Barbies não tinham. Um envolvimento com
a situação, que elas não podiam reivindicar.
— O homem que tirou a Natasha do rio — disse a inspetora Bennett, sem olhar para Hayley. —
Como é que o senhor McMahon conhece um estudante de liceu?
— O Aiden já não anda na escola — disse Becca. — Tem dezanove anos. O senhor McMahon
deu-lhe aulas de música quando ele era miúdo.
— É uma cidade pequena, estou a ver — disse a mulher, exibindo novamente o seu meio sorriso.
— Demasiado pequena — disse Becca, tentando sorrir-lhe também. Sentiu-se novamente
constrangida, o que era idiota. Não tinha feito nada de mal.
— Então, acham que a Natasha era feliz?
Todas anuíram.
— Ela tem namorado?
— Nada de muito sério — disse Hayley. — Os rapazes gostam dela, mas não há ninguém que lhe
interesse verdadeiramente. E ninguém andava a assediá-la nem nada do género. Ela teria contado.
— Ela esgueira-se muitas vezes de casa sem autorização?
Observou todas as raparigas, como se as outras perguntas tivessem meramente preparado o
terreno para esta. Seguiu-se uma pausa eloquente, durante a qual Hayley e Jenny consideraram até
que ponto deveriam ser francas.
— De vez em quando. Não muitas vezes — respondeu Hayley. — Para dizer a verdade, os pais
dela são muito permissivos. Deixam-na fazer quase tudo o que ela quer. Se saiu à noite, deve ter sido
pela janela do quarto, pela árvore das traseiras. Ainda lá está uma escada de corda de quando ela era
pequena.
— Não era má ideia os pais pensarem em tirá-la de lá — disse Bennett secamente.
Fez mais algumas perguntas inócuas sobre a escola e outros amigos que pudessem ser úteis e, a
seguir, aparentemente satisfeita, foi-se embora.
Apesar de estar menos uma pessoa na sala, esta pareceu de repente muito mais pequena a Becca,
apenas com ela, Hayley e Jenny, constrangidas na companhia umas das outras.
Bem, ela sentia-se constrangida. As outras não deviam sentir o mesmo, e estavam ligeiramente
viradas uma para a outra, mantendo-a de fora, como se fosse uma desconhecida.
— Se calhar, podíamos trazer-lhe algumas coisas dela — disse Jenny baixinho, olhando para
Hayley em busca de aprovação, com o rosto contraído e os dentes a mordiscar uma unha pintada
perfeita. — Sabes, música e cenas que ela tem no quarto. Talvez a ajudasse a despertar.
Hayley anuiu.
— Vou pedir ao Gary as chaves da casa. Já me apetece sair daqui um bocado, devemos estar a
tresandar a desinfetante.
— O melhor era perguntarem primeiro à inspetora — disse Becca. — Ela pode não querer que se
toque nas coisas da Tasha.
Hayley lançou-lhe um olhar, irritada por ela ainda ali estar.
— O teu cabelo parece estar a precisar de um champô medicinal, Bex. Devias ver se as
enfermeiras não te arranjam um frasco.
— E tu podias aproveitar para pedir qualquer coisa para os chatos — respondeu Becca.
As três raparigas fitaram-se umas às outras, e no ar pairou o desdém e uma miríade de diferenças
sociais. Agora que a inspetora se fora embora, estava dispensada a boa educação.
— Credo, és nojenta — disse Jenny.
— Tal como o namorado. — Hayley nem olhou para Becca enquanto esta se dirigia para a porta.
— Não havia mais nada para escolher.
— Desde que eles não tenham filhos…
Becca fingiu estar a inspecionar o telefone até elas se irem embora. Sentia o estômago
ligeiramente às voltas. Há muito tempo que deixara de se importar com o que as outras pensavam
dela, porque havia de começar agora? Cabras arrogantes e afetadas, era o que elas eram. E a Natasha
também. Porque se dera ao trabalho de ir ao hospital? E onde estava Aiden? Como se lhe tivesse lido
os pensamentos, o telefone tocou. Vou levar o Jamie a casa. Venho cá ter contigo depois. Uma hora
talvez? Desculpa. Bjs.
Fantástico. Pelo menos, as Barbies tinham-se ido embora.
Respondeu um OK rápido a Aiden, tentando não parecer irritada, embora o estivesse, e depois foi
procurar uma máquina de bebidas. Ainda tinha a boca seca da noite anterior, e estava calor de mais
na sala de espera.

Estava a vasculhar os bolsos do casaco à procura de trocos quando Gary Howland a encontrou.
— Rebecca. Deixa-me pagar. Ia tirar um café de qualquer maneira.
— Obrigada.
Ele estava com um ar cansado e tinha a camisola toda amarrotada; devia tê-la vestido à pressa
quando o seu mundo se desmoronara naquela madrugada. Becca sentiu pena dele. Tanto quanto Becca
percebia, os Howland, de Natasha para cima, viviam uma vida de sonho. Pelo menos, até àquele
momento. Devia ter sido um choque.
— O que queres? — perguntou ele.
— Uma Diet Coke, por favor.
Ele carregou nos botões e a garrafa caiu com estrondo no tabuleiro.
— A senhora Howland está bem? — perguntou.
Era uma pergunta idiota, mas Becca não sabia o que dizer. Durante todos os anos em que fora a
melhor amiga de Tasha, aquela era talvez a primeira vez que estava sozinha com Gary Howland. Era
Alison quem lhes dava comida, as ia buscar à escola e lhes levava sumos e biscoitos. Gary era
apenas um pai.
— Há de ficar bem quando a Natasha acordar — respondeu ele. A máquina zumbiu enquanto
enchia um copo com café aguado e leite em pó. A possibilidade de Natasha não acordar não era
sequer considerada pelo pai. — Mas acho que estar a chorar ao lado da cama não vai ajudá-la.
Olhou para Becca e, pela primeira vez, esta reparou que ele era na verdade um homem muito
atraente. Demasiado composto para ela e obviamente velho de mais, mas ainda assim bem-parecido.
Sem o fato e a gravata parecia mais novo.
— Quer que vá lá dentro falar com ela? — As palavras saíram-lhe sem que se conseguisse
conter, sugadas do cérebro por uma súbita vaga de compaixão pelo pai da sua antiga melhor amiga.
— Não estou com pressa.
— Não te importas?
A gratidão que irradiou dele aterrou pesadamente sobre os ombros de Becca, e ela amaldiçoou-
se. Devia ter simplesmente enviado uma mensagem à mãe a pedir que a fosse buscar. Devia ter
descido as escadas para esperar por Aiden na rua, ao frio. Que raio ia dizer a Natasha?
— De maneira nenhuma — respondeu. — Eu também adoro a Tasha.
A mentira provocou-lhe um formigueiro no rosto.
5

Está tanto frio, tanto frio que não consigo respirar. Estou em pânico dentro da água, que
parece estilhaços de vidro, e pela primeira vez penso que sou capaz de estar mesmo em apuros.
Ainda acabo aqui. A camisola e as calças de treino brancas tornaram-se pesadíssimas dentro do
rio gelado. Sinto os pulmões em carne viva e incendiados pelo gelo quando tento fazer pequenas
inspirações, mantendo desesperadamente o queixo fora de água, mas nada funciona, nem pulmões,
nem braços, nem pernas, nem cérebro. O frio é avassalador. Queima-me as veias como se fosse
fogo. Se ao menos conseguir agarrar os ramos, talvez me pudesse içar para a margem. Se
conseguir manter-me à superfície… Que horas são, que horas são? Oh, merda, não sinto as mãos.
Os ramos finos são como bisturis na minha pele azul moribunda, isto é um erro terrível, e que
horas serão, porra…
… faço uma inspiração profunda, sinto novamente uma dor dilacerante nos pulmões, mas o ar é
quente e doce e não há água a asfixiar-me.
— Natasha?
— Meu Deus, Natasha!
— Tasha?
— Chamem um médico!
O rosto da minha mãe paira sobre mim, e o meu instinto é enxotá-la. Está demasiado perto. Sinto-
me muito confusa. Ainda estou a tentar respirar. Sinto o coração a bater freneticamente. Não percebo
bem onde estou. Pisco os olhos, pisco e torno a piscar. É quente, luminoso e seco. A Hayley e a Jenny
estão no quarto. Oiço os guinchos delas quando a enfermeira as desvia para chegar até mim.
Estou viva, penso, e sou inundada por uma onda de alívio. Estou viva. Estou no hospital.
Mexo a boca, mas não me saem palavras. Sinto a garganta seca e áspera. Tenho soro preso ao
braço. Há quanto tempo aqui estou? Que dia é? Sinto a cabeça a latejar.
Há demasiada atividade à minha volta. Tento virar a cabeça de lado para olhar para a porta, por
onde mais pessoas estão a entrar a correr. Os ossos e os músculos do pescoço causam-me dores
lancinantes. Vejo cabelo louro espalhado sobre a almofada e isso surpreende o meu cérebro
baralhado. O meu cabelo é escuro. Aquele não é o meu cabelo. Não, o meu cabelo já foi escuro.
Pintei-o para ficar igual ao das minhas amigas. Todas louras. Intermutáveis.
Está toda a gente a falar ao mesmo tempo, ou assim parece. Um caudal de ruído intenso. Dou-me
conta de que está também a tocar uma música familiar, vinda de um iPod ligado algures a uma
coluna. Será meu? Quem o trouxe para cá? Há quanto tempo aqui estou? Vozes e ruído. Vozes e ruído.
É demais. Não consigo concentrar-me. De repente, penso na Becca.
— A Becca esteve cá? — pergunto.
A voz, áspera como lixa, não parece a minha. Parece mais uma rapariga possuída, de um filme de
terror. Os outros também devem ter ficado chocados, pois a resposta à minha pergunta é silêncio. No
quarto instala-se uma calma estranha, uma calma feliz, e ficam todos a olhar para mim.
— A Becca esteve cá? — repito.
— Sim — responde a minha mãe. A mão dela aperta a minha, seca como papel e desesperada. —
Esteve. Veio cá ontem e falou contigo.
— Bem me parecia.
Sorrio e fecho os olhos.
6

Excerto da CONSULTA ENTRE A DOUTORA ANNABEL HARVEY E A PACIENTE


NATASHA HOWLAND, SEGUNDA-FEIRA, 11 DE JANEIRO, 09H00

NATASHA: É estranho. A senhora também acharia estranho, não? Quero dizer, ter estado assim,
morta. Quero dizer, não devo ter estado bem morta, senão não estava aqui.
(Risinho)
Mas pensar que o meu coração não bateu durante quase um quarto de uma aula da escola, quando
penso nisso dessa maneira… Sim, fico doida. Se o tipo que andava a passear o cão tivesse
chegado dois ou três minutos mais tarde, que teria acontecido? Nem é bom pensar nisso. Mas
agora sinto-me bem. Não vi propriamente um túnel com luzes brilhantes, nem nada dessas cenas.
Nada de que me lembre.
(Risinho)
Mas a memória não está a funcionar como deve ser, não é verdade?
DOUTORA HARVEY: Isso causa-te muita ansiedade? A perda de memória?
NATASHA: Acho isso mais estranho do que a cena de ter estado morta. Lembro-me de ir almoçar na
quinta, à hora do almoço. Mais nada. Não me lembro do que fiz nessa noite. Não me lembro de
nada do dia nem da noite de sexta. É como se esse dia não tivesse acontecido. Quando acordei,
ontem à noite, tive uma vaga recordação de ter estado dentro de água gelada e de me sentir em
pânico por estar a morrer. Fora isso, nada.
DOUTORA HARVEY: Essa recordação passageira de estares na água… Que sensação tiveste?
Além do medo da água. Tens consciência da presença de mais alguém?
NATASHA: Um agressor ou coisa do género?
DOUTORA HARVEY: Tenta não recorrer a rótulos. Concentra-te apenas na recordação.
NATASHA: Lembro-me de estar na água e de tentar chegar à margem. Não sei se lá estava mais
alguém. É só uma recordação momentânea… Assim como o final de um sonho, quando
acordamos. Sabe? Lembramo-nos, mas são apenas imagens soltas de qualquer coisa. Não sei se é
mesmo a recordação ou se é o que me lembro da recordação.
(Risinho)
Parece disparatado, mas percebe o que estou a dizer?
DOUTORA HARVEY: Porque achas que terão desaparecido aquelas horas todas da tua memória?
NATASHA: Não sei. Nós somos máquinas, não é? Estive morta durante treze minutos. Isso deve dar
cabo dos circuitos.
DOUTORA HARVEY: Não estavas preocupada com nada? De que te lembres?
NATASHA: Parece a inspetora Bennett. Fez-me as mesmas perguntas. Não lhe mostrou o relatório?
DOUTORA HARVEY: Mostrou, mas preferia que fosses tu a dizer-me, para poder avaliar melhor
como poderei ajudar-te. Desculpa se te obrigo a repetir o que já disseste.
(Pausa)
NATASHA: Eu é que peço desculpa. Sei que está a tentar ajudar-me. É que estou… Adiante, estava
ótima. Chateada por ter de voltar à escola depois das férias, mas nem isso era assim tão mau. Às
vezes, é uma chatice estar tanto tempo com a minha mãe. Ela quer sempre fazer coisas comigo, o
que até é amoroso, mas às vezes aborrece. Já não sou nenhuma bebé.
DOUTORA HARVEY: Foi por isso que saíste às escondidas pela janela?
NATASHA: Não sei se saí às escondidas. Se os meus pais disseram que eu lhes disse que ia para a
cama, deve ter sido isso o que fiz.
DOUTORA HARVEY: A porta da frente estava trancada e com o fecho corrido por dentro.
NATASHA: Então devo ter saído pela janela.
(Risinho nervoso)
Sabe melhor o que eu fiz do que eu. Não sei porque saí. Gostava de saber, mas não sei.
DOUTORA HARVEY: E a mensagem que recebeste nessa noite?
NATASHA: Não sei. Não conheço o número. Parece que não responderam quando a polícia ligou e
enviou mensagens. Vai diretamente para o voice mail, como se estivesse desligado. Acho que a
inspetora disse que era um telefone pré-pago. A maior parte dos meus amigos tem telefones com
contratos. Os nossos pais é que pagam. Ninguém usa telefones pré-pagos há séculos.
DOUTORA HARVEY: Isso incomoda-te?
NATASHA: O quê?
DOUTORA HARVEY: Não saberes quem te enviou a mensagem. Que a polícia não saiba quem ta
enviou.
NATASHA: Devia incomodar-me? Não sei. Deve ser um tipo qualquer a quem dei o meu número
quando estava bêbeda.
DOUTORA HARVEY: Acontece com frequência?
NATASHA: Estar bêbeda ou dar o meu número?
(Pausa)
Aliás, o que considera com frequência? Às vezes dou o meu contacto. Às vezes, as minhas amigas
dão-no por brincadeira.
DOUTORA HARVEY: A mensagem pedia-te que fosses ter naquela noite, às três da manhã, ao sítio
do costume. E depois, a meio da noite, saíste de casa.
NATASHA: Eu sei, mas as duas coisas podem não estar relacionadas. Eu não respondi à mensagem.
Pelo menos, foi o que disse a inspetora Bennett. Aposto que a mensagem nem era para mim.
Devem ter-se enganado no número. Como posso ter um sítio do costume com alguém que não
conheço? Nem tenho «sítios do costume» com pessoas que conheço. Nem sequer…
(Pausa. Ligeiro soluço de hesitação)
Nem sequer com as minhas amigas mais chegadas.
DOUTORA HARVEY: Estás bem? Lembraste-te de alguma coisa?
NATASHA: Sim. Quero dizer, sim, estou bem, não, não me lembrei de nada. Lamento. Estou apenas
cansada.
(Movimenta-se na cadeira)
Escute, tenho a certeza de que acabarei por me lembrar de tudo. Vai ver que não é nada. O mais
provável é ter sido idiota, ter saído de casa porque estava aborrecida e ter caído no rio no
escuro. Talvez aquela mensagem para o número errado me tenha entrado no subconsciente e feito
pensar em sair de casa. Nem sabemos a que horas saí de casa. Deve ter sido depois da hora
indicada na mensagem. Não sei. Talvez acabe por me lembrar, mas neste momento não sei nada.
DOUTORA HARVEY: Tenho uma coisa para ti.
(Uma pausa)
NATASHA: Para que é isto?
DOUTORA HARVEY: Gostava que começasses a escrever um diário. Os teus pensamentos, coisas
que sentes. Acontecimentos. Muitas vezes, é uma ajuda para os doentes com problemas de
memória. Não tens de mo mostrar.
NATASHA: Nesse caso, não tenho de escrever. Só quero ir para casa. Sinto-me bem, a sério. Este
sítio tresanda a desinfetante. Vou ter de tomar três banhos para me livrar deste cheiro.
(Risinho)
Ainda assim, é melhor do que enregelar na água daquele rio. Já posso ir para casa?
DOUTORA HARVEY: Lamento dizer-te que a tua alta não depende de mim, mas estou certa de que
os médicos não te manterão cá mais do que o estritamente necessário.
NATASHA: Vou prometer-lhe que, daqui em diante, não volto a sair à noite de casa sem braçadeiras.
Não vá o diabo tecê-las.
(Risinho)

Excerto do RELATÓRIO DA INSPETORA CAITLIN BENNETT, SEGUNDA-FEIRA, 11 DE


JANEIRO

Natasha Howland tem alguns hematomas e cortes, mas não há indícios claros de agressão. A
doutora Annabel Harvey, psicóloga do hospital, acredita que, apesar da perda de memória ligada ao
acidente, se ela tivesse sofrido um trauma, uma agressão, por exemplo, antes de cair ou de ser atirada
ao rio, a PSPT seria evidente nas suas reações e no seu comportamento. De momento, parece calma e
bem.
Os registos de telefone de Natasha Howland não revelam nenhuma atividade invulgar antes do
incidente, exceto a receção de uma mensagem única, de um número desconhecido, às 00h33: Vai ter
às 3h ao sítio do costume. Natasha afirma não reconhecer o número, e este não consta da sua lista de
contactos. A mensagem foi enviada de um telefone pré-pago, vendido na One Cell Shop, no centro
comercial de Brackston. Este e outro telefone idêntico foram comprados com numerário a 14 de
outubro. Foram requisitadas ao centro comercial e à One Cell Shop as imagens das câmaras de
segurança.
Natasha sugere que a mensagem possa ter sido enviada para o número errado. Preocupa-me ela
não ter respondido. Quando interrogados, mais de vinte adolescentes da escola dela afirmaram que,
na mesma situação, teriam respondido: «Quem é?» Ela não o fez. Apesar da minha preocupação
quanto a não ter dado resposta, isso nada prova; pode ter escolhido ignorar uma mensagem que não
identificou.
Não havia indícios de luta na margem do rio, nem no bosque mais atrás, embora a forte queda de
neve que ocorreu naquela noite e manhã tivesse dificultado as buscas. Até Natasha Howland
recuperar a memória, a polícia pouco poderá fazer, depois de terem sido realizadas no seu círculo de
amigos mais investigações relativas à fonte da mensagem e até se receberem as imagens das câmaras
de segurança do centro comercial.
De momento, não há razão para considerar isto uma investigação criminal.
7

Na segunda-feira, como era de esperar, a colmeia estava num alvoroço, e Becca sentiu olhos
virarem-se na sua direção quando se deslocou entre as salas de aula. Toda a gente sabia que tinha
estado no hospital. Graças ao fotógrafo de um jornal que se encontrava no exterior da escola, sabiam
que Aiden trabalhava para o homem que retirara Natasha do rio. Sabiam que há muito, muito tempo,
Becca e Natasha tinham sido amigas, e que Becca fora a primeira pessoa que ela mencionara ao
acordar. Não se falava de outra coisa.
Ah, pois, acho que me lembro disso. Caraças, a Tasha usava aparelho nos dentes, não era? E a
Rebecca Crisp não era gorda? Assim a atirar para o badocha?
Sussurros. Murmúrios. Olhares. Desejou que tudo aquilo parasse. Dispensava aquilo tanto como
Tasha. De vez em quando, alguém tentava falar com ela, mas Becca passava sem responder. Que
falassem com as Barbies se quisessem notícias da Tasha. As Barbies ansiavam por atenção.
Exceto quando as vira na sala de convívio, rodeadas por uma multidão de aspirantes sedentas de
coscuvilhices, Becca conseguira evitar Hayley e Jenny durante a primeira metade do dia e tinha
esperança de continuar assim até a campainha tocar para a saída e poder fugir. Não devia ser difícil.
Tinha dois tempos de Arte que lhe ocupavam a tarde toda, uma disciplina que nenhuma das outras
raparigas escolhera.
— Estás bem? — perguntou Hannah.
Naquele momento, Hannah era uma espécie de melhor amiga de Becca, tanto quanto o podia ser
alguém que não fosse o Aiden. Estavam as duas sentadas ao lado do radiador, no corredor de
Ciências, como acontecia a maior parte dos dias frios à hora do almoço, e partilhavam os restos de
um pacote de batatas fritas. Hannah não mencionara a história de Tasha o dia todo — desde que
Becca lhe mandara uma mensagem agressiva no dia anterior a dizer que não queria falar acerca disso
—, mas o assunto ainda ali estava, entre elas, um nó mais escuro na nuvem cinzenta que pairava
sobre a escola toda. Por um lado, Becca teria gostado de que Hannah tivesse falado nisso. Teria
demonstrado alguma audácia. Hannah era um amor e era engraçada quando estava descontraída, e era
uma ótima ouvinte quando Becca chorava ou se enfurecia por causa de Aiden, mas não havia dúvida
de que era um pouco submissa. Era Becca quem mandava naquela amizade. Tinha outros amigos:
Casey, do Clube de Tecnologias de Teatro, Emily, ao lado de quem se sentava em Inglês, e, claro,
Aiden. Às vezes, parecia que Hannah só tinha Becca. Hannah nunca tinha outros planos. Estava
sempre disponível. Ficava sempre contente por ver Becca.
Becca estava perfeitamente ciente de que, no fundo, era agora amiga da rapariga enfadonha da
escola, cujo nome ninguém recordaria dali a cinco anos. Era uma despromoção tremenda desde que
fora a melhor amiga de Natasha Howland. Naquele dia, isso estava a incomodá-la mais do que
normalmente. Mas Hannah parecia não reparar.
— Sim, estou bem. Talvez vá fumar um cigarro antes da aula de Arte. Queres vir?
— Não, vou ficar aqui no quentinho.
Hannah sempre dissera que a mãe se passaria se ela chegasse a casa a cheirar a tabaco, mas
Becca sabia que, lá no fundo, era Hannah que odiava o cheiro. Se estivessem na rua, ficava sempre a
uns passos de distância enquanto Becca fumava, com uma expressão que não mentia, e Becca
percebia que ela achava um bocado repugnante. E realmente era. Mas dava também um ar decadente
e desprendido e ela habituara-se. Gostava de sentir o fumo quente a entrar-lhe nos pulmões. Um
sabor que transportava em si mil «vão-se foder» dirigidos à mãe e à colmeia.
— Fixe — disse, levantando-se. — Mando-te uma mensagem mais tarde. Diverte-te em
Geografia.
— Pois… — Hannah sorriu e revirou os olhos. — Deve ser, deve…

Lá fora, o frio intenso era penetrante para quem tinha estado confortavelmente encostado ao
radiador quente, e Becca enfiou o nariz dentro da gola do casaco espesso enquanto dava a volta ao
pavilhão desportivo. Quando se esgueirou pela abertura da sebe coberta de neve que ia dar à
pequena terra de ninguém antes dos campos de jogos, já tinha o cigarro na boca e a mão dentro do
bolso à procura de um isqueiro. Pelo menos, já não estava a nevar. Tinha os pés dormentes e a picar
dentro dos Converses húmidos e sentia o solo escorregadio e húmido por baixo das solas finas
enquanto caminhava para o canto do muro. Por muito que lhe custasse a admitir, a mãe tinha razão.
Aquilo não eram sapatos para aquele tempo.
— Nem sequer posso fumar em paz.
Ergueu os olhos e sobressaltou-se. Lá se ia o plano de evitar as Barbies o resto do dia. Por trás
do cigarro Vogue fino, Hayley parecia tão contrariada como ela. Inclinou a cabeça para trás e soprou
uma nuvem de fumo, como se assim pudesse afastar Becca.
— Não sabia que correr e fumar eram coisas compatíveis.
Hayley encolheu os ombros.
— São, para quem corre bem como eu.
Becca acendeu o cigarro. Sentia o coração acelerado e não sabia bem porquê. Era apenas Hayley.
Estava-se nas tintas para ela.
— Quando mais não seja, impede que engordemos. Sei que isso é importante para ti.
Hayley lançou-lhe um olhar perfeitamente maquilhado.
— Não era eu que era gorda.
Encostou-se à parede, com o cabelo louro a flutuar por cima do capuz de pele enquanto fumava,
com um ar calmo e indiferente. Becca tinha de admitir que ela era bonita. Talvez até mais bonita do
que Natasha. Era invulgar, como diria a mãe. Elegante. Mesmo no último período, quando caíra pelas
escadas abaixo e tivera de usar uma tala no braço durante semanas, quase até ao Natal, conseguira
fazê-lo com estilo. Becca tentou imaginar Hayley numa situação difícil, mas em vez disso só se
lembrou de como eram chegadas na altura. De súbito, sentiu-se demasiado cansada para trocar
comentários mordazes. Que interesse tinha isso? Assim que Natasha ficasse melhor e saísse do
hospital, Becca seria esquecida e voltariam a afundar-se nos respetivos extremos do espectro social.
— Estás bem? — acabou por perguntar, odiando que aquilo parecesse uma pergunta vinda de
Hannah. Submissa. Dócil. Um capacho.
— Como se isso te interessasse — respondeu Hayley.
Becca não sabia bem se interessava ou não, só queria dizer qualquer coisa para preencher o
silêncio constrangedor. Puxou uma grande fumaça, fazendo o cigarro arder mais depressa.
— Perguntei por perguntar. Escusas de ser agressiva.
Hayley olhou para as botas. Umas Uggs, como não podia deixar de ser. Becca conseguia ver a
etiqueta no calcanhar. O estilo de Jenny podia ser de imitação — era filha de uma mãe solteira que
não tinha dinheiro —, mas Hayley devia ter umas duzentas libras nos pés. Empurrou neve com o
calcanhar de um pé até à ponta do outro, manchando as botas, como se se estivesse a borrifar para o
preço. Becca observou o ponto onde a humidade da neve penetrava na pele. Apesar do preço das
Uggs, os pés de Hayley estavam provavelmente tão frios como os seus.
— Soubeste alguma coisa da Tasha? — perguntou Hayley, de olhos baixos. As palavras eram
leves como flocos de neve, mas Becca ficou tensa.
— Era para saber?
— Só perguntei por perguntar, Bex — disse Hayley, imitando a resposta de Becca. Mas parecia
cansada; a camada superficial dos cigarros, da maquilhagem e das roupas de marca estalou por
momentos. — Não interessa.
— Não — disse Becca. — Não soube de nada. — Fez uma pausa, com o cigarro quase na boca, e
olhou para Hayley ao perceber a razão da pergunta. — Porquê? Ela ainda não te disse nada?
Hayley encolheu os ombros, evasiva, mas a resposta estava ali. Um grande não.
— Só estou preocupada com ela.
— Porque não lhe ligas?
— O telefone dela ficou destruído. Tentei ligar-lhe para casa. A Alison disse que lhe tinha dado o
iPhone e que tinha comprado um telefone barato, que só dá para fazer mensagens e chamadas. Disse
que finalmente tinha um telefone que sabia utilizar. — Esboçou um sorriso. — Sabes como ela é com
os aparelhos. — Becca não sabia. A última vez que estivera em casa dos Howland, os telefones e os
computadores não eram importantes. Construir tocas e brincar aos piratas ocupava-lhes o tempo
quase todo. — Adiante. Liguei e depois mandei uma mensagem, mas ela não respondeu — rematou
Hayley.
— Talvez ainda não esteja bem. Talvez ainda esteja sedada.
Becca não percebia porque estava a tentar que Hayley se sentisse melhor. Afinal, Natasha é que
estava no hospital. Qual a importância de ter passado um dia sem enviar mensagens às Barbies? Elas
seriam assim tão carentes? Deu uma grande passa no cigarro. Hayley apagou o seu no chão e
enterrou-o na neve com o pé. Já tinha chegado ao filtro, mas não queria passar pela situação
constrangedora de voltar para a escola com Hayley.
— Pois, deve ser isso. — Hayley desencostou-se da parede. — Não a devem deixar mandar
muitas mensagens dali. Eu e a Jenny vamos visitá-la esta noite.
— Boa. — Becca não sabia o que dizer. Sentiu novamente na pele a ferroada da velha rejeição
quando Hayley passou por ela e se agachou com elegância para atravessar os arbustos.
Cabra, pensou. Grande cabra. Calcou o cigarro com mais força do que o necessário.

Depois da influência balsâmica da aula de Arte com a professora Borders e a sua atmosfera
hippie descontraída, a escola terminou finalmente e Becca atravessou a horda de miúdos aos gritos
que corriam para as carrinhas, para os carros e para os portões da escola, e abriu caminho até ao
corredor dos cacifos do secundário. Franziu o sobrolho quando viu a pequena multidão lá reunida.
Aquilo era raro. A presença física no edifício da escola era mais descontraída nos anos mais
avançados, e se não houvesse reuniões da assembleia ou de professores nos últimos tempos, ninguém
queria saber se eles saíam mais cedo. O mesmo se aplicava a chegar atrasado. Normalmente, no final
do dia já só havia uns retardatários perto dos cacifos; a maioria dos alunos deixava as mochilas na
sala de convívio quando não as levavam consigo para as aulas.
— Ah, Rebecca!
Uma voz masculina chamou-a algures do meio da multidão que se começava a dividir em
pequenos enxames. Becca ergueu os olhos, tentando vislumbrar a pessoa por entre os intervalos.
Cabelo castanho-claro. Um sorriso caloroso. Vincos no rosto que viriam um dia a tornar-se rugas a
sério, mas que naquele momento apenas o tornavam interessante. Mais velho. Atraente.
— Professor Jones — disse ela, erguendo uma mão numa espécie de aceno. De repente,
compreendeu a razão da presença da multidão. O professor Jones era o chefe do Departamento de
Teatro, e naquele dia iam realizar-se as audições para a peça da escola. Ele abriu caminho por entre
um bando de raparigas que tentava captar a sua atenção, dirigiu-se a ela e disse:
— Ainda bem que te apanho.
Becca pensou que ali, no meio do corredor, quem tinha sido apanhado fora ele, um golfinho numa
rede de atum. Pensou se ele sentiria o calor que emanava das raparigas de dezasseis e dezassete anos
à sua volta. A maneira como se exibiam à sua frente.
— Vais tratar da encenação este ano? — perguntou ele. — Era ótimo se pudesses. És a melhor. E
agora que estás no décimo primeiro ano, podias ser tu a dirigir aquilo. Que me dizes?
Atrás dele, Becca podia ver Hayley e Jenny. Ignorou-as.
— Pensava que as audições eram hoje — disse, sem responder à pergunta. — Cancelou-as?
— Não — respondeu ele, com uma mão enfiada no bolso das calças de ganga. — Prolonguei-as
até sexta-feira. A Jenny pediu se podíamos adiar até a Natasha sair do hospital, porque ela queria
mesmo fazer a audição. Não podia dizer que não, e uns dias de atraso não serão graves.
— Se ela sair na sexta. — Os seus olhos continuavam a fugir para Hayley e Jenny, atrás do ombro
dele. Porque não se teriam ido embora? Ter-se-iam deixado ficar para fazer olhinhos ao professor?
Era o mais provável. Que triste.
— Ah, vai sair — disse ele. — Liguei para o hospital para saber dela e parece que a vão mandar
para casa de manhã. É uma rapariga cheia de sorte.
— Esteve morta durante treze minutos — disse Becca. — Não é uma cena incrível?
— É o género de coisas em que não devias pensar. — Os olhos castanhos dele eram gentis. —
Acredita, se te pões a pensar nessas coisas, ficas meio maluca. Ela vai ficar bem e isso é que
interessa.
Becca sorriu. Não conseguiu evitar. Não gostava do professor Jones da maneira como todas as
outras raparigas pareciam gostar, mas gostava dele.
— Então? — continuou ele, erguendo um exemplar maltratado da peça. — Posso contar consigo
para nos fazer brilhar a todos, tenente? Agora que a vou promover a coronel?
Ela olhou para o livro e reparou que as cabeças louras das Barbies e das suas servidoras
desapareciam, cansadas de esperar por ele; iam provavelmente esperar antes à porta do seu gabinete.
E ergueu a mão numa continência cansada.
— Bem, pode ser.
— Excelente! — O professor fez um grande sorriso e piscou-lhe o olho. — Já me sinto melhor.
Dá uma olhada e vê o que achas. Faz uns esboços e depois reunimo-nos e vemos isso. Escusa de ser
muito complicado. Basta ser expressivo e atraente.
— Espero que isto conte para a nota — disse ela.
— Tu farias isto mesmo que não contasse — disse o professor Jones.
— Está bem… — Becca revirou os olhos, em parte para disfarçar o rubor que lhe subiu ao rosto
vindo do nada, só para a atormentar, e dirigiu-se ao cacifo.
— Aparece nas audições na sexta — disse ele mais alto enquanto se afastava. — Ajuda-me a
gerir os egos frágeis!
Aquilo fê-la soltar uma gargalhada. O professor Jones também não se deixava enganar pelas
Barbies. Tolerava que elas lhe fizessem olhinhos, mas nada mais. O telefone dela zumbiu. Era
Hannah.
Vais para casa? Ou queres um chocolate quente no Starbucks?
Teria preferido que fosse Aiden, mas ele nunca enviava mensagens, a menos que tivesse mesmo
qualquer coisa para dizer. O mais provável era não falar com ele até essa noite e só o ver no dia
seguinte e apenas durante duas horas. Esse era o único problema de ter um namorado que não andava
na escola. Nem podiam fingir que estudavam juntos.
Encontramo-nos à porta às 5.
Um chocolate quente com Hannah podia ser uma boa maneira de terminar o dia.
8

Extraído dos FICHEIROS DA INSPETORA CAITLIN BENNETT: EXCERTO DO CADERNO


DE NATASHA HOWLAND

Tinha estado a analisar os jornais locais, abertos em cima da minha cama, quando Hayley e Jenny
apareceram. Era tão estranho ler aquilo, em grandes títulos sensacionalistas. Ver a minha própria
cara a olhar para mim. Deve ter sido a minha mãe quem lhes deu a fotografia (eu nunca teria
escolhido aquela). Foi tirada há um ano, num almoço de família. Estou com um ar gorducho. Depois
havia uma fotografia de mim a ser retirada do rio e outra do homem que me salvou, Jamie McMahon,
obviamente apanhado desprevenido pelas objetivas ao sair de casa. Ele era advogado em Londres,
mas mudara de carreira, dizia um dos jornais. O que leva uma pessoa que vive em Londres a mudar-
se para aqui? Herói dono de cão, é como lhe chamam. Músico solitário salva adolescente «morta».
Não deve haver muitas pessoas com a morte escrita entre parênteses. Ele não disse grande coisa,
apenas o costumeiro qualquer um teria feito o mesmo, que as pessoas dizem sempre. Todos sabemos
que a maioria das pessoas não teria feito o mesmo. Ele diz que se atrasou naquela manhã e que ficou
contente por não ter chegado tarde de mais.
Tu ficaste contente?, foi o que pensei enquanto observava o seu rosto na fotografia granulada.
Então imagina o que eu sinto. Fechei os jornais. Era a terceira vez que os examinava, lendo e
relendo os pormenores. Perguntei a mim mesma o que isso diria acerca de mim. Pensei o que acharia
daquilo a doutora Harvey e os seus olhos inexpressivos. Ela que nem pense que alguma vez a
deixarei ler a porcaria deste caderno!
Sinto-me agitada e farta de estar presa na cama e preciso de apanhar ar fresco. Doem-me as
nódoas negras e os músculos o tempo todo. É como se tivesse andado a fazer corta-mato ou coisa do
género. Ultimamente tenho ido correr muito, e as corridas ganharam outro significado. Tornaram-se
mais vigorosas. Nunca terei a velocidade de leopardo da Hayley, mas estou mais rápida e mais
resistente do que antes. Essa ideia faz-me olhar para o vazio através do vidro. Só quero ir para casa.
Ainda são só cinco da tarde, mas já está totalmente escuro lá fora. Uma escuridão vazia e fria.
Normalmente, esquecem-se de correr as cortinas, e não me importo. O quarto fica num andar alto.
Não se consegue ver cá para dentro. Gosto de olhar para aquela escuridão, embora me faça lembrar
aquela outra escuridão, dentro daquele frio gélido. Aquela que me deixou sem ar e me fez parar o
coração. Se ficar a olhar durante tempo suficiente para o escuro da noite, consigo enfrentar o medo.
Ele já não me consegue fazer mal.
A Hayley e a Jenny estavam as duas a sorrir quando entraram, mas o ambiente ficou
imediatamente tenso, como se, de repente, não nos conhecêssemos. Talvez seja do hospital. Às vezes
estes sítios têm essa influência nas pessoas.
Seja como for, foi esquisito, elas pareciam muito constrangidas à porta, mas eu sorri-lhes (para
ser franca, estou tão farta das visitas da minha família e, embora tenha sido estranho ao princípio,
prefiro mil vezes a companhia delas do que a da minha avó) e compus o meu cabelo louro, agora tão
parecido com o delas. A atmosfera desanuviou-se depois de nos abraçarmos. Elas soltaram gritinhos
de felicidade por eu ter sobrevivido e perceberam que estava contente por as ver. Despiram os
casacos e tiraram os cachecóis, e foi quase como se as sentisse relaxar no quarto sobreaquecido. Um
regresso à normalidade.
A mãe da Jenny guardou todos os jornais, disse a Jenny, revirando os seus bonitos olhos de corça,
quando os viu em cima da minha cama. Parece que fez um álbum de recortes, como com as
fotografias da Jenny em bebé. É como se toda a gente quisesse um pedacinho da emoção de eu quase
ter morrido. A ideia fez-me sorrir. A mãe da Jenny vive noutro planeta. É pobre, pelo menos em
comparação com a vida abastada e confortável da classe média que eu e a Hayley temos, e
embebeda-se com demasiada frequência. Vem da ralé que vive nas caravanas ou da escumalha do
Essex, e a Jenny faz um esforço enorme para eliminar aquilo metaforicamente. Mas às vezes, ainda se
lhe sente o cheiro. Aquela ligeira Colónia de Desespero. É um pensamento perverso, eu sei, mas é
verdade.
— Será que quer que eu olhe para eles mais tarde e pense: «Ah, lembram-se daquela vez em que
a Tasha quase se afogou? Que querida.» Está doida! — disse Jenny.
Quase lhe chamei a atenção para o erro técnico daquela declaração. Eu afoguei-me mesmo. A
situação não teve nada de quase.
Depois foi a vez da Hayley. Não olhou para mim. Disse num tom indiferente «Mandei-te uma
mensagem», ao mesmo tempo que dobrava os jornais e prendia o cabelo perfeito atrás da orelha. O
seu tom era de tal maneira desinteressado, que percebi logo que ficara ofendida por eu não lhe ter
respondido. Continuo a ser a chefe delas. Mesmo depois do que aconteceu. Talvez agora mais
ainda.
— A minha avó esteve cá e pôs-me o telefone no silêncio — repliquei, o que era completamente
mentira. — E aqui não gostam que utilizemos os telefones nos quartos.
O que é verdade, mas as enfermeiras deixam-me fazê-lo porque têm pena de mim.
Sentaram-se as duas aos pés da cama, as minhas duas melhores amigas. A observar-me. Mortas
por me fazerem perguntas. Sem saberem como.
— Então… — disse a Hayley, enquanto a Jenny tirava um chocolate e umas batatas fritas da
carteira. — Já te lembras de alguma coisa?
Não. Abanei a cabeça. É tão estranho. Não me lembro de nada desde quinta-feira à hora do
almoço, até acordar aqui. Encolhi os ombros. Durante um momento, a Hayley não disse nada.
Limitou-se a examinar-me e depois fez um pequeno sorriso. Aquele sorriso enigmático. Antigamente,
sabia sempre o que se passava na cabeça dela; hoje em dia já não tenho bem a certeza.
A Jenny continuava concentrada no conteúdo da sua carteira desorganizada, com o rosto
escondido de mim, até que, por fim, com um sorriso, fez surgir três Crunchies. O meu chocolate
preferido.
Peguei neles, mas pousei-os na mesa de cabeceira. Todas as calorias contam, como a minha mãe
costuma dizer, e há vários dias que não faço senão estar deitada na cama.
— Mas não faz mal — digo eu. — Há de acabar por vir tudo ao de cima.
A seguir falámos um bocado daquilo e do que eu tinha feito durante aquele período de tempo.
Tinha ido à escola, regressara a casa e depois voltara a sair misteriosamente. Até à parte em que caio
ao rio, parece tudo superbanal.
— Estávamos todos aflitos por tua causa — declarou Jenny efusivamente, antes de dizer que na
escola só se falava de mim, como se eu não soubesse já.
Ela apanhou aquilo da mãe, aquela maneira de falar acelerada. As palavras jorram-lhe da boca.
Sem qualquer contenção, apenas uma torrente de sentimentos embrulhados em palavras. Tinha o rosto
ruborizado enquanto falava, e os olhos fugiam-lhe para todos os lados. Era como se estivesse
nervosa por minha causa, mas talvez seja apenas por não saber como agir depois de uma coisa
destas. Talvez esteja a esforçar-se demasiado para ser normal. Se a Hayley não tivesse acabado por
a interromper, acho que teria continuado a noite toda a falar da escola.
— Aquela polícia achou que podias ter tentado suicidar-te — disse com um sorriso. — Eu fiquei
tipo, o quê?
Também me deu vontade de rir. Falei-lhes da doutora Harvey e das sessões de acompanhamento
psicológico a que vou ter de ir, revirei os olhos e disse a rir que ela era superinsípida e chata. (É
mesmo.) Mas não lhes falei deste caderno. Nem de me terem pedido que aponte tudo. Para começar,
é privado e só tenho escrito porque ando tão aborrecida. Depois, não quero que pensem que vou
registar aqui tudo o que dizemos e fazemos, correndo o risco de outra pessoa qualquer o ler. (Não vai
acontecer! A doutora escusa de vir coscuvilhar dentro da minha cabeça.) Não quero que elas se
preocupem com isso.
— Mas estás bem? — perguntou a Hayley.
A pergunta era mais grave do que o necessário, e os sorrisos delas desapareceram subitamente.
Por um momento, por trás da camada de verniz que as cobre — uma camada de verniz que as três
usamos tão bem —, consegui ver a preocupação subjacente. Estávamos em territórios diferentes, em
águas não cartografadas. Eu quase morri. Eu morri e não me lembro porquê. Isso muda tudo.
— Estou — respondi.
A minha voz já está menos áspera, mas ainda parece que tive uma amigdalite fulminante. Disse
que só me apetecia sair daqui, e a Hayley respondeu que não me censurava porque ali cheirava a
velhos.
Cheira mesmo. Todas nos rimos. A Hayley nem sempre tem piada, mas quando tem, é seca e
direta. Aquela tensão estranha dissipou-se. As coisas mudaram, mas a nossa velha intimidade é como
eu: não morre com facilidade.
A Jenny deu-me um exemplar de As Bruxas de Salém que tirou da carteira. Teve de o pedir ao
professor Jones. Disse que tinha procurado o meu exemplar quando tinham ido buscar o meu iPod e
outras coisas minhas, mas que não o encontrara. Corou ligeiramente ao dizer aquilo. Pergunto a mim
mesma se terão andado a coscuvilhar muito nas minhas coisas. Quantas gavetas revistaram? Todas?
As caixas que tenho debaixo da cama?
O exemplar que me entregou estava velho e gasto, mas eu gostava daquela textura do papel.
Parece que agora as audições vão ser na sexta-feira. Convenceram o professor Jones a adiá-las para
eu poder participar.
— Vais ser uma ótima Abigail — disse a Jenny.
O que ela estava realmente a pensar era que ela daria uma ótima Abigail, mas seria incapaz de o
dizer. Não o diria antes e agora ainda menos. Mesmo que lhe oferecessem o papel, aposto que
convenceria o professor Jones a entregar-mo. A Jenny adora agradar. A maior parte do tempo, pelo
menos. E o mais provável é que lhe ofereçam mesmo o papel. Eu sou boa, sou muito melhor do que o
professor Jones julga, mas a Jenny brilha no palco. E não tem noção disso. Acho que lá no fundo tem
um coração de manteiga. À sua maneira. Podemos ser todas completamente diferentes, as três
melhores amigas, mas todas adoramos Teatro, na vida e no palco. Todas adoramos as peças da
escola. É onde dominamos.
— Talvez ele dê o papel de John Proctor ao James Ensor — disse Hayley a brincar.
Rimo-nos da piada. Saí duas vezes com o James no verão, depois de andar aos beijos com ele
numa festa em que estava bêbeda. O rapaz mais giro da escola, ou, pelo menos, é o que dizem. Achei
que ele tinha uma língua que parecia um peixe húmido e umas mãos desajeitadas que tremiam demais.
A coisa nunca passaria dali. Desde então, o James não me larga os calcanhares. Nunca disse à
Hayley nem à Jenny — até nós temos os nossos segredos —, mas não compreendo bem a cena do
sexo. Solto risadinhas e gritinhos, mas devo ser a única rapariga da escola que finge que as coisas
foram mais longe do que foram na realidade. A ideia de sexo deixa-me fria. Talvez o meu lugar seja
naquele rio. Talvez devesse ser a Elizabeth Proctor e não a Abigail. Mas isso seria muito pouco
Barbie da minha parte, que é como nos chamam na escola, e eu sou uma das Barbies.
Respondi que talvez ficasse o professor Jones com o papel e que não imaginava nenhum
adolescente a representá-lo, nem sequer o James. Tinha de ser alguém com pele e mãos calejadas.
Nessa altura, olhei para as minhas amigas. Estavam as duas a pensar o mesmo; uma imagem
espontânea do professor Jones nu e a fazer aquilo, com uma paixão amplificada pela ilegalidade.
Abigail e John Proctor todos misturados com a paixoneta da escola pelo professor de Teatro. Quase
senti a temperatura no quarto a subir.
— Mas espero que não — acabei por dizer. — Seria estranho. E um bocado nojento. Foder com
uma pessoa daquela idade, quero dizer. Mesmo que seja a representar. — Fiz cara de quem ia
vomitar. — Que nojo.
Como não podia deixar de ser, elas emitiram os sons horrorizados apropriados, mas pareciam
constrangidas. (Às vezes são tão previsíveis.) Mas eu sentia um afeto estranho pelas duas. Talvez não
devesse brincar tanto com elas.
— Então e aquela pessoa que te enviou a mensagem? — Desta vez foi a Jenny que voltou a levar
a conversa para a minha história, para o meu caso, para tentar tirar mais nabos da púcara. — A
polícia perguntou-nos de quem era o número, mas nós não sabíamos.
Estava a tentar parecer indiferente, mas não me enganava. Disse-lhe que também não sabia, que
deviam ter-se enganado no número e que, provavelmente, não tinha nada que ver com o que me
acontecera.
— Ela também perguntou à Becca — disse a Hayley. Estava a folhear as páginas da peça, mas
ergueu os olhos, escondidos pelo cabelo esticado, e reparei como o arco das suas sobrancelhas
estava perfeito. Tenho de voltar a arranjar as minhas. — Como se ela soubesse.
— Ela esteve cá — disse eu calmamente. — Esteve a ler-me quando eu estava inconsciente.
— Conseguiste ouvi-la? — perguntou a Jenny. Ela não quer saber da Becca. Não partilha a
sensação de traição que eu e a Hayley partilhamos. Nunca foi amiga da Becca. — Isso seria estranho.
— Não sei — respondi. — Talvez um bocadinho, como num sonho.
Nem sei se aquilo era verdade, mas era o que elas queriam ouvir.
— Então e… — A Jenny inclinou-se para a frente. — Quando estavas… sabes…
— Morta? — concluí.
A Hayley ficou horrorizada. Odeia a morte. Todas odiamos, agora que estamos a aperceber-nos
de que nos acontecerá um dia, embora eu tenha chegado a esse momento mais depressa do que os
meus amigos. Odiamo-la e sentimo-nos fascinada por ela, mas a Hayley tem um verdadeiro pavor.
Acho que apreendeu bem o seu significado. Por baixo da perfeição, está bem ciente da fragilidade da
sua carne. Já a vi preocupada com uma sarda, quando pensa que ninguém está a ver. Terá morrido
alguém da família dela quando era nova? Não me recordo. Talvez. Talvez tenha sido uma coisa de
que não falou, mas que a levou a deixar de se baloiçar nas árvores, de trepar a muros e andaimes —
qualquer coisa mais do que o simples aparecimento das mamas.
— Bem, foi o que aconteceu. — Sorri, mas só conseguia pensar na escuridão e na enormidade
avassaladora do meu medo naquela recordação que tinha de estar a tentar alcançar os ramos. Como
se as trevas estivessem à minha espera. Como se estivessem a rir-se de mim. Faz-me ficar com a
respiração um bocado presa na garganta. Mas não posso deixar que isto transpareça. Quero sair
daqui nos próximos dias. Tenho de sair daqui. Tenho de me manter normal. Disse-lhes que não me
lembro de nada. A avaliar pela cara da Hayley, não sei se terá sido boa ou má ideia no que diz
respeito aos inúmeros medos dela. Talvez quisesse ouvir histórias de luzes fortes, de túneis e de
anjos.
Quando a enfermeira veio dizer que a mãe da Hayley tinha chegado para as levar para casa,
pensei por instantes como sabia ela distinguir as minhas amigas, mas depois lembrei-me de que
tinham passado o fim de semana a chorar ao lado da minha cama. É estranho ter aqui estado, mas sem
cá estar. Ainda fico com arrepios, apesar do calor. É como se elas tivessem ido ao meu velório, e eu
fosse uma espécie de vampiro, regressado do mundo dos mortos.
As minhas amigas soltaram guinchinhos, contrariadas, mas a enfermeira disse-lhes que eu tinha de
descansar (estou tão farta de descansar) e olhou para mim com tanto carinho que quase parecia que
me amava. Deve ser boa enfermeira.
— Não tarda, vêm trazer-te o jantar — disse-me e, em seguida, olhou de soslaio para as batatas
fritas e para os chocolates. — Se ainda tiveres espaço depois disso tudo.
É uma mulher volumosa, à vontade com a sua gordura. Duvido que alguma vez tenha comido
apenas um quadrado de chocolate e deitado fora o resto. Terá alguma vez sentido a pressão da
perfeição? Sim, apetecia-me comer chocolate. Uma pessoa como ela comeria um chocolate sem
pensar duas vezes. Quase senti inveja.
A Hayley e a Jenny abraçaram-me, e tornámo-nos um emaranhado de cabelo, de casacos e de
respirações quentes. Uns braços esguios eram os que mais me apertavam, e eu sabia que era a
Hayley. Quando se soltaram, estávamos todas húmidas da condensação.
— Manda-nos uma mensagem — disse a Hayley. Parecia triste. Fez uma pausa durante um
momento. E depois disse: — Nós adoramos-te, Tasha. Pregaste-nos um susto do caraças.
A Jenny confirmou com um movimento de cabeça.
— Volta depressa à escola. Temos saudades tuas.
Só passou um dia. Pergunto a mim mesma que saudades terão tido de mim, quando provavelmente
não fizeram senão falar de mim o tempo todo. Sei que é um pensamento virulento. Devia estar
contente por sermos outra vez amigas. Afinal, é o que quero. As coisas têm andado um bocado
crispadas entre nós ultimamente.
— Eu também tive saudades vossas — disse. O verbo no passado escapou-se-me, mas elas não
repararam. Tive saudades delas, à minha maneira. Elas têm sido as minhas melhores amigas.
Talvez as coisas sejam diferentes daqui em diante.
9

18h20
Jenny
Isto foi msm estranho. N achas?

18h21
Hayley
Estás a mandar-me SMS
do banco de trás? ;)

18h22
Jenny
Queria falar disto. Q desatino a tua
mãe! Q merda de música é esta?

18h23
Hayley
Porcarias dos anos 90.

18h24
Hayley
Sim, foi estranho. Ela n se lembra
mesmo de nd.

18h24
Jenny
Achas q se vai lembrar? Estou c medo.

18h24
Hayley
Tb eu. Ligo-te mais tarde.

18h25
Jenny
Quem me dera que ela tivesse morrido.

18h25
Hayley
APAGA! Vai correr tudo bem.

18h25
Jenny
Apago tudo ou só esta?

18h26
Hayley
Tudo.

18h26
Jenny
Que cena marada.

18h26
Hayley
Não te preocupes. Agora apaga.
10

Aiden enrolava charros mais depressa e melhor do que qualquer pessoa que Becca conhecesse.
Os charros dele eram brutais, concluiu ela ao dar uma passa forte e ao ver a mortalha ficar de um
vermelho-alaranjado, com pequenas sementes de erva a estalar lá dentro. Três, cinco ou sete Rizlas,
era sempre um número ímpar, um equilíbrio perfeito de erva e de tabaco, e nunca era preciso puxar
demais, nem se ficava com a boca cheia de porcaria por o filtro e a mortalha não estarem bem
apertados.
Soltou uma risadinha e tossiu quando o fumo lhe chegou aos pulmões, aquecendo-lhe o rosto que
ainda ardia do frio da rua, embora o quarto estivesse um forno. A mãe de Aiden não poupava no
aquecimento. Só por isso, já merecia o céu. Por isso e pela piza que tinha comprado para eles.
— É do bom? — perguntou Aiden.
Becca estava deitada na cova do braço dele, a olhar para o teto.
— É do bom — confirmou a rir. — Agora, dá-me piza.
Aiden tirou uma fatia pesada da caixa e segurou-a por cima da cabeça da amiga. Ela estendeu a
mão, mas ele afastou-a.
— Troca.
Becca passou-lhe o charro e ergueu-se, sentindo-se aturdida, e sorriu-lhe enquanto dava uma
enorme dentada na Havaiana, formando um fio longo com o queijo, que, por fim, se partiu e lhe caiu
sobre o queixo.
— Muito sexy.
Ela encolheu os ombros.
— Não sou nenhuma Barbie. Estou-me nas tintas para isso.
— Uma Barbie?
Aiden soprou-lhe o fumo para o rosto, e Becca desviou a fatia de piza para o inspirar.
— Sim, como a Natasha e o grupo dela. Nunca comem. Devem vomitar tudo. Que horror.
— Eu cá acho que tu és uma bulímica amnésica — disse Aiden pensativamente. Fez um grande
sorriso. — Empanzinas-te e depois esqueces-te de vomitar.
— Parvalhão! — A palavra tinha menos força cuspida com a boca cheia de ananás e de queijo.
Becca terminou a fatia e depois voltou a tirar-lhe o charro.
— Mas porque começaste a falar delas? Nunca falas. Que interessa o que elas fazem? A Natasha
está bem. Não tarda, já ninguém se lembra disto.
— Eu sei. Mas isto fez-me voltar tudo à memória. Como elas foram cabras para mim.
E mais, teve vontade de dizer. Fez-me lembrar como eu desejava continuar amiga delas. Como
estava disposta a deixá-las serem umas cabras para mim se pudesse manter-me no grupo. Que
patética. Mas há humilhações que é melhor guardarmos para nós próprios se queremos manter o
namorado. Ninguém tinha de saber que ela fora uma imbecil, muito menos o Aiden.
— O Jamie foi visitá-la — disse Aiden. — Mas parece que ela estava cansada demais para o
receber. Acho que ele se sentiu um bocado parvo. Ele não visita as pessoas nas melhores alturas. —
Ela devolveu-lhe o charro, mas ele abanou a cabeça. — Acaba tu. Vou ter de ir tocar guitarra.
Era a única coisa que irritava Becca por causa de Aiden trabalhar com Jamie McMahon.
Gravavam à noite, das sete ou oito até à meia-noite, ou até mais tarde se tivessem um prazo apertado
para cumprir. Significava que às vezes passava dias quase sem o ver; se trabalhassem durante o dia,
como as pessoas normais, ele teria as noites livres.
— Se ele me tivesse salvado a mim, eu havia de gostar de o ver — continuou Aiden. — Nem que
fosse para lhe agradecer.
— Ela também não respondeu às mensagens da Hayley. Talvez não esteja tão bem quanto pensam.
Quando estive lá no hospital a ler-lhe, estava absolutamente imóvel. Quase custava a crer que não
estava a morrer. Ou já morta ou isso. Se calhar não se regressa da morte sem marcas.
Porque estava de repente a defender Natasha? Seriam os velhos hábitos assim tão difíceis de
perder?
— Não deixa de ser estranho. E é mesmo o género da Natasha estar-se nas tintas para que ele se
tenha dado ao trabalho de a ir visitar. Podia ter-lhe dispensado cinco minutos.
— É verdade — disse Becca. — A mãe dela ligou à minha. Parece que ela não se lembra de
quase nada. Aliás, não se lembra mesmo de nada daquele dia inteiro.
— Mais uma razão para o receber.
— Pois, mas estamos a falar da Tasha. Receber pessoas numa cama de hospital não deve ser a
cena dela.
Aiden fez um ar sardónico.
— Sem maquilhagem. Sem esticador de cabelo. Sem soutien almofadado.
— Oh, tadinha. — disse Aiden soltando uma gargalhada e puxando-a para si. — Saíste-me cá
uma sacaninha.
Mas o tom dele era afável. Tinha uma mão no cabelo dela e inclinou-se para a beijar. Becca
adorava os beijos dele. Eram uma exploração meiga e suave. Era ainda melhor quando estavam
ganzados — o que, tinha de admitir, acontecia quase sempre que estavam juntos. O arrepio que sentiu
na língua juntou-se ao frémito das suas veias e um momento ou dois depois todo o seu corpo
palpitava. Nunca se cansaria de Aiden. Nunca. Natasha fora uma idiota em rejeitá-lo.
Ela ficara com as sobras de Natasha. Tentou não pensar naquilo. Aiden amava-a, a ela, Becca.
Nunca teria amado Natasha, pelo menos daquela maneira, assim, como se fossem duas almas gémeas.
Mas ainda a incomodava ele ter desejado Natasha. De a ter achado bonita. Ela era bonita. Isso ainda
piorava as coisas. Mas mesmo que tivessem andado um com o outro, não teria durado. Ele teria
acabado por descobrir Rebecca. Quando o lustro dourado de Tasha começasse a esmorecer e
deixasse transparecer o metal barato que tinha por baixo, claro que ele teria visto que Becca era um
diamante.
— O que foi? — perguntou Aiden, afastando-se, como se sentisse a distração no seu beijo. Os
olhos dele estavam de um vermelho toldado e o seu sorriso era suave.
— Não é nada — respondeu ela. — Nada.
Tinham apenas meia hora até ele ter de a deixar em casa e ir trabalhar na banda sonora que
McMahon estaria a compor durante o resto da noite. Becca não queria passá-la a pensar em Natasha
Howland. Natasha Howland fazia parte do seu passado. O melhor era lá ficar. Mesmo que Tasha
voltasse a rastejar para ela — coisa que nunca faria —, Becca não quereria nada com ela. Se tivesse
sido Becca a passear perto do rio, não sabia sequer se teria resgatado a antiga melhor amiga. Grande
«para sempre»… A única coisa que durava para sempre era a morte. Aquele pensamento arrefeceu-
lhe um pouco as entranhas. A morte e o amor que sentia por Aiden. Apertou os braços com mais força
à volta do pescoço dele. Aquilo é que era para sempre. Tinha a certeza disso.
11

Do Brackston Herald, quarta-feira, 13 de janeiro

Embora seja ainda um mistério por que razão Natasha Howland (na fotografia à esquerda com a
mãe) foi encontrada no rio no sábado de manhã, a polícia ainda não põe a hipótese de crime.
Segundo as fontes do hospital, Natasha Howland, aluna do 11.º ano da Brackston Community
School, teve uma boa recuperação, depois de ter sido retirada da água, e recebeu alta esta manhã.
Depois de se ter receado que estivesse morta, ao ser encontrada, a sua reanimação tem sido
aclamada como milagrosa, tanto pelos médicos como pela família. Natasha continua sem recordar os
acontecimentos daquela noite. Embora a história tenha tido um final feliz, o início parece destinado a
permanecer um mistério. A família Howland e a polícia fizeram um apelo para quem possa ter visto
Natasha na noite de sexta-feira, 8 de janeiro, no sentido de ir prestar declarações.
12

Retirado dos FICHEIROS DA INSPETORA CAITLIN BENNETT: EXCERTO DO CADERNO


DE NATASHA HOWLAND

A minha mãe levou-me às compras. Tinha de ser. O que lhe falta em competências de
relacionamento interpessoal tem de sobra em dinheiro. De certa maneira, é um bom negócio, e não é
que o meu pai não ganhe o suficiente para nos sustentar da maneira a que nos habituámos. Odeio
esta frase. A mãe está sempre a usá-la e diz aquilo como se fosse uma piada, mas na realidade não é.
É mais uma ameaça. Um lembrete do que motiva o casamento dela.
Tenho a certeza de que ama o meu pai, mas só enquanto ele a continuar a sustentar. Mantém-se
bonita e arranjada para ele, vai ao ginásio e faz limpezas faciais, mas tudo isso tem uma etiqueta com
um preço. Não é que ele se importe. Gosta de lhe comprar coisas. Mesmo aquelas que ela nunca usa
— o MacBook Air em que não tocou durante meses — igual ao meu, prendas iguais — que
amoroso; o iPad mini, a única coisa que utiliza às vezes, o Kindle e diversos outros aparelhos
eletrónicos que ele acha que lhe facilitam a vida. Andam a apanhar pó pela casa. A menos que eu os
use, claro.
Tudo o que a minha mãe quer realmente é que ele continue a pagar-lhe o cartão de crédito todos
os meses, quando ela gasta centenas em sapatos, em almoços e em «vinho com as amigas». E claro
que ele o faz. Porque é assim que demonstram o seu amor. Mas é a vida deles, não a minha. Eu sou
apenas mais um adereço. Se esta loucura os faz feliz, quem sou eu para lhes apontar o dedo?
Sobretudo com a mesada que recebo todos os meses. E a liberdade. Funciona tudo a meu favor.
Voltámos do hospital como uma família a sério, mas assim que entrámos em casa e ficou claro
que eu não estava inválida, o pai já não sabia o que fazer. Foi trabalhar no escritório para nós
passarmos um momento de mãe e filha. Não sei o que a minha mãe achou, mas eu fiquei a rosnar por
dentro. Só me apetecia ir para o quarto não fazer nada. Fazer o que tinha de fazer. Pensar nas coisas.
Talvez ler a peça antes da audição. Preparar-me para voltar à escola. Ir às compras sozinha.
Inspecionei as minhas diversas contas nas redes sociais enquanto ela preparava chá e cortava fatias
de bolo de chocolate — uma lasca para ela, uma grossa para mim —, mas os desejos de rápidas
melhoras começavam a tornar-se aborrecidos. Desde que se tornara óbvio que a possibilidade da
minha morte não iria concretizar-se, grande parte da onda de amor diminuíra. O drama tinha
terminado. Mas logo veremos quando voltar à escola. Tenho de me rir um bocado de mim mesma por
causa da futilidade de tudo isso.
Depois de termos bebido o chá e comido o bolo demasiado doce, a mãe declarou que agora já
não ia poder jantar, apesar de estar magra como um espeto. Fiquei a pensar que era melhor fazer o
mesmo, pois também tinha comido os Crunchies, e isso irritou-me. Não preciso de perder peso. Sei
que estou em boa forma. E ela também. Estive tentada a dizer-lhe que o ar magricela não fica
necessariamente bem numa mulher em fase de envelhecimento, mas para quê estragar o momento?
Será que ela tinha um corpo magro e tonificado como o meu quando era mais nova? A pele dela é
diferente da minha. Em certos sítios quase que pende. A minha é firme, bem presa à carne e ao osso,
uma máquina uniforme e forte. O corpo dela começa a revelar as diferentes partes. O peito a descair.
A pele flácida nos cotovelos. Nunca tinha reparado naquilo antes, naqueles indícios de mortalidade
física. Acho que tenho andado ligeiramente obcecada com a morte nos últimos dois dias. Mas é
capaz de ser normal.
O meu quarto parece-me agora um bocado estranho. Quando me fechei lá pela primeira vez,
depois de escapar à conversa sobre as calorias, olhei pela janela — bem fechada — e para a árvore
e a escada de corda mais à frente. Havia imensa neve. Não ia querer pôr-me a escalar por ali abaixo
com este tempo, com ou sem um corpo forte.
Sentei-me na cama, folheei preguiçosamente As Bruxas de Salém e perguntei a mim mesma
quanto tempo iria levar. (A minha mãe é absolutamente previsível. Tal como a maioria das pessoas,
aliás.) Levou apenas cerca de vinte minutos. Tinha a carteira pronta e os sapatos calçados quando ela
bateu à porta para sugerir que fôssemos às compras.
— Podia oferecer-te qualquer coisa gira — disse ela, como se isso fosse resolver a circunstância
de eu ter estado quase morta. — Um casaco novo, talvez, para este tempo horrível?
Não me faltam casacos, como atestará o meu armário, mas as roupas nunca são demais. Sorri-lhe.
Podia ter uma mãe pior em muitos aspetos, isso tenho de admitir.

Pus um chapéu a tapar-me o cabelo, não fosse alguém reconhecer-me. Não é que seja uma
celebridade, mas estavam repórteres e fotógrafos à saída do hospital esta manhã e aposto que fiquei
horrível nas fotografias. Querem que tire uma fotografia com o Jamie McMahon para fazer um artigo.
Talvez aceite. Não consigo decidir se quero falar com ele ou não. Não o recebi no hospital, mas
talvez fosse interessante. Parece que já o conheço. Se calhar, devia falar com ele. Logo penso nisso.
Não é urgente.
Demos uma volta às lojas, que estavam tranquilas naquele dia de semana com mau tempo, e
depois de uma hora e tal — o tempo que levou a comprar três blusas, uma saia, um casaco e um par
de calças de ganga justas — disse que gostava de comprar umas pulseiras da amizade ou qualquer
coisa do género para oferecer à Hayley e à Jenny, para que soubessem que tinha sido importante para
mim elas estarem ao meu lado. Olhei para as botas manchadas de neve e tentei não corar. Não queria
parecer carente nem demasiado grata por elas terem estado à minha cabeceira.
— Foi estranho estar no hospital — expliquei. — Fez-me ter consciência de como tudo é frágil.
E é verdade. A ideia de ter estado quase morta — mesmo morta, não apenas morta durante treze
minutos — ainda me faz estremecer.
— Então vamos lá fazer isso — disse a minha mãe a sorrir. — Mas faz isso como uma
celebração da vossa amizade e não como o receio de uma perda.
Às vezes ela é excessivamente sentimental, mas talvez tivesse razão. Sorri também. Tinha de
sorrir. Precisava do cartão de crédito para pagar aquilo tudo.
— E a Rebecca? — perguntou ela, quase hesitante, depois de termos escolhido as delicadas
pulseiras, cada uma com um coração de prata preso, a dizer Amigas para sempre. Talvez sejam um
bocado infantis (está bem, muito infantis), mas não são nada pirosas. Sobretudo com o preço que
vinha na etiqueta.
Tive de pensar por um momento. A Becca. Claro. Mas não ia levar uma pulseira. Seria ridículo,
depois de tudo o que acontecera, mas tive outra ideia.

Quando chegámos a casa, recebemos um telefonema da maçadora e séria inspetora Bennett, para
saber se estava tudo bem e se eu tinha chegado a casa em segurança. Disse aos meus pais que de
momento não iam continuar a avançar com a investigação, mas para lhe ligarem imediatamente se eu
me lembrasse de alguma coisa. Disse aquilo tudo ao meu pai, como se eu fosse de uma terra qualquer
distante e não falasse inglês, ou, pior ainda, como se tivesse cinco anos.
E se tivesse sido o meu pai a empurrar-me para o rio? E se tivesse sido isso, senhora Inspetora
Espertalhona? Dificilmente lhe poderia pedir o seu número para ligar a dizer, Ei, adivinhe do que me
lembrei? Já é suficientemente mau não me lembrar de nada sem que as pessoas pensem que fiquei
subitamente idiota por causa disso.
Quando a chamada terminou, o meu pai perguntou-me se queria encomendar comida para o jantar.
Raramente encomendamos comida. A mãe orgulha-se das suas aptidões domésticas, embora tenha
imensa vergonha de ser uma dona de casa com uma empregada que vem duas vezes por semana
engomar a roupa. Entre as amigas dela, optar por não trabalhar é um símbolo de estatuto, mas às
vezes penso que tanto vinho à hora do almoço não é indicador de uma vida realizada. Ela teve um
emprego há muito tempo, antes de eu nascer. Foi assim que conheceu o meu pai. Bem, abreviando, a
mãe é uma excelente cozinheira e orgulha-se de servir todas as noites refeições saudáveis e
saborosas. É a única coisa a que tento não faltar cá em casa, porque me facilita a vida. Os meus pais
podem não saber onde estou a cada minuto do dia, mas gostam que nos sentemos em família uma vez
por dia, mesmo que a minha mãe esteja só a mordiscar uma salada, fingindo estar a comer. Consigo
passar cerca de quinze minutos com eles e, normalmente, acham isso aceitável.
Aparências. Tudo gira à volta das aparências. Pensei no bolo, à hora do almoço. Pensei no
excesso de calorias. Que se lixe, concluí. Quase morri.
— Podia ser comida chinesa — disse.
— Então vai ser comida chinesa — disse o meu pai. — A minha princesa é que manda.
Pegou no café e voltou para o escritório.
Já passava das duas. Precisava de me pôr a andar. Tinha coisas para fazer.
— Quero ir entregar estas prendas — disse. — Para elas terem uma surpresa quando voltarem da
escola.
A mãe fez um esforço ténue para dizer que me dava boleia, mas eu declinei.
— Não é preciso, fico bem, a sério. — Fui firme. Como a minha pele.
Sabia que ela não discutiria comigo. Nunca o faz, na verdade. E para ser franca, com exceção
deste episódio de quase-morte, tendo em conta que tenho feito quase tudo o que me apetece mais ou
menos desde os seis anos, temos tido um percurso tranquilo. Sem problemas nem acidentes horríveis.
Exceto aquela história com o hámster no 1.º ano e o que aconteceu com a porcaria do vestido de festa
da Becca quando tínhamos seis anos. Mas foram incidentes rapidamente esquecidos. As pessoas
perdoam as crianças. Foram boas lições, ficaram registadas.
Prometi que voltaria mais ou menos daí a uma hora. Não vou ficar muito tempo fora. Ainda me
sinto muito cansada. A última frase era mentira. Não me sentia cansada. Pelo contrário, sentia-me
cheia de vitalidade.
A minha mãe concordou. Vesti o casaco novo para lhe agradar. No geral, sou uma boa filha. Pelo
menos, tento ser. E o casaco é sensacional — vermelho. Fica bem com o meu cabelo louro e
combinará bem com o cabelo escuro, quando voltar à minha cor natural. Embora goste de agora
estarmos todas iguais, tenho saudades de ser morena. Tenho saudades de ser a morena.
Saí apressadamente, com a ameaça de um nevão a pairar, desci a rua dando grandes passadas
confiantes sobre a neve derretida. É a melhor maneira. Quem tem demasiado cuidado é quem
escorrega sempre. Temos de ser audazes. Começando pela amiga que vivia mais longe, fui a casa da
Jenny.
Aguentei o abraço sufocante da mãe à entrada e depois perguntei se podia deixar uma prenda para
a Jenny em cima da cama dela. Os olhos de Liz estavam marejados de lágrimas e tinha tanta
maquilhagem que as lágrimas eram pretas. Estava a chorar rímel barato.
— Oh, querida, és um amor. Elas têm andado as duas preocupadíssimas contigo. Acho que a
Jenny nem dormiu desde que soubemos a notícia. Ela não sabe que eu sei. Sei que vocês precisam do
vosso espaço, mas ouvi-a ao telefone a meio da noite. Ouvi-a levantar-se para ir preparar qualquer
coisa para beber. Na escola devem ter percebido, porque um dos professores ligou para saber como
ela estava. E claro que sempre que podia estava no hospital contigo e com a Hayley. — Afagou-me o
cabelo. — Vocês as três são como irmãs, não é? Gémeas.
Apeteceu-me apontar-lhe a falha matemática, mas murmurei antes um sim e subi as escadas a
correr, com o fecho da mochila já meio aberto. A minha mãe devia estar a começar o primeiro copo
do dia, mas a Liz já devia ter despejado uma garrafa inteira. Não sei como a Jenny aguenta.
Fiz o que fora lá fazer — deixei a caixa embrulhada e um cartãozinho em cima da almofada dela
e desfrutei de um momento de satisfação antes de voltar a descer. A Liz não me seguiu até lá acima.
Os nossos quartos são os nossos santuários, e a Jenny é capaz de armar uma birra enorme se a mãe
lhe mexer nas coisas. A Liz só tem autorização para lhe deixar a roupa lavada em cima da cama. A
Jenny gosta de ser ela a guardá-la. Ao sair, dei outro abraço à Liz e a seguir fui a casa da Hayley.
Contei as curvas das ruas entre as duas. Treze. Afastei o número da cabeça.
Em casa da Hayley foi mais fácil. A mãe dela é mais como a minha — gosta de mim, mas tem
uma maneira mais reservada de demonstrar afeto. Derramou umas lágrimas quando me viu, sã e
salva, à sua porta, mas não ficou com as faces marcadas de carvão. No rosto dela vi sobretudo alívio
por ter sido eu e não a Hayley que quase morrera no rio. Olhou para mim, com o meu cabelo louro, e
vi-a a pensar que podia muito bem ter sido a sua linda filha. Também vi culpa por ter tido aquele
pensamento e depois alívio por tudo ter acabado bem. Sou boa a ler rostos.
O abraço dela foi menos apertado do que o da Liz. Depois de me acompanhar até às escadas,
ficou cá em baixo à espera que eu voltasse. Não me tocou no cabelo. Não foi efusiva a falar comigo.
Entrei e saí em cinco minutos.
Em casa da Becca foi mais estranho. Quando lá cheguei, tinha o rosto todo afogueado do frio e o
nariz a começar a pingar. Não contara as curvas. Não queria outro treze. Toquei a campainha, e o
coração bateu-me com força no peito com um nervosismo súbito e inesperado. Não ia ali há muito
tempo. Há anos.
A boca de Julia Crisp abriu-se numa expressão de surpresa quando me viu e transformou-se
depois num sorriso caloroso. Vi-a apreciar o casaco, o cabelo impecavelmente liso, a minha beleza
inocente. Vi-a pensar como Becca seria se ainda fôssemos amigas. Andaria tão mal arranjada como
andava? Seria menos taciturna?
Para ser franca, não sei se a Becca é taciturna ou não. Na escola, parece sempre taciturna, com as
t-shirts pretas, os cintos de picos e a maquilhagem pálida. Quase gótica, mas sem ser. Mais rocker.
Seja o que for, não é dos visuais mais bonitos, e a Julia sabe disso.
Renovaram a cozinha desde a última vez que cá estive e redecoraram os corredores. Não sei
porque senti um choque ao ver a casa mudada. Não ia lá há quatro anos, talvez mais. Transferi o peso
do corpo de um pé para o outro enquanto ela me perguntava se queria uma bebida ou comer qualquer
coisa, e recusei educadamente. Não pedi para deixar a prenda no quarto da Becca — teria sido
estranho e desnecessário —, por isso, entreguei-lha, em vez disso. Foi constrangedor e corei.
— É só… Bem, é uma espécie de agradecimento. Por ela ter ido ao hospital. Não era preciso. E
por me ter estado a ler e isso.
Quando Julia pegou na caixa, tinha um sorriso tão grande que pensei que o rosto se lhe ia rasgar
ao meio.
— Oh, Natasha, que querida. Tenho a certeza de que ela vai adorar. Vocês sempre gostaram de
jogar xadrez.
Não era um jogo dos baratos — peças de pedra-sabão esculpida à mão. Pouco mais de cem
libras. Como posso eu aprender o valor das coisas quando a minha mãe gasta tanto em prendas de
agradecimento para as minhas amigas?
É verdade que gostávamos de jogar xadrez, e a Becca era muito boa. Mas não tão boa como eu.
— Foi uma pena não terem continuado no Clube de Xadrez — disse Julia. — A Becca ainda joga
às vezes com o pai. — Encolheu os ombros. — O xadrez não é um jogo com pinta para os
adolescentes.
Encolhi também os ombros. Ela tinha razão. O Clube de Xadrez é de evitar. Nem eu conseguiria
manter qualquer nível de estilo se continuasse a jogar. Não é que queira continuar. Bem vi os totós
que lá vão. Hoje em dia, duvido que até a Becca lá vá, e ela até se começou a dar com a Hannah
Alderton, o que é praticamente o mesmo que raspar o fundo do barril social.
Embora nunca tenha confessado a ninguém, às vezes jogo no meu telefone, numa daquelas
aplicações em que se joga contra o computador. Ainda sou bastante boa. Mas não é como quando eu
e a Bex jogávamos. Ali de pé na cozinha, senti uma pontada de saudades dela. Aguda. Não é
estranho?

Quando regressei a casa, estava exausta. De rastos. Sentia as pálpebras a fecharem-se.


Demasiado ar puro, declarou a mãe, e mandou-me para o quarto até à hora de jantar. Se queria estar
preparada para voltar à escola na sexta-feira, tinha de descansar. Ela era capaz de ter razão.
A cama estava feita de lavado e deleitei-me com o cheiro. Havia uma sensação de segurança e de
infância presa naqueles lençóis. Eram quase quatro horas e o céu já estava de um azul noturno, quase
a ficar negro. Deitada de lado e encolhida, olhei para ele. O azul era lindo, mas a escuridão enchia-
me de pavor. Fechei os olhos. Aquela escuridão era pior, estava dentro de mim. Estava dentro da
minha cabeça. Estava a corroer-me. Treze curvas no caminho. Treze minutos morta. Ofegante,
sentei-me na cama. Tinha de me dominar.
Estou bem. Sei que estou bem.
Liguei o candeeiro da mesa de cabeceira e inspirei três vezes profundamente. Não sou fraca.
Sobrevivi. Era só a escuridão. Não era a morte. Ainda assim, deixei o candeeiro aceso e voltei a
deitar-me. Quando fechei novamente os olhos, o mundo por trás deles era de um laranja-avermelhado
que me fez lembrar o outono. Isso já conseguia enfrentar.
Mas escuridão veio na mesma, como já esperava. Agarrou-me quando a minha respiração se
tornou mais calma e a mente se esvaziou. Puxou-me para baixo. Estava enredada em ramos.
Correntes subterrâneas e sensação de ser arrastada. Havia um vazio por baixo de mim. De um negro
absoluto. Esfomeado. O mundo dissolveu-se. Não havia gelo, não havia frio, não havia ramos a
espetarem-se-me na pele. Apenas escuridão.
E dentro dela, qualquer coisa esperava.
13

— Ele lembra-se de mim — disse ela, quando Biscuit saltou à sua frente e se agachou depois
para brincar, varrendo loucamente a carpete com a cauda e voltando depois a saltar.
— É capaz — concordou Jamie, embora Biscuit fosse assim com toda a gente, desconhecidos ou
não. Era doido, demasiado amigável e sôfrego, uma bola de pelo malcheirosa e louca que nunca
ninguém conseguiria treinar. Naquele momento, Biscuit era talvez o único na sala que não se sentia
constrangido. Jamie estava visivelmente desconfortável, e a mãe de Natasha tinha-se encavalitado na
ponta do sofá, com as mãos cruzadas no colo, de olho atento ao cão. Alison Howland parecia o
género de pessoa que gosta mais de gatos, isto se gostasse sequer de animais.
— Fiz chá.
Aiden entrou com o tabuleiro. Pousou-o sobre a mesa do café e derramou um pouco de leite do
jarrinho cheio até à borda. Também havia um prato de bolachas digestivas de chocolate, restos dos
ataques de larica que lhes davam lá em cima no estúdio.
— Viva, Aiden — disse Natasha, lançando ao rapaz de cabelo escuro um sorriso perfeito. —
Como estás? Quase não te reconhecia.
— Estou ótimo. — Aiden encolheu os ombros, e os olhos deslizaram dela para Jamie. — Bem,
vou lá acima acabar aquela faixa. Quero ver se aquela segunda linha de guitarra sai bem.
— Obrigado.
Jamie desejou poder ir fazer-lhe companhia.
— Espero que não tenhamos vindo interromper o seu trabalho. — Alison estava já a servir chá, e
Jamie perguntou a si mesmo por um instante como podia ela parecer tão incomodada e, ao mesmo
tempo, exibir aquela segurança em casa de um desconhecido. Contradições. Como a filha.
— Não, tudo bem. O meu horário é muito irregular.
Ao contrário de Aiden, Jamie quase não conseguia despregar os olhos de Natasha. Não tinha nada
que ver com sexo — embora ela fosse uma rapariga muito bonita e estivesse naquele período de
desabrochar da juventude que as mulheres atravessam —, mas antes com ela parecer tão viva. Tão
saudável. Era quinta-feira; quando a vira, há menos de uma semana, estava fria e azul e não
respirava. Vira fotografias dela nos jornais, como era evidente, mas eram de antes. Nessa altura, ela
era diferente. Tinha o cabelo castanho, para começar.
Tasha lançou-lhe um olhar trocista, e ele corou.
— Desculpa, é estranho, e ótimo, obviamente, mas a última vez que te vi, pensei que estavas
morta. É como se estivesse a ver um fantasma.
— Estou viva e bem viva. — Sorriu, corando ligeiramente. — Graças a si.
Os seus dentes eram perfeitamente alinhados e brancos. Jamie não reparara nisso quando a
retirara da água. Tinha a boca aberta, mas ele só reparara no azul terrível dos seus lábios. Esses
mesmos lábios estavam agora pintados com um batom rosa-pálido. Maquilhada, mas não
inteiramente. Adulta, mas não inteiramente.
— Mas podia ter sido diferente se o Jamie se tivesse atrasado a dar o seu passeio. — O tom dela
era ligeiro. Pegou numa das chávenas servidas pela mãe. Tinha o rosto escondido atrás do cabelo
louro, e ele sentiu um instante súbito de culpa irracional.
— Foi exatamente isso que aconteceu, acredita — disse ele. Inclinou-se para a frente e fez festas
nas orelhas do pequeno cão. Uma língua húmida atirou-se-lhe aos dedos. — A culpa foi do Biscuit.
Escondeu a coleira.
— Sim, li isso em qualquer lado — disse Natasha. — Mas também foi ele que me encontrou no
rio, por isso está perdoado.
Nenhuma das mulheres tinha tocado nas bolachas, e o cão começava a salivar. Jamie pegou no
prato e estendeu-o, mas as duas abanaram a cabeça.
— Temos o jantar à espera em casa — disse Alison com um sorriso.
Era bem elegante e atraente, uma versão mais velha da filha. Jamie pensou que no seu consumo
diário de alimentos não deviam constar muitos bolos nem petiscos.
— Então vou tirá-las daqui — disse ele. — O Biscuit não se refreia com a comida. Roubava uma
assim que pudesse. O nome assenta-lhe bem. É uma sorte não ter filhos. Não tenho muito jeito para
impor regras.
— Só queria pedir-lhe desculpa por não o ter recebido no hospital — interrompeu Natasha.
Estava a fazer festas a Biscuit, mas Jamie reparou que o fazia com cuidado para não ficar com pelos
na roupa. Não a censurava. Cheirar a cão molhado não era bom em nenhuma idade, muito menos em
adolescentes. — Deve ter achado muito mal-educado da minha parte — concluiu ela.
Jamie abanou a cabeça.
— Não, claro que não.
Não era inteiramente verdade. Ela não o ter recebido fizera-o sentir-se idiota, sobretudo com os
repórteres lá fora a quererem saber como ela estava.
— Pedi que lhe dissessem que estava a dormir, mas não era inteiramente verdade. — Os grandes
olhos dela, fixados nele, eram um pedido de desculpa e de compreensão. — Não estava preparada
para… Bem, para o enfrentar. Sei que pode parecer estranho. Se o visse, teria de admitir que aquilo
acontecera realmente. Acho sempre que já ultrapassei isto, mas depois acontecem coisas
inesperadas, como o senhor aparecer, e passo-me um bocado.
— Eu compreendo — disse ele. — Mas tudo bem, a sério. O importante é que estejas melhor.
— Ela ainda não se lembra do que aconteceu — disse Alison, inclinando-se para a frente. —
Nada. Oxalá se lembrasse. Estou grata a Deus por ninguém a ter agredido fisicamente, mas ainda
assim, gostava de saber como foi ali parar.
— Mãe! — Natasha revirou os olhos, envergonhada. — Isso não é problema do senhor
McMahon.
— Gostava de poder ajudar — disse Jamie —, mas a única coisa que vi foi uma rapariga no rio.
Mais ninguém. Não vi sinais de nenhuma outra pessoa.
Vasculhara a memória vezes e vezes sem conta, com medo de lhe ter escapado alguma coisa
daquela manhã. Tinha a certeza que não, mas toda a sua atenção — a pouca que restara com o choque
— fora para Natasha e assim que se metera na água os seus sentidos também tinham deixado de
funcionar como devia ser.
— Não lhe ligue, por favor — disse Natasha.
A adolescente estava claramente embaraçada, mas Jamie ficou surpreendido com a forma como
se referia à mãe, como se ela nem sequer ali estivesse, como se os seus papéis de mãe e filha
estivessem invertidos. Ficou ainda mais surpreendido por a mãe não a repreender. Alison não disse
uma palavra e, em vez disso, encolheu os ombros como que a pedir desculpa. Talvez o alívio de ter a
filha sã e salva em casa a impedisse de ralhar com ela, mas sentia-se que aquilo era um hábito
enraizado. Natasha dissera aquilo com demasiada naturalidade.
— Sabemos que, se se lembrasse de alguma coisa, teria dito à polícia — concluiu ela. — Tenho a
certeza de que a minha memória voltará a funcionar quando estiver pronta e que acabaremos por
descobrir que foi tudo por minha culpa, um simples acidente idiota.
Deu um trago no chá. Lá de cima, do estúdio no sótão, vinha o som de uma guitarra a tocar. Aiden
não devia ter fechado a porta como devia ser.
Biscuit, ao ouvir o barulho e sempre à procura de distração, saiu da sala.
— Lá se vai a minha mascote — disse Natasha.
— Ele gosta de estar no estúdio. À noite, está lá sempre mais calor.
— Trabalha à noite? — Os olhos de Natasha abriram-se momentaneamente. — Até tarde?
— Às vezes. Quando estou a meio de um projeto.
Ela pareceu espantada.
— Uau! Então como passeia sempre o cão tão cedo? É antes de se ir deitar?
— Às vezes, sim, mas nunca fui de dormir muito. Normalmente, não durmo mais do que quatro
horas. E é bom cansar o Biscuit logo de manhãzinha, senão ele dá comigo em doido.
— Eu também não ando a dormir lá muito bem — disse ela, com uma pequena nuvem sobre a
perfeição da sua juventude, mas que se dissipou quando os pensamentos regressaram ao cão: — Ele
é tão amoroso. — Agitou um dedo a Jamie. — Não o deixe esconder a coleira outra vez! Pode estar
em risco a vida de uma rapariga!
Jamie riu-se com ela, contente por ela conseguir brincar com a situação. Aliviava a culpa
irracional que sentia. Ela estava bem. Tudo acabara bem. Natasha pôs-se de pé e a mãe imitou-a.
— Bem, vamos deixá-lo em paz, mas antes queria dizer-lhe que pode ficar descansado acerca
daquela história da fotografia que o jornal queria tirar. Eu disse-lhes que não. Sei que é uma pessoa
que aprecia a sua privacidade. Os jornais fartaram-se de sublinhar isso. Para ser sincera, tudo o que
quero é voltar à escola e à minha vida normal. Aposto que o Jamie também.
Jamie não pôde evitar sentir uma onda de alívio.
— Sim, teria aceitado se me tivesse pedido, mas não seria bem o meu género. Se quisesse
atenção teria uma banda, não me dedicaria a fazer bandas sonoras.
— Foi o que eu pensei. — Pôs-se em bicos de pés e depositou-lhe um leve beijo na face. —
Mais uma vez, obrigada.
Ele acompanhou-as à porta, com Biscuit a correr-lhe à volta dos pés depois de ter descido as
escadas a correr assim que os ouvira movimentar-se. A seguir, deixando o tabuleiro onde estava,
pegou no chá e subiu para o estúdio.
— Já se foram embora? — perguntou Aiden.
Jamie assentiu com um movimento de cabeça.
— Ela parece uma miúda simpática.
Aiden encolheu os ombros.
— Sim, deve ser.
Jamie quase lhe perguntou o que queria dizer, mas mudou de ideias ao ver uma sombra atravessar
o rosto de Aiden, oculto por trás do cabelo. Às vezes Jamie esquecia-se de que Aiden tinha deixado
a escola há pouco tempo. A mesma escola que Natasha frequentava. Talvez tivessem tido alguma
história os dois. Mas não era da sua conta. Sentou-se à secretária e pôs-se a estudar os diversos
ecrãs de computador.
— Muito bem. Vamos introduzir isto na mistura. E fecha essa porta. Estava a ouvir-te lá de baixo.
Biscuit entrou como um tornado, saltou para dentro do seu cesto, a porta fechou-se e, isolado do
mundo exterior, Aiden começou a tocar.
14

Becca ficara sem saber o que pensar acerca do jogo de xadrez. A maneira como os olhos da mãe
brilhavam quando lho entregou deu-lhe instantaneamente vontade de o odiar. Era como se estivesse a
dizer: Olha! Olha! Também podes ser uma Barbie se te puseres mais bonita. Podes ser a filha que
sempre desejei. Podes ser a rapariga que pescam do rio em vez de uma rapariga a que ninguém
liga.
Mas o conjunto era mesmo bonito, com peças delicadamente talhadas, mas sólidas. Agradou-lhe
o tamanho e o peso delas. Na escola jogavam sempre com conjuntos pequenos, e Becca nunca gostara
muito deles. No xadrez, todos os movimentos eram importantes. As peças refletiam essa ideia.
— São bonitas, não são? — disse o pai quando instalaram o tabuleiro em cima de uma pequena
mesa de café. Becca viu-se forçada a concordar. Eram bonitas.
Sentiu um aperto no estômago e apercebeu-se, um pouco horrorizada, de que estava empolgada.
Talvez Natasha voltasse a ser amiga dela. Talvez voltassem a jogar xadrez nas longas noites de
inverno como antigamente, de pernas cruzadas no chão, a mastigar comida de plástico. Era um
pensamento idiota. Eram demasiado velhas para essas coisas. A vida era demasiado agitada. Mas
ainda assim, continuava a sentir dentro de si uma pequena luzinha de pirilampo de que não se
conseguia livrar.
Não és uma Barbie, sussurrou uma voz vinda das sombras dentro de si. Lembra-te disso.
Lembra-te de como elas te trataram. Mas enquanto escrevia o postal de agradecimento que a mãe
dissera que entregaria no dia seguinte, Becca estava quase ansiosa por que Natasha voltasse à escola.
Aquela sensação durou até cerca das 09h05 de quinta-feira quando, estando ela a guardar o
cachecol e as luvas no cacifo, o zumbir da colmeia lhe chegou aos ouvidos. Oh, meu Deus, viram as
pulseiras da Hayley e da Jenny? Não são lindas? Só passadas outras duas horas é que ela própria
as viu — no intervalo. Não as viu exatamente, vislumbrou apenas o brilho da prata, acompanhado
pelo tinir de berloques e por arrulhos de Oh, que lindas! Amigas para sempre. Que querido! Devem
estar tão felizes por ela estar bem. Vocês as três são tão chegadas…
Becca distraiu-se do que se passava à sua volta. Amigas para sempre escrito nas pulseiras. Se
calhar, Natasha era realmente amiga daquelas duas. Mordeu a língua e afastou-se, para não gritar que
Natasha fora em tempos a sua melhor amiga para sempre e que a coisa tinha acabado como se via.
Não queria que ninguém reparasse que estava chateada. Não queria saber. Porque havia de lhe
interessar? Fora há imenso tempo. Mas o jogo de xadrez parecia agora tosco e estúpido. Não tinha
nenhuma intenção de o usar.
Foi desagradável com Hannah durante todo o almoço e depois desculpou-se e mentiu dizendo que
estava com o período quando viu a amiga a tentar disfarçar a tristeza. No final do dia, quando o
alívio da última campainha chegou, às três e um quarto, foi diretamente para casa de Aiden e apanhou
uma pedrada enorme, a que se seguiu uma sessão de sexo meio indolente, acompanhada de risinhos,
em que tentaram não fazer barulho enquanto a mãe preparava chá na sala ao lado. Não foi sexo
fantástico — ela desconfiava que não sabia ainda o que era sexo fantástico — mas foi carinhoso e
íntimo, e ela gostou de ouvir o som da respiração de Aiden a acelerar ao seu ouvido. Era como se o
estivesse a fazer perder o controlo. Ela. Becca. Não uma Barbie. Apenas uma rapariga desleixada.
Isso tornava-a mais sensual do que qualquer uma das outras.
Quando acabaram, ele teve de ir novamente trabalhar para casa de Jamie McMahon, embora já lá
tivesse passado o dia todo, mas levou-a primeiro de carro a casa. O ar gelado pô-la um pouco mais
sóbria, antes de ir ter com os pais rígidos.
— Então, a Tasha volta amanhã à escola — disse Aiden, quando o carro arrancou.
Becca anuiu.
— Pelo menos, agora as coisas podem voltar à normalidade.
— Pois — disse ela, observando a neve, o gelo e o céu escuro e límpido através do para-brisas.
O vidro quase não descongelou durante a curta viagem até casa dela, e o gelo fraturado ainda cobria
as superfícies onde os radiadores não tinham chegado como devia ser, criando uma moldura. Pensou
qual teria sido a sensação de mergulhar na água negra e gelada. Devia ser como ver-se atirada aos
trambolhões para o espaço, com a respiração a ser lentamente sugada do peito. Pela primeira vez,
teve consciência do que acontecera realmente a Natasha naquela noite. A polícia parecia não estar
preocupada — não voltara a ver aquela inspetora Bennett —, mas, mesmo assim, não deixava de ser
um mistério. Natasha. Sempre o centro das atenções. — Pois, isso é o mais importante.
Pensou em destruir o conjunto de xadrez.

— Viva.
Becca não tinha esperado ansiosamente as audições e estivera quase para não ir, mas o professor
Jones cruzara-se com ela no corredor à hora do almoço, com um grande sorriso, e sacudira-lhe um
plano debaixo do nariz. E porque não havia de participar? Até gostava de trabalhar na cenografia e
nas luzes e de se certificar de que tudo corria sobre rodas, e ainda por cima naquele ano ia dirigir
tudo. O professor Jones tinha razão. Essas coisas podiam ditar o sucesso ou o fracasso de um
espetáculo.
A sexta-feira da primeira semana, do plano de duas semanas da escola, era o seu melhor dia.
Dois tempos livres de manhã significavam que podia ficar na cama até mais tarde e depois tinha
outro tempo livre à tarde. Como não pensara ainda na peça como devia ser, dedicou aquele tempo a
procurar um canto tranquilo ao lado de um radiador e leu o texto por alto, anotando ideias de como
podia ser apresentada aquela peça austera e poderosa. Qualquer coisa simples ficaria bem. Usar
apenas preto e branco para se adequar ao tema e condizer com as roupas dos puritanos.
Tinha de admitir que era uma peça excelente. Shakespeare entusiasmava-a pouco — dava
demasiado trabalho esquadrinhar a poesia à procura do significado — mas a peça de Miller sobre
histeria, mentiras e sangue fazia-a vibrar. Estava carregada de emoção. Não tinha nada que ver com o
amor romântico que todos procuravam, era antes sobre paixões sombrias e devoradoras, e partes da
história quase lhe tiraram o fôlego. A mentira da mulher honesta e magoada para tentar salvar o
marido. A necessidade de proteger reputações e tudo o que a elas estava associado. Via-se como
Elizabeth, não como a aparatosa Abigail, nem como a tímida Mary Warren ou qualquer uma das
outras que dançavam ao som dos feitiços de Tituba. Essas eram as Barbies. Ia ser um desafio fazer
uma coisa boa, mas o professor Jones escolhera a peça ideal para aquele bando de cabras malévolas.
Durante algum tempo sentiu-se mesmo entusiasmada, mas depois soou o último toque e o
nervosismo voltou. Se Hannah — a sua assistente de confiança — não a tivesse procurado para irem
juntas ao teatro, ter-se-ia cortado. Ou, pelo menos, teria arranjado uma desculpa para não ir. Devido
ao horário pouco preenchido, não vira Natasha o dia todo e ela e Hannah tinham passado a hora do
almoço enroladas perto dos radiadores do corredor de Ciências, escondidas, embora nenhuma das
duas o admitisse. A colmeia estava demasiado barulhenta e exaltada, e naquele dia havia um enxame
à volta de Natasha, Hayley e Jenny. Becca podia viver sem as ver até o rebuliço esmorecer.
Chegou cedo às audições, pois sabia que os outros estariam nos cacifos ou a fumar rapidamente
um cigarro antes de lá irem ter. As Barbies apareceriam calmamente com dez minutos de atraso para
fazer uma entrada aparatosa. O professor Jones já lá estava, e ela sentou-se ao seu lado, virada para
a frente. Devia ter-lhe dado uma sensação de poder. Mas não. Deu-lhe a sensação de estar exposta. A
folhear papéis, manteve a cabeça baixa, mas sem os ver realmente, e quando Hannah se aproximou
para falar do novo equipamento de iluminação, respondeu secamente que isso podia esperar até mais
tarde. As pessoas começaram a chegar, décimos primeiros anos principalmente, um ou outro do 9.º
ano, os talentosos atores-principais-em-lista-de-espera, como o professor Jones lhes chamava,
todos com uma atitude de indiferença descontraída, como se não interessasse quem ficava com os
papéis.
Becca sentiu a chegada das Barbies antes de a ouvir. Uma vaga de energia atravessou a sala fria.
Não interessava. Não lhe fazia diferença. Há muito tempo que deixara de lhe fazer diferença.
Então porque estava a sentir-se tão estranha?
— Viva, Bex.
Ergueu o olhar e viu Natasha. Resplandecente de vida. Inteira. Bem.
— Viva — disse Becca. Tinha a certeza de que o pescoço lhe ficara cheio de manchas do calor
súbito. — Fico contente por ver que estás bem. Obrigada pelo jogo de xadrez.
As palavras saíram-lhe num murmúrio precipitado.
— Ainda bem que gostaste! — disse Natasha com um grande sorriso. — A minha mãe comprou
pulseiras para a Hayley e para a Jenny, mas eu achei que preferias o jogo de xadrez. Não sabia bem
se gostavas de pulseiras com pingentes.
Por um momento, o sangue de Becca subiu-lhe à cabeça, pensando que era um comentário
sarcástico, que ela lhe estava a chamar fufa gorda ou coisa do género, mas não havia nada de
maldoso no tom de Natasha, e, pelo canto do olho, Becca viu as Barbies a olharem. Relanceou na
direção delas. O pequeno grupo de raparigas que decidia que cadeiras ocupar olhava com um ar
desdenhoso e incrédulo e uma ponta de horror. O que quer que aquilo fosse, não era uma brincadeira.
A minha mãe comprou pulseiras para a Hayley e para a Jenny. Não fora Natasha que as escolhera.
— Bem, vou arranjar um lugar. Só queria agradecer por teres ido ao hospital e isso.
— Tudo bem.
O professor Jones bateu as palmas para lhes captar a atenção.
— É verdade — disse Natasha apressadamente, inclinando-se para a frente. — Há uma festa hoje
à noite, não sei se queres ir? Tenho de ir à porcaria da sessão com a psicóloga depois disto, mas a
festa só começa lá para as nove ou dez. Em casa do Mark Pritchard. — Girou o caderno de Becca e
rabiscou uma morada e um número de telefone, rasgou o papel e entregou-lho. — É a morada da festa
e o meu número de telefone até a polícia me devolver o telefone antigo. Ainda não me deixam pôr um
novo cartão SIM. Vá-se lá perceber porquê. — Fez uma careta por causa da demora. — Era porreiro
se conseguisses ir.
Becca pegou no pedaço de papel e assentiu, sem saber bem o que dizer, mas foi salva pelo
professor Jones, que deu início ao discurso inspirador que precedia as audições. Tasha apressou-se a
ir para o lugar e, enquanto ela se afastava, Becca reparou no olhar de Hayley. Um olhar desdenhoso,
frio, de cima a baixo. Becca devolveu-lho. Embrulha, cabra.
— Que foi isto? — murmurou Hannah, puxando uma cadeira ligeiramente atrás de Becca. —
Estás bem?
— Estou. É só uma festa. Hoje à noite.
— Ela convidou-te?
Hannah parecia incrédula, e Becca teve vontade de se voltar e de lhe dar uma bofetada. Que
porra sabia ela, afinal? Nunca tivera muitas amigas. Nunca tivera uma amiga como Natasha fora para
ela quando eram crianças. Talvez quase ter morrido tivesse feito Natasha lembrar-se disso.
— Sim.
Uma longa pausa. Pete Cramer e Jenny já estavam a ler. Eram bons, mas Becca não conseguia
concentrar-se. Aquela breve conversa fora mais do que ela e Tash tinham falado durante, pelo menos,
três anos. Porque se sentia empolgada? O que era aquilo? Ia pôr-se aos saltinhos só porque Natasha
lhe pedia? Nem pensar. Porque havia de o fazer? Olhou para Hayley e Jenny, todas petulantes e
perfeitas. Ficariam furibundas se Natasha recomeçasse a falar com Becca. Ficariam sem saber o que
fazer.
— O mais provável é não ir — disse, sentindo o peso do olhar inquieto de Hannah. — Disse ao
Aiden que ia ter com ele hoje à noite.
Não olhou para Hannah enquanto lhe sussurrou aquilo. Era mentira. O mais provável era ir, mas
não a queria levar. Se fosse, iria sozinha. Talvez fosse uma porcaria e elas fossem umas sacanas, e se
isso acontecesse, não queria que Hannah ficasse com pena dela. Além disso — e esse pensamento
era como uma maré negra de culpa —, se levasse Hannah, então é que seriam mesmo gozadas e
acabariam a noite sentadas num canto, a desejar estar noutro sítio qualquer. Não era simpático, mas
Becca tinha de pensar em si. Hannah era apenas um espaço vazio na estrutura social da colmeia.
— Tem cuidado — disse Hannah. — Sabes como elas são.
Becca não percebeu se o tom dela era de desaprovação ou de dor. Provavelmente as duas coisas.
Estava a fazer-se de vítima.
— Como disse, o mais provável é não ir. — O papel estava a ficar húmido, amarfanhado na sua
mão, e ela enfiou-o no bolso.
Natasha estava a ler com James Ensor, que queria o papel de John Proctor. Tasha queria ser
Abigail, não havia dúvidas. Também era bastante boa — não tanto como Jenny, mas era boa — e
tinha obviamente praticado as cenas que pensou que poderiam aparecer. Quando terminou, o resto do
trio aplaudiu, e ela corou e sorriu. Não tinham batido palmas uma à outra.
— Estão a aplaudi-la só por estar viva — murmurou Hannah. — Como se isso tivesse que ver
com qualquer coisa que não a sorte ou o destino.
Becca não disse nada. Hannah tinha razão, como era evidente. Mas era mais do que isso. Batiam
palmas porque queriam a aprovação dela. Agora ela era especial. Todas queriam ser amigas dela,
mais ainda do que antes.

— Ainda apareces amanhã, não apareces? — perguntou Hannah enquanto se dirigiam para o
portão, depois de a audição terminar. Natasha não voltara a falar com Becca, mas fizera-lhe um
sorriso e pronunciara Até logo com os lábios por cima do ombro ao sair, ladeada pelas Barbies.
— Amanhã? — Becca franziu o sobrolho. — Que acontece amanhã?
— É o aniversário da minha mãe. — Hannah fez um ar magoado e triste, olhos míopes no rosto
descorado que nunca ultrapassara totalmente a fase borbulhenta da adolescência, com irrupções
ocasionais no queixo, que deixavam cicatrizes cor-de-rosa sem nunca terem tempo de secar antes do
surto seguinte — Vamos almoçar fora, lembras-te?
— Lembro, desculpa — respondeu Becca. Claro que se lembrava. Apenas se lhe varrera da
mente por uns instantes. — Sim, conta comigo.
Hannah fez um sorriso radioso, e Becca sentiu subitamente uma onda de afeto por ela. Hannah era
sua amiga. Tinha de se lembrar disso. Lá por não resplandecer como Natasha, e só porque Becca
ficava às vezes frustrada pela sua falta de força de carácter, não queria dizer que não fosse boa
pessoa.
Talvez afinal não fosse à festa. Talvez fosse antes para casa ver um filme.
Talvez.
15

Excerto da CONSULTA DA DOUTORA ANNABEL HARVEY COM A PACIENTE NATASHA


HOWLAND, SEXTA-FEIRA, 15 DE JANEIRO, 18H30

NATASHA: Era isso que esperava que acontecesse? Que eu voltar a casa e à escola fizesse voltar-
me tudo à memória?
DOUTORA HARVEY: Não estava à espera de nada. E tu, era isso que esperavas que acontecesse?
NATASHA: Céus, é mesmo psicóloga.
(Risadinha e, a seguir, pausa)
Acho que a minha mãe é que estava à espera que isso acontecesse. Parece estar mais desejosa do que
eu de saber como fui parar ao rio.
DOUTORA HARVEY: Tu não queres saber?
NATASHA: Não. Acha estranho? Não, não responda. Vai perguntar-me se eu acho estranho. Talvez
seja um bocado estranho. Mas sinto-me bem. Não fui espancada, nem violada, nem nada do
género. A polícia já largou a investigação. E ainda enlouquecia se pensasse muito nisso, não
acha?
DOUTORA HARVEY: Como correu a escola hoje?
NATASHA: Correu bem. Estava toda a gente a olhar para mim, mas eu posso bem com isso.
Estivemos a fazer as audições. Isso foi bom. A Hayley e a Jenny, que são as minhas melhores
amigas, acho eu, não me largaram um instante, o que também é bom. Acho eu.
DOUTORA HARVEY: Não pareces muito convencida.
NATASHA: Não, é bom. Elas são bestiais. Protegem-me de todas as pessoas que querem fazer
perguntas. O que até tem uma certa piada. Como se elas não quisessem fazer perguntas.
DOUTORA HARVEY: Que género de perguntas?
NATASHA: Principalmente sobre como foi.
(Pausa)
A história toda de estar morta.
DOUTORA HARVEY: O que lhes dizes?
NATASHA: Que lhes posso dizer? Não me lembro de nada. Acho que devem estar à espera de que
lhes fale de luzes e de túneis.
(Pausa)
Convidei a Becca para a festa.
DOUTORA HARVEY: Que festa?
NATASHA: A festa que há hoje à noite. Em minha honra, por ainda estar viva. Convidei a Becca.
Não sei bem porquê.
DOUTORA HARVEY: Achas-te preparada para ir tão cedo a uma festa?
NATASHA: Preocupa-se mais do que os meus pais.
DOUTORA HARVEY: Eles não se importam que vás?
NATASHA: Claro que se importam. Mas não dizem nada.
DOUTORA HARVEY: A Becca parece importante para ti.
NATASHA: Já foi a minha melhor amiga. Há imenso tempo. Dei por mim a pensar mais nela desde
que tudo isto aconteceu. Antes, andávamos sempre juntas, depois passei a andar com ela e com a
Hayley. Mais tarde, comecei a andar só com a Hayley e a Jenny.
DOUTORA HARVEY: Tiveram alguma zanga?
NATASHA: Não. Não propriamente. É que, bem… Na escola as coisas mudam e isso, não é?
Começamos a dar mais importância a outras coisas. Às pessoas com quem nos damos. Coisas
desse género.
DOUTORA HARVEY: Mas convidaste-a para a festa.
NATASHA: Sim. Mas o mais provável é ela não ir.
DOUTORA HARVEY: Então a Becca foi a tua primeira amiga? Que idade tinham quando se
conheceram?
NATASHA: Talvez sete anos. Não tenho a certeza. É como se a conhecesse desde que nasci.
DOUTORA HARVEY: Talvez ela seja a tua segurança.
NATASHA: O quê?
DOUTORA HARVEY: Há sempre uma criança em todos nós. Tens dezasseis anos. Já és quase
adulta. Mas este incidente, o trauma por que passaste, pode levar-te a ansiar pela segurança da
infância. Talvez os teus pais não te proporcionem isso. Talvez procures isso na Becca.
NATASHA: (Risos)
Parece-me que está a elaborar demasiado acerca disso.
(Pausa)
Mas é verdade que não ando a dormir bem.
DOUTORA HARVEY: Porquê?
NATASHA: Não sei.
DOUTORA HARVEY: O que te impede de dormir?
NATASHA: Nada. Estou no meu quarto. Está tudo igual.
DOUTORA HARVEY: Talvez tu estejas diferente.
NATASHA: (Silêncio)
É o escuro. Tenho medo do escuro.
DOUTORA HARVEY: O que te assusta no escuro?
NATASHA: (Longa pausa. Muda de posição. Tosse)
Acho que está lá qualquer coisa. Qualquer coisa má.
16

Becca não se arranjou — pelo menos, não como as outras se iam arranjar, vestiu apenas uma t-
shirt preta com um ombro à mostra e as calças de ganga — mas pôs toda a sua pintura de guerra, um
risco preto a rodear-lhe os olhos, mais fino nas extremidades, como a Cleópatra. Achava que lhe
dava um aspeto selvagem. Ela era selvagem. Até ao preciso momento em que se detivera à frente da
casa que estremecia com a música, não teve a certeza se iria ou não.
Dissera à mãe que ia ter com outras raparigas da escola e que era capaz de ficar a dormir em
casa delas e apaziguara-lhe a preocupação pateta com um Sim, mando-te um SMS quando
chegarmos a casa. Depois enviou uma mensagem a Aiden a perguntar se ele podia ir buscá-la por
volta da uma, talvez mais cedo, e a dizer que tinha rédea solta a noite toda. Aquela parte fizera-a
sorrir, apesar do nervosismo.
Mark Pritchard não era tão abastado como Natasha, mas a sua casa era grande, com duas salas no
andar de baixo, uma grande cozinha e uma pequena divisão nas traseiras, antes do jardim. Ao
princípio, vinda do frio e com um nó no estômago devido aos nervos, Becca quase se sentiu
desorientada. As pessoas eram lampejos de roupas coloridas, misturadas por todo o lado. Rostos que
lhe eram familiares mas que não conhecia realmente. Dois rapazes que tinham saído da escola no ano
anterior. A música pulsava através da estrutura do edifício, vinda da sala da frente. Nunca
encontraria Tasha ali. Fora completamente estúpido ter lá ido, pensou. Será que se iriam todos rir
dela?
Todos. Atina lá, pensou. Quem são todos? São apenas as Barbies. Tu não és a Hannah. Mais
ninguém se ri de ti. És invisível, mas não és uma anedota. Mas talvez as Barbies fossem a única
coisa importante. E se as Barbies fizessem alguma coisa para a humilhar à frente dos seus pares,
então é que ela se tornaria mesmo uma anedota. Outra Hannah. Se calhar, o melhor era mandar já
uma mensagem a Aiden. Se calhar devia…
— Bex!
Ergueu os olhos. Uma mão acenou-lhe da cozinha. Natasha abriu caminho por entre as pessoas
que falavam e bebiam no corredor e agarrou-a.
— Isto não está o máximo? A mãe do Mark até deixou um carregamento de comida e de bebidas.
Anda daí!
Agora já não podia recuar.
Despiu o casaco na cozinha, cumprimentando pessoas com movimentos de cabeça e mantendo-se
atenta a Hayley e a Jenny, enquanto Natasha preparava duas vodcas fortes com mirtilos para as duas.
— À nossa! — Bateram os copos de plástico. — Um brinde a estarmos vivas!
Enquanto bebia — demasiado depressa, pois precisava de um estímulo para ganhar confiança —
Becca pensou que Natasha nunca tivera melhor aspeto do que agora, tão pouco tempo depois de ter
estado quase morta. A sua pele resplandecia, mesmo debaixo do pó cor de bronze que pusera e que
cintilava como poeira de estrelas sobre o seu pescoço e os seus braços nus. Estava esguia e perfeita
nas calças de ganga justas e com o top de alças prateado com lantejoulas. Fez Becca sentir-se como
uma jogadora de râguebi. Olhou para as Doc Martens confortáveis e, a seguir, para os sapatos
cremes com saltos de agulha de dez centímetros de Natasha. Teriam mesmo sido melhores amigas?
Como? Seria possível duas pessoas mudarem tanto?
— Ainda bem que pudeste vir. — De perto, Natasha cheirava a perfume e a pastilha elástica.
Becca devia tresandar a cigarros. — Podes salvar-me do Mark. Já me começa a chatear. Quantas
vezes tenho de dizer que não? E não achas estranho desejar ainda mais sair com uma rapariga só
porque ela se afogou? Ele devia sair era com a Hayley. Ela gosta dele.
— Onde está a Hayley? — Tentou não falar com uma voz esganiçada, mas os olhos
esquadrinharam cautelosamente as pessoas.
— Ela e a Jenny foram ali divertir-se. Devem estar quase a voltar. Anda, vamos dançar.
Becca nunca sentira menos vontade de dançar, de modo que emborcou a vodca e serviu outra tão
forte que o cor-de-rosa do mirtilo quase não se via, e seguiu Tasha até à música. Até ali, a «pista de
dança» eram apenas cinco ou seis raparigas que se abanavam ao ritmo da música enquanto riam e
conversavam, e que lançaram os braços à volta do pescoço de Tasha e abriram espaço para ela.
Depois, uma delas, Vicki Springer, que tinha estado nas audições, fez o mesmo a Becca.
— Becca! Se souberes quem o professor Jones vai escolher, podes partilhar. Ou melhor ainda, se
puderes descobrir com qual de nós ele daria uma queca, pago para saber! — Tinha os olhos toldados
pela bebida. Devia ter chegado cedo à festa. — Ele alinhava na boa. Dá para ver. Pela maneira como
se comporta connosco, está mortinho por comer uma adolescente.
— Talvez não se importasse que o partilhássemos — acrescentou Jodie. Soltaram todas
guinchinhos e Becca juntou-se a elas com a bebida a aquecer-lhe o cérebro, concordando que o
professor Jones era uma brasa e que todas o desejavam comer, embora na realidade não achasse nada
disso e não se imaginasse a trair Aiden com ninguém. Esvoaçaram à volta dela, pedindo-lhe
pormenores acerca dele, como se Becca tivesse uma posição especial por ser responsável pela
cenografia. Talvez isso fosse verdade, mas o mais provável era por ser a única que não tentava ir
para a cama com ele.
Mas não deixava de ter uma certa piada, pensou, com os olhos a varrerem a sala. Os rapazes
andavam por ali todos a armar, enquanto em segredo observavam as raparigas a dançar, ao passo que
elas só pensavam em quecas com uma pessoa muito mais velha do que eles. Sentiu a cabeça
ligeiramente à roda e riu-se sem razão, balançando-se com o resto da matilha. Ela era mais de
charros do que de álcool, e a vodca estava a subir-lhe à cabeça. Estava na colmeia. Fazia parte do
enxame. Isso deu-lhe outra vez vontade de rir.
Mark apareceu do nada e agarrou em Natasha, que começou a afastá-lo; mas ele chegou-se mais e
sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Ela fez que sim com a cabeça e agarrou a mão de Becca.
— Anda daí. Elas já voltaram.
Era estranho sentir os dedos quentes e delgados de Tasha à volta dos seus. Sentiu que era
novamente uma miúda de dez anos que ia ter uma aventura com a sua melhor amiga para sempre. Era
como um sonho estranho em que o passado se tivesse fundido com o presente, tornando tudo um
pouco surreal. Sentiu-se confortável mas também deslocada. A última sensação ganhou mais força
quando a porta do escritório se fechou nas suas costas e deu por si apertada entre as Barbies e alguns
dos rapazes.
— Então… — disse Hayley a Becca, enquanto Jenny recolhia dinheiro de sete ou oito
adolescentes. — Alinhas? Se sim, precisamos de dinheiro. A Jenny está a poupar para a
universidade. Não há borlas. — Tinha os olhos fixos em Becca.
— Como se a Jenny fosse entrar em alguma universidade — disse Mark, rindo-se entredentes. —
A repetente de Matemática.
— Dei dinheiro para um grama — disse Natasha. — A Becca pode ficar com um bocado da
minha, se quiser. Não sejas tão sacana. — Foi dito num tom ligeiro, mas Becca teve a certeza de ver
Hayley sobressaltar-se um pouco. — A mesma coisa para ti, Mark. A Jenny é mais esperta do que
pensas.
Hayley não tirara os olhos frios de Becca durante toda a conversa, mas neste ponto o seu olhar
virou-se para Jenny, a seguir para Natasha e depois pousou novamente em Becca.
— Queres ou não? — perguntou ela.
— O quê? Ecstasy ou coca? — perguntou Becca.
— Ecstasy — respondeu Jenny, enfiando o maço de notas dentro da carteira. — Do melhor.
Nunca mais pensas nos problemas. — Tirou um pacote de mortalhas e passou-o aos rapazes, que
estavam já a desembrulhar o pacotinho. — Engoles a bomba, não snifas. Bate mais. E dura mais. E
não passas a próxima meia hora com o nariz a arder.
— Teres ficado amiga daquele traficante com que a tua mãe andou foi a melhor coisa que já
fizeste — disse Hayley com ironia.
Quando os rapazes começaram com cuidado a despejar o pó branco brilhante para as mortalhas,
Becca olhou para a mortalha delas, sobre a mesa de café, e sentiu o peso dos olhos das Barbies
sobre ela.
— Claro, porque não?
Natasha soltou um pequeno grito de alegria.
— Vamos lá começar a festa.
— Achas mesmo que devias fazer isto? — perguntou Becca, odiando-se imediatamente por
parecer tão sensata. — Quero dizer, depois do que aconteceu.
— Estou ótima fisicamente — disse Natasha.
— Pois estás. — Mark piscou um olho, atirou a bomba de papel com a droga para dentro da boca
e empurrou-a com um pouco de cerveja.
Natasha olhou para Becca e revirou os olhos. O maxilar perfeito de Hayley contraiu-se
ligeiramente. Jenny olhou de uma amiga para a outra enquanto dividia a droga. Seria aquilo uma
cisão no grupo das Barbies?, pensou. Por causa de um idiota como o Mark Pritchard?
— Já está — disse Jenny, com quatro pacotinhos de mortalhas na palma da mão. — São todos do
mesmo tamanho, sirvam-se.
Becca respirou fundo, e elas esperaram. Ia ser a sua primeira vez. Seria aquilo uma espécie de
prova? Claro que sim. Na colmeia, tudo era uma prova. Pegou numa das bombas. Não podia ser
assim tão mau. Não era certamente pior do que fazer figura de palerma à frente do grupo popular da
escola. Pôs o pacote na boca, pensando se haveria maneira de o esconder na bochecha sem o engolir.
Não havia. Que se lixe, pensou. Vamos lá. Ergueu o copo e bebeu um grande trago, empurrando o
comprimido improvisado para baixo.
Lançou a Hayley um olhar desafiador.
— Vamos lá começar a festa.

Por volta da meia-noite, estava a planar. Começara lentamente. Quando o papel se dissolveu no
estômago e a droga lhe começou a entrar na corrente sanguínea, sentiu um calafrio, seguido de uma
onda de calor e de luminosidade. O coração bateu mais depressa. Por um milionésimo de segundo,
Becca pensou Não sei se gosto disto, mas depois o pensamento foi arrastado por uma onda de êxtase.
A música palpitava-lhe no corpo e cada batida a fazia vibrar de prazer. Natasha estava a dançar, mas
Becca contentou-se apenas em observar toda a gente. Aquilo não era a cena dela. Gostava de ser
invisível.
Na cozinha agarrou noutra vodca. Hayley e Jenny estavam concentradas numa conversa num canto
da sala, com as cabeças louras inclinadas uma para a outra. Olharam para Becca e mesmo através da
névoa do efeito da droga, ela conseguiu ver a antipatia delas. Seria antipatia? Prudência? Qualquer
coisa. Fez-lhes um grande sorriso idiota, incapaz de se conter, quando se aproximaram. Se ao menos
pudessem ser amigas. Se ao menos elas…
— Que queres, Becca? — perguntou Hayley serenamente.
— Que te disse ela? — acrescentou Jenny. Mordiscou o lábio superior enquanto esperavam pela
resposta. Becca fez outro sorriso enorme. Pelo menos, pareceu-lhe ser um sorriso. Tinha os
maxilares todos contraídos, por isso até podia estar a fazer uma careta.
— Vocês são lindas — disse. — A sério. Mesmo sem aquela carrada toda de maquilhagem e isso.
São mesmo bonitas.
— Estás a gozar? — perguntou Hayley.
Becca franziu o sobrolho. Os olhos de Hayley eram penetrantes. Os de Jenny também. Porque não
estavam todas alteradas como ela?
— Que se passa? — perguntou. — Que se passa com vocês as duas?
Elas olharam uma para a outra, um olhar silencioso de comunicação perfeita.
— Não te preocupes com isso.
Jenny puxou Hayley para se afastarem e deixaram Becca sozinha. Barbies. Nunca as
compreenderia. De repente, sentiu saudades de Aiden. Não era tanto saudades, mas apetecia-lhe
desesperadamente vê-lo. Enrolar-se nele e ficarem para sempre fechados no seu mundo a dois.
Amava-o. Amava-o perdidamente. Eram almas gémeas. Tinham nascido um para o outro. Hayley e
Jenny podiam fazer-lhe os olhares de desprezo que quisessem. Ela tinha Aiden. Mais ninguém
importava. Nem sequer Natasha.
Pegou no telefone e enviou-lhe uma mensagem com os dedos ligeiramente suados, para ver se ele
estava quase a acabar o trabalho, e depois pegou no casaco e saiu para o frio da noite para fumar um
cigarro, deixando a porta da rua encostada para poder voltar a entrar.
A droga deixara-a com calor, e o ar frio refrescou-a. Sentou-se nos degraus e deu umas passas,
com os olhos nas estrelas. A noite estava límpida; de manhã, a neve estaria congelada e transformada
em gelo perigoso. Continuava a ouvir a batida da música e o barulho lá dentro, mas parecia
completamente distante da tranquilidade da noite. Todos os outros fumadores estavam no jardim das
traseiras, com acesso fácil à cozinha e às bebidas, e Becca pensou que aquele momento poderia
resumir toda a sua experiência escolar. Sempre ligeiramente à margem de tudo.
Sorriu. Aquilo não a incomodava. Até gostava delas agora. Com as suas tentativas para
parecerem fixes, para encaixarem e serem perfeitas. A verdade é que eram todas iguais. Elas eram
suas pares, suas colegas, e ela adorava-as.
O telefone vibrou. Aiden. Ia buscá-la dali a dez minutos. Fez um sorriso de felicidade, e a ideia
de o ver lançou-lhe mais uma vaga de prazer drogado ao longo do corpo, que a fez estremecer. Fosse
o que fosse, aquela cena era boa. Tinha a suavidade de uma ganza, mas com uma perceção lúcida.
Uma pureza de emoções. E tanto calor. Estava a gostar. Talvez Aiden conseguisse arranjar um bocado
para depois irem para a cama. E depois tornarem a ir para a cama. Riu-se alto da própria piada.
— Qual é a piada?
Becca voltou-se e viu Natasha a puxar a porta atrás dela.
— Nada. Foi só um disparate que me passou pela cabeça.
— Esta cena é boa, não é? — perguntou Natasha e sentou-se no degrau ao lado dela. Tinha as
pupilas negras e dilatadas, buracos negros que ocupavam todo o universo da íris.
— É. — Becca estendeu os cigarros, e Tasha abanou a cabeça. Apesar de ter acabado de apagar
um, Becca acendeu um segundo. O fumo sabia-lhe bem. Intensificava o efeito. — Consomes isto
muitas vezes?
— Não. Mas hoje apeteceu-me desvairar.
— Não te censuro.
— Porque estás aqui fora?
— Estou à espera do Aiden — respondeu. Não fora por esse motivo que tinha ido lá para fora,
mas era uma boa justificação.
— Já vais embora?
— Sim, tenho coisas para fazer amanhã. Obrigada por me teres convidado, foi divertido. — Fez
uma pausa. — Mesmo apesar de a Hayley e a Jenny não me quererem cá.
O rosto de Natasha ensombrou-se e soltou uma longa expiração.
— Às vezes, são estranhas, mas nos últimos dias têm sido impecáveis comigo, parecem cães de
guarda à minha volta. Estão outra vez normais.
— Porquê? — Becca fixou-a. — Andavam chateadas?
Natasha encolheu os ombros.
— Não sei bem. O ambiente estava estranho. — Apertou o braço de Becca. — Mas a cena que
aconteceu fez-me ver as coisas de maneira diferente. Acho que foi por isso que voltei a querer ser tua
amiga. Eu… É difícil explicar. Pensei em ti quando acordei e percebi que tinha de corrigir as
sacanices que fiz.
— Deixa lá isso — disse Becca. E estava a ser franca. Talvez fosse a droga, talvez Tasha quase
ter morrido ou talvez tivessem simplesmente acontecido demasiadas coisas. — Crescemos e ficámos
muito diferentes. Se calhar, estávamos destinadas a seguir caminhos separados. E tu, a Hayley e a
Jenny… Bem, tu sabes. Estavam destinadas a ser mais chegadas.
Natasha encolheu os ombros e olhou para os sapatos.
— Talvez. Mas todos nós mudamos. Às vezes acho que… Não sei… Elas…
Um carro virou a esquina e aproximou-se lentamente, com o condutor a tentar ver o número das
casas no escuro.
— É o Aiden. — Becca pôs-se de pé. Mas depois franziu o sobrolho e voltou-se para trás. —
Elas, o quê?
— Ah, nada. Sou eu que sou idiota. Estou bêbeda. Pedrada. Vou voltar para dentro. — Estendeu a
mão e Becca ajudou-a a levantar-se. — Os meus fãs extremosos devem estar a pensar onde me meti.
Bem, pelo menos o Mark. — Simulou uma cara de quem vai vomitar e riram-se as duas. — Deixei-o
com a Hayley. Talvez ela se atire a ele e me salve.
— Ele não é assim tão mau — disse Becca. — És demasiado dura com ele.
Aiden encostou o carro e fez sinais de luzes. Becca acenou-lhe e voltou-se depois para abraçar
Natasha.
— Mais uma vez, obrigada.
— Passa um bom resto de noite — disse Tasha, piscando o olho. Olhou na direção do carro. —
Vi o Aiden ontem. Está tão diferente, todo adulto. Como é a cena entre vocês? É amor a sério?
Becca anuiu.
— Sim. É mesmo a sério.
Tasha fez um grande sorriso.
— Fixe. Vai lá dar-lhe cabo da cabeça.
Riram-se as duas, Tasha contornou Becca e despediu-se com um aceno.
— Até logo — disse Becca e desceu o caminho de acesso.
— Até logo! — exclamou Tasha atrás dela.

O carro de Aiden estava quente como chocolate derretido quando Becca deslizou pelo banco do
passageiro para o beijar. Segurou-lhe o rosto com as mãos frias e introduziu a língua na boca dele. A
sensação quente e húmida fê-la novamente sentir uma onda de vibração. As drogas eram espantosas.
Podiam fazer mal, mas ao mesmo tempo eram incríveis.
— Calma aí, ó ninfo — disse ele, a rir e afastando-a de si. — Vamos embora daqui primeiro.
Becca deixou-se cair no banco com um grande sorriso, pegou na metade de charro que se
encontrava no cinzeiro entre eles e acendeu-o.
— A festa foi boa?
— Foi muito fixe.
A erva e o ecstasy faziam uma boa combinação. As luzes dos candeeiros de iluminação pública
rodopiavam na escuridão, deixando rastos na sua visão enquanto o carro se deslocava.
Aiden olhou-a de relance.
— Tu e a Natasha estavam muito amiguinhas.
Ela encolheu os ombros. Que tinha ele com isso? Franziu o sobrolho, distraída por um momento
do encanto das emoções do seu corpo e dos traços das luzes lá fora.
— Não me disseste que tinhas visto a Natasha.
— Ela e a mãe foram a casa do Jamie. Não as vi propriamente, levei-lhes chá e pirei-me logo
para o estúdio.
Becca fixou a noite lá fora. Mesmo sob o efeito da droga suave, sentiu uma pontada de ciúme. Ele
tinha gostado da Natasha primeiro. Ela viera depois. Era a segunda escolha.
Aiden estendeu o braço e deu-lhe um empurrão na brincadeira, o que a fez tossir uma nuvem de
fumo.
— Não te ponhas com cenas por causa disso. Não tenho interesse nenhum na cabeça oca da
Natasha.
— Ela não é assim tão má — disse Becca.
— Dá-lhe tempo para voltar ao normal. — Tirou-lhe o resto do charro das mãos, acabou-o e
atirou a beata pela janela. — Vais ver que mudas logo de ideias.
— Acho que o problema é a Hayley e a Jenny — disse ela. — Elas mudaram-na.
— Ou ela mudou-as a elas.
Becca não respondeu. Não queria defender demasiado Tasha, não fosse Aiden apaixonar-se de
repente outra vez por ela. Quase se riu do seu próprio exagero. Ele nunca estivera apaixonado por
Natasha, mal a conhecia, convidara-a apenas para sair havia muito tempo. Vê se atinas da cabeça,
miúda, disse a si mesma. E acalma-te. Mas Natasha era uma brasa, disso não havia dúvida. E talvez
ele pensasse às vezes naquela brasa ao deslizar por entre as pernas de Becca.
— Talvez — disse ela, virando-se de lado para poder olhar para ele e puxando os joelhos para o
peito o melhor que lhe permitia o cinto de segurança. Não queria pensar em Natasha. Estavam
novamente de boas relações uma com a outra. Não podia deixar que a sua paranoia desse cabo de
tudo. — De qualquer maneira, não interessa a ninguém.
— Exatamente.
— És tão bonito. — As palavras saíram-lhe do coração e subiram-lhe à boca. — És mesmo, a
sério. Mesmo bonito. Como uma pintura. — Riu-se de si própria, e Aiden imitou-a.
— Adoro-te — disse ela. — A sério. És incrível.
Ele examinou-a por um segundo, e ela viu que ele se tinha apercebido.
— Estás com os olhos todos marados. O que andaste a meter?
— Nada de especial, só um bocado de ecstasy.
— Quem te deu isso?
— A Jenny tinha um bocado. Não comprei, a Tasha ofereceu-me uma bomba. Seria mal-educado
não aceitar.
Sentiu-se subitamente na defensiva, como se estivesse a falar com os pais.
— Sobrou-te alguma coisa? — perguntou ele.
Ela abanou a cabeça.
— Não era meu. — Ele era um espanto e pertencia-lhe. Apetecia-lhe sufocá-lo. — A tua mãe saiu
hoje?
— Não sei. Talvez. Não me disse o que ia fazer. Porquê?
Ela espreguiçou-se como um gato, com as pernas ligeiramente abertas e a blusa a deslizar-lhe
pela barriga nua.
— Apetece-me fazer barulho — ronronou. Sentia-se sensual. Sentia-se viva. Viu a concavidade
do fundo do pescoço de Aiden acentuar-se quando ele engoliu em seco. Aquilo fazia-a sentir-se
poderosa. Ele desejava-a. Não a Tasha. Só a ela. A mão dela tocou-lhe na coxa e, sempre a observá-
lo, os seus dedos avançaram provocadoramente até roçarem na virilha das calças. Ele pressionou a
mão dela contra a dureza do seu sexo.
Não conseguiram chegar a casa de Aiden. Em vez disso, pararam o carro perto do bosque e
apagaram as luzes. Em segundos, ela tinha tirado as calças e estava montada em cima dele,
empurrando-o bem para dentro de si, agitando-se como se não conseguisse parar. E não conseguia.
Pela primeira vez, o sexo foi qualquer coisa para ela, não apenas um mistério para ele, e enquanto
ele lhe tirava a t-shirt e o soutien, com o olhar vidrado e a respiração ofegante, ela deslizou uma
mão para baixo para se acariciar.
— Santo Deus, Becca — disse ele. E o tom desamparado da sua voz intensificou a volúpia que a
invadia. Enquanto se agitava em cima dele, sentindo-o a ficar cada vez mais rijo e a esforçar-se por
conter a vontade de se vir, ela soltou um gemido ruidoso, profundo e adulto. Por fim, caiu sobre o
ombro de Aiden e foi a vez de ele gritar, descarregando nela todo o desejo, toda a raiva, ânsia e
amor com as últimas arremetidas.
Quando recuperaram a sanidade, já saciados, trocaram sorrisos e risadinhas, e Becca vestiu as
calças, sentindo as pernas subitamente frias agora que o motor do carro e o aquecedor estavam
desligados. Aiden enrolou outro charro e partilharam-no num silêncio confortável, olhando os dois
para a noite e desfrutando a sensação depois do prazer. Becca, embora já não sob o efeito das
drogas, continuava demasiado pedrada para se sentir constrangida ou envergonhada com a sessão de
sexo, como acontecia normalmente se pensava em deixar-se ir e em fazer o que lhe dava prazer.
Aquela noite fora como a primeira vez. Mas agora Becca sentia-se como uma verdadeira mulher, não
como uma rapariga.
Enquanto trocaram o charro, Aiden olhou-a, quase com reverência, e ela foi assaltada pela ideia
de que tirar prazer do seu corpo ou do corpo dele não tinha nada de obsceno e de que talvez ele até
gostasse que ela fizesse o que lhe apetecesse. Não havia nada de que se envergonhar. Ele não
deixaria de a amar. A avaliar pela forma como a olhava naquele momento, talvez até o fizesse amá-la
mais.
O sexo era uma coisa estranha. Talvez não fosse o ser estranho, mas o ser como as drogas.
Crescemos a ouvir dizer que não o devemos fazer. Depois experimentamos e é ótimo. Porque não nos
contam essa parte? Pelo menos, não é ilegal. Mas porque nos fazem sentir tão culpados com uma
coisa que podemos começar a fazer desde os dezasseis anos? Não é que o fator idade tenha
dissuadido uma data de gente na escola. A Jenny, por exemplo. Toda a gente sabia que a Jenny dormia
com uns e com outros. Até a mãe da Becca sabia. Uma vez em que tinham encontrado a Jenny a
comprar roupa com a mãe, depois dos cumprimentos educados e de uma retirada apressada, a mãe de
Becca olhara para as roupas que as outras tinham estado a examinar e dissera com desprezo, Tal
mãe, tal filha. Como se lhes estivesse a chamar galdérias. Estava implícito no olhar. Talvez a mãe
tivesse inveja. Talvez o pai não fosse nenhum campeão no que tocava a cama. Aquilo era uma ideia e
uma imagem que ela não queria mesmo reter — não havia no mundo drogas suficientes que a
fizessem querer ver os pais a dar uma queca —, de modo que ligou o rádio e deixou-se distrair pela
música.
Depois de acabarem o charro, Aiden conduziu até casa, com a cabeça de Becca pousada no
ombro, mesmo apesar de o cinto de segurança a incomodar. Não queria saber. Amava-o. Adorava
tocar-lhe.
Já passava das duas da manhã quando deslizaram, nus, para dentro da cama fria dele,
aconchegando-se um ao outro debaixo do edredão até os pés descongelarem. Quando pararam de
tremer de frio, repetiram. Desta vez, de uma forma mais serena. Mais suave. Fazer amor, pensou
Becca, embora a expressão a fizesse retrair-se. Era assim.
17

Retirado do FICHEIRO DA INSPETORA CAITLIN BENNETT: EXCERTO DO CADERNO


DE NATASHA HOWLAND

Deixei que o Mark Pritchard me desse uns beijos. Nessa altura, vi a Hayley a olhar e também
olhei diretamente para ela, como se tivesse vencido. E tinha vencido. Ela parecia uma rainha de
gelo, como se tivesse sido ela quem tivesse congelado até à morte e regressado à vida. Talvez a
Hayley tenha ficado mais bonita do que eu, mas não tem o que eu tenho. Não tem o meu carisma. Pelo
menos agora. Não tem o Mark Pritchard atrás dela como eu tenho.
Os nossos olhares cruzaram-se quando ele me empurrou contra a parede. Estava a tentar ser viril,
mas só parecia demasiado ansioso e magoou-me as costas contra o perfil de madeira que corria ao
longo da parede. Apesar disso, parecia que ele nem estava ali. Não verdadeiramente. Aquilo era
entre mim e a Hayley. Os nossos olhares estavam fixos quando ele abriu caminho por entre os meus
lábios, empurrando a sua língua grossa contra a minha. Ela tentou sorrir, mas começou a ficar com o
pescoço manchado como se eu quase lhe tivesse sugado sangue.
Fingi que tinha feito aquilo por estar bêbeda, a mesma desculpa que dei para vir para casa em vez
de ficar em casa dela com a Jenny, mas não era verdade. Não sei o que é verdade. Não queria andar
aos beijos com o Mark. Mas soube-me bem ver a Hayley derrotada. A Hayley fria e calma. A estrela
da companhia. A rapariga dos abdominais perfeitos. A rapariga que estava abaixo de mim e que está
agora a conquistar um lugar próprio. Às vezes, parece-me que não as conheço. Parece-me que somos
todas desconhecidas. À volta umas das outras.
Vejo a mesma coisa com a minha mãe e o seu grupo dos «almoços de senhoras». Riem-se e dizem
piadas e afirmam que se adoram, mas por muito verdade que seja, estão sempre à procura das
fraquezas umas das outras. De brechas na armadura. Acho que os rapazes não fazem isso. Os rapazes
são cães. As raparigas são mais como os gatos. Individualistas por natureza. Não somos animais de
matilha. E agora que as três, inseparáveis, dirigentes veneradas do poleiro da escola, somos quase
mulheres, talvez isso comece a transparecer.
A Hayley não gritou nem foi brusca comigo. Fingiu que estava tudo na boa. Disse que nem sequer
gostava dele a sério e que eu podia ficar com ele. Eu ri-me. Não quero o Mark Pritchard. É um
parvalhão. A maioria dos rapazes da escola são uns parvalhões. Talvez tenha sido ainda pior para a
Hayley eu ter dito que não o queria. Foi mauzinho. Era verdade, mas foi mauzinho. Só quis que ela
soubesse que eu podia ficar com ele. Que ele me preferia.
A Jenny já não esconde tão bem os sentimentos. Afinal, é a nossa ovelha. Uma ovelha doce,
divertida e sensual. Às vezes nem sei bem se ela tem uma personalidade própria ou se é apenas uma
mistura de mim e da Hayley. Não parava de me olhar com um ar perplexo. Como se fosse dizer
qualquer coisa, mas depois desistisse. Quando disse que preferia ir para casa em vez de ir para casa
da Hayley, nenhuma delas protestou realmente. Pareceram aliviadas. Talvez tenham ficado mesmo.
Andam outra vez aos segredinhos, como faziam às vezes antes do meu acidente. Julgam que eu não
reparo. Talvez tenha sido por isso que andei aos beijos com o Mark. Tinha de lhes recordar quem é
que manda.
Preferia ter ido para casa da Hayley, mas foi melhor não ir. Pelo menos, enquanto ainda estava
pedrada.
Se tivesse ido, talvez não tivesse sonhado. Pensei que as drogas me salvariam do medo daquela
escuridão. Achei que me protegeriam dos pesadelos. Mas isso não aconteceu. Depois de adormecer
finalmente, acordei tão encharcada em suor que julguei estar novamente no rio, lá presa para sempre.
Não me recordo do sonho todo. Apenas de fragmentos. Estava naquela escuridão terrível e
interminável. Ela engolia-me. Eu estava sozinha. Deixara de sentir o frio. Não conseguia respirar.
Não devia ali estar. Era errado. Tentei impulsionar-me para cima, dar umas braçadas, mas não me
mexi. Ou tive a sensação de que não me mexi. Era difícil perceber. Era como se não sentisse nada à
minha volta. Não sentia a água. Não sentia a corrente a sugar-me os pés. Estava apenas suspensa no
vazio.
E então, alguém murmurou o meu nome.
Congelei, suspensa no nada, incapaz de ver. Voltaram a murmurar. Uma voz que eu sabia que
devia conhecer. Mais perto. E a seguir, estava a gritar em silêncio para a escuridão.
18

As Barbies eram capazes de ter um ataque se fossem vistas num sítio tão parolo como o Frankie
& Benny’s, mas Becca, ainda um bocado acelerada e já a sofrer a descida das drogas, ficou satisfeita
com a comida gorda e cheia de amido quando as duas da manhã chegaram.
Ainda assim, pensou, enquanto esvaziava outra Diet Coke e desejava ter a boca menos seca, era
uma ideia parva levar a melhor amiga ao almoço de anos da mãe. As refeições dos aniversários dos
pais eram sempre uma seca — não era uma situação a que se quisesse sujeitar alguém. Mas nem toda
a gente se dava com a família como Hannah. Becca olhou para eles, todos a sorrir e felizes por
estarem na companhia uns dos outros. Talvez fosse o resultado de se ser a miúda menos popular da
escola inteira, ficava-se amigo dos pais.
— Então a Hannah disse que ias fazer toda a parte da cenografia? — perguntou Amanda, a mãe
de Hannah. — Isso é uma grande responsabilidade.
— Ela já fez o ano passado — declarou Hannah, como se Becca precisasse de apoio, como se
Amanda com o seu corpo mole e o rabo descaído não estivesse sempre a apoiá-la. — E foi incrível.
Mesmo. — Hannah dirigiu-lhe um grande sorriso e, por instantes, Becca imaginou-a como a mãe,
uma versão mais magricela de Amanda, mas cheia daquela mesma ânsia de viver por intermédio de
outra pessoa em vez de se arriscar ela própria a viver.
— A Katie Groud foi quem fez a maior parte do trabalho no ano passado, mas agora está na
universidade.
— Tenho a certeza de que vai ficar o máximo. — Amanda olhou de Becca para Hannah e depois
novamente para Becca. — Com vocês as duas a trabalharem nisso, nem podia ser de outra maneira.
Os olhos e o sorriso dela eram tão calorosos que Becca quase corou. Hannah era inteligente,
tivera Muito Bom a quase todos os exames e iria sem dúvida para Oxford ou coisa do género, mas
por vezes Becca achava que ela era a maior conquista escolar de Hannah aos olhos dos pais. Se
Hannah tinha uma amiga como Becca, então a coisa não estava a correr muito mal. Não era uma
daquelas raparigas sem amigos, que era gozada online e se suicidava.
Becca teve vontade de dizer a Amanda que não se preocupasse. Hannah não fora sequer gozada
quando eram novas. Era demasiado insípida, demasiado invisível. Sempre fora e sempre seria. Pelo
menos, enquanto andassem na escola. Ninguém se dava ao trabalho de gozar com Hannah. Becca deu
uma dentada no hambúrguer, o molho escorreu-lhe pelo queixo e o seu estômago roncou. Como tinha
acabado a ser a melhor amiga de Hannah? Estava no sítio errado no momento errado, provavelmente.
Tinha ficado ao lado dela em Ciências quando Natasha lhe dera com os pés. E ali estava agora, no
Frankie & Benny’s, no almoço de aniversário da mãe de Hannah, como se fossem crianças. Era
deprimente, mesmo apesar de se sentir constrangida por aqueles sentimentos.
— E como está o teu namorado? — perguntou Amanda. — Ele não tem nenhum amigo simpático
para a Hannah?
— Mãe, por favor! — A pele descorada de Hannah ruborizou-se. — Pai, diz-lhe qualquer coisa.
— Não a envergonhes, Amanda — murmurou o senhor Alderton de trás de um punhado de
costeletas gordurosas.
— O que foi? Só fiz uma pergunta.
— Está ótimo. — Becca engoliu o hambúrguer e falou entre os dentes cheios de carne, ansiosa
por responder e impedir Amanda de continuar. Não hesitava em se abrir, e embora Hannah fosse uma
virgem envergonhada, Amanda não tinha esse género de reservas. — Mas não sei se a Hannah ia
gostar dos amigos dele.
Captou o olhar de relance de Hannah, uma antecipação defensiva de dor, sem saber se aquilo era
ou não um sarcasmo.
— A Hannah precisa de uma pessoa com mais cabeça. — Becca sorriu. — É demasiado
inteligente para os rapazes que o Aiden conhece. A Hannah precisa de um médico ou coisa do
género.
— Aí tens razão. — Amanda fez um movimento de cabeça aprovador. — É uma académica.
Precisa de alguém que esteja à altura dela.
— Vem comigo à casa de banho — disse Hannah, puxando a manga de Becca. — Vamos ter um
momento de sanidade mental.
— Pensei que as mulheres irem aos pares à casa de banho fosse só um estereótipo — disse o
senhor Alderton. — Que comentários têm para trocar quando vêm almoçar só connosco?
Amanda bateu-lhe a brincar no braço com o guardanapo.
— São adolescentes. Têm sempre qualquer coisa para comentar, não é? — Piscou o olhou às
raparigas, que lhe sorriram e se esgueiraram rapidamente para fora do compartimento.
Isto parece uma comédia televisiva, pensou Becca. A Hannah vive numa comédia televisiva
com muito pouco de comédia. De repente, sentiu pena dela. É difícil ser constantemente amada pelos
pais. Estar sempre a ser simpática com eles. Não se lembrava de alguma vez ter visto Hannah
resmungar um cumprimento mal-humorado a Amanda ao voltarem da escola. Nem uma só vez. Havia
sempre um sorriso e uma conversa rápida acerca do dia enquanto preparavam qualquer coisa para
beber e comer. Muito diferente da sua casa, onde um simples olhar diferente da mãe podia enviar
Becca para o quarto com um ataque de irritação adolescente.
— Desculpa lá aquilo — disse Hannah quando a porta da casa de banho das senhoras se fechou
atrás delas. — Ela está cada vez pior.
— É sempre melhor do que a minha mãe — respondeu Becca, embora não tivesse a certeza de
querer trocar.
Seguiu-se um momento de silêncio em que cada uma foi para o seu cubículo aliviar a bexiga
sabendo que outras pessoas as podiam ouvir.
— Ficaste em casa do Aiden ontem à noite? — perguntou Hannah através da divisória fina. —
Estás com um ar cansado. Ainda tens os olhos um bocado toldados.
— Pois — disse Becca e corou. Hannah saiu ao mesmo tempo e dirigiram-se aos lavatórios.
Becca manteve a cabeça baixa, concentrada em lavar as mãos. — Fui um bocado à festa.
— À da Natasha? — Hannah fitou-a.
— Fiquei lá pouco tempo. Achei que devia aparecer. Afinal, ela convidou-me. — Sentiu-se
constrangida. Pensara não contar a Hannah que fora à festa, mas isso teria sido idiota. Hannah teria
sabido na escola. E porque havia de mentir? Não fizera nada de mal. Hannah não teria querido ir de
qualquer maneira. Era só uma festa, nada de extraordinário.
— Pois — disse Hannah. Mas fez uma pausa, como se não tivesse dito tudo.
— O que foi?
— Tem cuidado.
— Que queres dizer?
— Tu sabes. É a Natasha. Tem cuidado. Não confio nela. Pode ser perversa. Entre outras coisas.
— Tu não a conheces — declarou Becca com brusquidão. Talvez possa ser má contigo,
apeteceu-lhe dizer, mas conteve-se porque, sim, Natasha e as Barbies haviam desprezado Hannah ao
longo dos anos, mas tinham também desprezado Becca. Hannah sabia-o. Becca sabia-o. — Escuta —
prosseguiu, mais calma —, não tenciono voltar a ser amiga dela. Isso são águas passadas. Ela
convidou-me, e eu achei que era bem-educado ir. Mais nada. Afinal, ela quase morreu, e ainda não
sabemos como foi parar ao rio.
Hannah encolheu os ombros.
— Estou só preocupada contigo.
— Agora é que pareces mesmo a minha mãe. — Becca revirou os olhos e apertou o braço de
Hannah. — Anda. Preciso de um daqueles gelados enormes de chocolate que dão vontade de vomitar
quando os acabamos.
Estavam a rir quando voltaram à mesa e ao sorriso aprovador de Amanda. Foi nessa altura que
Becca reparou que tinha uma mensagem no telefone.
Qrs passar lá p casa mais tarde?
P volta das 4/5. Diz qqr coisa. Tash

O seu coração deu um pulo. Que se passaria entre Tash e as outras Barbies? Porque quereria ela a
companhia de Becca e não a de Hayley ou Jenny? Ou será que também lá estavam? Porque andava
Tasha novamente tão simpática com ela?
Pode ser. Até logo, respondeu
— É o Aiden? — perguntou Hannah. — Ele amaaaaa-te? Quer Beijaaar-te?
Becca sorriu.
— É mais ou menos isso, palerma. — Nem sequer era bem mentira. Não tinha mentido. Não
dissera se era ou não o Aiden. De qualquer maneira, não interessava. Podiam ter outros amigos. Bem,
Hannah podia, se fizesse alguns.
Mas quando o gelado chegou, só comeu metade, e quando saíram para o frio da rua e a outra
rapariga lhe deu o braço, Becca não pôde deixar de sentir que estava de alguma forma a trair Hannah.
Talvez não fosse a casa de Tasha. Talvez lhe enviasse uma mensagem a dizer que afinal não podia ir.

Era estranho voltar a casa de Natasha. Alison foi buscar os restos de um enorme bolo de
chocolate e comentou o visual tão urbano de Becca enquanto lhes cortava grandes fatias, apesar de
Becca ter dito que não conseguia mesmo comer nada, o que pareceu valer-lhe mais aprovação da
parte de Alison Howland. Sentaram-se com ela à mesa da cozinha durante alguns minutos
confrangedores de conversa bem-educada, até que Becca, cuja timidez a tornava desajeitada, quase
entornou a Coca-Cola por cima de um monte de revistas bem empilhadas, equilibradas em cima de
um fino Airbook.
— Deixa estar, deixa estar — disse Alison quando Becca agarrou num pano para limpar o líquido
derramado antes de conseguir agarrar no copo. — Nunca o uso. Só se molhou o canto da cara de uma
celebridade qualquer. — Ergueu a revista molhada. — Estás a ver?
— Agora vamos lá para cima — disse Tasha. — Anda, Bex.
Deixou o prato de bolo em que praticamente não tocara em cima da mesa, e Becca fez o mesmo.
— Gostei de a voltar a ver, senhora Howland.
— E eu a ti, Rebecca. — A mulher mais velha apertou-lhe o braço. — E obrigada. Por lá teres
ido. Foi uma grande ajuda.
— Não é para agradecer. — O rosto de Becca ficou todo ruborizado. Era constrangedor quando
os adultos mostravam gratidão para com adolescentes. E um bocado assustador. Como se estivessem
a tornar-se todos iguais e já não houvesse segurança no mundo. Como se a infância deles tivesse
terminado. Estavam numa sala de espera, à beira da vida adulta. Uma terra de ninguém, não eram uma
coisa nem outra. Às vezes, era fantástico. Outras vezes, era uma seca.

O quarto de Natasha estava diferente. Tinham desaparecido os cartazes com bandas de rapazes e
as paredes cor-de-rosa, agora substituídos por um amarelo-pálido, espelhos modernos e um toucador.
Uma parede tinha uma colagem de fotografias e Becca olhou-as de relance. Eram sobretudo selfies
das Barbies. A maior parte de um ou dois anos antes, pré-Instagram. Agora a vida delas estava toda
online. Assim a audiência de admiradores era maior, e as Barbies precisavam definitivamente de
audiência.
— Se quiseres fumar, estás à vontade. — Natasha trancou a porta do quarto e abriu a janela.
— Os teus pais deixam-te fechar a porta à chave? Não é nada normal.
— As raparigas precisam de privacidade. Já passei a idade em que não me importava que o meu
pai entrasse e me visse as mamas. Ou pior.
— Que nojo, Natasha. A maioria dos pais bate à porta.
— Sabes como são os meus pais, gostam da vida descontraída. Eu pedi uma fechadura, eles
puseram-na.
Sentaram-se no parapeito da janela do quarto de Natasha com uma perna para dentro e outra para
fora, ar frio de um lado, aquecimento central do outro. Tinham feito aquilo imensas vezes no passado,
mas naquele momento Becca sentia-se como a Alice no País das Maravilhas depois de ter bebido ou
comido as coisas que a faziam crescer. O parapeito da janela parecia muito mais pequeno. A última
vez que Becca se sentara daquela maneira não precisara de arquear as costas, nem a sua perna
pendurada sentira a força da gravidade. Ergueu-a e pousou-a sobre um ramo da velha árvore, cujos
membros tinham transportado Natasha para a noite e para o rio. Era fácil de alcançar.
Não se dava tão bem com alturas como Natasha e Hayley, mas não teria problemas em chegar à
escada e em descer dali para o jardim. Os ramos eram grossos e regulares, sólidos, e Becca
conseguia ver onde Tasha partira uns mais pequenos, mais abaixo, para fazer apoios para os pés. Lá
fora, a neve estava finalmente a derreter e a árvore estava limpa, tal como teria estado naquela noite.
— Continuas sem te lembrar de nada? — perguntou Becca, antes de acrescentar rapidamente: —
Desculpa, deves estar farta de ouvir esta pergunta. Imagino que ainda não te lembras.
Tasha abanou a cabeça.
— Nada. Nada, mesmo. Às vezes sonho com coisas, mas está mais relacionado com o medo e
com estar na água do que com o resto. Sonho que está lá qualquer coisa comigo, qualquer coisa que
não consigo ver bem.
— Talvez seja a recordação a tentar voltar. — Becca soprou uma grande nuvem de fumo. — Uma
coisa que não consegues alcançar?
— Pareces a minha psicóloga. — Tasha olhou para dentro do quarto. — Ela obriga-me a escrever
um diário. Com o que faço e o que penso. Eu não queria escrever, mas… Sabes. Talvez ajude.
Encolheu os ombros e parecia quase embaraçada. Era estranho ver Natasha tão insegura, e o
coração de Becca derreteu um bocadinho. Olhou para o caderno e para a caneta pousada em cima, ao
lado da cama da amiga. Devia ser estranho não saber como tinha acontecido.
— Espero bem que não tenhas lá escrito a cena das drogas — disse com um grande sorriso.
— Não! Pensei em inventar qualquer coisa, para o caso de ela alguma vez me pedir para ler.
Caso não saibas, tenho atualmente um caso duplo com o professor Jones e o professor Garrick, de
Inglês.
— Mais uma vez: que nojo — disse Becca.
— Nem todas podemos ser amadas como tu.
— Porque não tens namorado? Não queres?
O Sol estava a desaparecer, pintando o horizonte de um laranja ardente e invejoso por baixo do
azul frio que escurecia. Becca olhou-o e subitamente receou que Natasha fosse dizer que tinha
cometido um erro terrível, que sempre estivera apaixonada por Aiden e que tinha esperança de poder
ficar com ele agora e que podiam ficar todos amigos.
— Acho que não — respondeu Natasha tranquilamente. — Não percebo porque ficam todas tão
histéricas. Claro que não posso contar isto à Hayley nem à Jen. Elas não iam perceber. A Jenny fode
como um coelho, praticamente tudo o que se ouve acerca dela é verdade e deve ser pouco, e a
Hayley deixaria o Mark Pritchard foder-lhe as mamas, e até o pai dele, se com isso conseguisse que
ele saísse com ela. Mas não percebo bem qual é a cena de ter um namorado.
As palavras eram duras e cruas, mais ainda vindas de Natasha. Ela não era assim. Ainda que,
tinha de o admitir, Becca já não soubesse bem como ela era.
— Está tudo bem entre vocês?
Observou Natasha. A rapariga esguia tinha um dos joelhos debaixo do queixo, enquanto o outro
continuava pendurado no parapeito. Estava com as costas arqueadas. Pensativa. Tinha o rosto
contraído e os olhos escuros. Mas continuava bonita.
— Acho que sim.
— Ontem à noite ias dizer qualquer coisa acerca delas, mas depois calaste-te. — Apagou o
cigarro por baixo do parapeito da janela e meteu a perna para dentro para ir pôr a beata na sanita.
Sentia inveja de Tasha em imensos aspetos. Uma fechadura na porta e uma casa de banho privativa.
Não era preciso gritar pela porta a pedir privacidade. Não era preciso atravessar à pressa o
corredor, embrulhada apenas numa toalha. Perguntou a si mesma se alguma vez deixaria de sentir
inveja de Natasha Howland ou se a sua vida estaria destinada àquilo.
— As coisas têm andado um bocado estranhas — acabou Tasha por dizer. Becca sentou-se na
cama. — Não sei, já estava diferente. Antes do acidente.
— Diferente, como?
— Não sei bem explicar. Como se elas já não gostassem tanto de mim.
Becca não conseguiu imaginar aquilo. Natasha era as Barbies. Jenny e Hayley eram apenas
satélites.
— Se calhar, três é demais — concluiu Natasha.
Becca mordeu a língua para se impedir de fazer um comentário mordaz sobre ser posta de lado,
rejeitada como o animal mais fraco da ninhada, qualquer uma das milhentas metáforas que mesmo
assim não exprimiam bem a dor que sentira. Tasha pedira-lhe desculpa. E fora há muito tempo. Todas
elas tinham mudado. Crescido, para melhor ou para pior.
— Mas agora parecem bem. Mais do que bem, até. Estão sempre a mandar-me mensagens e a ver
se estou bem. Fartam-se de cá vir. Tive de lhes dizer que tinha uma consulta no hospital esta tarde
para não estar com elas um bocado.
— Pelo menos, preocupam-se contigo.
— Sim, qualquer coisa do género. Ei — disse Tasha de repente —, queres jogar uma partida de
xadrez?
— O quê, agora?
— Porque não? Começamos agora e vamos enviando depois as jogadas por mensagem. Podes
montar o jogo no tabuleiro que te ofereci, para ficar igual ao meu.
— Está bem, pode ser. — O rosto de Becca iluminou-se com uma alegria não dissimulada. O
tempo estava a andar para trás e a regressar a tempos mais felizes. — Mas vais ganhar.
— Talvez. — Os olhos de Tasha brilharam, já competitivos. — Isto pode ser o nosso segredo.
Becca anuiu. Claro que ia ser segredo. Natasha Howland a jogar novamente xadrez com Rebecca
Crisp daria azo a todo o género de coscuvilhices perversas. Pensou quando deixariam aquelas coisas
de ser importantes, ou se esse momento alguma vez chegaria.
Foram interrompidas meia hora mais tarde pelo pai de Natasha a bater à porta.
— Depressa, mete as mamas para dentro! — disse Natasha, apalpando o peito e fazendo Becca
soltar risadinhas. — Alerta de pai. — O jogo começara devagar, intercalado com conversas sobre a
escola e declarações de como iam jogar mal depois de tanto tempo sem o fazerem — apesar de
Becca suspeitar que também Tasha jogara uma vez por outra desde que tinham deixado o Clube de
Xadrez.
— Trouxe-lhes isto — disse Gary. Estava de pé à porta, a segurar duas latas de Coca-Cola, em
que Tasha pegou. Espreitou para dentro do quarto, ligeiramente surpreendido. Tinha o cabelo com gel
e desgrenhado, acabado de sair dos balneários do clube de ténis, imaginou Becca. Um bafo de
aftershave atingiu o ar ainda carregado de vestígios de fumo de cigarro. Se percebeu, Gary não disse
nada. Fitou Becca por instantes e depois fez um sorriso apressado.
— Desculpa, ouvi vozes e pensei que fosse a Hayley.
— Não, sou só eu.
— Gosto de te ver. Bem, vou deixá-las com as vossas coisas. Lembra-te de que tens de te deitar
cedo, Pintainha. São as ordens do médico.
— Sim, pai. — Tasha estava já a mandá-lo calar.
— Ele ainda te chama Pintainha? — perguntou Becca a rir.
— Tinha piada quando eu tinha nove anos — respondeu Tasha. — Já tive de lhe gritar que
parasse de me chamar isso em público. — Franziu ligeiramente o sobrolho, irritada, e Becca ficou
surpreendida. As alcunhas familiares afetuosas eram capazes de não soar bem quando se era uma
Barbie. Olhou para o relógio. Ainda era cedo, mas estava cansada devido à falta de sono e às drogas
da noite anterior e se não se recompusesse estaria lixada no dia seguinte, e a mãe queria que fossem
todos almoçar fora no domingo. Precisava das suas oito horas de sono. Sempre que possível, deixava
que passassem a dez.
— Vou andando para casa — disse. — Mando-te a próxima jogada por mensagem, quando tiver o
cérebro a funcionar melhor. Ainda estou toda fodida da noite passada.
— Pois, pois…
Tasha levantou uma sobrancelha, sardónica.
— Não é disso. Bem, talvez seja um pouco disso. — Fez um grande sorriso. Falar de sexo com
Tasha, ou, pelo menos, do que tivesse que ver com sexo, fazia-a sentir-se mais sofisticada. As coisas
tinham mesmo mudado desde que se haviam afastado. Becca podia não ser uma Barbie, mas tinha um
namorado que já acabara a escola e faziam sexo. Qual era o problema de ser alguém que Natasha
rejeitara?
— Adiante — disse enquanto se dirigia para as escadas —, obrigada por me teres convidado a
vir cá.
— Gostei imenso de estar contigo. — Tasha apertou-lhe o braço. — A sério. E estou… Sabes…
— Corou, hesitante, e baixou os olhos. — Peço desculpa novamente. Por tudo.
— Esquece — disse Becca. — A sério.
Naquele momento, estava a ser franca. A dor, as lágrimas e o sentimento de rejeição deixaram de
ter importância. Pelo menos, temporariamente.
Qualquer coisa chiou na cozinha, e Becca sentiu os olhos a arder devido à cebola frita. O que
quer que Alison estivesse a cozinhar quando as duas raparigas se dirigiram para a porta cheirava
bem. Mesmo depois do enorme almoço, o estômago de Becca ainda roncava.
— Obrigada por me receber, senhora Howland.
— Aparece quando quiseres, Becca.
— Ah, só mais uma coisa — disse Tasha com brandura quando se encontravam à porta, com o ar
húmido a provocar-lhes arrepios. — Não fales disto a ninguém, está bem? Sabes, na escola.
— Fica descansada.
Becca sentiu uma punhalada de dor que não conseguiu disfarçar.
— Não tem que ver contigo, não quero é chatices com a Hayley e a Jenny. Dispenso os dramas.
Não me apetecia mesmo estar com elas hoje, e elas não iam perceber.
Becca sorriu.
— Não te preocupes, não digo nada.
Para ela, também era melhor. Assim Hannah também não saberia. Não é que Becca tivesse de
esconder coisas a Hannah, mas certamente a amiga não aprovaria aquilo. Sobretudo depois do que
dissera na casa de banho do restaurante. E pior, ficaria muito magoada por Becca ter mentido. Por
instantes, sentiu uma pontada de culpa. Mas ali, da entrada de casa de Tasha, Hannah parecia estar
muito distante.
— Até segunda — disse Tasha.
— Sim, vamos receber os resultados do teste de preparação de Inglês.
— Bolas. Mas talvez também os resultados da audição para a peça.
— É verdade. Boa sorte.
Não fazia diferença a Becca quem ficava com que papel. Era a responsável pela cenografia. Era
o mundo dela.
Tasha despediu-se com um abraço apertado, e Becca sentiu-se constrangida. Depois a porta
fechou-se e começou a caminhar para casa. Só lhe apetecia enfiar-se na cama e dormir. Mas antes
tinha de montar o tabuleiro de xadrez. Acendeu um cigarro. Tinham começado com a abertura de Ruy
López — nada surpreendente. Não denunciava nada. Talvez fosse mover o segundo cavalo. Sentia o
cérebro demasiado cansado para pensar no jogo. Jogar contra Natasha não era como jogar contra o
pai. Ele era impulsivo e nunca pensava para lá do movimento seguinte. Para Becca, aquilo não era
bem xadrez. Inspirou profundamente. Santo Deus, como era idiota. Não admirava que Tasha quisesse
guardar segredo daquilo. Mesmo assim, sorriu. Não conseguiu evitar. Era bom estar novamente com
a amiga.
19

18h03
Jenny
Atende!

18h04
Hayley
Não posso. No carro com pai.
Vamos buscar comida.

18h05
Jenny
Ela mentiu. Não foi ao hospital.
Porquê?

18h07
Hayley
O quê? Tens a certeza?
Como sabes?

18h09
Jenny
Passei de bicicleta por casa dela.
A luz estava acesa, fiquei um bocado
do outro lado da rua. Vi a Becca Crisp
sair. Até deram um abraço de
despedida?!!

18h10
Hayley
O quê?!

18h12
Jenny
Porque anda ela a ignorar-nos?
Estou assustada. Achas q se lembra?

18h14
Jenny
Tás aí?

18h15
Hayley
Tou a pensar.

18h16
Jenny
Se se lembra, pq não disse nada? Será
melhor falarmos com ele? Dizer-lhe?
Acho que sim.

18h18
Hayley
Não! Ele passava-se. Talvez ela não se
lembre, mas saiba que discutimos.
Continua a agir normal.

18h20
Jenny
Tou-me a passar.

18h22
Hayley
Talvez quisesse só estar com a Becca.
E não quis dizer para não me chatear.
Talvez queira saber das audições?
Ou acha que a Bex sabe quem ficou
com os papéis?

18h23
Jenny
Se se lembra, achas q contou
à Becca? Estou enjoada.

18h24
Hayley
Não. Não é o estilo dela. Ligo qd
chegar a casa. Apagar apagar apagar!

18h25
Jenny
Eu sei!

18h26
Jenny
;-)
20

Retirado do FICHEIRO DA INSPETORA CAITLIN BENNETT: EXCERTO DO CADERNO


DE NATASHA HOWLAND

Depois de a Becca se ir embora, enquanto esperava que a mãe me chamasse para ir jantar, não
consegui evitar pensar em sexo. Até a Becca andava a ter sexo. Era estranho pensar nisso.
Quando o Mark Pritchard me estava a enfiar a língua na boca, senti a pila dele a crescer dentro
das calças. Ele esmagou-a contra mim como se eu devesse ficar impressionada. Talvez se espere que
fique impressionada.
Já vi uma. Tesa e nua. Uma pila, uma picha, um caralho, um pénis, o que lhe quiserem chamar.
Todas estas palavras me fazem retrair um bocado. Foi no ano passado com o Alfie Jonas, numa festa
antes da despedida dos finalistas. Primeiro, deu-me para rir. Não consegui evitar. Era uma coisa tão
esquisita, a projetar-se do emaranhado de pelos, uma coluna esquisita e pálida de pele e veias. Uma
gota de líquido emergiu do buraco em cima, dentro da dobra circular, à espera que eu lhe tocasse.
Ele fez um ar extremamente ofendido quando me ri, e eu fingi que era por ele ter as calças e as
cuecas a meio das pernas, mas na realidade foi pelo patético da situação. Por aquela coisa causar
tanto alvoroço. Antes daquilo, tinha gostado do Alfie. Os beijos dele eram suaves. Não eram
invasivos.
Era estranho. Ele estava a olhar para mim como um cachorrinho ansioso e eu não sabia o que
fazer. Toquei-lhe. A pele era mais suave do que esperava e continha aquela dureza toda. Ele envolveu
a minha mão com a dele e obrigou-me a apertar enquanto a movimentava como um fantoche, para
cima e para baixo, deslocando a pele mais solta.
Depois acabou tudo muito rapidamente, graças a Deus — um gemido e uma mancha de líquido
pegajoso na minha mão. Nunca mais o voltei a ver. Pelo menos, daquela maneira.
A Becca faz aquilo — e mais — com o Aiden. Não percebo porquê. O desengonçado do Aiden,
com aquele cabelo seboso que lhe tapa a cara quase toda. O Aiden, que nunca conseguiu olhar-me
nos olhos. O Aiden, que tropeçou quando me convidou para sair e ficou estatelado no chão a olhar
para mim enquanto eu me ria. Ficou com um ar tão devastado que me deu ainda mais vontade de rir,
embora fosse horrível e maldoso. Não consegui evitar. E depois a Hayley e a Jenny também se
puseram a rir, e toda a gente ficou a olhar para ele como se fosse um deficiente motor.
E agora a Becca está apaixonada por ele. Ele já não tem um ar tão totó como quando andava no
liceu, mas também não é propriamente um borracho. Acho que ainda a largava para foder comigo, se
eu o deixasse. Nem consigo imaginá-los a foder. Ela até deve pôr o coiso dele na boca.
Na minha cabeça, o sexo é uma coisa nojenta. Sei que não devia ser. Mas é. Talvez nunca
experimente. Às vezes penso que o poder vem de não o fazer. Sinto isso nos rapazes que olham para
mim. Cheios de ânsia. Mas será assim tão bom? Comigo não deve ser muito diferente do que é com
outra rapariga qualquer. Mas eles querem-me a mim porque não me podem ter. A Jenny, por exemplo.
Não tem nenhum poder. Dá-se de mão beijada. Diz que adora, mas desconfio que não adora sempre.
Aquilo está a prejudicá-la, tal como aconteceu à mãe. Até eu sinto isso. Acho que sinto mais desde
que tive o acidente, o que é estranho. Ela acha que é o seu único atributo e quer apenas ser amada.
Não é terrível? Faz aquilo por «amor». Eu cá não quero ser assim tão amada.
Mas elas orgulham-se todas muito. A Becca, a Jenny e até a Hayley, que acho que ainda nunca
fodeu com ninguém, mas já deve ter batido umas punhetas. Orgulha-se dos grunhidos e daquela
porcaria pegajosa. Como se fosse um segredo. Talvez seja isso que o sexo dá às pessoas. Segredos.
Mas eu já tenho os meus segredos. Não preciso do sexo para isso.
PARTE DOIS
21

Excerto de The Times, segunda-feira, 18 de janeiro

Um corpo encontrado a noite passada no rio Ribble, entre Maypoole e Brackston, no Lancashire,
foi identificado como o de Nicola Munroe, de 19 anos, desaparecida de casa em Maypoole há mais
de dois meses.

Excerto do Maypoole Gazette, segunda-feira, 18 de janeiro

Os pais de Nicola Munroe identificaram o corpo da filha depois de este ter sido encontrado no
Ribble no domingo à noite. Fontes afirmam que a identificação foi realizada pelas roupas da jovem e
confirmada pelos registos dentários, depois de dois meses dentro de água e o avançado estado de
decomposição terem deixado a jovem irreconhecível. O pai de Nicola, Gerard Munroe, divulgou
uma declaração pedindo que deixassem a família fazer o luto em privado. Os Munroe podem vir a
apresentar queixa por a polícia não ter conseguido dragar o rio durante as buscas iniciais da filha.
Nicola Munroe estava a tirar um ano sabático antes de iniciar um curso de Tecnologias da Música, na
Universidade de Leeds. Regressara recentemente de uma viagem à Tailândia, onde ensinara Inglês
como língua estrangeira, e trabalhava a meio-tempo no Nag and Pineapple, na Chester Street.

Excerto do Brackston Herald, terça-feira, 19 de janeiro

A causa de morte de Nicola Munroe, cujo corpo foi encontrado no rio, em Brackston, na noite de
domingo, permanece um mistério, e a polícia recusa-se a revelar pormenores. Ainda não é claro se o
corpo da jovem foi deslocado pelas correntes até ao local onde foi encontrado ou se lá esteve nos
últimos dois meses. A proximidade do corpo em relação ao local onde a adolescente Natasha
Howland foi salva levantou algumas questões junto da comunidade local acerca de uma possível
relação entre os dois casos. Natasha Howland, que foi resgatada pelo músico Jamie McMahon
enquanto este passeava o cão, esteve clinicamente morta durante treze minutos até ser reanimada
pelos paramédicos, e voltou às aulas no Brackston Community College. Não tem nenhuma recordação
do dia em que o incidente ocorreu. A família recusa-se a fazer comentários.
22

Era a última aula de quarta-feira à tarde e podia dizer-se que ninguém, nem mesmo Jenny, que,
estranhamente, adorava Inglês e tinha boas notas na disciplina, estava a prestar grande atenção à aula
do professor Garrick. Quando a tarde escureceu, Emily estava a enviar uma mensagem ao namorado
por baixo da mesa, e Becca rabiscava uns planos para o palco. O professor Garrick chegara
atrasado, atirara com a porta e resmungara qualquer coisa sobre folhas de testes, que antigamente só
havia uma vez por ano, e outras coisas sem qualquer interesse para eles, antes de exibir o seu sorriso
algo estranho e pegar em The Whitsun Weddings.
Becca tivera esperanças de que ele estivesse doente e os mandasse todos para a sala de estudo
com «trabalhos». Mas não. O professor Garrick era professor de Inglês e o responsável pelos
exames, e passava imenso tempo a reunir material e a organizar trabalhos e exames para melhorias
de notas.
Quando a hora se aproximou finalmente do fim, a agitação dos presentes tornara-se mais
acentuada. Era uma turma grande para 11.º ano, com cerca de vinte alunos, o que, pelo menos,
significava que podiam passar despercebidos. Além disso, o professor Garrick não era parvo. Sabia
que a última aula do dia não era o melhor momento para trabalharem bem. Se tivesse algum vídeo
que lhes pudesse mostrar, seria o que faria. Becca pensou se conseguiria persuadi-lo a verem As
Bruxas de Salém. Talvez ele dissesse que sim. Pareceria fixe aos olhos dos alunos. Era fixe como o
professor Jones, e talvez uns anos mais velho, mas havia nele qualquer coisa de bondoso. De
amoroso. Um pouco como o professor desajeitado clássico, só que ligeiramente mais bem-parecido.
Sim, talvez lhe pedisse, pensou Becca com indolência. Nem mesmo os alunos que não participavam
na peça se importariam. Tudo era melhor do que aqueles poemas maçadores.
Pensou em Tasha. Guardara segredo sobre domingo e estava à espera de ser completamente
ignorada assim que regressassem à escola, mas não fora esse o caso. Não conviveram propriamente
uma com a outra, mas trocaram uns «olás» e uns acenos nos corredores. Hannah tinha reparado.
Ficara um pouco surpreendida, sobretudo no dia anterior, quando Becca almoçara com Tasha para
falar acerca da peça. Pareceu magoada, e Becca fingiu não reparar quando ela saiu abruptamente.
Tinham tido à reunião do elenco na segunda-feira — a lista fora afixada à hora do almoço,
suscitando muito guinchos de alegria. Tal como previra, as Barbies tinham-se saído bem. Tasha era a
deslumbrante, vital mas vingativa Abigail, Jenny era a algo assustadiça Mary Warren e Hayley ficara
com o papel da fria e calma Elizabeth Proctor. Becca não teve inveja de nenhuma delas, em parte
porque estar em palco nunca a atraíra muito, e também porque era um elenco forte. Observou Hayley
e Jenny todas vaidosas à volta de Tasha por ela ter ficado com o papel de Abigail, como se ela fosse,
de longe, uma atriz superior, mas Becca sabia que, embora ela fosse boa e fosse desempenhar bem o
papel, Jenny era melhor, e tinha quase a certeza de que as Barbies também o sabiam. Mas Jenny tinha
de repetir o exame de Matemática para tentar ter positiva, e o professor Jones não queria
sobrecarregá-la. Tinha sido bem escolhido, pensou Becca. Além disso, o papel de Mary Warren era
complicado, em muitos aspetos mais difícil do que o de Abigail.
— Esta aula nunca mais acaba… — murmurou Emily, ainda a segurar o telefone por trás do livro
de poesia aberto, com os dedos a voarem sobre o ecrã. Becca concordou com um resmungo, mas
estava distraída a observar Hayley e Jenny, à frente. As duas Barbies estavam a passar uma à outra
um papelinho escrevinhado, com uma conversa qualquer. E estavam mesmo à frente do nariz do
professor Garrick. Talvez ele tivesse optado por ignorá-las. Talvez também estivesse farto da aula.
Becca fez mais uns esboços. Era a primeira leitura inteira depois das aulas e ela queria
inspecionar o equipamento de luz e outras coisas com a Casey enquanto podia. A Casey tinha-se
espalhado à grande nos exames e era improvável que se pudesse dedicar a tempo inteiro à peça,
apesar de Tecnologias de Teatro ser uma das suas opções. Espetáculo, sim, mas ensaios e
preparativos, não. De modo que parecia que Becca só ia poder contar com a ajuda de Hannah, que
era ótima sob a direção de alguém, mas não suficientemente segura para tomar a iniciativa. Becca
não vira Tasha o dia todo. Se ela não aparecesse, ia ter de ler os diálogos por ela e perder o tempo
que tinha para as partes técnicas.
— Fosga-se, até que enfim — gemeu Emily quando tocou finalmente para a saída. Ainda a
campainha não tinha parado de tocar, já ela e Becca estavam de pé, Emily dirigindo-se para a porta
com a mochila ao ombro.
— Até amanhã, pá.
— Depois falamos — respondeu Becca. Olhou de relance para Hayley e Jenny, que ainda
estavam a arrumar as coisas. Raios, pensou. Porque ficava tão nervosa só de pensar em falar com
elas?
— Viva — disse, demorando-se perto da mesa delas. — Onde está a Tasha hoje?
Hayley olhou para ela com desdém.
— Que te interessa isso?
— Hayley, posso dar-te uma palavrinha? — O professor Garrick parecia nervoso ao imiscuir-se
na atmosfera tensa entre as três raparigas. Becca não o censurava.
— Claro. — Hayley olhou para Jenny. — Falamos depois.
— Adeus, professor — disse Jenny com um sorriso, e Becca murmurou o mesmo.
Jenny passou por ela, mas Becca manteve-se perto e esperou até chegarem ao corredor e as duas
Barbies se separarem para voltar a falar.
— Só queria saber se valia a pena fazer a leitura hoje ou não. Se ela não está na escola, aviso o
professor Jones.
— Eu aviso o professor Jones — disse Jenny. — És alguma ama-seca? — Fitou Becca, com o
peito a arfar por segundos, antes de atirar mais umas palavras. — Não sei o que julgas que se passa
entre ti e a Tasha, mas ela já te mandou passear uma vez. Lembras-te? E vai fazê-lo novamente.
— O que é isto? — ripostou Becca bruscamente. — Ela é minha amiga, por isso não pode ser
tua? — Pronunciou a última frase num tom de cantilena, e o rosto bonito e sedutor de Jenny pareceu
ter sido esbofeteado. — Seja como for, ela foi minha amiga primeiro — concluiu, ciente de que a
afirmação era infantil. Mas era verdade. Ela conhecia Tasha melhor do que qualquer uma delas, ou
talvez com exceção de Hayley. Quem pensava Jenny que era? Uma galdéria qualquer saída dos
bairros sociais que caíra de paraquedas na escola e, por acaso, tinha boa pinta? Ela que fosse dar
uma curva.
— Pois foi — respondeu Jenny, aproximando-se até os seus lábios de botão de rosa, ligeiramente
pintados, ficarem apenas a centímetros do rosto de Becca. — E então? Ela agora conta-te os
segredinhos todos? Tipo o quê? O que te contou a Tasha?
A voz dela tinha uma ponta de desespero e os seus olhos estavam muito abertos e húmidos,
brilhantes das lágrimas, mas cheios de raiva. Becca reparou que tinha as pupilas dilatadas quando
fizeram frente uma à outra no corredor. Estaria Jenny pedrada? Na escola? Com o quê? O seu olhar
fixou-se imediatamente no nariz da outra. Estava demasiado exaltada para estar pedrada.
— Meteste alguma cena? — perguntou. — Que se passa contigo?
— Ah, vai-te foder, Becca — disse Jenny, tendo de repente uma pequena quebra. — Vai-te foder.
— Rebecca?
Voltou-se e, por um instante, não conseguiu reconhecer a mulher que a chamava. O rosto era-lhe
familiar. Não era ninguém que conhecesse, mas alguém que já tinha visto. Alguém…
— Inspetora Bennett. Falámos no hospital — disse a mulher. O seu olhar saltou de uma rapariga
para a outra, enquanto Hayley se juntava a elas, vinda da aula do professor Garrick. — Está tudo
bem?
— Sim — respondeu Becca. — Está tudo ótimo.
Jenny assentiu com a cabeça relutante que foi suficiente para Bennett. Não queria saber das brigas
delas.
— Gostava de falar contigo — continuou a inspetora.
Por instantes, Becca pensou que ela se dirigia às Barbies, mas fora o nome dela que a mulher
chamara e era para ela que estava a olhar. De súbito sentiu subitamente frio.
— Sobre o quê?
Que teria uma polícia para falar com ela? Jenny e Hayley afastaram-se, mas não tão longe que
não pudessem ficar a ouvir. Becca deve ter deixado transparecer o pânico, porque a inspetora sorriu.
— Não te preocupes. São só umas perguntas de rotina. Escusas de ficar tão nervosa.
— A Natasha esteve consigo? — perguntou Hayley. — É por causa do acidente dela?
Então elas também não sabiam de Tasha, percebeu Becca. Grandes sacanas fingidas. E que cena
era aquela de estarem sempre a deitá-la abaixo? Não podiam ter simplesmente dito?
— A Natasha foi ver a psicóloga. Deve voltar para casa em breve — disse Bennett, ignorando a
pergunta de Hayley. — Uma consulta de rotina — continuou para Becca. — Vamos até ao gabinete da
diretora. Peço a alguém que te leve a casa quando terminarmos.
— Mas temos ensaio da peça — protestou Becca debilmente.
Havia uma benevolência firme no rosto da mulher que a assustava. Não queria ir com ela.
— Os ensaios foram cancelados.
23

Excerto da CONSULTA DA DOUTORA ANNABEL HARVEY COM A PACIENTE NATASHA


HOWLAND, QUARTA-FEIRA, 20 DE JANEIRO, 16H30

NATASHA: A sua planta tem treze folhas, sabia?


(Pausa)
A sério. Veja. Conte-as.
DOUTORA HARVEY: Isso é importante?
NATASHA: O número treze. Vejo-o em todo o lado. É como se estivesse sempre a aparecer-me à
frente. Treze ervilhas que o meu pai deixou no prato. Treze gotas de chuva na janela. Treze
pessoas no andar de cima do autocarro. Vejo o número em todo o lado.
DOUTORA HARVEY: E porquê?
NATASHA: (Rindo)
A sério? Ainda pergunta?
DOUTORA HARVEY: Sabes que é aproximado, não sabes? Não podem saber exatamente quanto
tempo estiveste naquela situação. Podem ter sido catorze minutos, podem ter sido doze.
NATASHA: Mas foram treze. Só queria que este número me deixasse em paz.
DOUTORA HARVEY: Continuas a ter pesadelos?
NATASHA: (Longa pausa)
Pergunto a mim mesma se ela se terá afogado lá.
DOUTORA HARVEY: Quem?
NATASHA: Aquela rapariga de Maypoole. A Nicola não-sei-quantas.
DOUTORA HARVEY: Nicola Munroe.
NATASHA: É isso. Acham que a morte dela e a minha podem estar ligadas.
DOUTORA HARVEY: E que achas?
NATASHA: Não me lembro de nada.
(Remexe-se na cadeira)
DOUTORA HARVEY: Há alguma coisa que te incomoda?
NATASHA: Já estava a pensar nela, mesmo antes de a inspetora Caitlin ter vindo falar comigo.
Desde que vi no noticiário. Sobre ela ter sido encontrada no rio, perto de onde eu estava. Senti-
me nauseada. Engoli água onde ela estava a apodrecer. Ela morreu lá. Eu morri lá.
DOUTORA HARVEY: Tu não morreste. Devias tentar não ver as coisas dessa maneira.
NATASHA: Para si, é fácil dizer isso. O meu coração parou, tal como o dela. Parei de respirar, tal
como ela. Talvez seja ela quem me aparece nos sonhos. Na escuridão.
DOUTORA HARVEY: A Nicola Munroe estava morta muito antes de tu teres entrado no rio. Não
sentia nenhuma emoção. Talvez estejas a sofrer do sentimento de culpa dos sobreviventes. Tu
sobreviveste e ela morreu. Conhecias a Nicola Munroe?
NATASHA: Não.
DOUTORA HARVEY: Então não podes fazer suposições sobre os seus sentimentos. Mesmo que ela
fosse capaz de sentir alguma coisa agora, não achas que seria mais natural da parte dela ficar
contente por uma de vocês ter sobrevivido?
NATASHA: (Riso)
DOUTORA HARVEY: Qual é a graça?
NATASHA: Percebe alguma coisa de raparigas adolescentes?
(Pausa. Funga)
(Mais calma)
Acho que não tem nada que ver com ele. A sério. Mesmo não me conseguindo lembrar, tenho a
certeza de que sentiria qualquer coisa. Quando o visse.

Excerto do RELATÓRIO DA INSPETORA CAITLIN BENNETT: 20 DE JANEIRO (CÓPIA


QUE CONSTA TAMBÉM DO FICHEIRO DE NICOLA MUNROE)

Dado o estado de extrema decomposição do corpo de Nicola Munroe, ainda não é certo se estava
drogada ou sob a influência de álcool antes da morte. Foram enviadas amostras para análises
suplementares. Não se sabe também se estava viva ou morta quando entrou na água. Além de o corpo
se encontrar numa localização idêntica, é difícil traçar comparações com o caso de Natasha
Howland; contudo, existem as seguintes semelhanças:

1) Ambas as mulheres entraram na água totalmente vestidas, embora Munroe tivesse mais
camadas de roupa do que Howland, nomeadamente um casaco pesado e botas.
2) Ambas as mulheres tinham em sua posse os telemóveis.
3) Nenhuma das mulheres evidencia sinais óbvios de agressão ou de violação — embora no caso
de Munroe, dado o estado do corpo, o médico-legista não tenha sido capaz de o confirmar com
certeza.
4) Ambas as mulheres eram brancas, de classe média e estavam a meio ou no final da
adolescência.
5) Ambas as mulheres eram louras.
6) Ambas as mulheres conheciam Aiden Kennedy.

Excerto das NOTAS DA INSPETORA BENNETT (RELATÓRIO NÃO OFICIAL) EM


ENTREVISTA COM NATASHA HOWLAND E REBECCA CRISP A 20/01, 14H00/15H45,
RESPETIVAMENTE. AMBAS AS RAPARIGAS CONCORDARAM QUE A DIRETORA,
CHRISTINE SALISBURY, ESTIVESSE PRESENTE COMO ADULTA RESPONSÁVEL:

Natasha Howland
Howland claramente perturbada pela descoberta do corpo de Munroe tão perto do local onde se
registou o seu próprio incidente. Fez referência mais do que uma vez a terem estado na água ao
mesmo tempo. Menos contida do que em conversas anteriores. Fiz-lhe perguntas de rotina. Mencionei
Aiden Kennedy. Ambas as mulheres o conheciam.
Howland viu Kennedy duas vezes desde o acidente: uma vez em casa de Jamie McMahon, quando
ela e a mãe lá foram agradecer-lhe, e outra vez quando ele foi buscar Rebecca a uma festa, na sexta à
noite/sábado de madrugada, em casa do estudante Mark Pritchard. Perplexa com as minhas perguntas.
Surpreendida ao ouvir mencionar o nome de Aiden. Não teve nenhuma relação com ele desde que
este a convidou para sair há cerca de dois anos. Constrangida por causa disto. Diz que se riu dele.
(Interessante.) O comportamento dele para com ela em casa de McMahon foi o normal — diz que AK
nunca a olha nos olhos. (Timidez? Culpa? Obsessão?) Diz que, tanto quanto sabe, a relação dele com
Rebecca Crisp é séria e sexual, e que Rebecca parece feliz. Pergunta por que razão estamos
interessados no Aiden e o que tem ele que ver com aquilo. Surpresa autêntica. Nada lhe estimulou a
memória. No final da entrevista, enviei-a novamente à psicóloga. Preciso que ela recupere a
memória. Frustrante!

Rebecca Crisp
Miúda esperta por baixo da casca. Pergunta por que razão quero falar com ela e não com as
outras duas raparigas. Interessante dinâmica de adolescentes. Faço-lhe perguntas sobre a noite do
incidente. Repete que esteve com o Aiden até ele a ter deixado em casa, à meia-noite. Falou com ele
mais tarde? Responde, em conformidade com o depoimento anterior, que adormeceu a ver televisão
no computador. Pergunto onde ele foi depois, ela responde que foi para casa. Fica claro pelas
respostas que não tem a certeza de que ele o tenha feito, mas que foi o que lhe disse. Defensiva neste
ponto — ter-se-á apercebido de alguma coisa? Insegura. Zangada. Assustada. Manda-nos verificar
com a mãe de Aiden. Depois pergunta se já o fizemos. Refere que AK convidou uma vez NH para
sair. Que diz ele acerca dela? Explosão de Crisp. À beira das lágrimas. Não falam acerca dela. Foi
há muito tempo. (Ciumenta? NH fá-la sentir-se insegura? Ele fala acerca de NH?) Leva um momento
a acalmar-se. Crisp confirma que a relação deles é sexual. Nada de anormal. (Aqui mostra-se
constrangida. Não confiante. Talvez não dê tudo o que ele deseja sexualmente? AK frustrado? Precisa
de fantasiar com outras?) AK sai com outras raparigas? Alguma vez lhe foi infiel? Zanga-se com esta
pergunta. Não, estão apaixonados. (Abençoada!) Saio por momentos. Tomo notas. Ela pergunta
porque estou a fazer tantas perguntas sobre AK. Defensiva. (Nervosa?) Pergunto se sabia que Aiden
conhecia Nicola Munroe, a rapariga de Maypoole…
24

— Que está ela a dizer? — Becca tinha consciência de que estava aos gritos. Não conseguiu
evitar. Tinha o corpo todo a tremer desde que a inspetora a deixara sair. — Porque não atendeste os
meus telefonemas? — Apetecia-lhe vomitar, agora que estavam frente a frente. Fora a correr da
escola até ao apartamento dele e depois até casa de Jamie McMahon, e a raiva não tinha
desaparecido. Lá estava ele. Perturbado, pálido e belo. Tentou segurá-la, mas ela empurrou-o. Estava
demasiado zangada. Demasiado zangada e alterada, e subitamente aterrada.
— Não tenho o meu telefone. Eles ficaram com ele. Fui a correr comprar outro assim que me
deixaram sair. — Tirou um telefone barato do bolso. — Mas não tenho aqui o teu número. Vim cá ver
se estava em alguma das contas de telefone do Jamie. Às vezes ligo do fixo dele… Sabes como a
rede é merdosa nesta casa.
— E se nos acalmássemos todos? — Jamie McMahon estava a um canto da sala, sentindo-se
constrangido na sua própria casa. O cão estava sentado aos seus pés e gania de vez em quando,
perturbado. — Seja o que for, é um mal-entendido.
— Ela disse que a conhecias! — Becca quase cuspiu as palavras para o rosto de Aiden e, a
seguir, para sua enorme vergonha, desfez-se em lágrimas. Umas mãos fortes, maiores do que as de
Aiden, agarraram-lhe nos ombros e conduziram-na até ao sofá. Deixou-se cair nele pesadamente, já
sem vontade de brigar.
— Ei… — Jamie acocorou-se ao seu lado e deu-lhe um lenço de papel que tirou do bolso. —
Está amarrotado, mas está limpo.
— Obrigada — balbuciou ela, odiando-se por ser tão fraca. — Peço desculpa.
— Tudo bem. — A voz dele era suave. Bondosa. Apeteceu-lhe novamente chorar. O seu mundo
tinha sido, senão retirado de baixo dos seus pés, então gravemente abalado. — Mas sabes que isto
não é nada, não sabes?
Becca ergueu os olhos para o namorado, que correu imediatamente para ela e se sentou. Cheirava
a limpo. Champô e sabonete, com o seu odor único por baixo de tudo. Amava-o tanto que isso
poderia despedaçá-la. Mesmo naquele momento.
— Dizem que a Nicola Munroe tinha uma cópia dos contactos no MacBook. — A voz dele estava
trémula. — O meu número estava lá.
O mundo resplandeceu por instantes à volta de Becca, e a luz refratou-se repentinamente das
arestas da mesa de café enquanto ela a observava, incapaz de o fitar a ele.
— Como? Como é que ela tinha o teu número de telefone?
— Não sei bem. — Aiden encolheu os ombros com um ar impotente e ela teve vontade de o
abraçar e de lhe dar socos ao mesmo tempo. — Eu também tinha o dela. A Nicola era uma daquelas
maníacas da parte técnica da música. Eu vou a concertos, e as pessoas sabem que toco em cenas
profissionais. Devemos ter trocado números numa situação dessas.
— Porque não disseste nada?
Trocar números. As palavras diziam muito. Eram palavras que provocavam risadinhas no
vestiário das raparigas na escola, no autocarro ou no McDonald’s. Trocar números. Mensagem
privada. Mensagem direta. Todas essas coisas eram prelúdio do primeiro beijo. Toda a gente sabia
disso.
— Nunca me ocorreu. Quando me devolverem o telefone, podes ir lá ver. Tenho imensos
números. Não me lembrei que tinha o dela. Devia estar zangado quando ela mo deu. Deve ter sido
daquelas coisas que se fazem no bar depois do concerto, sabes?
Ela não sabia propriamente, mas anuiu na mesma. Umas vezes, os três anos que os separavam
pareciam não existir, mas outras vezes pareciam uma vida.
— Tens de acreditar em mim, Becca. — Ele agarrou-lhe na mão livre. Tinha a palma da mão
suada. — Tens de acreditar. Porque estaria eu envolvido numa coisa destas? Ou com a Natasha?
— Nunca convidaste a Nicola para sair? — Odiou a dúvida e a suspeita contidas na sua voz, e
Aiden encolheu-se, com os seus belos olhos azuis, olhos em que ela se poderia afogar, feridos e
magoados.
— Não, nunca. Santo Deus, Bex, que estás a insinuar? Que se convido uma rapariga para sair e
ela recusa, atiro-a ao rio e deixo-a morrer?
Ela fitou-o. Sentia-se estúpida. Mas ao mesmo tempo, não. O bichinho da insegurança amarga
crescia-lhe nas entranhas.
— Não, claro que não. É que… Não compreendo.
— Porque te estão a fazer estas perguntas agora? — perguntou Jamie. — A Nicola Munroe
desapareceu há meses. Na altura não verificaram os registos telefónicos e os contactos dela?
— Verificaram, mas não era importante para essa investigação. Até o corpo dela aparecer mesmo
ao lado do local onde o Jamie encontrou a Natasha. Devem ter passado a informação toda para a tal
inspetora Bennett, que reconheceu o meu nome. Ela falou comigo quando te fui buscar ao hospital.
— Também falou comigo lá — disse Becca. Sentia um grande cansaço. Um cansaço enorme,
avassalador. — Desculpa — disse. — Desculpa. Estou assustada. — As lágrimas começaram
novamente a correr. — Ela fez-me uma data de perguntas acerca de ti e de mim, depois sobre ti e a
Tasha, e depois, quando falou na Nicola, passei-me completamente. — Pôs-lhe os braços à volta do
pescoço e soluçou à vontade, molhando-lhe a pele com lágrimas quentes e ranho.
— Está tudo bem, está tudo bem. — Aiden fê-la olhar para si — Tu sabes que eu não fiz nada, e
eu sei que não fiz nada, por isso, está tudo bem. É apenas uma coincidência. E nem sequer é das
grandes. Não vivemos propriamente numa cidade enorme. Se pensares nisso, não é assim tão
estranho eu ter o número de telefone de uma miúda qualquer da minha idade, que frequenta todos os
concertos da zona. — Afastou-a suavemente. — Foi só um grande azar. — Sorriu. — Ficaste mais
passada do que a minha mãe. Acho que até ficaste mais passada do que eu.
— Já estou a ficar mais calma. Foi o choque.
— A quem o dizes.
— Também falaram consigo? — perguntou ela a Jamie.
— Sim — respondeu ele. — Não tinha grande coisa para dizer. Apenas que o Aiden é
perfeitamente normal, seja lá o que isso significa, e feliz contigo e que nunca me falara de outras
raparigas. Mais importante, disse-lhes que ele sabe que vou passear o Biscuit cedo todas as manhãs,
por isso teria sido muito estúpido empurrar a Natasha para o rio sabendo que eu podia aparecer a
qualquer momento.
Aquele discurso lógico acalmou-a mais do que os protestos sentidos de Aiden. Ele não era parvo.
Mesmo que fosse um doido agressor de mulheres — e Becca sentiu-se ainda mais doida ao ouvir as
palavras dentro da sua cabeça — não correria o risco de ser apanhado assim.
— Eles têm de seguir estas pistas — disse Jamie. — Faz parte do trabalho deles.
Becca sabia que aquilo fazia sentido. Respirou fundo. Bennett estava apenas a ser picuinhas,
como diria o pai. Claro que tinha de seguir a pista de Aiden. Não estaria a fazer o seu trabalho se não
o fizesse. De repente, sentiu-se idiota por ter ido até ali a correr e por fazer aquele drama todo.
— Vocês estavam a trabalhar? — perguntou. — Vou andando. Desculpem. Tenho de ser menos
idiota.
Precisava de apanhar ar fresco e de se recompor. Tinha agido como uma tipa histérica. O que a
assustara tanto? Fora a inspetora ter feito Aiden parecer suspeito ou ele ter o número da rapariga
morta e nunca lhe ter dito? Esperava que fosse a primeira hipótese, mas não tinha bem a certeza.
Sabia que as suas inseguranças a podiam transformar numa doida ciumenta. Pensava constantemente
que Aiden se ia apaixonar por outra pessoa qualquer. Por alguma técnica da música sofisticada.
Tentou dominar-se ou, pelo menos, não deixar aquilo transparecer.
— Sim, estávamos — disse Aiden. — Achei por bem continuar como normalmente. E não és
nada idiota. Mas dá-me outra vez o teu número de telefone, e eu ligo-te antes de ires para a cama.
Ela tirou-lhe o telefone barato das mãos, introduziu o número e o nome nos contactos e enviou a
si mesma uma mensagem para ficar também com o número dele.
Ele acompanhou-a à porta, e Becca quase se sentiu envergonhada como ficava nos primeiros
tempos, quando havia aquela emoção e atração toda entre eles mas nenhum dos dois tinha coragem
para falar disso.
— Desculpa se fui parva — acabou por dizer.
— Não foste parva. Desculpa se a polícia pensou que eu pudesse ser um louco psicopata.
Ela riu-se, ele imitou-a e a tensão dissipou-se quando se despediram com um beijo. Era apenas
Aiden. Carinhoso, bonito e tranquilo. Qual era o problema de ele ter o telefone de uma miúda
qualquer? Não era nenhum miúdo. Não significava nada.
— Ligo-te mais logo — disse ele. — Amo-te.
— E eu a ti.
A porta fechou-se e ela inspirou profundamente o ar húmido. Era uma loucura pensar que Aiden
podia ter tido alguma coisa que ver com o que acontecera a Tasha. Ela estivera com ele naquela
noite. Ele estava descontraído e feliz. Estavam os dois. E bastante ganzados. Ele não estava em
estado de atirar ninguém ao rio.
O telemóvel vibrou quando ia a descer o caminho de gravilha até à passagem que ia dar à rua
principal. Era Hannah, a ver como ela estava depois de os ensaios terem sido cancelados. Queria
saber onde se metera e se estava bem. Era mesmo dela. Nunca tinha coragem para ficar chateada. Se
os papéis estivessem invertidos, a mensagem de Becca teria sido mais Onde te meteste, porra?
Escreveu uma resposta rápida a dizer que lhe telefonava mais tarde e enfiou as mãos nos bolsos para
as manter quentes. A neve derretera mas continuava a fazer frio, sobretudo ali perto do rio.
Tinha acabado de chegar à passagem curta e estreita quando vislumbrou qualquer coisa no
crepúsculo. Um brilho de metal por entre os ramos. Alguém estava estacionado no caminho. Alguém
estava a vigiar a casa de Jamie McMahon. Sentiu uma pontada na barriga. Era a inspetora Bennett, ou
um dos seus lacaios, de olho em Aiden. Esquecendo-se rapidamente do frio, começou a escrever-lhe
uma mensagem, mas depois parou. Para quê preocupá-lo? Eles que o vigiassem, pensou, zangada.
Não descobririam nada. Aiden estava inocente. Vai-te lixar, inspetora Bennett, pensou. Vai-te lixar.
25

Retirado dos FICHEIROS DE CAITLIN BENNETT: EXCERTO DO CADERNO DE


NATASHA HOWLAND

Bom, tenho finalmente uma pista e uma aliada para descobrir o que aconteceu realmente naquela
noite. Já me sinto um bocadinho melhor. Foi um dia longo, mas quero apontar tudo antes de (tentar)
adormecer.
Tive uma coisa na cabeça que me incomodou ontem a noite toda, de tal forma que mesmo quando
acordei (a arquejar em silêncio, como já se tornou normal desde que voltei para casa) foi a primeira
coisa em que pensei. Não foi na voz sussurrante no vazio nos meus sonhos. Não foi nos trezes que via
em todo o lado. (Ontem estavam treze pelos na minha escova do cabelo. Precisamente treze. Tirei-os
cuidadosamente e contei-os. Pu-los em cima do toucador. Treze minutos morta, treze cabelos mortos.
Vá-se lá perceber.) Nem na Nicola Munroe e no seu cadáver inchado. De certa maneira, isto estar
fora do meu alcance é quase uma bênção. Mas parecia uma crosta, a fazer-me comichão e a dar
comigo em doida. Acham que o Aiden está metido nisto. É quase cómico. Ele não matou a Nicola
Munroe e menos ainda me atirou ao rio. Eu sabia isso. Era o que me dizia aquela comichão que
sentia na cabeça. Não era a memória, que continuava sem conseguir recuperar, mas outra coisa
qualquer. Qualquer coisa que devia ter percebido, mas que estava fora do meu alcance.
Eram só quatro e meia quando acordei esta manhã, mas fui buscar a roupa de correr ao fundo do
armário. Vesti-me às escuras, preparei tudo e saí pela janela, desci pela árvore e atravessei o portão
lateral, como devo ter feito naquela noite. Comecei a correr num ritmo constante e deixei que a mente
se relaxasse. É estranho como ganhei o gosto pela corrida. Senti falta de o fazer nas últimas semanas,
e as minhas pernas ficaram contentes por se alongarem e por sacudirem a rigidez da falta de
atividade. Senti-me cheia de energia. Gostava da sensação dos músculos e dos tendões a trabalharem
em conjunto enquanto os pés batiam no chão com confiança ao longo dos percursos no escuro.
Passados alguns minutos, já não sentia frio. Tinha o rosto afogueado. Mas nem estava muito ofegante.
Conheço o meu ritmo. Que pensaria a Hayley se me visse? Natasha, a corredora. Todos temos os
nossos segredos.
Fazia escuro e quase toda a cidade estava adormecida. Evitei a rua principal durante quase todo
o percurso. O silêncio era estranho, só se ouviam as pancadas secas das minhas sapatilhas e a minha
respiração constante. Segui até junto do rio e atravessei o bosque. Devia ter sentido medo de estar ali
sozinha na escuridão e tão perto do rio, mas não senti. Sentia-me excitada. Quando me dirigi para
casa, pouco depois das cinco, sentia-me bem. Orgulhosa de mim. Capaz até de ignorar que tinha
estado a contar os passos na cabeça e que recomeçava sempre que chegava aos treze.
O dia passou sem eu dar por isso. Estive na escola, com a Hayles e a Jen, e contei-lhes da polícia
e de eles pensarem que o que me acontecera poderia estar relacionado com a morte da Nicola
Munroe. Mas tinha a cabeça noutro lado. Elas perguntaram por que razão a polícia queria falar com a
Becca, e eu encolhi os ombros. Não lhes contei do Aiden. Embora estivessem a anuir, vi-as lançar
um olhar uma à outra, e a crosta na minha cabeça voltou a fazer comichão. Pensei o que me
esconderiam. Haveria alguma coisa que não me estavam a contar? Passaram o dia todo a sufocar-me
de adoração, e quando chegámos ao momento da leitura, depois da última aula, já quase não
conseguia respirar. Senti como se estivesse outra vez no rio.
Sorri à Becca. Ela estava com um ar cansado. Pensei se estaria acordada quando eu fora correr
de manhã. Ela devolveu-me o sorriso, e eu percebi que estava aliviada por continuar tudo bem entre
nós. Ao lado dela, Hannah olhava para mim como um rato olha para um gato. Nem sequer me dignei a
fitá-la. Ela é absolutamente insignificante. Talvez a Becca tenha pensado que eu a ia ignorar depois
da história com o Aiden. Estava enganada. Pensei que podia enviar-lhe a minha próxima jogada de
xadrez por mensagem enquanto estivessem a ler as partes em que eu não entro. Pensar em mensagens
fez-me sentir novamente a comichão. Olhei para a Hayley e para a Jenny. A crosta na minha cabeça
soltou-se e percebi o que me andava a incomodar: a mensagem para o número errado.

Ela não quis sair, claro. Queria ir ter com o namorado. Não parava de perguntar o que estávamos
ali a fazer, como aquilo ia ajudar o Aiden? Mas eu precisava dela, e ela nunca conseguiu dizer-me
que não. Mas percebi que continuou chateada, apesar de ter ficado aliviada por eu não ter contado a
ninguém que a polícia nos tinha interrogado acerca do Aiden. Estava distante e triste, e eu não me
tinha explicado bem, mas precisava que ela viesse comigo. Para ver, se é que havia alguma coisa
para ver.
Tínhamos lanternas, daquelas enormes e quadradas que os pais usam, que estavam na minha
garagem, não do género das que as mães guardam debaixo do lava-loiça. Disse à minha mãe que ia a
casa da Becca. Ela disse à dela que vinha à minha. Nenhuma das nossas mães ficaria contente se
soubesse que andávamos pelo bosque no escuro. Na verdade, teriam ficado as duas histéricas.
— É por causa da mensagem. Aquela que recebi naquela noite — tentei explicar, baixando-me ao
passar por uns ramos. A neve derretera e transformara-se em lama que deixava os caminhos
escorregadios. As lanternas desenhavam grandes faixas de luz branca à nossa frente, como se
estivéssemos a andar por baixo de luas gémeas.
— Que tem a mensagem? — perguntou ela.
— Não conheço o número. Podia ser de qualquer pessoa, mas dizia para ir ter ao sítio do
costume.
— E?
Praguejou entredentes atrás de mim ao tropeçar num ramo.
Continuei a avançar, enquanto explicava. Tinha dito à polícia que a mensagem não me dizia nada,
e era verdade. Não dizia. Mas depois tinha começado a pensar que não me dizia nada porque não
reconhecia o número. Se ignorasse o número, talvez me dissesse qualquer coisa. Cronometrei a
viagem e a conversa na perfeição para produzir mais efeito dramático. Empurrei o último ramo e
entrei na clareira circular — o local secreto onde ia ter com a Hayley e a Jenny.
Os olhos de Becca arregalaram-se com a ideia de nos encontrarmos ali.
E encontrámo-nos várias vezes. Não o fazíamos há séculos, mas continuava a ser o sítio para
onde íamos quando queríamos evitar toda a gente. Um sítio para fumar uma ganza. Para ouvir música.
Para não fazer nada.
Percebi que aquilo magoava a Becca. Ela acha que devia ter feito parte disto.
— Era o que dizíamos às vezes, quando falávamos ao telefone e isso: «No sítio do costume?»
Ou: «No nosso sítio?» A mensagem era igual.
— Mas porque não respondeste? — perguntou Becca. — E porque haviam elas de usar um
telemóvel diferente?
Eram perguntas pertinentes. Não sei as respostas. Becca acendeu um cigarro e inalou com força.
— Não sei — disse eu devagar. — Isto impediu-me de dormir. Passei o dia todo a pensar nisto e
tive um pressentimento: será a memória a voltar? Talvez tenhamos aqui vindo naquela sexta-feira à
noite. Será que elas conseguem mesmo confirmar que os seus álibis são verdadeiros? Dizem que
estavam em casa, mas eu também devia estar. E nos meus sonhos, estou numa escuridão horrível,
oiço uma rapariga sussurrar o meu nome e não consigo mexer-me. Talvez não seja medo da água.
Talvez tenha alguma coisa que ver com elas.
Becca olhou para mim de uma maneira que me deixou sem saber se achava que eu estava louca ou
não. Estava ali a disparatar como uma idiota, isso era evidente. Tinha de encontrar provas. Indícios
claros, para a convencer. Apontei a minha lanterna para o chão e dirigi-me ao tronco caído.
— Passei o dia todo com isto às voltas na cabeça e acabei por decidir cá vir para dar uma vista
de olhos. Precisava que viesses comigo, não queria vir sozinha. Para ver se encontrávamos alguma
coisa. Para eu não continuar a achar que estou doida.
Percebia que Becca estava comovida por eu ter pensado nela. Mas a que outra pessoa podia ter
pedido aquilo? Em quem podia confiar como confiava nela?
Becca movimentou o feixe de luz da lanterna pela clareira, com os olhos atentos. Eu fiz o mesmo.
Procurámos as duas em silêncio.
— Olha.
Tinha-se acocorado e fixava qualquer coisa. Juntei a minha lanterna à dela até a luz se tornar
quase demasiada intensa. E então também vi. Sujas e desfeitas, depois de terem sido cobertas pela
neve. Mas eu sabia o que eram. O que significavam.
Ela foi a primeira a falar:
— Beatas e cigarros Vogue.
Apanhou uma. A Hayley.
Tentei falar/pensar naquilo.
— Não podem ser muito antigas. Ela começou a fumar isso há pouco tempo. Desde que caiu e
usou aquele apoio para o pulso há uns meses. Mudou para esses na altura. Lembro-me porque a Jenny
lhe copiou as letras Vogue para o gesso. Mas não vimos aqui há séculos. Pelo menos, desde fevereiro
do ano passado.
Becca olhou para mim pensativa.
— Talvez tu não tenhas vindo, mas elas, sim. Disseste que elas andavam estranhas. Com
secretismos? Talvez andassem a vir aqui sem ti.
Também já tinha pensado nisso. A Becca sempre foi mais esperta do que aquilo que julga. É por
isso que joga bem xadrez. Analisa todos os movimentos possíveis e fixa os anteriores. Desviei a
lanterna, fazendo a luz deslizar pelo chão em direção a uma árvore, e qualquer coisa emitiu um brilho
dourado e prateado. Foi mais fácil de ver do que as pontas de cigarro. Um papel vazio de Crunchie.
Tive de dizer em voz alta a Becca:
— Eu devo ter estado aqui. Este ano ando viciada em Crunchies.
Becca pôs-se de pé e atravessou cautelosamente a pequena clareira. Não tocou no papel.
— A Jenny está sempre de dieta, e a Hayley só come chocolate quando anda a treinar para alguma
corrida.
Estava a pensar em voz alta também.
— Não te lembras mesmo de nada?
Abanei a cabeça, a sentir-me completamente confusa. Agora que a noite tinha caído, estava a
ficar mais frio, e à luz das lanternas devíamos parecer personagens de um filme de terror.
— Sei que a Hayley e a Jenny têm andado diferentes ultimamente, como se me estivessem a
esconder qualquer coisa, mas seriam incapazes de me fazer mal, não achas?
Olhei para Bex, à espera da confirmação dela, mas ela não ma deu. Em vez disso, olhou para trás
da árvore e depois deslocou a luz da lanterna pelo tronco acima. Tinha o rosto contraído, sério.
Pálido — e não apenas do frio.
— Quero dizer, é uma loucura — disse eu. De repente, apetecia-me um cigarro, embora nunca
tivesse travado na vida, exceto uma vez quando tinha treze anos, e fiquei de tal maneira tonta que
pensei que ia vomitar. Aquilo estava a tornar-se demasiado real. — Isto é de doidos. Que me está a
passar pela cabeça? Elas são as minhas melhores amigas.
— Olha para isto — disse Becca. — Do outro lado da árvore.
Fui até ao sítio para onde ela estava a apontar e vi um pedaço de corda desfiada e verde, talvez
corda de tendas, sobre o chão coberto de musgo, quase invisível contra o fundo.
— Talvez te tenham amarrado à árvore — disse Becca. — Fogo! A sério, foda-se, Tasha, achas
que podiam ter feito isso? Achas que eram capazes de uma coisa dessas?
Ficámos uns momentos em silêncio, apenas com a respiração irregular a quebrar o silêncio do
bosque. A ideia pusera-nos o coração a bater furiosamente.
— Porque haviam elas de fazer uma coisa dessas? — perguntei. Becca não respondeu. Tinha o
corpo tenso, alerta e atento. Focado. Sugeriu que esquadrinhássemos a clareira à procura de alguma
coisa estranha, e eu obedeci; inclinei-me e pus-me à procura de qualquer indício do que ali
acontecera. Tinha o nariz a pingar e fungava com força, ouvi a Becca fazer o mesmo, as duas
curvadas sobre o chão lamacento.
— Mas porque haviam elas de me amarrar? — repeti após uns minutos de silêncio. — E, mesmo
que o tivessem feito, porque me iam soltar depois?
Becca continuava a olhar para a árvore.
— Talvez tenhas sido tu a libertar-te e tenhas fugido. Talvez tenha sido uma brincadeira que foi
longe demais. Se calhar, caíste ao rio depois de teres fugido.
Olhei para ela.
— Mas estamos a falar da Hayley. Da Hayley e da Jenny.
Ela reviu a situação com um ar pesaroso:
— Ainda não sabemos como vieste aqui parar, mas uma coisa é certa: a mensagem dizia para ires
ter ao sítio do costume, ou seja, aqui, e parece que cá estiveram todas, recentemente. E se cá
estiveram todas e não vieram cá fazer nada de especial… — Fez uma pausa para enfatizar o que
vinha a seguir, palavras que eu não queria ouvir —, porque não falaram disso? Porque não disseram
nada quando te encontraram?
— Não sei — murmurei, a bater com os pés para afastar o frio.
— Trouxeste-me cá — reparou Becca. — Deve haver uma parte de ti que acha que elas estão
envolvidas de alguma forma.
— E a Nicola Munroe?
— Que tem ela? — Becca endireitou-se, a refletir de novo. — Ela foi encontrada no rio. Não
prova que o que te aconteceu esteja relacionado. Pode ter entrado no rio em Maypoole e ter sido
arrastada para aqui. O Aiden é a única outra ligação de momento, e ele nem sequer a conhecia bem,
nem fez nada de mal. — Era amoroso ver o queixo de Becca erguido em desafio ao dizer aquilo. Mas
a mim não tem de me convencer. Eu acredito nela. Sei que o Aiden está inocente. — E ele não tem
andando a perseguir-te nem nada disso, pois não? — concluiu.
Tentou que a pergunta parecesse uma declaração confiante, mas notei-lhe a insegurança, a
necessidade de ser tranquilizada.
— Claro que não. Nem nunca mais tinha pensado nele.
Escolhi as palavras com cuidado. Não percebo porquê, mas ele é tudo para a Becca. Não quero
que ela fique zangada, nem que se afaste de mim. Preciso dela.
— Então, o que lhe aconteceu a ela e o que te aconteceu a ti são provavelmente ocorrências
completamente distintas — concluiu Becca, lançando um olhar à volta. — Podias telefonar à
inspetora Bennett e falar-lhe disto. — Fitou-me. — Não posso ser eu, senão ela ainda pensa que
estou só a tentar safar o Aiden.
Ela também precisa de mim, apercebi-me.
— Mas isto prova alguma coisa? — Encolhi os ombros de impotência. — Nada. Apenas que aqui
estivemos todas recentemente. Ou elas podem afirmar que estiveram aqui sem mim e que foi uma
delas a comer o chocolate. Ou que alguma outra pessoa veio por acaso dar um passeio com o cão
pelo bosque. Não há aqui nada que prove que estivemos aqui naquela noite.
Ela sabia que eu tinha razão. Aquilo era, no mínimo, inconsistente. E elas são minhas amigas.
Não quero ir à polícia acusá-las de qualquer coisa sem ter a certeza. Merda… E se for só a minha
cabeça a desvairar? O mais provável é elas não terem feito nada.
Becca meteu no bolso a beata do cigarro, sem dúvida para não contaminar o local, e acendeu
outro. Tinha os olhos semicerrados. Estava concentrada a pensar.
— Temos de as atrair para aqui — disse. — De as pôr à prova.
Senti picadas de frio na cara e uma onda de excitação a começar a invadir-me.
— Vais fingir que começaste a lembrar-te — disse Becca, com o rosto animado por estar a traçar
um plano. — Nada de muito concreto, dizes apenas que te vêm à cabeça imagens vagas que não
consegues compreender. Mostra-te um bocadinho desconfiada. Esse género de coisas.
— E depois?
Eu sabia aonde ela queria chegar, mas queria que fosse ela a dizer.
— Vê como elas reagem, o que fazem.
A Becca começou a tremer e tomámos o caminho de regresso, em silêncio, uma atrás da outra
através das árvores, até ao caminho estreito que conheço tão bem, e depois até ao rio e à estrada
principal. Quando pudemos falar confortavelmente lado a lado, dei-lhe o braço como se fosse o meu
namorado ou coisa do género. Há imenso tempo que não caminhávamos daquela maneira. Era
reconfortante. Tenho sentido a falta da Becca e fiquei surpreendida ao percebê-lo.
— Mando-te uma mensagem para vires almoçar connosco amanhã — disse. — Nessa altura faço
isso. Assim podemos ver as duas como elas reagem.
A Becca não pediu para levar a Hannah, o que foi um alívio. Não me apetece que me vejam a
almoçar com a Hannah. Não devia incomodar-me, mas incomoda. Pobre Hannah, está sempre a levar
com os pés.
Mas a Becca continuava a refletir em voz alta:
— Qualquer coisa aconteceu durante aquele período de tempo de que não te lembras. Só pode.
Alguma coisa que te levou a ir ter com elas a meio da noite e a teres acabado quase morta.
Falava baixinho, como se fosse demasiado horrível para ser dito em voz alta.
Mas que podia ter acontecido? A mãe diz que eu estava em casa, no meu quarto, na quinta-feira à
noite e que na sexta-feira fui à escola como é habitual. Pelo que me diz toda a gente, foi um dia
perfeitamente normal.
— Talvez visto de fora — observou Becca. — Mas quem sabe realmente? A minha mãe não sabe
o que eu faço. Se lhe perguntassem o que fiz na sexta-feira passada, a resposta dela não incluiria
drogas e foder o meu namorado até não poder mais.
— E se elas não fizerem nada? E se ficarem contentes por mim? — perguntei.
— Podem voltar a ser todas Barbies novamente e…
Fiquei gelada e fitei-a durante um longo momento.
— Barbies? — perguntei. — Até tu nos chamas isso?
O braço dela ficou hirto.
— Às vezes. É só uma alcunha. Fui eu a primeira a chamar-vos isso. Há uma data de anos. — Fez
uma pausa. — Na altura, não era um elogio.
— Não me digas. — Era a minha vez de parar um momento. — Barbies. — repeti. — Foste tu
que inventaste a alcunha. Grande cabra. — Quase sentia o calor que emanava do rosto ruborizado da
Becca e, de repente, comecei a rir. Ri-me tanto que tive de parar de andar. Ela olhou para mim como
se eu estivesse doida e depois pôs-se também a rir, até ficarmos as duas sem fôlego e a chorar entre
ataques de riso incontidos. Barbies. Tínhamo-nos apropriado do insulto dela. O meu trio tinha
orgulho em que nos chamassem aquilo. As Barbies. Vi-nos como a Becca nos via. Pessoas vazias,
plásticas, bonitas. Continuava a sentir orgulho. Não conseguia evitar. Eu pertenço às Barbies.
Parámos finalmente de rir, e o frio envolveu-nos novamente. Limpei as últimas lágrimas do rosto
dorido e disse:
— Está bem, vamos lá planear isto. Como deve ser.
E conforme falávamos, o riso esmorecia com a gravidade da razão que nos levava a fazer aquilo.
Vamos atirar o barro à parede e ver se cola. Gosto de planear coisas. Gosto de pormenores. Não
sou de improvisar. Mas ambas jogamos xadrez. Se alguém sabe montar uma boa armadilha, somos
nós.
26

Aiden estava curvado sobre o telefone quando Jamie pousou os cafés, e ao princípio este pensou
que o adolescente estava a trocar mensagens com a namorada, mas não ouviu toques nem zumbidos.
Curioso, fingindo querer alcançar outro cabo do amplificador, inclinou-se sobre a mesa onde Aiden
estava sentado. O miúdo mal reparou. Tinha os ombros curvados e contraídos — demasiado tenso
para se poder aproveitar o que até aí tinha feito naquela sessão — e mordiscava distraidamente o
lábio inferior. O telemóvel estava aberto numa pesquisa do Google: ruas de Brackston com câmaras
de vigilância.
— Está aqui o café — disse Jamie. Porque havia o miúdo de querer saber onde estavam as
câmaras de vigilância? E porquê aquele ar tão preocupado? Teria aquilo que ver com a polícia?
Devia querer que a polícia soubesse onde tinha estado. Talvez fosse isso. Talvez quisesse ter a
certeza de que podiam seguir os movimentos dele depois de ter deixado Becca naquela noite. Devia
ser isso.
— Anda, fuma um cigarro e depois vamos tentar fazer esta faixa como deve ser. Senão, o melhor
é ficarmos por aqui.
— Okay, está bem.
Ainda distraído, Aiden largou o telemóvel com relutância e dirigiu-se à varanda. Nunca era muito
falador, mas normalmente partilhavam um silêncio tranquilo, não aquela atmosfera tensa e formal.
Embora estivesse ali em pessoa, mentalmente estava noutro sítio.
Jamie lançou uma olhadela rápida ao ecrã antes de este se apagar. Do que conseguiu vislumbrar
naquele momento, com as costas a obstruir a visão de Aiden, não fosse dar-se o caso de este se virar,
o rapaz não tinha nada com que se preocupar. Radares de trânsito e câmaras de vigilância era o que
não faltava nas ruas principais de Brackston. Se a polícia fosse verificar, não haveria problema.
Não tardaria que tudo aquilo passasse, tinha a certeza. Biscuit abanava a cauda no cesto como se
concordasse com os pensamentos do dono. Sim, pensou Jamie. Não vai ser nada. Mas esperava que
tudo aquilo acabasse antes de aquele trabalho ter de ser entregue. Naquela fase, ter de usar outro
guitarrista seria uma chatice.
27

Era um plano mesmo inteligente, disse Becca para consigo, enquanto tentava fazer um ar
descontraído no canto das Barbies da sala de convívio do 11.º ano. Deu um trago no cappuccino que
fora buscar ao Starbucks da esquina nos primeiros cinco minutos da hora do almoço, mas não comeu
nada. Bebia o café com pouca confiança. Não o consumia com muita frequência e ele deixava-a
agitada e enjoada, mas era o que Tasha estava a beber, e Becca deu por si a pedir um também.
— Não estejas nervosa — disse Tasha, sentada à sua frente. — Elas vão aparecer.
— Sim, eu sei — respondeu Becca. — Mas odeio esta espera. — Era mais ou menos verdade.
Também não conseguia evitar estar com algum receio de que Hannah entrasse, a visse toda íntima
com Tasha e percebesse que não tinha sido convidada. Mais uma vez. Não podia continuar a usar a
peça como desculpa para trocar Hannah por Tasha, sobretudo porque Hannah também estava
envolvida nela. Daquela vez nem inventara uma desculpa, acobardara-se e não respondera à
mensagem de Hannah sobre o almoço. A última aula de Becca fora Arte, de modo que tinha
esperança de que Hannah lá fosse à sua procura. Às vezes ficava lá mais tempo para terminar
trabalhos. Santo Deus, aquilo era ridículo. Porque estava sequer preocupada? Hannah não era
namorada dela nem nada, porque se sentia culpada por não almoçar com ela umas quantas vezes?
— Lá vêm elas — murmurou Tasha tranquilamente, com a cabeça inclinada sobre a salada.
— Viva — disse Jenny, sentando-se. — Que se passa? — A sua voz era ligeira, mas Becca
reparou que os olhos, um bocado injetados, saltavam entre Becca e Tasha. — Não respondeste às
mensagens.
— Queria almoçar com a Becca, mais nada — disse Tasha. Brincava com a salada, com os
ombros ligeiramente curvados. Parecia pouco à vontade. Becca achou que ela estava a sair-se
maravilhosamente bem. Mas afinal, de elas as duas, Tasha era a atriz. Permaneceu calada e
bebericou o café amargo enquanto Hayley se sentava na última cadeira.
— Que sorte, Bex — disse ela secamente. — Uma audiência com a rainha. É a primeira vez que
almoçam juntas em quantos anos?
Jenny lançou a Hayley um olhar duro. Duro ou em pânico? Becca não conseguiu decidir. Fosse
como fosse, havia uma reprimenda implícita.
— Eu não me importo — disse Jenny. — Nunca chegámos a conhecer-nos bem. — Sorriu a
Becca. Um sorriso hesitante e de esguelha, mas que mesmo assim conseguia ser terno e bonito. Becca
pensou quantas vezes ela teria praticado aquilo. — A Hayley diz isto a brincar. Adora armar-se em
sacana.
Becca pensou nas beatas no bosque, na embalagem de Crunchie e no pedaço de corda esgaçada.
Até que ponto isto é só para se armarem? pensou enquanto tentava retribuir o sorriso.
— Ouve, se isto for um problema, vou-me embora — disse.
— Não — exclamou Natasha subitamente, quase com um ar assustado. — Não te vás embora.
— Estás bem? — perguntou Hayley franzindo as sobrancelhas. — Estás um bocado esquisita.
Natasha ergueu então o olhar para as suas Amigas Para Sempre, e avaliou-as quase desconfiada.
Nervosa. Baixou os olhos e beliscou a pele à volta das unhas.
— Acho que estou a começar a lembrar-me de algumas coisas. Sabem… De antes do acidente.
E então Becca sentiu. Uma tensão, quando Hayley e Jenny se imobilizaram nas cadeiras. Uma
rigidez que não existia na tagarelice gesticulante e enérgica da escola. Naquele momento, isso fora
suspenso. Estavam as quatro dentro de uma bolha de outra coisa qualquer. Algo que não era bem
tangível. Becca pensou que, embora não se tivessem sacado pistolas metafóricas, havia ainda assim
uma sensação de mãos a pairarem sobre armas.
— Uau! — exclamou Hayley, após um longo momento. — Isso é fantástico.
Não olhou para Becca, os seus olhos fixaram-se em Natasha. Engoliu. Becca quase não deu pelo
movimento denunciador da garganta dela, mas acontecera. Nervos? Ou apenas uma reação natural às
notícias?
— Alguma coisa que possas contar à polícia? — continuou Hayley.
— Ainda não. — Tasha empurrou a salada para o lado. — São mais clarões, imagens. Nada que
esteja preparada para partilhar. Pelo menos, até perceber o que significam. Se é que significam
alguma coisa.
Jenny começara a puxar uma madeixa de cabelo, fazendo-a girar entre os dedos. Noutra situação,
teria parecido sensual ou provocador, mas Becca achou que ela parecia simplesmente assustada. Um
coelho encandeado pelos faróis da troca de frases das amigas.
— Bem, se te apetecer falar acerca disso — disse Hayley —, é só dizeres. Podemos ir a tua casa
uma noite destas, se quiseres.
— Isso era ótimo — disse Jenny, agitada, demasiado empolgada. — A minha mãe tem um
namorado novo. Passam as noites a beber e a dar quecas. — Fez uma careta. — É nojento. Os
barulhos que fazem… Salvem-me. — É estranho não termos ido a tua casa desde que aquilo
aconteceu.
Hayley era a rainha da descontração, mas o nervosismo na sua voz era evidente. Estava a sentir-
se excluída. Olhava agora para Becca de uma maneira quase acusatória. Que saberiam elas?, pensou
Becca. Do que suspeitam? Ou seriam as suas suspeitas que a levavam a ver a culpa onde ela não
existia?
— Sim, talvez — respondeu Tasha, evasiva. — Não sei. Isto tem sido tão estranho. — Ergueu os
olhos. — Sinto que preciso do meu espaço. Não sei porquê. — Hesitou antes das palavras seguintes,
e as outras três raparigas inclinaram-se automaticamente um pouco para a frente. — Isto pode
parecer idiota — continuou ela —, mas nós discutimos naquele dia? Porque tenho a sensação de que
sim?
— Se precisas do teu espaço, que faz a Becca aqui? — perguntou Hayley.
Jenny riu-se. Um risinho nervoso, quase histérico.
— Porque havíamos de ter discutido?
— Não — disse Hayley. — Não discutimos. — Fez uma pausa. — Devias ter calma. Não forces
nada. O teu cérebro é capaz de estar a inventar merdas para tentar preencher os espaços em branco.
Sabes, aquela cena das falsas recordações.
— Pois… Talvez — disse Tasha.
— Se calhar, era melhor tentares não pensar nisso — acrescentou Hayley.
Isso querias tu, não era?, pensou Becca. Que ela nunca mais se lembrasse.
— Tenho de ir andando — disse Jenny, pondo-se de repente de pé. — Tenho de ir falar com o
professor Garrick sobre os exames de Matemática. Ando há dias com um cheque da minha mãe para
pagar o exame da melhoria de nota. Se não lho entrego, fica outra vez careca, e ela mata-me.
— Tem de ser agora? — perguntou Hayley.
Jenny não respondeu e limitou-se a sair apressadamente, atirando a cabeleira para o lado para
não ficar presa na alça da mochila. Afastou-se a abanar o rabo, aparentemente sem se dar conta, com
o corpo flexível, mas tenso. Não foram apenas os rapazes que ficaram a vê-la sair — as raparigas
também, e nos seus rostos Becca via o desejo de poderem atingir a beleza sem esforço que emanava
dela. O desejo de possuírem aquela beleza de Barbies.
— Parecem os bons velhos tempos — disse Hayley, com o olhar a saltar de Becca para Tasha. —
Com a diferença de que a Becca está com metade do tamanho que tinha antes.
— Que piadinha — respondeu Becca. — E tu tens metade da personalidade que tinhas antes.
— Era um elogio — exclamou Hayley. — Céus, não me lembro de seres tão suscetível.
O telemóvel de Becca vibrou. Era Hannah. Onde estás? Eu estou no radiador. Como sempre!
— Por falar de personalidade… — disse Hayley
Aquilo doeu. Becca não conseguiu evitar. A sugestão de incapacidade social estava implícita no
desdém de Hayley.
— Não sejas cabra — disse Tasha bruscamente, e os olhos de Hayley arregalaram-se.
— Estás a brincar? Até parece que nunca disseste pior.
— Tenho de ir — disse Becca. Tinha o coração aos pulos do jogo do gato e do rato que ela e
Tasha estavam a fazer, mas não queria ali ficar enquanto Hayley recapitulava todos os comentários
sacanas que tinham feito acerca da sua amiga e deixava de lado todos os silêncios em que tinham dito
sacanices acerca dela. E embora Becca começasse a sentir um pouco de vergonha por andar com
Hannah, ela era sua amiga. Além disso, talvez Tasha descobrisse mais qualquer coisa se ficasse
sozinha com Hayley. Era inegável que ela e Jenny escondiam alguma coisa. Mas o quê? Teriam
mesmo empurrado Tasha para a água? Por muito que começasse a acreditar naquilo — na noite
anterior, no bosque, estava absolutamente convencida disso —, parecia uma ideia surreal agora que
estavam ali todas, sentadas sob as luzes fortes e na normalidade da sala de convívio.
— Mando-te uma mensagem mais tarde — disse a Tasha, saboreando o olhar claramente irritado
no rosto de Hayley. — Não te esqueças do ensaio depois das aulas.
— Não nos esquecemos — atirou Hayley.
Becca deixou-as, mas lançou-lhes uma olhadela rápida quando chegou à porta. Nenhuma das
raparigas estava a falar. Hayley tinha uma expressão tensa. Pensativa. Becca fez a Tasha um sorriso
conspirador e teve a certeza de ter recebido em troca um rápido piscar de olhos.
Desculpa, fiquei a tratar de uma coisa, escreveu a Hannah. Despistei-me com o
tempo. Tenho de ir à casa de banho!
Vou lá ter.
Claro que ia lá ter. Becca sorriu para si mesma. Com Hannah nunca havia um OK, vemo-nos
mais tarde, agora não me apetece. Hannah estava sempre lá para ela.

Havia apenas um cubículo ocupado na casa de banho das raparigas e, no silêncio, Becca ouvira
um barulho vindo lá de dentro, qualquer coisa a ser sorvida por uma narina, seguida de duas ou três
fungadelas. Depois, a porta abriu-se. Era Jenny. Teve um pequeno movimento de recuo e a mão voou
instintivamente para limpar o rosto, mas não antes de Becca ver uns restos de pó branco.
— Que foi? — Jenny fitou Becca crispada e na defensiva. — Estás a olhar para quê?
— Ainda tens pó à volta do nariz.
Becca não se lembrou de mais nada para dizer. Estava estarrecida. Um cigarro nas traseiras da
escola era uma coisa, mas cheirar coca ou o que quer que aquilo fosse à hora do almoço era
completamente diferente.
— Estás-te a passar, Jenny? — exclamou. — Que cena é essa?
— Não chateies — disse Jenny, com os olhos subitamente cheios de lágrimas. — Que sabes tu
sobre o que quer que seja? Não compreendes.
— O que é que não compreendo?
Jenny soltou um soluço, qualquer coisa entre o choro e o riso.
— O mais engraçado é que mesmo que te dissesse, continuarias sem compreender.
O coração de Becca disparou e as pulsações martelavam-lhe os ouvidos. Seria agora? Estaria
Jenny quase a confessar? Pensou em Lady Macbeth na peça de Literatura Inglesa do 10.º ano,
enlouquecida pela culpa. Estaria Jenny a consumir drogas numa tentativa de não se passar?
— Põe-me à prova.
— Sim, está bem… Porque tu és minha amiga, é? Vejo bem como olhas para mim. Como se eu
fosse lixo. — Contornou Becca para chegar ao lavatório. — Preocupa-te é com as tuas cenas, Bex.
Não sei qual é o teu joguinho, mas dispenso a tua compaixão.
A porta abriu-se atrás delas e Hannah entrou de rompante, apertando um grande dossiê de argolas
contra o peito liso, qual turbilhão alvoraçado de normalidade.
— Ah, já cá estás — disse. — Que cena, não me apetece nada ter Geografia a seguir. Ele está a
ver se nos mata de enfado. Porque é tudo muito mais difícil nos últimos anos? Estou ansiosa que
chegue a hora do ensaio. Tive umas ideias para o cenário e queria que desses uma vista de olhos.
Interrompeu a enxurrada de frases e os olhos saltaram-lhe de Becca para Jenny e outra vez para
Becca. Com uma expressão de presa, não de caçador. — Está tudo bem?
— Tudo — disse Becca num tom firme.
Hannah olhou para Jenny.
— Estás bem, Jen? Pareces chateada.
— Estou ótima — respondeu Jenny, que recuperara alguma compostura ou então começara a
sentir os efeitos do que quer que tivesse snifado na casa de banho, parecendo mais confiante. Sorriu a
Hannah. — Obrigada.
— De nada. Desde que estejas bem…
Becca pensou porque se mostrava Hannah preocupada. Desde quando ligava às Barbies? Viviam
em mundos diferentes, e Hannah era apenas um inseto debaixo dos sapatos delas. De certeza que
sabia disso.
Jenny assentiu.
— Sim, não é nada. Encontramo-nos no ensaio.
Passou por Becca como se ela não estivesse lá e desapareceu.
— Que aconteceu? — perguntou Hannah.
— Não sei. Ela já estava assim quando eu entrei.
— Bem, podias ter sido mais simpática com ela. Pobrezinha…
— Como assim, pobrezinha?
A ideia de que Hannah, uma rapariga tipo esfregona húmida, pudesse sentir pena de uma pessoa
tão esplendorosa como Jenny estava para lá da compreensão de Becca. E Jenny ficaria para morrer
se soubesse. Becca achou que podia incluir aquilo no seu arsenal, não fosse dar-se o caso de vir a
precisar. Jenny ficaria desfeita. Jenny, que podia ter feito qualquer coisa para prejudicar Tasha, que
podia até ter tentado matá-la, a ser alvo da compaixão de Hannah Alderton.
— Sinto um bocado de pena dela, mais nada — disse Hannah. — Teve uma vida difícil. O pai
dela não era propriamente simpático, pelo que diz a minha mãe.
— Que sabe a tua mãe acerca disso?
— Ela trabalhava no consultório médico perto do bairro social de Gleberow. Costumava vê-las
lá. À Jenny e à mãe. Antes de o pai dela fugir. Ouviu histórias dos médicos.
— Que histórias? — Becca estava intrigada.
— O género de histórias que eu jurei nunca repetir.
— Nem sequer a mim? Ah, vá lá!
Hannah era tão medieval. Quem é que guardava segredo de coisas daquelas? Não eram melhores
amigas? Sentiu uma pontada de vergonha com aquele pensamento. Ultimamente, Becca não andava a
agir muito como uma melhor amiga, e Hannah podia ser muita coisa, mas não era parva. Ela sabia.
— Nem a ti. Ela nunca mas devia ter contado. — Hannah fechou-se num cubículo, pondo fim à
conversa. — Mas o suficiente para perceber que, dadas as circunstâncias, a Jenny nem se saiu mal de
todo.
— Como queiras — disse Becca, irritada.
— E se queres saber, para mim ela é a mais simpática das três. Acho-a muito amável. Por baixo
daquele verniz, é amorosa.
Becca pensou quanto tempo teria Hannah passado com Jenny. Teria sido a inveja que a levara a
inventar aquela pequena fantasia sobre a verdadeira personalidade da beldade? Que monte de
disparates. Esperava mais de Hannah.
— Que fizeste à hora do almoço? — perguntou Hannah quando se dirigiram para as aulas da
tarde.
— Nada de especial — respondeu Becca, sem despregar os olhos do linóleo riscado do corredor
da escola. — Fiquei presa a falar com a Tasha e não consegui escapar-me. Ela ofereceu-me um café
no Starbucks e estava uma fila enorme, por isso demorei mais tempo do que pensava a voltar à
escola.
Tentou não pensar na facilidade com que a mentira lhe saíra. Que fiz à hora do almoço? Oh, o
costume. Estive a tentar perceber se duas raparigas quase mataram a amiga na semana anterior.
O mesmo de sempre.
— Logo vi que devia ter sido qualquer coisa do género — disse Hannah. — Vocês estão a ficar
muito amigas outra vez. Mas continuo a achar que devias ter cuidado com ela. Às vezes, é mesmo
malvada. Andei com ela no primeiro ano. Já nessa altura atormentava as pessoas. Queres que te conte
o que aconteceu com o…?
— Agora és a minha guarda-costas? — exclamou Becca, interrompendo-a. — Talvez ela tenha
crescido. Ultimamente não tem sido má para mim. Ofereceu-me um conjunto de xadrez todo fino
como agradecimento por a ter ido visitar. Que queres que faça? Que a ignore? — Deu-se conta de
que estava a ser muito defensiva e tentou refrear-se. — Seja como for, não é bem uma… amiga. Está
apenas a ser normal. Tem alguma importância?
— Não — respondeu Hannah, de queixo erguido em desafio. — Acho que não. — Tinham
chegado à bifurcação dos seus caminhos. — Vemo-nos nos ensaios — concluiu e afastou-se sem
sequer olhar para a outra.
Por um momento, Becca sentiu-se picada — quem era Hannah para se armar assim com ela?
—, mas depois lembrou-se da quantidade de vezes que tinha desejado que Hannah fosse mais
arrojada. Tinha de escolher. Hannah era um bocado protetora, mais nada, e Becca tratara-a mal por
causa disso. E mentiste, pensou ainda. Mentiste à tua amiga por causa de uma rapariga que te deu
com os pés. Voltou-se para a chamar, mas Hannah já estava com uma rapariga que Becca não
reconhecia e iam a conversar com as cabeças juntas. Ficou a ver Hannah a rir de qualquer coisa que
a outra tinha dito. Sentiu outra ferroada. Talvez afinal Hannah tivesse outras amigas. Becca não sabia
bem o que sentir acerca disso.
Vê se paras de ser tão sacaninha, disse a si mesma enquanto se dirigia para a aula de
Tecnologias de Teatro. Se não tens cuidado, ainda ficas como as Barbies. As Barbies. Fossem lá
elas o que fossem.
28

14h10
Hayley
Porque te piraste daquela maneira
e me deixaste ali sozinha?

14h11
Jenny
Senti-me enjoada. A Tasha está
a lembrar-se!!!
Encontrei a Becca no WC. É uma
cabra. Aposto que ela sabe! :-(

14h12
Hayley
Não me parece. Teria dito qualquer
coisa. E não sei do que a Tasha se
lembra. Se é que se lembra de alguma
coisa. Não disse grande coisa quando
estivemos sozinhas. Só olhou para mim
de uma maneira estranha.

14h12
Jenny
Ela disse que tínhamos discutido!
Lembra-se disso! Quero vomitar.
Não consigo respirar.

14h13
Hayley
Não me parece que ela se lembre.
Teria dito.

14h13
Jenny
Como é q sabes? Achas sempre q
sabes tudo.

14h13
Hayley
Não acho nada! Só estou a tentar
manter a calma.

14h14
Jenny
Apetece-me fugir e nunca mais voltar.

14h15
Hayley
Não tens dinheiro.
Achas que ele te dava dinheiro???
Não ias querer ir.

14h15
Jenny
Não consigo pensar direito.

14h16
Hayley
Porque não fazes nada direito (;-))
E se eu fosse mais simpática para a
Becca? Já fomos amigas. Para ver se
ela sabe o que a Tasha sabe?
Não percebo porque andam tão
amigas outra vez.

14h16
Jenny
Não tarda, ela vai lembrar-se de tudo
:-((

14h16
Hayley
Mas ainda não se lembra.
Temos tempo para pensar em
qualquer coisa.

14h16
Jenny
Só me apetece apanhar uma moca
e esquecer isto tudo.

14h17
Hayley
:-((

14h17
Jenny
Desculpa estar tão enervada.
Estou com medo.

14h17
Hayley
Eu sei. Bjs Melhores Amigas para
sempre! ;-)

14h18
Jenny
Melhores amigas para sempre ;-)
Agora apaga (Desta vez disse eu!)
29

Retirado dos ficheiros da INSPETORA CAITLIN BENNETT: EXCERTO DO CADERNO DE


NATASHA HOWLAND

Afinal, quase não fizemos leituras no ensaio. O professor Jones disse que é uma peça em que o
importante são as personagens. Aquelas pessoas existiram mesmo. O John Proctor morreu porque não
conseguiu abdicar da sua reputação. Não conseguiu confessar uma coisa que não tinha feito para se
salvar, por causa da importância que dava ao seu bom nome.
Acho que o John Proctor devia ter pensado nisso antes de enfiar a pila numa criada adolescente.
O professor Jones caminhava para a frente e para trás enquanto falava, e as outras raparigas
estavam todas deleitadas, de boca aberta — inconscientemente preparadas para a pila dele ou coisa
do género (santo Deus, estou mais ordinária desde que morri) —, a olhar para ele como se fosse
alguma estrela de Hollywood. Até os rapazes estavam cativados. O professor Jones tem o que eles
cobiçam. Aquela confiança toda. Aquele à-vontade. A peça tem uma grande carga sexual que se
sentia na sala toda. Às vezes acho que as escolas são os locais de maior tensão sexual. Até eu a sinto
às vezes. Como ali, na sala de teatro.
O professor deu-nos exercícios de grupo para fazermos, e claro que eu fiquei a dirigir as
raparigas a dançar. Aquelas raparigas que a Abigail Williams leva para o bosque para lançar um
feitiço contra a desgraçada da Elizabeth Proctor. Quando começámos a ponderar a melhor maneira de
improvisar o que elas faziam, pasmei com a ironia da situação e apeteceu-me dizer à Jenny, Olha,
repara no significado implícito!, quando ela se aproximou, tão nervosa e tímida como a personagem
de Mary Warren, com as mãos a abrir e a fechar ao lado do corpo e os olhos baixos, embora não
estivéssemos ainda a representar. Mas duvido que a Jenny saiba o que «implícito» quer dizer. Pensei
naquela clareira no bosque, a nossa clareira. Nas pontas de cigarros. No papel do Crunchie.
Enquanto falava com a Maisie e a Ella (a Ruth Puttnam e a Mercy Lewis — todas entusiasmadas a
falarem comigo e com a Jenny, como se por terem aqueles papéis fossem elas próprias quase
Barbies), aposto que a Jenny estava a pensar no mesmo. Tinha os olhos raiados de vermelho.
Lágrimas? Falta de sono? Drogas? Conhecendo a Jenny como conheço — e eu conheço-a bem —
devem ter sido drogas, mas talvez fosse as três coisas. Talvez eu sonhe com a escuridão e ela sonhe
com os bosques.
Olhei à volta à procura da Hayley — contei treze painéis de madeira estreitos na parede
enquanto os meus olhos deslizaram —, e ela estava do outro lado da sala, a trabalhar com o James
Ensor. Tinham de improvisar a cena que não estava escrita de quando Elizabeth descobre o
envolvimento de Proctor com Abigail — moi. Hayley ergueu os olhos como se me tivesse sentido a
olhar para ela, mas desconfio que já me tinha olhado de relance várias vezes, e fez um sorriso
hesitante. Só para a aborrecer, não lhe devolvi o sorriso. Empalideceu. Mesmo de longe como
estava, consegui ver.
Elas são as minhas Barbies. Eu é que mando. Ainda.
A Becca estava numa mesa mais afastada, a fazer esboços numa grande folha de papel. A Hannah
não estava com ela. Estava algures no fundo da sala a inspecionar o armário do guarda-roupa e a
fazer um inventário dos elementos dos cenários. Pelo menos, ouvi-a dizer à Becca que era isso que ia
fazer. Pensei se teriam discutido. A Hannah estava a tentar ser dura, mas eu sei reconhecer uma
pessoa magoada quando a vejo.
Os olhos da Becca voavam para cima, sem dúvida para as cortinas e para as cordas, a pensar o
que poderia fazer com aquilo. Por acaso, ela é bastante criativa, de uma maneira muito logística, e a
nossa sala de teatro tem recursos para isso. Isto é uma escola de Artes Performativas, por isso os
departamentos de Música e de Teatro foram objeto de grandes investimentos financeiros. No verão,
quando a escola está fechada, as instalações são utilizadas por grupos de teatro amador (não é
trágico? Uns desgraçados, agarrados a sonhos há muito perdidos).
Quando chegou o intervalo, enquanto os outros se reuniam, fui ter com ela. Disse-lhe que os
esboços estavam a ficar bem, embora não soubesse ao certo para o que estava a olhar. A Becca
estava a desenhar a carvão e foi um bocado como ver um designer a fazer o esboço de um vestido e
tentar imaginar como ia ficar na realidade.
— Estou a pensar fazer isto circular — disse ela —, com o público a toda a volta. Assim, as
personagens principais poderiam estar sempre no palco, a observar dos lados quando não estão em
cena.
— Isso é muito giro — disse eu, com sinceridade. Era inteligente. Dá ideia de uma comunidade
cujos membros estão sempre a vigiar-se.
Ela sorriu.
— Claro que o professor Jones ainda tem de aprovar.
— O que é isso?
Erguemos as duas o olhar e vimos a Hayley, a falar num tom de curiosidade, e não maldoso.
— Isso aí — disse, aproximando-se um bocadinho e apontando para um esboço num dos cantos
do palco.
A Becca explicou pacientemente que era o equipamento de luz. Lançou-me um olhar, um sinal da
nossa aliança secreta.
— Vou ter de mudar as cordas do palco quadrado. Não deve ser problema, a Casey consegue
fazer isso, ela é ótima com as alturas. E podemos deixar a primeira linha de luzes como está — a
diretora pode querer fazer aqui qualquer coisa antes do espetáculo.
A Becca estava lançada, completamente à vontade com o tema, mas percebi que a Hayley estava
perdida. Não percebe nada de planeamento logístico. Para ela, eram apenas uns rabiscos no papel.
— Ia agora mesmo fumar um cigarro — disse ela. — Queres vir? — Não olhou para mim, mas
apareceram-lhe manchas cor-de-rosa-vivo nas faces.
— Pode ser — disse a Becca, após um instante.
Ela era boa. Nem sequer lançou um olhar para trás quando se afastaram. Olhei para a Jenny. Ela
tinha trocado um olhar rápido com a Hayley.
Tudo se lia nas entrelinhas, ali no meio do burburinho da sala de teatro. Os segredos zumbiam
dentro de nós.
Que teia andarão a tecer?, pensei quando olhei para uma e para outra das minhas perfeitas
Amigas Para Sempre. A Jenny nervosa, o coelhinho encandeado pelos faróis, olhou na minha
direção. Baixei a cabeça para voltar a examinar os desenhos da Becca.
— São bons, não são?
A voz da Hannah era como uma torneira a pingar, molhada e irritante. Não respondi, limitei-me a
olhar para ela com desprezo, soltei um suspiro rematado por uma gargalhada e afastei-me. A Hannah
foi buscar a mochila e foi-se embora a seguir. Vi-a mandar uma mensagem a alguém. Devia estar a
dizer à Becca que se ia embora. Estava furiosa comigo, mas lá no fundo, continuava a ser o cãozinho
da Becca. Sempre foi assim. Desde a creche. Lembro-me de ela fazer três vezes chichi nas cuecas.
Fora esse género de rapariga.

Os ensaios terminaram por fim, e a nossa improvisação foi aplaudida. Havia excitação no ar,
como se todos soubéssemos que aquela peça podia ser uma coisa especial se fizéssemos as coisas
bem. O professor Jones disse que tínhamos de trabalhar como equipa, mas o que ele queria dizer
realmente era que somos como uma pirâmide de chefes de claque. Os que estão em baixo têm de
suportar o peso dos que estão em cima.
Depois de toda a gente ter ido beber uns conselhos ao poço do professor Jones e de ele ter
abandonado a sala, o grupo fraturou-se. Jenny balbuciou qualquer coisa sobre cacifos e desapareceu
em direção ao bloco principal, e eu, a Hayley e a Becca fomos dar uma volta lá fora, um passeio
descontraído que contrastava com a nossa tensão interior.
A Becca ia no meio, um espinho negro entre duas rosas brancas, quando saímos para a noite fria.
Já passava das cinco e meia, mas a escola ainda estava agitada. A nossa atividade não era a única
depois das aulas, e rapazes com calções de futebol sujos subiam para a parte traseira de jipes que os
esperavam ou afastavam-se a pé, a rir e a brincar uns com os outros, em direção às lojas onde iriam,
sem dúvida, engolir pacotes de batatas fritas gordurosas.
Senti o estômago a roncar. Devia ser maravilhoso ser rapaz, poder comer daquela maneira.
Comer assim e ter orgulho nisso, em vez de sentir que era um crime.
Alguém chamou:
— Natasha! Hayley!
Uma mão acenou, e eu franzi o sobrolho. Não conseguia distinguir a pessoa, apenas os seus
contornos contra o brilho dos faróis. Uma forma na escuridão. Pensei se iria murmurar o meu nome a
seguir. Não contei a fila de carros. Sabia que seriam treze.
— É o teu pai? — perguntou a Becca. Era. Claro que era. Senti uma enorme vaga de alívio e, a
seguir, um embaraço pelo meu pânico momentâneo. Não tinha nenhuma razão para sentir pânico. (Se
a doutora Harvey alguma vez ler isto, vai pensar que sou doida e interna-me. O melhor será queimar
o caderno primeiro.)
Então a Hayley perguntou, com uma voz alegre:
— Que faz ele aqui?
Acho que ela tem um fraquinho pelo meu pai, por muito nojento que isso possa parecer.
Por fim chegámos ao pé dele, a Hayley primeiro, depois eu, e por último a Becca, a pendura
incómoda. Ele deve ter saído do trabalho mais cedo e lembrou-se de nos dar boleia. Demos as três
os últimos passos até à estrada e encontrámo-lo a sorrir. Contente com a surpresa.
— Eu podia ir a pé, pai — disse eu num tom aborrecido. Mas o sorriso dele não vacilou. Estava
determinado a sentir-se bem com a situação.
— Bem, já cá estou. E está frio. Hayley, podes lá jantar, se quiseres. Há sempre comida
suficiente para alimentar um exército.
Depois viu a Becca, a ideia tardia, que esboçou um aceno de mão e continuou a escrever uma
mensagem. Para a Hannah, sem dúvida. Para fazer as pazes com ela, depois de a surpresa do meu pai
ao vê-la lhe ter recordado que não era uma Barbie. Seja lá o que for, não é uma de nós.
— Na verdade, estou um bocado cansada. — E tenho trabalhos para fazer. — Dirigi um sorriso
frio à Hayley, e ela respondeu imediatamente que estava tudo bem, embora eu soubesse que se sentia
desapontada.
— Queres boleia? Posso deixar a Tasha e levar-te a seguir, são só mais uns minutos.
De repente ocorreu-me que talvez o meu pai também tivesse um fraquinho pela Hayley e senti a
hesitação dela. Estava frio e andar de autocarro durante a hora de ponta é uma treta. Não lhe dei
nenhuma indicação do que decidir e o meu rosto manteve-se impassível.
— Não, não é preciso, obrigada — acabou ela por dizer, e desculpou-se a dizer que tinha de ir
ter com a Jenny.
Assim que o disse, perguntei à Becca se queria boleia — estava a enterrar a faca e a girar a
lâmina um bocadinho.
— Não — respondeu ela. — Não é preciso, a sério.
Não insisti. Na verdade, apetecia-me um pouco de silêncio no carro, e as conversas entre mim e a
Bex não são propriamente para ter à frente do meu pai. Ele ia pensar que éramos doidas. Que sabe
ele sobre o que quer que seja, aliás? Acham que nos compreendem, mas não. Para eles, ainda somos
crianças.
Desejei que a Becca não fosse ter com o Aiden ao fim da tarde. Talvez ele estivesse demasiado
preocupado com a possibilidade de ser preso para querer estar com ela. Talvez até já tivesse sido
preso. Não. Isso não é possível. Eu saberia, ter-me-iam dito. Sou a rapariga de ouro que morreu
durante treze minutos. Mas irrita-me que a Becca o ponha sempre em primeiro lugar. O Aiden? Por
favor! Não percebo mesmo. Isto é importante. Isto é uma questão de vida ou morte. Trata-se de mim.

As minhas melhores amigas estão a contorcer-se como minhocas espetadas em anzóis. Foi o que
pensei quando acabei de falar com a Becca. Deitei-me na cama e digitei o telemóvel enquanto
pensava naquilo tudo, com os olhos a vaguear, ausentes, sobre o tabuleiro de xadrez. A Becca é boa a
contar coisas. Reproduz praticamente todas as palavras — sabe o que fixar. Nada de frases vagas
como Bem, elas disseram mais ou menos isto. Ou Foi qualquer coisa do género. Os pormenores são
importantes e ela está ciente disso.
Diz que quando foram fumar um cigarro, a Hayley se mostrou curiosa. Não é nenhuma surpresa.
Queria saber do que eu me lembrava. A Becca disse que não fazia ideia. A Hayley esforçou-se por
ser simpática com ela. Agitada. Nervosa. Pediu desculpa por ter sido uma cabra e recordou os bons
velhos tempos. Disse que devíamos sair juntas mais vezes. A Becca alinhou na cena — apenas o
suficiente, sem exagerar. Simpática, mas ligeiramente desconfiada. Perguntou à Hayley se tínhamos
mesmo discutido, e ela negou novamente, mas a Becca disse que parecia tensa. Não a olhava nos
olhos. Então a Becca mudou de assunto. Não quis abusar.
É interessante que o primeiro movimento delas seja no sentido de tentar fazer amizade com a
Becca, talvez a pensar que ela ficará tão grata que lhes contará seja o que for de que eu me tenha
«lembrado» (como se isso fosse acontecer). É tão transparente. Será que não percebem? Talvez não
tenham alternativa. Talvez estejam já desesperadas, a ver as linhas de batalha que estou a traçar.
Sinto um aperto no estômago quando penso nisso. Está tudo muito confuso.
Consultei o Facebook no telefone. Nenhuma delas estava online e não tinham atualizado as
páginas. Estranho, especialmente para a Hayley. Gostamos de colecionar os nossos likes. De
comparar números. Sei que ela delira quando tem mais do que eu. Como se pudesse rivalizar comigo.
Estou sempre a verificar as minhas notificações. A atualização que fiz quando cheguei a casa
sobre adorar a peça e as pessoas que participavam já tinha mais de quarenta likes e vinte
comentários, e as raparigas que eu tinha identificado tinham já partilhado a publicação, todas
excitadas por eu as ter mencionado. Não li os comentários. Desde o meu acidente, tornou-se
obrigatório no Facebook pôr like em tudo o que digo. Para ser franca, é quase igual ao que era antes.
Enviei à Bex um pedido de amizade. Já o devia ter feito, mas algumas coisas não se podem apressar.
Este é o momento certo. Agora partilhamos segredos. Devíamos, pelo menos, ser amigas no
Facebook.
Também fui ver a página do Aiden, só por curiosidade. Não é pública, por isso não consegui ver
grande coisa a não ser a fotografia do perfil, que é ele a tocar guitarra em palco em qualquer clube
sórdido algures, com o cabelo suado a cair sobre o rosto (meu Deus, claro que é o cliché da pose
dos pretendentes a estrelas de rock, e, meu Deus, sou tão cabra), e a foto de capa, que é uma banda
qualquer de que nunca ouvi falar, nem quero ouvir, mas diz que está numa relação com Rebecca
«Bex» Crisp e que é músico a tempo inteiro. Lembrei-me da cara que fez quando me ri dele, e os
meus dedos voaram sobre o pequeno teclado. Carreguei em «Adicionar Amigo» e, a seguir, em
«Mensagens».

Viva, era só para dizer olá e que não acho que


tenhas nada que ver com o que me aconteceu.
Era só para saberes. Tasha. Bjs.

Senti borboletas no estômago quando enviei a mensagem e ainda estou preocupada a pensar que
se calhar não a devia ter mandado, sobretudo neste momento em que a polícia anda de olho nele, mas
agora está feito. Procurei novamente a Hayley e a Jenny online, mas continuavam silenciosas.
Quando voltei a olhar para o tabuleiro de xadrez, visualizei de repente a minha jogada seguinte. A
Becca comeu-me um cavalo e dois peões, mas fomos as duas agressivas a jogar e ela também sofreu
algumas perdas. De repente, percebi como podia deixar a rainha dela vulnerável e comer um dos
seus bispos. Enviei a jogada por mensagem.
E enviei uma mensagem à Jenny para lhe dar um safanão e as fazer suar durante o fim de semana.

Que fizeste, Jen?


Sei que tu e a Hayley fizeram qualquer coisa.

O telefone zumbiu imediatamente, mas era a Becca.


Boa jogada! Sacana!

E era, pensei, ao ver que a Jenny não respondia. Era uma boa jogada. Estariam agora ao telefone
uma com a outra, em pânico? Que estariam a dizer? Imaginei-as novamente a contorcerem-se
espetadas em anzóis e lentamente, na minha cabeça, transformaram-se em larvas, cegas, idiotas e
desesperadas por se libertarem.
Estava ainda a pensar em larvas quando fui para a cama. Não queria, mas ainda estava. Imaginei-
as a sair do cadáver azul e distorcido de Nicola Munroe. Imaginei a pele solta dela a escorregar e a
cair enquanto a retiravam do rio, e talvez larvas ou coisa do género a fugir contorcendo-se a caminho
da água gelada. Fiquei com comichão no corpo todo. Respirei fundo várias vezes e tentei pensar
noutras coisas. Na peça. No terreno acidentado das minhas amizades. Na clareira. Apeteceu-me
calçar as sapatilhas e sair para ir dar uma corrida e não pensar em nada daquilo, mas depois teria de
explicar as corridas secretas e as roupas lamacentas e suadas, e nem a minha mãe nem o meu pai iam
perceber a necessidade que tenho de privacidade, por favor.
Apaguei a luz quando devia, depois de gritar lá para baixo as boas-noites obrigatórias e de me
trancar no quarto para a mãe não invadir o meu espaço se fosse ver como eu estava. Antes, eles
percebiam a minha necessidade de espaço, mas desde o acidente que ela não me larga. Toca-me no
cabelo, como fazia quando eu era pequena, e quando baixa a guarda, ou talvez seja quando bebe
vinho demais, vejo aquele medo todo nos seus olhos. O medo do que podia ter acontecido, do que
quase aconteceu. Sinto pena dela, mas não a posso ajudar. Sobrevivi. Eu é que estive morta durante
treze minutos. Se consigo ultrapassar isto, ela também consegue.
A doutora Harvey sugeriu que tomar Nytol talvez me ajudasse a dormir, depois de ter recusado
comprimidos para dormir normais. Não queria tomar nada muito forte. Nada que me afogasse no
sono. Tenho de manter o controlo. Não sei se funcionam ou não, mas tomei-os na mesma. Acho que
talvez funcionem um bocadinho. Notei que a minha respiração abrandou, mesmo quando lutava contra
a escuridão invasora, eu e a cabeça cheias de larvas agarradas ao tronco à deriva da consciência.
Mas por fim, a escuridão infinita dominou-me. Talvez uma parte de mim queira mergulhar no
vazio. Por muito aterrada que esteja, também sinto um fascínio por ele. Era frio. Vasto. Ouvi
novamente os sussurros.
Desta vez prestei atenção.
Quando acordei, não me lembrava do que tinha ouvido, mas, enquanto escrevo isto, sei que senti
medo. Ainda sinto medo.
30

10h14
Jenny
Foi a mensagem que ela acabou de me
enviar. Ela sabe. O estupor de merda
lembra-se! Odeio-a. Odeio-a mesmo.

10h16
Hayley
Ela diz mesmo que se lembra?
Como deve ser?

10h17
Jenny
É a Tasha, como queres que saiba?
Deve lembrar-se de alguma coisa!
Que desatino de merda.

10h17
Hayley
Está a pôr-nos à prova. Acho que ela
não se lembra. Como deve ser.

10h18
Jenny
Para de dizer isso! Como é q sabes?
Estou farta disto. Não aguento estar
sempre a fingir que não se passou
nada. Ela vai lembrar-se não tarda.
E depois, que fazemos??

10h19
Hayley
Eu penso em qualquer coisa.

10h19
Jenny
Tens de ser mais rápida a pensar.

10h20
Haley
E não me mandes apagar. Também
estou farta dessa merda :-(

10h21
Jenny
Mas apagas?

10h22
Haley
Sim.

10h22
Jenny
Quem me dera que ela estivesse
morta. Ela devia estar morta.

10h23
Hayley
Pois devia. :-( Hei de pensar em
qualquer coisa.
31

Excerto do Maypoole Gazette, sábado, 23 de janeiro

A polícia ainda não divulgou a causa de morte oficial da adolescente Nicola Munroe, cujo corpo
foi encontrado no rio entre Maypoole e Brackston no último domingo. O assessor de imprensa deles
confirmou que estão a seguir pistas novas, mas recusou-se a fazer comentários sobre quaisquer
ligações entre a morte de Nicola e o afogamento quase fatal da adolescente Natasha Howland.

O pub Nag and Pineapple, onde Nicola trabalhava antes de morrer, vai fazer uma recolha de
fundos no próximo sábado a partir das 14h00 para ajudar a família Munroe a pagar as despesas do
funeral.

Excerto do Brackston Sunday Herald, domingo, 24 de janeiro

Fontes internas do Departamento Central da Polícia de Kilmourn confirmaram que os detetives


estão a investigar uma pessoa relativamente à morte de Nicola Munroe, de 19 anos, cujo corpo foi
recuperado a semana passada do rio Ribble, e ao ataque a Natasha Howland, de dezasseis anos, que
deixou a estudante da Brackston Community School tecnicamente morta durante treze minutos.

Os agentes terão interrogado um homem de 19 anos de Brackston que conhecia as duas vítimas,
mas até agora não foram feitas detenções. O homem, um músico, é um antigo aluno da Brackston
Community School e mantém atualmente uma relação com uma aluna do 11.º ano da mesma escola.
32

Estavam a começar cedo. Era meio-dia, por isso, pelo menos para Jamie, era cedo. Aiden estava
a fumar um cigarro na porta das traseiras — Jamie tinha quase a certeza de que ele já tinha fumado,
pelo menos, um charro — e uma cafeteira de café estava a fazer quando a placidez da zona rural foi
interrompida pelo som de pneus a rolarem sobre a gravilha. Mal tiveram tempo de trocar um olhar,
Jamie surpreendido, Aiden assustado, quando a campainha tocou.
— Eu abro.
Jamie viu primeiro o distintivo porque ela lho segurou à frente dos olhos. Oficial. Oficioso. Não
conseguiu evitar sorrir. Ela não era nada quem ele esperava e a primeira vez que a vira até a achara
bastante bonita por baixo daquela carapaça exterior hostil. Ou talvez devido a ela.
— Escusa de me mostrar isso, inspetora Bennett. O tempo que passámos juntos no hospital não
significou nada para si?
Ele não era atiradiço por natureza e ao dizer aquilo percebeu que aquele não era o momento certo
para o fazer. As palavras soaram, no mínimo, brejeiras, e ele retraiu-se.
— O Aiden Kennedy está? — perguntou a inspetora, como se ele nem tivesse falado.
— Está. — O sorriso de Jamie desfez-se quando a surpresa inicial por a ver se desvaneceu. De
súbito, o contexto tornou-se importante. — Não me diga que ainda precisa dele.
— Posso entrar? — perguntou ela, sem lhe dar resposta.
Ele anuiu.
A inspetora passou por ele e entrou, com movimentos que conseguiu fazer sem lhe tocar, mas que
ainda assim lhe deram a sensação de ter sido atirado para o lado; atrás dela entrou um polícia
fardado que assentiu com a cabeça como que a pedir desculpa. Dirigiram-se à cozinha. Caitlin
Bennett não se apressou. Os seus passos eram decididos, não precipitados. Aiden não se movera.
— Queremos que nos acompanhe até à esquadra, senhor Kennedy — disse a inspetora. — Temos
mais umas perguntas para lhe fazer.
— Não podem fazê-las aqui? — perguntou Jamie. Sob o vão da porta da cozinha, o corpo alto e
desengonçado de Aiden dava ideia que alguém lhe tinha retirado uma secção da coluna. Arqueou um
bocadinho as costas para a frente, com os ombros curvados como se quisesse enrolar-se numa bola.
Talvez quisesse.
— Precisamos que nos acompanhe à esquadra — disse ela, ignorando Jamie. — Surgiram novas
provas de que lhe queremos falar.
Provas. Jamie fitou Aiden. A pesquisa das câmaras de vigilância no Google. As sombras escuras
por baixo dos olhos dele. O seu nervosismo. Andar a ignorar as chamadas de Becca, depois da
precipitação inicial para a tranquilizar. Ah, Aiden, pensou. Que fizeste?
— Vão prender-me? — perguntou Aiden, apagando o cigarro. A voz dele era vazia. Resignada.
— Não. Mas isto seria mais fácil na esquadra.
Ele anuiu.
Já estava à espera daquilo, percebeu Jamie. Talvez não tão cedo, mas a qualquer momento.
Independentemente do que tivessem descoberto, tinha a certeza de que Aiden não era nenhum
assassino.
— Queres que vá contigo? — perguntou Jamie. — Posso ir atrás no carro.
Aiden assentiu de novo.
— Se o senhor Kennedy o desejar, disponibilizaremos um advogado oficioso durante o
interrogatório.
— Eu sou advogado — recordou Jamie com algum prazer. Ou era. Hoje, posso voltar a ser.
— Nesse caso, a decisão é do senhor Kennedy — disse Caitlin, secamente. Que via Caitlin
Bennett quando olhava para Aiden?, pensou Jamie. Devia ver um adolescente sorumbático e com um
ar culpado. Um miúdo solitário e pedrado que ouvia heavy metal e rock da pesada. O género de
miúdo que tem problemas emocionais profundamente recalcados, capazes de explodirem com uma
violência inesperada. Do exterior, talvez fosse o que a maioria das pessoas via. Mas Jamie sabia que
Aiden não era assim. Era um miúdo amoroso. Tímido. Sensível. Um músico talentoso. Não solitário,
apenas seletivo e privado na sua vida.
— Quero que o Jamie venha — disse Aiden tranquilamente.
— Tudo bem. — Jamie apertou-lhe o braço. — Vou contigo.
Fitou a inspetora Bennett nos olhos e, desta vez, não lhe sorriu. Naquele momento, ela podia não
ser o inimigo, mas estava decididamente enganada acerca de Aiden.
— Vamos — disse Jamie. — Vamos esclarecer isto de uma vez por todas.
33

Becca tinha planeado esconder-se na sala de teatro sozinha durante a hora do almoço, a trabalhar.
Não lhe apetecia companhia e nem sequer queria saber das psicóticas das Barbies. Há dois dias que
quase não comia e tivera uma pega enorme com a mãe no domingo à noite, por ela não aceitar que
Becca só queria que a deixassem em paz. Tiveste alguma discussão com o Aiden? Tinha batido com
a porta ao ouvir aquela pergunta. Ou é por causa da Natasha? A preocupação adicional daquela
última pergunta fez Becca passar-se. As palavras vai-te foder saíram-lhe quando sentiu o rosto a
arder e, a seguir, tivera de ouvir a gritaria no andar de baixo, quando o pai e a mãe se puseram a
discutir sobre a maneira de lidar com aquilo. O pai gritara particularmente alto que só queria um
pouco de paz.
Ela desce quando tiver fome.
Sabes bem que a questão não é essa, Jim!
Enfiara os auscultadores nos ouvidos para não ouvir as vozes deles enquanto tentava ligar
novamente a Aiden. Ele não atendeu. Mais uma vez. Acabou por enviar uma mensagem de volta,
quando ela estava quase a vomitar de preocupação, dizendo que estivera doente durante o fim de
semana e que passara o dia a dormir. Ligava-lhe no dia seguinte. Ela quase respondeu que bem podia
ter avisado no sábado, porque ela teria saído com a Hannah ou feito qualquer coisa, mas apercebeu-
se do ar trágico que isso lhe dava. Como parecia trágica, sentada no quarto à espera que ele ligasse.
Pelo menos, Tasha não estava ali para a ver atormentada e ferida. Tasha tê-la-ia feito falar acerca
daquilo ao mesmo tempo que pensava que ela era uma choramigas. Felizmente, Tasha tinha ido para
fora com a família, para o aniversário da avó. Mesmo não pensando em Aiden, aquilo também era um
alívio. Tinham trocado algumas mensagens, mas não tanto sobre as Barbies, mais piadas sobre os
familiares, a próxima jogada de xadrez de Becca, coisas pouco importantes. Ela ficou contente por
não terem tocado no assunto. Dava-lhe algum espaço mental para respirar. Não conseguia pensar ao
mesmo tempo nas cenas com Hayley e Jenny e em Aiden andar a ignorá-la.
Segunda-feira tinha sido um dia difícil. Na escola, sentiu-se puxada em todas as direções. Hayley
e Tasha enviaram-lhe as duas mensagens durante os intervalos, e sempre que o telefone vibrava,
ficava com o coração aos saltos com a ideia de ser Aiden. Com Tasha não lhe custava tanto, mas era
difícil manter a aparência com Hayley, sobretudo quando ela estava a ser mais como a velha Hayley.
Tinha de ter cuidado para não se deixar agarrar. Hayley e Jenny eram sacanas de primeira categoria,
e Becca tinha de manter isso em mente.
Almoçara com Hannah, a única pessoa com quem podia desabafar acerca de Aiden. O almoço
correra bem, mas as outras não paravam de lhe enviar mensagens, e Hannah adotara uma
desagradável postura passivo-agressiva e comentara: Hoje estás muito popular. Voltaste a dar-te
com o grupo de antigamente? Sempre com aquela expressão carente no rosto de Não me faças mal.
Mas que podia Becca fazer? Não responder? Quase contou a Hannah o que se passava só para a
calar, mas não podia trair a confiança de Tasha. Com Hannah, não. E por enquanto, era o segredo
delas. Só delas. Pelo menos, até conseguirem provar alguma coisa.
Aiden acabara por lhe ligar, logo a seguir ao fim das aulas, e dissera que ainda estava doente.
Realmente, não estava com boa voz, parecia exausto e abatido, mas ela continuava a sentir-se
magoada por ele querer estar sozinho. Quando ele tivera gripe, tinham ficado os dois enrolados na
cama dele e tinham passado o dia a ver filmes, enquanto ele gastava três rolos de papel higiénico a
assoar o nariz. As pontadas de insegurança e de falta de confiança emergiram do poço oculto onde
habitavam dentro dela e sentiu-se de novo nauseada.
Ainda se sentia assim naquele momento, terça-feira à hora do almoço, e estava a fazer um esforço
desesperado para se concentrar nos preparativos para o ensaio da tarde em vez de pensar no desatino
do namorado e de ouvir a voz igualmente desatinada da sua cabeça a dizer-lhe que ele já não a
amava. Estava zangado por ela ter ficado furiosa com ele. Como podia ainda amá-la se ela o
acusara de homicídio? Nem pensar. Estás com azar, Rebecca Crisp anafadinha.
Tentou afastar esses pensamentos e rangeu os dentes. Ele estava apenas doente. Mais nada.
Esforçou-se por não pensar que o telefone dele estava naquele momento desligado e ter estado assim
desde as 11h30. Ele nunca tinha o telefone desligado. Anda a evitar-te.
O professor Jones gostara muito das ideias dela para iluminação e encenação, mas antes de se
comprometer e de fazer o planeamento da direção cénica em torno delas, queria tentar uma cena.
Tivera esperança de o fazer sozinha ou com Casey, mas esta estava numa aula de recuperação, e
Hannah insistira em ir ajudá-la em vez dela. Ainda só tinham posto fita adesiva numa das margens do
que seria a área de representação, quando as Barbies apareceram todas, Tasha à frente, seguida de
Jenny e de Hayley.
Hannah fingiu não se importar, mas Becca reparou que os seus movimentos se tornaram
subitamente mais desajeitados. Elas perturbavam Hannah. Faziam-na lembrar-se da posição que
ocupava na colmeia. Raparigas como elas eram — Becca tinha a certeza — a razão pela qual Hannah
nunca abrira uma conta no Instagram ou no Twitter. Estava no Facebook, mas a mãe fazia parte da
lista de amigos, que eram apenas trinta e tal, se tanto.
— Isto vai ser o máximo — disse Tasha, de pé perto de Becca, a olhar para os esboços do
projeto e depois para as linhas que estavam a marcar, trazendo à vida, aos poucos e poucos, aquilo
que viria a ser o palco. — És tão esperta, Bex.
Becca viu Hayley a tentar fazer um esforço desajeitado por se integrar, como se também fizesse
parte daquele momento. Mas não fazia. Era uma intrusa. Uma ameaça. Agora podes ver qual é a
sensação, cabra, pensou Becca. Agora és tu quem está de fora. Becca estava determinada a
descobrir o que Hayley fizera a Tasha. Se tinham razão e fora alguma discussão entre elas que
causara o acidente de Tasha, então também era por culpa de Hayley que Becca e Aiden se tinham
afastado.
— Vieram-te mais algumas recordações durante o fim de semana, Tash? — perguntou Becca com
doçura. — Talvez voltem todas, agora que começas a ter alguns lampejos.
— Espero que sim — respondeu Tasha. — Estou a pensar fazer hipnose, para tentar puxar tudo cá
para fora.
— Fixe — murmurou Hayley, quase sem olhar para Tasha. — Mas olha que ouvi dizer que essa
cena pode dar-te cabo da cabeça. Talvez seja melhor esperares.
— Achas? — perguntou Tasha. — Talvez tenhas razão. Ou talvez tu não queiras que eu me lembre
do motivo da nossa discussão. É isso?
— Já te disse — retorquiu Hayley bruscamente. — Não tivemos nenhuma discussão. — Os olhos
dela saltaram de Tasha para Becca, à procura de alguma solidariedade. Becca limitou-se a fitá-la,
com um olhar que ela esperava que dissesse: Quem pensas que estás a enganar, estupor?
— Fosga-se, estás a ficar paranoica, Tasha — rematou Hayley. — Tentou sorrir novamente. Foi
estranho ver a gélida Hayley tão perturbada. Não sabia mentir, isso era evidente. Qualquer coisa
acontecera sem dúvida durante o período de que Tasha não se recordava. E a avaliar pela cara de
Hayley, não devia ser nada de bom. Mas era um indício útil. Mesmo não sendo um olhar uma coisa
que pudessem apresentar à polícia, era qualquer coisa. — Mas, se calhar, devias mesmo fazer essa
cena da hipnose. Para isto poder voltar tudo à normalidade — concluiu, tentando falar num tom
despreocupado, mas falhando redondamente.
— Tem calma — disse Becca. — O mais provável é não ser nada. — Aquele era o papel dela,
aquele que ela e Tasha tinham decidido que desempenharia. Apoiando parcialmente Tasha, mas sem
pôr Hayley completamente de lado. Para sugerir que talvez fosse uma pessoa em quem Hayley podia
confiar se começasse a ir-se abaixo.
— Viva, Hannah — disse Jenny do sítio onde se encontrava, perto das cadeiras empilhadas. —
Queres rever as minhas deixas comigo?
— Pode ser — respondeu Hannah, mansa, meiga e obediente.
Becca esquecera-se por completo de que Hannah ali estava. Enquanto ela, Hayley e Tasha
estavam ocupadas com a sua pequena representação, Hannah acabara tranquilamente de marcar os
cantos da área do palco e de passar fita adesiva entre eles para delinear toda a zona. Não estava tão
perfeito como desejaria, mas Becca mordeu a língua e não disse nada. Era um trabalho para duas
pessoas, e Hannah fizera-o sozinha.
— Acabei — disse ela e lançou um olhar a Becca.
Não um olhar cáustico, Hannah seria incapaz disso, mas um olhar cheio de censura e de dor.
Sempre aquele ar magoado, pensou Becca. Só passaram cinco minutos. Hannah precisava de
crescer, porra.
Se Hayley fazia os possíveis por ser simpática, Jenny não estava para isso. Ou não era capaz.
Não conseguia estar mais afastada delas nem que tentasse e de vez em quando fungava e passava as
costas da mão pelo nariz. Talvez tivesse começado o dia com uma camada de base, mas esta já tinha
desaparecido há muito — pelo menos, à volta das narinas, que estavam vermelhas nas margens,
quase em ferida, como se ela estivesse constipada, e o seu cabelo louro, seu orgulho e alegria, estava
preso num rolo solto. Não estava com um ar muito sexy naquele dia. Parecia agitada. Demasiado pó
na casa de banho, provavelmente. Becca pensou se não deveria focar-se antes em Jenny. Esta parecia
prestes a rebentar com qualquer coisa que a andava a consumir. Nem conseguia olhar para Tasha.
Pegou no telefone e verificou mais uma vez com um ar distraído se Aiden tinha enviado alguma
mensagem — não enviara — e praguejou quando viu as horas. Já passara quase metade da hora de
almoço. Tinha de se concentrar se não queria desatinar mais tarde. Olhou para as luzes em cima e
depois para a área do palco no centro da sala. A sua ideia era que a ação decorresse ali — Elizabeth,
Proctor e Mary Warren, e a discussão acesa quando Mary regressava do tribunal. Abigail não estava
em cena, mas Becca pensou que Natasha podia ficar mesmo atrás de um canto do quadrado central —
tecnicamente fora do palco e na coxia. Então, no momento em que Elizabeth Proctor percebia que era
acusada, as luzes móveis de cima viravam para baixo, banhando Abigail de luz e tornando-a visível,
mas como estivesse a observar na sombra, de pé, debaixo de um candeeiro de rua.
Se funcionasse, ficaria espantoso. Mas se não funcionasse, na experiência que iam fazer naquela
tarde, o professor Jones não incluiria aquilo na sua planificação. Becca podia não querer dar uma
queca com ele como todas as outras, mas queria impressioná-lo. Queria sentir que dera um contributo
criativo para o espetáculo e que não era apenas o burro de carga nos bastidores.
Avançou para o local onde Tasha iria ficar e verificou a posição das luzes. Sentiu-se desiludida.
— Oh, por amor de Deus.
Hayley e Tasha ergueram os olhos dos papéis que estavam a estudar.
— Que foi? — perguntou Tasha.
— A Casey instalou no sítio errado o foco móvel, o que tem de estar por cima de ti, ali.
Devíamos ter marcado o palco primeiro. Foda-se. — Tinha andado distraída, era esse o problema.
Era Aiden que não atendia o telefone, os desatinos das Barbies, Hannah, tudo. Céus. — Está só uns
trinta ou quarenta centímetros fora do sítio, mas é suficiente para estragar o efeito. Tem de ficar
mesmo por cima de ti.
Hayley olhou para o escadote encostado à parede.
— Não se pode mudar?
— Não atino com alturas — disse Becca. Olhou para cima com um ar infeliz durante um longo
momento.
— Eu trato disso — acabou Hayley por dizer.
— A sério? Isso era o máximo! — Por um momento, na sua onda de alívio, Becca quase esqueceu
a desconfiança que sentia por Hayley e que ninguém podia tocar nas luzes sem ter tirado o curso de
iluminação. Mas Hayley não ia fazer aquilo sem a supervisão de Becca e não era propriamente uma
coisa difícil. Qualquer aluno do 7.º ano conseguia fazer aquilo.
— Não é difícil — disse. — Só tens de desapertar os parafusos de fixação do foco móvel e fazê-
lo deslizar até eu te mandar parar, e depois voltar a apertá-los. E tens de tirar a corrente de segurança
e prendê-la novamente depois de deslocares o foco. As ferramentas do contínuo estão ali, foi ele que
nos deu a fita adesiva. É capaz de haver uma chave-inglesa para os apertar.
— Na boa — disse Hayley, já a posicionar o escadote. — Queres testá-las já?
— Não, só posso entrar na régie depois das aulas. Só quero as coisas todas no lugar.
Natasha e Becca seguraram o escadote apesar de estar estável, e Hayley subiu. Não olhou para
baixo uma única vez e, chegada lá acima, apoiou um joelho no pequeno ressalto prateado e pôs-se a
desapertar o foco com as duas mãos.
— Muito bem, para onde? Põe a Natasha onde ela tem de ficar.
Becca obedeceu e pediu a Natasha para se posicionar depois de uma das marcações de canto do
palco. Hayley subiu o último degrau e inclinou-se para fora, fazendo chocalhar a corrente quando a
soltou e a pousou no escadote, enquanto mudava o foco de posição. Parecia completamente à
vontade, mas o estômago de Becca contraiu-se enquanto a observava.
— Tem cuidado!
Era estranho ver Hayley ali em cima. Fazia-lhe recordar a rapariga que trepara árvores.
— Não te preocupes!
— Faças o que fizeres — disse Natasha —, não largues o foco. Parece pesado.
— Afastem-se todas — respondeu Hayley numa voz baixa, enquanto se concentrava em empurrar
o foco para a frente, utilizando os postes de metal das cordas para se equilibrar. Por fim, voltou a
prender a corrente de segurança. — Pronto, está feito. — Pousou as mãos nas ancas, balançando-se
descontraidamente quatro metros e meio ou mais acima do chão. — Voilà.
— Obrigada, Hayles — disse Becca, quando a rapariga regressou ao chão. Do ponto onde Becca
se encontrava, o foco parecia bem. Sentiu-se desorientada. Porque não nos dizes o que aconteceu,
Hayley? Assim, esta merda toda podia parar.
— Porque não te metes na tua vida?!
A voz de Jenny atingiu-as a todas, tão incontida e cheia de raiva que Becca quase deu um salto.
— Só perguntei se estavas doente. — Hannah parecia em estado de choque. Dera três passos para
trás. — Mais nada. Estava preocupada.
— Não preciso da merda da tua preocupação! — Jenny atirou o seu exemplar da peça para dentro
da mochila. — Não se passa nada comigo.
— Pronto, está bem.
Hannah tinha as mãos no ar como se Jenny lhe estivesse a apontar uma arma.
— Ei, que se passa? — perguntou Becca.
Jenny virou bruscamente a cabeça e toda a sua atenção se centrou subitamente em Becca. Os
olhos congestionados ardiam-lhe de raiva.
— Que te interessa? És patética. Pensas que não percebemos como estás feliz por a Tasha andar
outa vez toda simpática contigo? Como se não quisesses saber das cenas horrorosas que ela disse
sobre ti e de todas as vezes que se riu de ti?
— Cala-te, Jenny — murmurou Hayley.
Mais valia ter ficado calada, pois Jenny nem a ouviu. Estava lançada e não ia parar.
— Que patético! E achas que a conheces porque foram amigas primeiro? Deves ser atrasada
mental! Achas que as pessoas ficam sempre iguais? Tu és igual ao que eras antes, Becca? Talvez
ainda sejas gorda por dentro, pois só assim serias estúpida e carente ao ponto de esquecer tudo o que
aconteceu.
Becca não conseguia falar. Sabia que estava ali de boca aberta e com o rosto afogueado, mas não
conseguiu obrigar o cérebro nem a língua a funcionar. Cada palavra era um golpe.
— E ainda por cima és uma cabra — disse Jenny, desta vez mais branda, como se não tivesse
energia para manter o fogo. — És uma cabra absoluta para a Hannah.
— Não sou nada! — respondeu Becca, com a voz um pouco estridente.
— És, sim. — Jenny olhou para Hannah e falou de uma forma ainda mais branda. — Hannah,
mereces uma amiga melhor do que alguém que te dá com os pés sempre que é convocada pela Rainha
das Cabras.
— Qual é o teu problema, Jenny? — perguntou Natasha. — Que foi que te fiz? Nada! — Estava
com a respiração acelerada, quase ofegante, e Becca sabia como ela se sentia. O seu próprio coração
estava acelerado com o pavor do confronto, com todas as raparigas dentro do palco marcado,
envolvidas numa representação própria. — Porque andam as duas tão estranhas?
Jenny riu-se.
— Não somos nós que te andamos a evitar, Tasha.
— Eu não as ando a evitar!
— Vamos embora, Jen. — Hayley aproximara-se de Jenny e agarrara-lhe no braço, mas Jenny
sacudiu-a. Hayley tentou novamente: — Anda lá fora comigo enquanto fumo um cigarro.
— Para de me dar ordens! Estou ótima! — Olhou novamente para Natasha. — Se não andas a
evitar-nos, porque disseste que tinhas ido a uma consulta no hospital no sábado passado quando não
foste? Eu vi a Becca a sair da tua casa. Porque não disseste simplesmente que não querias estar
connosco?
Hannah olhou para Becca.
— Isso foi nos anos da minha mãe. Pensei que tinhas ido ter com o Aiden a seguir. Não disseste
que aquela mensagem era dele?
— Não foi isso que eu disse! — ripostou Becca, subitamente consciente de que a justificação de
que não era bem uma mentira parecia agora muito oca. Porque tinham elas ido ali ter à hora do
almoço? Porque não tinha ela feito aquilo sozinha? Até o foco no sítio errado teria sido melhor do
que aquele horror. — Tu pensaste que era, e eu não quis dizer que era a Tasha porque ias ficar
chateada! — Parecia uma desculpa imbecil. Era imbecil.
— Estás a ver — disse Jenny?
Por um momento, tudo se imobilizou, as cinco raparigas encerradas numa confrontação
silenciosa, feridas emocionais a esvaírem-se para o ar e a tornarem-no pesado. E depois, muito
cautelosamente, Hannah pegou na mochila.
— Hannah… — começou Becca a dizer, mas a amiga virou-se e começou a dirigir-se para a
saída. Céus, sentia-se um traste. Céus, era um traste. Aiden tinha-se afastado dela e agora Hannah
odiava-a. Boa, Bex, pensou. Só fazes merda. E a culpa é toda tua por seres tão cabra.
Jenny tinha ar de quem ia dizer mais qualquer coisa, mas a campainha tocou e interrompeu o
momento. Becca quase caiu de joelhos de alívio. O fim do intervalo do almoço.
Jenny e Hayley saíram sem dizer mais nada, e Hayley lançou-lhes um olhar demorado, frio e
indecifrável antes de seguir a alterada Jenny.
— Que se passa com a Jenny? — perguntou Tasha. — Estará a sentir-se culpada? Por causa da
discussão que tivemos? Por causa do que aconteceu naquela noite? Esteve a meter qualquer coisa,
isso é certo.
— Pois, provavelmente.
Becca parecia distraída. Enviaria uma mensagem a Hannah da aula de Inglês. Daria uma
explicação. Ia ser uma amiga melhor. Falar-lhe-ia das cenas todas com as Barbies e da razão pela
qual tinha andado tão distante. Contar-lhe-ia que Aiden conhecia Nicola Munroe. Contar-lhe-ia tudo
aquilo que já deveria ter contado à sua melhor amiga.
Aqueles pensamentos eram desesperados, ela sabia, e talvez já fosse um bocado tarde de mais.
Vira a expressão de Hannah. Magoada, mas também zangada. Ninguém gostava de ser objeto de
compaixão — Becca sabia-o por experiência própria — e ninguém gostava que lhe mentissem por
compaixão. Ela fizera as duas coisas.
— Não te preocupes — disse Tasha. — Aquilo há de passar-lhe.
— Eu sei. — Becca tentou sorrir, mas sentiu-se enjoada. Não sabia nada. Naquele momento, não
lhe apetecia nada ir para a aula de Inglês com Hayley e Jenny. Só queria espaço para respirar. E que
Aiden lhe respondesse às mensagens.
— Que se lixe isto tudo — disse subitamente. — As ferramentas do contínuo.
— Não te preocupes — disse Tasha, agarrando na caixa. — Tenho um tempo livre, eu levo-as.
De repente, passou o outro braço à volta de Becca e apertou-a com força. O cabelo dela era
macio e cheirava a maçã.
— Não sei o que faria sem ti, Bex. A sério que não sei. Obrigada por voltares a ser minha amiga.
Aquelas duas andam a dar comigo em doida. — Afastou-se. — Agora organiza lá a cabeça e vemo-
nos mais tarde.
Ao saírem, Becca sentiu o aperto no estômago a desfazer-se um pouco. Hannah havia de
sobreviver. Teria de sobreviver. Talvez ela e Tasha até se tornassem amigas. Tasha precisava de
Becca. Podia confiar em Becca. Quando Becca lhe explicasse, depois de descobrirem o que
acontecera realmente naquela noite e o que Hayley e Jenny tinham feito, Hannah compreenderia por
que razão se comportaram daquela maneira estranha. Tinha de compreender, senão seria um ser
humano muito merdoso, e não era esse o caso. E se não compreendesse, então talvez fosse altura de
deixarem de ser amigas. Como Jenny dissera, as pessoas mudam.
34

Era um quarto pequeno com uma secretária convencional, Jamie e Aiden de um lado, Caitlin
Bennett e o sargento do outro. As paredes eram azuis, mas a cor não tinha nada de luminoso. Um azul
morto. Desprovido de vida. Desesperadamente monótono. Mas ainda assim conseguia entrar em
conflito com a carpete industrial verde e as cadeiras de plástico pretas. Combinado com as lâmpadas
fluorescentes e a ausência de janelas, o efeito era ligeiramente claustrofóbico. Jamie suspeitou que
fosse intencional. Em cima da prateleira encontrava-se um gravador de cassetes ultrapassado, a
trabalhar, embora não estivesse a obter nada que se aproveitasse de Aiden. Além de confirmar a sua
identidade, respondera com silêncio a quase todas as perguntas.
Jamie via que ele estava com medo, apesar de Caitlin Bennett não se aperceber disso. Ou talvez
Bennett já tivesse visto muitos jovens assustados ali sentados na sala de interrogatório e não tivesse
tempo para se mostrar compreensiva. Além disso, o medo e a culpa não se excluíam mutuamente —
talvez as pessoas culpadas sentissem mais medo do que as inocentes. Ainda assim, olhando para
Aiden, era fácil confundir aquele medo com uma arrogância mal-humorada. Empurrara a cadeira
ligeiramente para trás e tinha as pernas longas esticadas à frente, com um pé por cima do outro. Tinha
os braços cruzados sobre o peito, o cabelo escuro caía-lhe sobre os olhos, traçando uma diagonal
sobre o azul-escuro das íris, e franzia o sobrolho ao tampo da mesa de fórmica barata. Não tocara no
chá, que arrefecera e formara uma película castanha à superfície.
— A tua versão dos acontecimentos deixa-me um problema, Aiden — disse ela friamente. —
Disseste que deixaste a Rebecca Crisp em casa à meia-noite e que depois foste diretamente para tua
casa nas primeiras horas de sábado, nove de janeiro. Porque disseste isso?
Jamie olhou para o rapaz, que continuava a recusar-se a erguer os olhos.
— O que quer que tenha acontecido, conta-lhe a verdade, miúdo — aconselhou. — Se não fizeste
nada de mal, é escusado mentir. — Pensou se estaria a ser ingénuo. O direito penal não fora a sua
especialidade, mas havia imensos casos em que a polícia tinha acusado as pessoas erradas. Ou que
as prendera e deixara que a comunicação social lhes destruísse a vida, antes de novos indícios
provarem a sua inocência.
Bennett tinha uma pasta castanha à frente — um objeto sinistro, que claramente continha algumas
verdades que Aiden não estava a partilhar. Porque se tinha ele fechado em copas? Devia saber que
não lhe era nada benéfico. A menos que ele seja realmente culpado, sussurrou uma pequena voz de
serpente no fundo da cabeça de Jamie. A menos que seja isso. Mas desviou o pensamento.
— Aiden Kennedy recusa-se a responder à pergunta.
Bennett abriu a pasta e retirou cuidadosamente duas fotografias impressas granuladas. Tinham
ambas o registo da data e da hora, mas de onde se encontrava sentado, Jamie não os conseguia ler.
Mas reparou que Aiden engolia em seco. Não era bom sinal. Sentiu o coração começar a acelerar e
nem sequer era ele o suspeito.
— Uma vez que, pelo teu silêncio, manténs a tua história anterior, deixa-me mostrar-te o que as
câmaras de vigilância captaram naquela noite. Para que fique registado, vou agora mostrar a Aiden
Kennedy imagens retiradas dessas câmaras.
Uma ligeira movimentação na cadeira ao lado da sua. Jamie lembrou-se novamente da pesquisa
que Aiden fizera no telemóvel. Meu Deus, que terá ele feito?
— O teu carro foi apanhado por uma câmara na Elmore Road. É a rua principal que corre
paralelamente ao rio, ao parque e ao bosque. As imagens mostram o teu carro na Elmore Road às
primeiras horas de sábado, nove de janeiro. Aqui… — empurrou a primeira fotografia sobre a mesa
— … pode ser visto a virar da Elmore Road para o estacionamento dos visitantes do bosque. A hora
marcada na parte de baixo da imagem mostra que isto aconteceu à meia-noite e trinta e sete. Depois
de teres levado a Rebecca a casa. Apesar de teres dito que tinhas ido diretamente para casa. Só
saíste do estacionamento às… — passou a Aiden a segunda imagem, em que se via um carro a dar
novamente a curva para a rua — … cinco e quarenta e cinco da manhã.
Jamie suspendeu a respiração e, de repente, apesar do calor seco excessivo da sala, sentiu frio.
Sentiu-se apanhado num truque de prestidigitação. Enquanto estavas ali concentrado a salvar uma
rapariga moribunda, AQUI — voilà! — o teu jovem amigo punha-se em fuga! A recordação de ter
defendido Aiden perante Becca, dizendo que ele não seria idiota ao ponto de mentir à polícia, estava
a esvair-se.
— O meu carro não ficou lá esse tempo todo — disse Aiden em voz baixa. Lançou um olhar a
Jamie, sentou-se direito e apoiou os cotovelos na mesa. — Se houver uma câmara no parque de
estacionamento, poderão verificar.
— Mas não há, Aiden. Por isso teria de acreditar no que dizes. — Os olhos de Bennett não se
desviaram dos dele. Era como se Jamie não estivesse ali. — E como já percebemos, não podemos
confiar na tua palavra.
Seguiu-se um longo momento de silêncio, durante o qual Aiden ficou mais tenso e Caitlin Bennett
se inclinou para trás na cadeira e cruzou os braços, como se tivesse todo o tempo do mundo para
fazer vergar o rapaz.
— Não fiz mal a ninguém — acabou Aiden por dizer. — Fiquei sentado no carro, fumei um
bocado de erva e adormeci. Não vi outros carros, nem nada, nem ninguém que lhes servisse de
alguma coisa, por isso achei que não valia a pena contar-lhes que lá tinha estado. E não queria
confessar a posse de canábis. — Nessa altura olhou para ela, com os olhos azuis graves. — No meu
lugar, contaria alguma destas coisas?
O mau humor de Aiden tinha-se evaporado. Jamie continuava a observar as fotografias. Eram
granuladas e reais e provocavam-lhe um aperto no estômago. Pareciam imagens de um delito
qualquer, realizado sorrateiramente a meio da noite.
— Da mesma maneira que não nos contaste da Nicola Munroe?
— Isso foi diferente! Não me lembro de a ter conhecido! Não podia falar-lhes de uma coisa de
que não me lembrava!
Outra pausa longa.
— Escute — disse Aiden —, não fiz nada de mal. Mas conheço a Tasha, ou antes, conhecia.
Convidei-a para sair uma vez quando andava na escola, e ela foi mega-horrível. Imagino que já
devam saber. Achei que se lhes dissesse que tinha fumado erva e adormecido no estacionamento as
coisas não iam ficar boas para o meu lado. De modo que não disse nada, e quando me perguntou
aquilo da Nicola fiquei sem saber como contar a verdade.
— Quase que te compreendo. Quase — sublinhou ela. — Mas o que não percebo…
Voltou a fazer uma pausa, e Jamie não pôde deixar de ficar impressionado. Ela estava o tempo
todo um passo à frente de Aiden. O rapaz estava a ficar completamente baralhado.
— O que não percebo — continuou — é porque mentiste à Becca. Disseste-lhe que ias para casa
e, no dia seguinte, não disseste que não tinhas ido. Se estivesses inocente, seria de esperar que lhe
tivesses dito imediatamente que tinhas estado no local. Reação de choque. Necessidade de partilhar.
O teu momento «que cena!», quando a Natasha foi encontrada mesmo ao lado do local onde tinhas
estado. Mas não lhe disseste. Não disseste a ninguém. Porquê?
Aiden estava a morder o lábio inferior e movia os olhos da esquerda para a direita, sem fixar
ninguém em particular, mas Jamie sabia que era um sinal de que estava concentrado a pensar. A
pensar numa saída para qualquer coisa. Jamie percebeu de repente. Era tão óbvio. E não era
homicídio nem tentativa de homicídio, isso era evidente.
— Não estavas sozinho, pois não, Aiden? — perguntou.
O rapaz ergueu o olhar.
— Eu é que faço as perguntas, senhor McMahon. — Caitlin tentou interromper, mas Jamie não
tencionava parar. Sabia por que razão Aiden tinha mentido.
— Estava outra rapariga contigo no carro?
Aiden deixou descair os ombros. A pergunta de Jamie captou subitamente a atenção da inspetora.
— Estava mais alguém no carro contigo? — perguntou ela.
Aiden permaneceu calado durante mais alguns instantes antes de começar finalmente a falar.
— A Becca não pode ter ciúmes. Ela é insegura, sabem? Se lhe tivesse contado, não
compreenderia. Ia pensar que tinha acontecido outra coisa qualquer. Já viram como ela fica. —
Lançou um olhar a Bennett. — Como quando lhe disseram que a Nicola Munroe tinha o meu número
no telemóvel. Ela acha que todas as raparigas são uma ameaça ou coisa do género. Por isso nem
sempre lhe digo quando estou com outras raparigas. Assim é mais fácil.
— Quem era a rapariga?
— Chama-se Emma. Trabalha no bar da Queen Street. O Jojo’s. Só fecha à uma. Às vezes vou lá
depois de acabar o trabalho em casa do Jamie. Começámos a falar uma noite e ficámos mais ou
menos amigos. Ela é muito fixe. E gosta das mesmas cenas que eu.
— E estava contigo no parque de estacionamento naquela noite, depois de teres ido levar a
Rebecca a casa?
— Tinha pensado ir para casa, era verdade. Mas não estava cansado. Às vezes, a casa da minha
mãe é um bocado asfixiante, de modo que decidi lá ir só para dizer olá. Estava pouca gente para uma
sexta-feira, e o patrão deixou-a sair mais cedo. O resto já viram nas imagens. Voltámos para o meu
carro, fumámos, falámos de cenas e adormecemos.
— Qual é o apelido da Emma?
— Não sei.
Uma pancada na porta interrompeu-os, e um polícia à paisana entrou.
— Posso dar-lhe uma palavrinha, inspetora?
Bennett anuiu e suspendeu o interrogatório, desligou o gravador e pôs-se de pé.
— Isto não responde a todas as suas perguntas? — perguntou Jamie quando ela se voltou para
sair. — Já podemos ir?
— Ainda vamos fazer uns testes ao carro do Aiden. E até confirmarmos esta história, eu não faria
um ar tão satisfeito, senhor McMahon. Uma rapariga morreu, e outra, como sabe melhor do que
ninguém, tem muita sorte em estar viva.
Jamie sorriu. Ela tinha razão. E estava apenas a fazer o seu trabalho. Se ele e Aiden tivessem de
ali passar mais umas horas, não lhes faria mal. Podia talvez atrasar a entrega dos trabalhos, mas nada
mais. Assim que deixassem Aiden sair, fariam uma maratona até ao fim.
Quando ela fechou a porta, a sala mergulhou no silêncio constrangedor da sala de espera de um
consultório médico. Quanto tempo iriam ali ficar? Passados uns minutos, Jamie sentiu a bexiga
comprimida. Aiden não tocara no chá, mas ele bebera duas canecas.
— Será que posso…? — Olhou para o sargento mal-encarado, claramente aborrecido por ter de
ficar a vigiá-los do outro lado da mesa, e apontou para a porta. O sargento tinha a expressão de um
homem que sabia que ia ficar ali durante algum tempo até alguém se lembrar de que lá estavam. —
Casa de banho? — concluiu Jamie.
Ergueu a caneca de chá e sentiu-se imediatamente estúpido, como um inglês no estrangeiro a
tentar fazer-se entender por um empregado espanhol mordaz.
O sargento aquiesceu.
— Segunda porta à esquerda.
Jamie esperava que o acompanhassem, mas não era ele o suspeito. E como estavam na cave do
edifício, não devia haver muitos danos que pudesse fazer naquele andar. Agradeceu com um
movimento de cabeça e saiu.
Ficou surpreendido por encontrar Bennett parada no corredor. Estava perto das casas de banho,
de costas para ele, a ver um filme a cores num iPad com o polícia que os interrompera. Aproximou-
se deles mais uns passos.
— E não aparece sequer aqui naquele dia?
— Não, inspetora.
— Espere — disse ela. — Conheço esse casaco. Já vi esse casaco algures.
— Também eu — disse o polícia. — A Sandra da receção tem um igual.
— Não foi aí que o vi.
— Então onde foi?
— Temos de ir — disse ela. — Primeiro, temos de ir falar com a Sandra.
Voltou-se e quase esbarrou com Jamie.
— Desculpe — disse ele e apontou para a porta da casa de banho, que ela estava a bloquear. —
Ia ali.
A inspetora passou por ele, e Jamie ficou a observá-la, pequena e com curvas acentuadas, mas
com uma determinação absoluta. Nunca conhecera uma mulher assim. Não é que isso interessasse,
dadas as circunstâncias. Não tinha nenhuma hipótese, disse a si mesmo. O desdém que ele lhe
inspirava era absolutamente evidente.
35

Becca, Hayley e Jenny foram chamadas mesmo antes de a aula de Inglês começar e estavam agora
sentadas em fila no gabinete da diretora a olhar para a inspetora Bennett, que estava apoiada nas
costas de uma cadeira à frente delas e as observava em silêncio. A senhora Salisbury estava sentada
à secretária a vasculhar uns papéis, mas Becca tinha a certeza de que realmente não estava a fazer
nada. Como podia estar? Becca tinha as palmas das mãos a suar. Que estavam ali a fazer? Que
quereria a inspetora Bennett?
— Estamos à espera da Tasha? — perguntou Hayley, quando o silêncio se tornou insuportável e
só o som do velho relógio de mesa se sobrepunha aos movimentos agitados e ao tamborilar de pés de
Jenny.
— Ela não está a ter aulas — murmurou Becca.
— Não preciso de falar com a Natasha — disse a inspetora Bennett, e aproximou-se da janela,
como se estivesse a observar qualquer coisa. Um casaco que o seu corpo tinha ocultado estava
dobrado em cima das costas da cadeira. Cinzento-prateado e brilhante, com um capuz debruado a
pelo vermelho.
— Que vai fazer com o meu casaco? — perguntou Jenny, de sobrolho franzido.
Bennett voltou-se, e Becca, com o coração acelerado, achou que ela parecia um gato que acabara
de ver um rato sem sítio para se esconder no meio do chão da cozinha. Por trás da sua aparência
impassível havia sinais de agitação.
— Não é o teu — disse Hayley. — O teu tem aquela queimadura de cigarro na manga.
— Tinhas o casaco no hospital, quando te vi — perguntou Bennett?
— Acho que sim — respondeu Jenny. — Provavelmente. Ando imenso com ele.
— Obrigada. — Bennett sorriu. Becca não viu nada de tranquilizador na expressão dela. — Não
me lembrava a qual de vocês pertencia.
— Acha-nos todas iguais? — perguntou Hayley, com uma pontinha de desdém que Becca
percebeu que lhe era dirigido. Sem dúvida que não era nada parecida com as louras deslumbrantes,
mas não deixou de ficar surpreendida com a forma como Hayley se dirigira à inspetora. Se Jenny era
nervosa e dessossegada, Hayley era o contrário. Bennett podia ter um ar impenetrável, mas Hayley
era a rainha do gelo. Parecia aborrecida e olhava para Bennett como se a inspetora fosse um
incómodo. O coração de Becca batia com força e ela deixou descair ligeiramente os ombros,
tentando fazer-se invisível. Passava-se ali qualquer coisa que tinha que ver com Jenny, e Becca não
queria que a mandassem embora antes de descobrir o que era.
— Uma rapariga loura com um casaco igual a este foi captada por câmaras de vigilância na One
Cell Shop, no Centro Comercial de Brackston, a catorze de outubro do ano passado.
— E? — Jenny limpou o nariz. Os seus pés bateram no chão. Becca observou Bennett, que
absorvia tudo. E registava.
— Estiveste na loja nessa tarde?
Jenny riu-se e brincou com uma madeixa de cabelo.
— Não sei. Como quer que me lembre de um dia qualquer de outubro?
— Tenta.
— Não — disse Jenny após um momento. — Não, não estive.
— De repente, pareces muito segura.
— Se comprei o meu iPhone no verão, porque iria a uma loja de telemóveis em outubro?
— Há imensas raparigas com casacos iguais a esse — disse Hayley. — Há imensas mulheres
com esses casacos. — Fez um sorrisinho afetado e não era preciso ser-se um génio para o interpretar.
Um elegante Embrulha e enfia no cu à inspetora.
— Que importância tem isso agora? — perguntou Jenny. Parecia ligeiramente chorosa. Talvez lhe
estivesse a passar o efeito do que quer que tivesse snifado o dia todo. — Tenho de voltar para a aula
de Inglês. O professor Garrick está à nossa espera. Vamos ter exames.
Becca deixou subitamente de respirar. Uma loja de telefones. A mensagem que Tasha recebera.
Um número desconhecido. Um encontro no sítio do costume. Era por isso que Bennett estava a
espicaçar Jenny. Achava que ela tinha comprado o telefone pré-pago. Mas porque não o dissera
diretamente? Porque estava ali parada, com aquele ar pensativo? Becca estava a reunir coragem para
dizer qualquer coisa, para chamar a atenção para as conexões, quando a inspetora voltou a falar:
— Podem voltar para as aulas — disse. — Obrigada pela vossa ajuda.
Becca ficou desconcertada. Só aquilo? Tinha de ir ter com Tasha. Tinha de lhe contar. Hayley
caminhou tranquilamente para a porta, com Jenny atrás, e Becca apressou-se a segui-las.
— Um momento, Rebecca.
Voltou-se.
— Sim?
Enquanto as duas Barbies se apressavam a sair, com as cabeças unidas, Becca quase desbobinou
tudo. Mas depois conteve-se. Tinha de falar com Tasha primeiro e não queria dizer nada à frente da
senhora Salisbury. A diretora dir-lhe-ia que estava a ser ridícula. Diria o que fosse preciso para
conseguir que a escola deixasse de ser o centro de tanta atenção indesejada.
— Se tentaste ligar ao Aiden Kennedy hoje, fica sabendo que ele está na esquadra a dar-nos uma
ajuda com as averiguações.
A dar-nos uma ajuda com as averiguações. Ela sabia o que aquilo significava. Significava que
achavam que ele tinha feito alguma coisa. Alguma coisa má.
— Prenderam-no? — perguntou, sentindo a boca a ficar seca.
— Não. Vamos deixá-lo sair mais tarde. Só achei que ias querer saber.
Oh, que querida. Fez um esforço para não fazer mais perguntas. Seria isso que a Bennett queria?
Estaria a tentar levar Becca a confessar também qualquer coisa? Pensaria que Becca e Aiden tinham
conspirado juntos?
— Obrigada — disse com esforço, e saiu.
No corredor frio, Becca sentiu o rosto quente e a respiração acelerada. Não fazia tenção de
voltar diretamente para a aula de Inglês. Era evidente que Bennett parecia ainda pensar que Aiden
estava de alguma forma envolvido, e Becca tinha de provar que ela estava enganada.
Atravessou o pátio até à sala de convívio do 11.º ano com o ar frio a queimar-lhe os pulmões.
Não conseguiu evitar sentir-se um bocadinho mais animada. Aiden não se afastara dela. Não estava a
ignorá-la. Simplesmente não podia responder às suas mensagens. Seguiu-se um segundo pensamento
que a fez encolher-se de vergonha. Merda, quando ele voltasse a ligar o telefone, ia receber todas as
mensagens, que eram imensas. E algumas eram a atirar para o agressivo. Devia haver uma aplicação
para recuperar mensagens não lidas. Porque é que ainda ninguém tinha posto aquela ideia no
Kickstarter? Porque era ela tão idiota? O Aiden amava-a. Porque lhe custava tanto a acreditar?
Afastou tudo aquilo da cabeça. Quando provasse que Aiden estava inocente, ele ia perdoar-lhe as
cenas todas. Não pareceria tão carente e insegura. Mas antes, tinha de encontrar Tasha. Quaisquer
suspeitas que ainda recaíssem sobre Aiden dissipar-se-iam se ela e Tasha entregassem as
informações que tinham a Bennett. As imagens da câmara de vigilância da loja de telefones e os
vestígios na clareira iriam absolvê-lo. Subiu os degraus dois a dois e chegou à sala de convívio a
suar e ofegante. Fumar e correr podia funcionar com a Hayley, mas não eram uma boa combinação
para ela.
Natasha estava no sítio do costume, ao canto, e ergueu os olhos, perplexa:
— Pensei que ias ter Ingl…
— Ouve — interrompeu Becca. — Aquela inspetora Bennett esteve cá. Acho que desconfia que a
Jenny comprou o telefone que te enviou a mensagem. Tinha qualquer coisa que ver com o casaco dela
e alguém da loja que a viu naquele dia. Mas acho que ela acreditou quando a Jenny disse que não
tinha lá ido, porque parou de fazer perguntas e agora está a ir-se embora.
Pela expressão de Tasha, estava a falar demasiado depressa.
— Mais devagar — disse ela. — A Bennett acha que foi a Jenny quem mandou aquela mensagem?
— A sua tez quase perfeita, cor de amêndoa, começava a empalidecer. Estava de repente a ganhar
consciência da realidade das suspeitas deles.
— Sim — anuiu Becca. — Mas temos de lhe contar o resto. Anda, Tasha, temos de lhe dizer. Tens
o número dela, não tens? Liga-lhe. Já.
Tasha pareceu encolher-se na cadeira.
— Não posso — disse. — Ia parecer completamente idiota. O que diria a minha mãe? O que
diriam elas?
— Que importa o que elas dizem?
Aquela não era a reação que Becca esperava.
— Se calhar é melhor esquecermos, Becca. Talvez seja apenas um disparate. Quero dizer, na
realidade nós não sabemos nada. — Lançou um olhar ao rosto de Becca e voltou a baixar os olhos
para a carpete. — Não sei, Bex, se calhar estou a ser estúpida. E se eles tiverem razão e eu estiver a
inventar ligações onde elas não existem?
— E aquele comportamento da Jenny ao almoço? E a Hayley a chamar-te paranoica sempre que
dizes que te lembraste de alguma coisa? — Becca quase gritou de frustração, e Tasha encolheu-se. —
A Jenny anda toda pedrada na escola. Está com medo. E vê como a Hayley anda a tentar ser
simpática. Porque havia ela de ser assim? Porque havia de ser assim comigo?
— Eu sei. — Tasha inclinou-se para a frente, apertando a barriga como se estivesse de repente
com dores de período. — Mas estou sempre a pensar, e se for outra coisa qualquer? E se estivermos
enganadas? E se, ao acusá-las, deixamos que a pessoa responsável se safe?
— Mas não estamos enganadas! Sabes bem. De que tens medo?
— Imagina que falo com a Bennett. E se elas descobrem? E se ela não acredita em mim? Que vão
elas fazer então?
Becca compreendeu subitamente. Tasha não tinha mudado de ideias em relação a nada. Sentia
apenas medo. Puro e simples. Frustrada como estava, Becca conseguia compreender. Tasha tinha
morrido naquela água gelada. Tivera sorte em ser ressuscitada. E confrontara-se com a possibilidade
de as suas duas melhores amigas estarem envolvidas no que acontecera.
— Elas já acham que estás a recuperar a memória, e não é por não falares que te vais manter em
segurança. Muito menos se foram elas que te empurraram para o rio.
— Pode ter sido um acidente — disse Tasha lentamente. — Talvez tenhamos realmente discutido.
Talvez elas tenham realmente feito uma maldade qualquer, talvez isso seja tudo verdade. Mas, como
disseste, talvez eu me tenha afastado e caído ao rio. Pode não ser nada tão grave como pensamos.
Não era melhor termos a certeza primeiro? Porque haviam elas de fazer uma coisa destas? Porquê?
Becca sentiu vontade de gritar. Tasha parecia extremamente indecisa em relação àquilo, mas fora
ela quem começara!
— Compreendo que estejas com medo, Tasha, a sério. Mas a polícia deteve o Aiden e isto pode
ilibá-lo — disse ela e voltou-se para a porta. — Se não fores tu falar com ela, vou eu.

— Espere!
A inspetora Bennett estava quase a entrar no carro quando Becca saiu pelas traseiras da escola e
chegou a correr ao parque de estacionamento. Ainda estava quente da última corrida e tinha o rosto
de um rosa ardente quando se deteve. Bennett estava a mastigar uma barrita de cereais, tinha na mão
uma sanduíche da cantina e o casaco prateado enrolado de uma maneira estranha debaixo de um dos
braços enquanto comia. Becca sentiu uma onda de alívio. Tinha quase a certeza de que ela já se tinha
ido embora.
Bennett engoliu e limpou a aveia pegajosa dos cantos da boca. Pareceu ligeiramente constrangida
por ter ido buscar o almoço à cantina da escola e Becca quase sentiu simpatia por ela. Uma barrita
de cereais enorme e um hambúrguer com toucinho e tomate, e estava a comer a barrita primeiro. A
inspetora Bennett nunca teria dado uma boa Barbie.
— Escuta, se é sobre o Aiden — Bennett abriu a porta do carro e largou o casaco no banco do
passageiro —, não posso dizer-te mais nada de momento. Mas…
— Não, não é sobre ele — disse Becca, sem fôlego. — É sobre a Jenny e a Hayley. — Esperou
até ter toda a atenção da mulher. — Acha que a Jenny comprou o telefone de onde enviaram a
mensagem à Tasha naquela noite, não é?
Bennett observou-a. Não deu mais nenhuma dentada na barrita.
— Não — respondeu. — Por acaso, não.
— Mas o casaco… Disse que…
— Eu sei o que disse. Mas aquele casaco é da Primark e a Hayley tem razão, há centenas deles.
Este é de uma pessoa que trabalha na esquadra. E as imagens de vídeo que temos apenas mostram
uma rapariga loura com um casaco igual a este dentro da loja. Não ao balcão. Nem com uma coisa na
mão. Não há imagens dessa zona.
— E não as pode arranjar? — perguntou Becca. — Quero dizer…
— Já estiveste na One Cell Shop? Em alguma das lojas deles? — perguntou Bennett calmamente.
Becca abanou a cabeça. Aquilo não era o que ela esperava.
— São baratas por uma razão. Poupam dinheiro em tudo. Começa logo por terem um equipamento
de vigilância ranhoso. Agora escuta, sei que queres…
— Mas há outra coisa — disse Becca precipitadamente, desejando que ela se calasse e ouvisse.
— Vocês não sabem tudo. Aquela mensagem dizia para a Tasha ir ter ao sítio do costume, não era? É
o que elas chamam à clareira no bosque, o sítio do costume. A Tasha não se lembra de lá ter estado
nos últimos meses, mas há umas noites descobrimos coisas que mostram que elas lá estiveram
recentemente, e ela também! E havia um pedaço de corda. Mas ela não se lembra, por isso deve ser
daquela noite.
— Calma aí — disse Bennett. — Onde é esse sítio?
— Mostro-lhe mais tarde. — Becca não conseguia abrandar. Estava a sair-lhe tudo em catadupa,
como uma onda gigante. — E há mais coisas. A Tasha diz que elas andavam estranhas com ela desde
há uns tempos, como se já não quisessem ser suas amigas, até ela ter tido o acidente. E agora, a única
coisa que as preocupa é se ela se lembra de alguma coisa. Tem de fazer uma rusga às coisas delas, às
casas, aos cacifos. Se elas tiverem o telefone ou outra coisa qualquer que prove que fizeram mal à
Tasha, amanhã já se terão livrado dela, e vocês nunca saberão!
Bennett olhava para ela com uma expressão próxima da compaixão.
— As amigas têm desentendimentos — disse, e Becca sentiu a esperança desvanecer-se com
aquela palavra. Desentendimentos. Que idade pensava ela que elas tinham? Dez anos? — Não me
digas que não te zangaste com ninguém recentemente. Acontece a toda a gente. Não significa que
andem a atirar-se umas às outras a rios gelados. Não te deixes levar demasiado pela imaginação.
— E se ouvisse o que lhe estou a dizer? — ripostou Becca, esperando não parecer desorientada,
mas sabendo que parecia desesperada e como se estivesse a fazer uma fita. — Dissemos à Hayley
que a Tasha estava a começar a lembrar-se das coisas, e agora estão as duas a passar-se. Não viu
como estava a Jenny? Anda a tomar uma cena qualquer que a deixa completamente pedrada e está-se
a passar. — As suas mãos moviam-se furiosamente enquanto falava, como se assim pudesse dar mais
peso às palavras. — E a Hayley não me larga, quer saber se a Tasha me contou alguma coisa ou se se
lembrou de mais coisas. São só cenas deste género. Acredite, se não inspecionar as coisas delas
hoje, assim que os ensaios terminarem e elas forem para casa, tudo o que têm terá desaparecido. A
Jenny pode ser desleixada, mas a Hayley não brinca.
— Muito bem — disse Bennett. — Então onde está a Natasha? Se ela acha o mesmo que tu,
porque não está aqui?
Foi a vez de Becca lançar a Bennett um olhar crítico.
— O que acha? Porque tem medo!
Caitlin Bennett fitou-a e, a seguir, deu outra dentadinha na barrita de cereais e mastigou-a.
— Volta para dentro — disse, depois de ter engolido. — Ainda congelas cá fora sem casaco.
Becca procurou no rosto dela alguma centelha de esperança, mas não viu nada. Grande merda.
Soltou um grunhido de frustração, voltou-se e regressou à escola a bater com os pés. Aquela mulher
é uma idiota chapada, pensou. Está tão focada em acusar o Aiden que não vê a realidade. Que se
lixe a inspetora Bennett. Que se lixe a Natasha. Se fosse preciso, havia de provar aquilo sozinha.
Havia de arranjar maneira.
36

Durante o intervalo do interrogatório de Aiden, Jamie fora à cafetaria de um supermercado das


redondezas buscar um café e fazer uns telefonemas relacionados com o trabalho. Preparava-se para
regressar para ver como estavam as coisas, quando a polícia lhe ligou a dizer que Aiden ia ser
libertado sem acusação. Quando Jamie chegou, Aiden estava à espera nos degraus da esquadra,
encolhido de frio e a fumar um cigarro. Mas conseguiu fazer um sorriso.
— Falaram com a Emma. Ela confirmou que estava comigo. E acrescentou que o frio a impediu
de dormir como devia ser, que estava chateada por estar ali presa e que quase não pregou olho
depois de eu cair para o lado. Não podia ter saído do carro sem ela dar por isso.
Jamie fez um grande sorriso:
— Pronto, então está tudo resolvido.
— Espero bem que sim.
— Como é que a Bennett recebeu a notícia? Ficou desiludida?
Não conseguiu impedir-se de perguntar. Esperava que a inspetora não fosse de deitar as culpas a
alguém até conseguir que tudo encaixasse, só por achar que sim. Fora calorosa e gentil quando falara
com ele no hospital. Muito diferente da mulher fria e fechada que vira hoje. Devia fazer parte do
trabalho, pensou Jamie, mas perguntou a si mesmo se já teria conhecido a verdadeira Caitlin Bennett.
Quem seria ela quando chegava a casa e se punha à vontade? Gostaria de gatos? Gostaria de cães?
Seria casada?
— Não a vi — respondeu Aiden. — Acho que não voltou. Um tipo à paisana entrou na sala e
falou com o sargento, que depois me disse que eu me podia vir embora.
— Queres ir beber uma cerveja? — perguntou Jamie. O dia já estava estragado, mais valia
esquecerem e recomeçarem no dia seguinte. — Estás com ar de quem está a precisar.
— Podes crer. Mas perto deste sítio nem pensar.
— Como preferires.
Estacionaram e caminharam num silêncio cordial, enquanto Aiden fumava um segundo cigarro
que acendera no primeiro.
— Não te deixaram sair para fumares um cigarro?
— Não quis pedir.
— Então o que vais contar à Becca? — perguntou Jamie, quando pararam à frente do King’s
Arms — A verdade?
Aiden encolheu os ombros e começou a arrastar os pés.
— Não sei. Ela passou o dia a ligar e a mandar mensagens. Posso dizer que estive a trabalhar e
que tinha o telefone desligado?
— Para quê mentir outra vez? Estás preocupado por causa da tal Emma?
— É complicado.
— Passou-se alguma coisa com ela? — Jamie lembrou-se de repente de que Aiden ainda era
muito novo. Dezanove anos, com uma namorada de dezasseis. Por muito adulta que ela fosse, era
como se tivessem dez anos de diferença.
Aiden abanou a cabeça.
— Não propriamente. Demos um beijo uma vez, mas foi há séculos. Com a Emma, a cena não é
essa.
Qualquer coisa na sua linguagem corporal dizia o contrário, mas por muito atraído que Aiden se
pudesse sentir por Emma, Jamie achava que ele não tinha feito mais do que beijá-la. Não teria razão
para lhe mentir.
— Ela é diferente da Bex, percebes? A Becca é sempre superinsegura. A Emma é descontraída. É
mais velha. Sabe o que quer.
— Bem, se são apenas amigos, porque não falas dela à Becca? — Oh, pobre Becca, pensou
Jamie. Este rapaz vai partir-te o coração.
— Ela não ia compreender. — Atirou a ponta de cigarro para o chão e pisou-a. — Eu gosto dela
e isso, mas às vezes é demais. Só quero relaxar, divertir-me e tocar.
— Tu é que sabes — disse Jamie, abrindo a porta do pub. — Mas se fosse a ti, contava-lhe. A
parte do beijo talvez não, mas que são amigos e que fumaste umas ganzas com ela naquela noite. A
verdade costuma vir sempre ao de cima. E se a Bennett falar com ela? Ou se a comunicação social
descobre? Eles sabiam que a polícia tinha falado contigo. E se a Becca ficar chateada, deixa-a ficar.
Não fizeste nada de mal. Não podem estar constantemente juntos.
— Não sei, meu… — disse Aiden, seguindo-o para o ambiente quente e deixando a porta fechar-
se atrás deles. Apesar de ter acabado de ser libertado pela polícia, Jamie achou que ele tinha o ar de
um homem condenado. Era o que as mulheres faziam. Aiden estava a aprender isso depressa. — Não
sei se a verdade compensará a chatice.
— Espero que não tenhas dito essa frase à Bennett — disse Jamie e fez sinal ao empregado do
bar.
Aiden riu-se:
— Ainda vou descobrir que foste tu que tramaste isto tudo para passar algum tempo com ela.
Foi a vez de Jamie fazer um ar constrangido e embaraçado. Era assim tão óbvio? Fantástico… Se
Aiden, que passava a maior parte do tempo pedrado e distraído com a sua própria situação, tinha
reparado, era impossível que Caitlin Bennett não tivesse. Rosnou interiormente. O dia estava a ficar
cada vez melhor.
37

Retirado dos FICHEIROS DE CAITLIN BENNETT: EXCERTO DE CADERNO DE NATASHA


HOWLAND

Nem sei por onde hei de começar a escrever isto. Talvez da parte em que Becca saiu que nem um
furacão da sala de convívio. Nem sei se devia escrever acerca deste assunto. Mas mais vale tirar isto
da cabeça e despejar para o papel. Assim, posso virar a página. Terminar este diário que nunca
ninguém há de ler. O seu propósito está cumprido. Nem mesmo a porcaria do diário fez com que me
lembrasse, pois não? Embrulhe, doutora Harvey.
As fraturas entre nós revelaram-se falhas sísmicas que não conseguimos consertar, e o dia de hoje
foi um verdadeiro pesadelo. Tanto ódio e nunca me dera conta dele. E agora aconteceu esta coisa
horrível. Nem consigo compreender bem.
Fiquei sentada na sala de convívio do 11.º ano uns bons dez minutos depois do toque, até me
conseguir mexer e, mesmo nessa altura, quando me dirigi para a sala de teatro, ainda sentia as pernas
pesadas. Já não queria saber da peça. O meu mundo era uma espiral desgovernada. Senti a água fria e
suja na boca. Lembrei-me do medo. Pensei se a Becca me odiaria por causa da minha relutância em
contar à polícia. Só me apetecia ir para casa dormir e nunca mais voltar a sair. A peça era inútil. Já
toda a gente fingia ser outra pessoa. Foi a Jenny que enviou a mensagem.
A primeira coisa que ouvi quando pousei a mochila foi o arrufo. Na sala de teatro estão sempre
menos uns graus do que no resto da escola, e esse frio condizia bem com a atmosfera gélida que
havia entre nós. O professor Jones estava entusiasticamente a explicar a James Ensor, Hayley e Jenny
a cena que iam começar a ler. Não prestei atenção, mas apanhei bocados do que ele estava a dizer.
… é uma cena difícil, cheia de emoções subjacentes. Traição. Dor. Medo.
Não me diga, professor, apeteceu-me dizer. Bem-vindo ao nosso mundo. A Hayley ergueu os
olhos e sorriu-me. Tentei sorrir também. A Jenny tinha os olhos baixos. Batia com o pé no chão e
pensei que talvez estivesse outra vez pedrada. Senti-me imensamente distante de todas elas. Como se
não estivesse realmente ali. Como se tivesse mesmo morrido naquele rio e fosse apenas um fantasma.
— Por amor de Deus, Hannah. — A voz de Becca interrompeu subitamente o meu estranho
devaneio. Estavam de pé ao lado da secretária do professor Jones, onde ele tinha o café e todos os
seus papéis. Becca segurava uma chave presa a um pesado chaveiro da escola. — Para de ser tão
birrenta. Que importância tem isso? Já não temos doze anos!
— Só não percebo porque me mentiste. — Hannah fazia os possíveis por se manter firme, mas
não estava à altura da Becca. Muito menos por trás daquela secretária. E na escola. Estava apenas a
agarrar-se às tábuas dos destroços da sua amizade, na esperança de que a Becca a puxasse para o
salva-vidas. Mas agora a Becca tinha-me a mim. Porque havia de querer a Hannah?
— Talvez se não fosses sempre tão carente, eu não tivesse de mentir — murmurou Becca. Senti a
ferroada e nem sequer era dirigida a mim. A Hannah salvou-se de ter de responder, pois a Becca
voltou-se e dirigiu-se à régie, deixando o rosto de Hannah como um retrato estilhaçado de dor.
— Vem fumar um cigarro comigo antes de começarmos — disse a Hayley à Jenny. Estavam a
falar baixinho, mas eu aproximei-me, fingindo estar a estudar a peça. Embora não participe naquela
cena. Fico apenas parada na sombra, à espera que me iluminem.
— Baza — resmungou Jenny. — Deixa-me em paz. Não quero falar mais contigo.
— Jen…
— Baza, já disse. — Era um silvo quase a transformar-se num grito choroso.
— Prestem atenção! — O professor Jones bateu as palmas. — Vamos começar.
O cigarro de Hayley ia ter de esperar até mais tarde.
Senti um aperto na barriga e sentei-me numa cadeira, um pouco distanciada. O James Ensor
aproximou-se para largar a camisola. Fez-me um grande sorriso e disse qualquer coisa, mas eu não
ouvi. A Jenny comprou o telefone. Acho que também lhe sorri. Ou talvez não.
— Como combinámos. E lembrem-se, cenas enérgicas, medo, paixão, está tudo aqui. — O
professor Jones sentou-se no seu lugar. — Tasha, quero que eles façam a cena toda primeiro e, a
seguir, logo te posicionamos para a Becca testar as luzes, está bem?
Assenti, apesar do desalento, com um alívio estranho por, afinal, não ser um fantasma.
Eles começaram, e até eu me deixei envolver. A Hayley tinha a frieza necessária para o papel de
Elizabeth Proctor, e o James tinha aquela coisa que deixava todas as raparigas loucas por ele. Mas a
Jenny… A Jenny era sempre a revelação. Mesmo naquela situação, ligeiramente pedrada e
desconcentrada, brilhava no palco. Perdia-se no papel de Mary Warren. Era a Mary Warren.
Raramente sinto inveja, mas sentia inveja do talento da Jenny. Perguntei a mim mesma se ela teria
consciência dele. O professor Jones tinha. Estava rejubilante enquanto a observava. A Jenny e os
homens. As abelhas e o mel. Mas já lá vamos.
— Excelente — disse ele quando chegaram ao fim da cena. — Foi excelente. Vamos repetir.
Deem o vosso máximo.
Embora começasse a sentir a pele quente e estivesse a tentar não pensar em casacos, mensagens e
água gelada, dei por mim a observar. Mary Warren já não seria mais a criadinha medrosa. O tribunal
de Abigail — o meu tribunal — tinha-lhe dado poder.
— Sim, mas depois o juiz Hawthorne disse: «Recite-nos os mandamentos!» — Jenny
apoderava-se do palco com o seu olhar desvairado e a sua paixão instável. — E dos dez, ela não
conseguiu dizer um único. Ela nunca soube os mandamentos, e foi apanhada numa mentira
descarada!
— E condenaram-na?
— Nem foi preciso, ela condenou-se a si própria.
— Mas a prova, a prova?
O James Ensor era bom. A personagem racional. O homem mundano, que via as coisas como
eram, pois conhecia o seu papel no meio delas. A confiança da Jenny em palco estava a torná-los a
todos mais fortes. Até a Hayley, que se encontrava entre eles, encarnara absolutamente a personagem.
— Muito bem — disse o professor Jones, e voltou a pôr-se de pé. — Magnífico trabalho. Jenny,
já estás perfeita. Agora vamos posicionar a Tasha para o teste de luz e ver se podemos fazer a peça
assim. Se resultar, a Becca recebe os créditos de assistente de realização.
— Eu vejo-a daqui. — Becca tinha saído da régie e estava atrás do canto marcado do palco, a
olhar para cima, para verificar que o foco estava no sítio. — E o elenco está sentado em bancos entre
as cenas, aqui e aqui, quase como a assistência num julgamento, assim será mais fácil para ela e para
todos os outros chegar a este sítio. Podemos sentar as pessoas de que precisamos nas pontas.
O professor Jones pareceu impressionado, e a Becca estava claramente satisfeita com isso. Era
uma loucura. Senti outra pontada na barriga. Somos tão flexíveis. Não são apenas os nossos corpos
que são fortes. Umas horas antes, a Becca estava aos gritos comigo por causa da polícia e, agora,
estava completamente focada no que estava a fazer. O que estaria a pensar? Que teria dito à Bennett,
se é que a tinha encontrado? Senti o rosto a arder.
— Ótimo. Tasha? — disse o professor Jones.
Não conseguia. Abanei a cabeça.
— Sinto-me meio enjoada. Tonta.
As minhas pernas recusavam-se a mexer e ouvia um zumbido dentro da cabeça. Não queria estar
perto do palco. Nem perto deles. Tentei acalmar-me, mas quanto mais tentava, mais quente o meu
rosto ficava. Só de pensar nisso agora fico outra vez enjoada. No que podia ter acontecido. No que
aconteceu. Alívio e um horrível sentimento de culpa, tudo misturado. Era para ser eu.
O professor Jones franziu o sobrolho, e puseram-se todos à minha volta, o que não ajudou.
Precisava de ar. Precisava que me ignorassem. Tentei pedir desculpa, por entre respirações
profundas e entrecortadas. Estava com a cara toda pegajosa.
— Tens de ir — disse a Hayley. — Tens de te pôr ali uns minutos para o professor Jones ver.
Estava irritada comigo, via-se logo. Achou que eu estava a fingir para chamar a atenção.
— Queres ir estender-te um bocado ou talvez beber um pouco de água? — perguntou o professor
Jones. — Queres ligar à tua mãe para te vir buscar?
Os adultos tratam-me todos com mil cuidados. Eles não recuperam das situações como os jovens.
Não são resistentes como nós.
— Já fico bem — disse, com muito pouca convicção. — Senti-me mal de repente. Atordoada. Se
me derem um momento para me recompor… não sei o que se passa comigo. Já fico bem.
A Hayley fez um ar impaciente e fez passar o ar entre os dentes.
— São só dois minutos. — Olhou para o professor Jones. — Diga-lhe que se ponha de pé e vá
para ali.
— Eu vou — interrompeu uma voz mansa. Toda a gente se voltou para olhar. Era a Hannah, com a
sua audácia recém-descoberta. — Tenho mais ou menos a mesma altura que a Tasha. Não tem de ser
ela.
— Claro que tem — disse a Hayley. — Tem de se captar a expressão, o momento de vitória no
rosto dela, quando Mary Warren diz que eu fui acusada de bruxaria. É isso que torna o momento tão
poderoso, não é só a luz.
— É verdade — disse o professor Jones —, mas se a Tasha desmaiar ou coisa do género, não
quero ser responsável. E, francamente, esperava um pouco mais de compreensão da tua parte,
Hayley. Vocês são amigas. Que se passa com vocês todos hoje?
O nosso ambiente fraturado não passara despercebido.
O professor voltou-se e sorriu a Hannah.
— Isso era ótimo.
— Mas eu acho…
— Chega, Hayley! Vamos lá trabalhar.
Intimidada pelo professor, Hayley fitou-me durante um longo momento e, a seguir, voltou para o
palco. O professor Jones voltou-se para ver se a Becca estava nas luzes, e ela fez-lhe um sinal com
os polegares.
E começaram, a cena desenrolou-se, mas desta vez avançou mais. Eu sabia a deixa que se seguia:
Hoje salvei-lhe a vida. O momento em que Abigail/Eu/Hannah roubaria a cena a Jenny quando a luz
surgisse, mas estava completamente absorta no enredo. Eles eram mesmo bons.
A tensão foi-se intensificando, Proctor tentava ter mão em Mary Warren, frustrado com as
histórias que esta contava ao tribunal ameaçou bater-lhe e então…
— Hoje salvei-lhe a vida! — A Jenny, encolhida, apontou para a Hayley.
A luz mudou. Uma figura emergiu da sombra. Era a Hannah, a esforçar-se por parecer
manipuladora. Triunfante.
E, de repente, tudo se modificou. Senti-me novamente debaixo de água. Fiquei a olhar, imóvel.
Todos ficámos. A Hayley disse a sua última deixa e depois tudo parou. Longos segundos de
incredulidade.
A Becca tinha razão. Resultou às mil maravilhas. Durante um segundo. Talvez dois. Depois a luz
voltou a transformar-se. Numa estrela cadente momentânea. Ouviu-se uma pancada seca. Um som
vazio que aterrou, pesado, sobre a cabeça da Hannah. O som não esteve à altura do efeito. Ela soltou
uma exclamação de surpresa antes de cair. Um instante de confusão, em que nem sequer teve tempo
de levar a mão à cabeça, para sentir a dor, antes de o seu rosto se esvaziar e de as pernas cederem.
Estava morta. Percebi logo. Vi os seus olhos apagarem-se. É só isto? É só preciso isto? Fiquei
colada à cadeira. Acho que estava com a boca meio aberta.
Ninguém se moveu, com exceção do professor Jones. Estava de joelhos, com as mãos sobre
Hannah, sem saber o que fazer. Acho que estava a gritar, mas eu só ouvia o rio a correr. A Jenny
tapava a boca com a mão. A Becca saiu a correr da régie e parou perto do professor Jones. Ficou
parada a olhar. Eu sabia porque estávamos todos parados a olhar. Não era por causa da pequena
poça de sangue debaixo da cabeça da Hannah. Era por causa dos olhos dela. Estavam abertos. E
vazios.
A Hannah saiu de cena, tive vontade de dizer, como a minha mãe costuma dizer às vezes, e
depois deu-me uma enorme vontade de rir, às gargalhadas. Não sei porquê e até estou com medo de
escrever isto, mas foi o que senti. Estava quase a rebentar quando as portas se abriram de par em par.
Primeiro, entraram a passos largos e não a viram. A diretora, a inspetora Bennett e um homem e
uma mulher que também deviam ser polícias. Passaram por mim sem se deterem. A Bennett segurava
uma folha de papel na mão. Tinha sido amarrotada e novamente alisada. Uma fatura. Ficou ao nível
dos meus olhos quando eles pararam. Consegui ler One Cell Shop em cima.
De repente, houve uma agitação geral, mas eu sentia-me como que dentro de uma bolha. Tudo
estava a dissolver-se. Tudo. Arquejei. A minha boca movia-se, mas as palavras não saíam. Dei por
mim de pé, a resfolgar como um peixe fora de água até as palavras começarem a jorrar. Pareciam
demasiado ruidosas, até mesmo ali, por entre os choros e os gritos e o homem e a mulher que
agarravam Hayley e Jenny pelos braços. As minhas próprias palavras pareceram-me demasiado
agudas e fizeram-me doer os tímpanos.
— Já me lembro! — disse, alto demais. — Já me lembro!
PARTE TRÊS
38

Excerto da CONSULTA DE DOUTORA ANNABEL HARVEY COM PACIENTE REBECCA


CRISP, SEXTA-FEIRA, 29 DE JANEIRO, 09H30

REBECCA: O médico receitou-me comprimidos para dormir, mas eu não os quero tomar.
DOUTORA HARVEY: Porquê?
REBECCA: Porque não quero.
DOUTORA HARVEY: Tens medo de dormir?
REBECCA: Não.
DOUTORA HARVEY: Então devias tomá-los. Estás com um ar cansado.
REBECCA: (Pausa)
Fui horrível com ela. Mesmo antes de aquilo acontecer. Já andava a ser há uns dias. Mas no
ensaio fui mesmo má. Irritei-me com ela. Chamei-lhe carente. Magoei-a. Tenho a certeza.
DOUTORA HARVEY: Não sabias o que ia acontecer.
REBECCA: Isso não me alivia nada. Não me sai da cabeça. Isto aconteceu mesmo. Eu estava na
régie. Eu é que movimentei a barra deslizante para inclinar o foco.
(Pausa)
Devia ter sido eu a deslocá-lo. Na prática, fui eu que a matei. O som daquilo, quando lhe atingiu
a cabeça…
(Respiração entrecortada)
DOUTORA HARVEY: Não foste tu que sabotaste o foco de maneira que caísse. Não foste tu que a
mataste. Tu também és uma vítima. Tens de mudar a maneira como vês a morte da Hannah.
REBECCA: (Longa pausa)
(Silêncio)
Quando a Tasha caiu ao rio, lembro-me de pensar que essas coisas não aconteciam a raparigas como
ela. Aconteciam a raparigas como eu. Mas estava enganada. Às vezes acontecem a raparigas
como a Tasha, às raparigas bonitas e luminosas. Ou acontecem a raparigas como a Hannah. As
insignificantes. As que anseiam por que alguém goste delas.
DOUTORA HARVEY: É assim que vês a Hannah? Como uma rapariga insignificante?
REBECCA: Era como toda a gente a via. Aquela luz devia ter caído em cima da Tasha, mas em vez
disso matou a Hannah. Acho que é isso que me faz mais confusão. A Hayley e a Jenny não
queriam que a Tasha falasse. Não queriam que ela se lembrasse. Queriam que ela desaparecesse.
Que morresse. O que quer que fosse. Mas quando a Hannah se ofereceu para substituir a Tasha,
porque a deixaram? Não é um comportamento de psicopata, magoar ou deixar que outra pessoa
morra? Seria ela assim tão pouco importante para elas? Porque não inventaram uma desculpa
qualquer para a afastar?
DOUTORA HARVEY: Talvez não se tenham lembrado de nada.
(Pausa)
REBECCA: Acho que a Hayley tentou que esperássemos pela Natasha, mas não o suficiente. Elas
não impediram que aquilo acontecesse. Deixaram-na morrer. Deixaram que eu a matasse.
DOUTORA HARVEY: Tu não a mataste.
REBECCA: Eu é que comandava as luzes. E fui uma sacana com ela. Fui um estupor.
DOUTORA HARVEY: Porquê? Ela fez alguma coisa que te aborrecesse?
REBECCA: (Meio a rir. Chorosa)
Não. A Hannah não faz… não fazia nada para aborrecer as pessoas. Era apenas… a Hannah. E eu
andava distraída. Tinha recuperado a Tasha.
(Pausa)
A Hannah embaraçava-me. Eu não queria que a Tasha me julgasse por causa dela. Ela era
insignificante. Deve lembrar-se deste género de coisas de quando andava na escola.
DOUTORA HARVEY: Sim, mais ou menos.
REBECCA: Que género de rapariga era a doutora?
DOUTORA HARVEY: Acho que era mais ou menos como tu. Algures no meio.
REBECCA: Também é médica da Natasha, não é?
DOUTORA HARVEY: Sim, sou.
REBECCA: Também vai ser a médica da Hayley e da Jenny?
(Pausa)
Ainda não falei com a Tasha.
DOUTORA HARVEY: Não queres falar com ela?
REBECCA: Não quero falar com ninguém, nem consigo. E a polícia não para de me fazer perguntas
a que não sei responder. Contei à inspetora Bennett tudo o que sabia, no parque de
estacionamento. Deve ser mais difícil para a Tasha. Lembrar-se de tudo assim de repente, depois
do que aconteceu à Hannah. E compreender isto da Hayley e da Jenny.
DOUTORA HARVEY: Tu compreendes?
REBECCA: Não sei. Suspeitávamos de que elas tivessem feito qualquer coisa, mas a mim parecia-
me quase um jogo. Acho que não acreditava realmente. Pelo menos, desta maneira. Como agora.
É demais.
(Pausa)
Já fui amiga da Hayley. Gostava dela. Pelo menos, na altura.
DOUTORA HARVEY: Os assassinos têm amigos. E famílias. Podem ser pessoas muito populares.
O que a Hayley fez ou não fez não a torna uma pessoa má. A maldade não existe.
REBECCA: Não sei se a mãe da Hannah ia concordar com isso.
(Pausa)
Eu e a Tasha apertámos com elas. Fingimos que ela estava a começar a lembrar-se de coisas, do
que se tinha passado naquela noite e no dia anterior. Se não tivéssemos feito isso, talvez a Hannah
ainda estivesse viva. Há de vir a saber-se pelos jornais. Ou no tribunal. A mãe da Hannah vai
saber que nós interferimos e vai culpar-me a mim também.
DOUTORA HARVEY: Tu não tens culpa de nada. A mãe da Hannah está a sofrer, tal como tu estás.
Tens de parar de te recriminar.
REBECCA: Deve ser superestranho para a Tasha. Por um lado, deve sentir que teve muita sorte, mas
por outro, deve ser horrível. Se não fosse a Hannah, teria sido ela. Deve estar a passar-se.
(Pausa)
Pode passar-me um atestado para quando a escola recomeçar na semana que vem? Não quero
voltar.
DOUTORA HARVEY: Não queres voltar para a semana ou não queres voltar nunca?
REBECCA: Que lhe parece?
(Pausa)
Quem me dera que os jornalistas se fossem todos embora. Parece que não me deixam respirar. Já
vai ser difícil ter toda a gente a olhar para mim. A rapariga que carregou no botão. A rapariga que
não verificou o equipamento. Não preciso que eles também o digam. Talvez as coisas melhorem
depois do funeral da Hannah. Talvez nessa altura tudo volte ao normal.
(Pausa)
Mas nada vai voltar ao normal, pois não?
39

Excerto de The Times, segunda-feira, 1 de fevereiro:

Duas raparigas de 16 anos, cujos nomes não podem ser divulgados por motivos de ordem legal,
estão detidas preventivamente e foram acusadas de homicídio e de tentativa de danos corporais
graves. A Brackston Community School reabre hoje após a morte de Hannah Alderton, aluna do 11.º
ano, que ocorreu na passada terça-feira. A diretora pediu à comunicação social que respeitasse a
privacidade dos alunos e dos funcionários neste momento difícil. Um professor da escola foi
igualmente preso e acusado de abuso sexual de menor enquanto detentor de posição de confiança.

A Brackston Community School recebeu a classificação de «Excelente» por parte da Ofsted, mas
os pais dos alunos mostraram-se preocupados com os níveis de assédio na escola. Existe um fosso
entre os alunos das zonas mais abastadas desta tranquila cidade suburbana e os que vêm do bairro
social de Gleberow, onde se regista elevada taxa de desemprego e de pessoas há muito dependentes
de prestações sociais. Pensa-se que uma das duas raparigas acusadas da morte de Hannah Alderton
vivia com a mãe no bairro social.

Excerto de The Brackston Herald, 1 de fevereiro:

Depois dos trágicos acontecimentos na Brackston Community School na última semana, a polícia
confirmou estar convicta de que a morte de Nicola Munroe, a adolescente de Maypoole, não está
associada à quase-morte de Natasha Howland, no mês passado. As duas adolescentes foram
acusadas de homicídio e de tentativa de causar ofensas corporais graves. As raparigas, cujos nomes
não podem ser divulgados por motivos de ordem legal, têm ambas 16 anos e estavam presentes
quando Hannah Alderton morreu, na terça-feira passada. Um professor da Brackston Community
School foi igualmente detido sob acusação de abuso sexual de menor enquanto detentor de posição
de confiança. A polícia tem ainda de confirmar se se trata de um incidente isolado ou se estará, de
alguma forma, associado aos acontecimentos ocorridos na escola na semana passada.

Excerto de The Sun, segunda-feira, 1 de fevereiro:

Sexo, drogas e homicídio numa escola da classe média. Estará Brackston a tornar-se a imagem
da Grã-Bretanha Fraturada?

[…] embora os nomes das duas raparigas não possam ser divulgados, os vizinhos e os pais
descreveram-nas como as melhores amigas de uma das suas vítimas. A mãe de uma aluna do 11.º ano
afirmou: «Elas andavam sempre juntas. Foi um choque, pois pareciam as amigas perfeitas. A minha
filha ouviu rumores de que consumiam drogas com alguma regularidade e gostavam de frequentar
festas. Uma das raparigas é do bairro social de Gleberow. Aquilo é um bocado agreste lá. Não é
como a zona onde mora a Natasha Howland. Talvez tenham agido por inveja? Mas é assustador que
isto possa acontecer numa escola como a de Brackston. Quanto ao professor… bem, veem-se tantos
casos deste género nos jornais, não é? Como ainda os deixam dar aulas? Quem os avalia?»

Embora não possa ser divulgado o nome do professor detido, fontes afirmam que um membro
masculino do departamento de Inglês terá sido suspenso e não regressará ao trabalho quando a escola
reabrir hoje.
40

Excerto dos APONTAMENTOS DA INSPETORA BENNETT (REGISTO PRIVADO), TERÇA-


FEIRA, 2 DE FEVEREIRO, UTILIZADO NUM RELATÓRIO PARA O COMISSÁRIO

Hayley Gallagher permanece em silêncio. Pálida. Abalada. Impossível arrancar-lhe o que quer
que seja. Nem a mãe a consegue convencer a falar.

Jenny Coles, também tranquila agora depois da histeria inicial, continua calada. Fechada em
copas. Precisa de uma avaliação de saúde mental.

Quando lhe foi apresentada a lista de acusações contra a sua pessoa:

— Imagens das câmaras de videovigilância de Jenny na loja de telefones


— Fatura dos dois telefones pré-pagos encontrados no seu cacifo
— Descoberta dos telemóveis escondidos nos quartos das raparigas
— A natureza das mensagens nos telemóveis, que se interrompem na noite do incidente de
Natasha

e quando informada de que o professor de Inglês Peter Garrick confessara ter por várias vezes
mantido relações sexuais com ela (e confirmado a localização do seu encontro na noite em que
Natasha Howland se lembra agora de os ter visto), a sua histeria começou a abrandar. Tudo o que
disse desde então foi «A Hayley prometeu que ia pensar em qualquer coisa».

Embora não específica, julgo que isto é uma indicação de que Hayley tentou manipular o foco do
palco na escola, e de que Jenny está a tentar distanciar-se disso. Hayley não reagiu à acusação.
Continua a recusar-se a falar.
Entre os telemóveis, o facto de Hayley ter sabotado o foco da sala de teatro, pensando que
Natasha estaria por baixo, e as provas encontradas na clareira (as beatas de cigarro, cápsulas de
comprimidos para dormir Dalmane, iguais aos comprimidos utilizados pela mãe de Jenny, o pedaço
de corda) e a confissão de Garrick de ter mantido um relacionamento sexual secreto com Jenny, do
qual Hayley era cúmplice, juntamente com o depoimento de Natasha e com o que esta escreveu no
caderno que a doutora Harvey lhe deu, agora requisitado como prova, temos o suficiente para as
incriminar, mesmo sem confissões. A Hayley pode ser acusada de homicídio e de tentativa de ofensas
corporais graves, e a Jenny de cúmplice de homicídio e de tentativa de ofensas corporais graves.
Temos também em nossa posse os seus telemóveis principais e estamos a tentar recuperar as
mensagens que foram apagadas.

Não existem provas que sugiram que Peter Garrick soubesse algo acerca do ataque contra
Natasha Howland ou estivesse de alguma forma envolvido, para lá do relacionamento que mantinha
com Jenny, cuja descoberta foi o catalisador para o ataque contra Natasha. Garrick parece
autenticamente chocado por as raparigas terem ido tão longe e está transtornado. Afirma que estava
apaixonado por Jenny e que fazia tenções de deixar a mulher. Já entregou a sua demissão e ia
abandonar a escola no final do período, assim que tivesse cumprido as suas obrigações para com os
estudantes que vão a exame e para com a sua função de responsável pelos exames. A Procuradoria-
Geral da Coroa não tenciona retirar as acusações contra ele, mas se soubesse que Jenny e Hayley
tinham intenções de atacar Natasha, julgo que Garrick as teria impedido ou avisado a polícia,
independentemente das consequências que tal pudesse originar para si próprio.

Garrick foi libertado sob fiança e encontra-se em casa. A mulher e os dois filhos, que nada
sabiam do seu caso amoroso, estão agora em casa da sogra dele, em Manchester.

O corpo de Hannah Alderton foi entregue à família, e o funeral está marcado para sexta-feira. A
família pediu à polícia que não comparecesse, para manter a comunicação social o mais distante
possível.

Rebecca Crisp e Natasha Howland ainda não regressaram à escola. Ambas tencionam fazê-lo
depois do funeral. Rebecca está compreensivelmente traumatizada após a morte de Hannah Alderton
e tem sido acompanhada pela doutora Harvey. Natasha Howland está a sofrer do sentimento de culpa
do sobrevivente, ciente de que deveria ser ela a estar por baixo do foco do palco. Todavia, a doutora
Harvey está confiante de que nenhuma das raparigas virá a sofrer qualquer problema duradouro e de
que o processo dos julgamentos e da apresentação de provas — que será, sem dúvida, angustiante —
lhes permitirá provavelmente encerrar o assunto.
Natasha mostrou-se muito relutante em entregar o caderno que a doutora Harvey lhe deu, o que
não é de surpreender, tendo em conta o conteúdo pormenorizado, que inclui revelações de consumo
de drogas e os seus pensamentos pessoais relativamente a sexo, às amigas e à família. Contudo, o seu
relato escrito confirma totalmente o depoimento de Rebecca Crisp.
41

Era a noite antes do funeral, e Becca estava com os nervos em franja. Sentia-se extremamente
tensa, embora só tivesse dado uma passa num charro desde a morte de Hannah. Em certas alturas não
sabia se alguma vez voltaria a tocar naquilo, noutras só lhe apetecia apanhar uma pedra de morte.
Esperou até ficar escuro antes de sair e não ligou a avisar. Havia dias que não telefonava a ninguém.
Alguém tinha dado o seu número de telefone à imprensa, e o seu iPhone bloqueava agora todas as
chamadas, com exceção das dos pais ou de Aiden. Ainda que não precisasse propriamente de ver o
número da mãe para saber que era ela a ligar. Exceto quando estava com a polícia ou com aquela
psicóloga, quase não saía da vista da mãe.
Aiden fora lá a casa, mas nem ele sabia como lidar com a situação. Não era apenas Hannah ter
morrido, o que já era de loucos, mas ser Becca quem comandava o foco. Como podiam falar
daquilo? Ela bem queria, mas ele andava estranho e apático, embora a tivesse abraçado e lhe tivesse
dito que ia ficar tudo bem. Estava pedrado, o que não ajudara. Ela precisava dele, como é que ele
não via? Mas a forma descontraída com que costumavam estar um com o outro parecia ter
desaparecido.
Becca tinha de falar com alguém. Por isso estava ali.
— Ela está no quarto — disse Alison Howland, apertando o braço de Becca. — Sobe. Ela vai
gostar de te ver. Amanhã vai ser um dia difícil para as duas. — Não estava a entaramelar as
palavras, mas estas saíram-lhe um bocado depressa demais, e Becca viu a garrafa de vinho em cima
da ilha da cozinha. Estava aberta e com dois terços bebidos. Becca não a censurava. Tasha quase
morrera. Duas vezes. Ficaria surpreendida se os Howland voltassem a deixar a filha sair de casa. —
Queres beber alguma coisa? Comer?
Becca abanou a cabeça e fugiu do calor da cozinha, subindo os degraus dois a dois. Estava farta
da preocupação claustrofóbica dos adultos. Eles queriam pôr tudo bem. Mas não podiam.
A porta de Tasha não estava trancada e Becca abriu-a devagar, sentindo-se subitamente nervosa.
Era idiota, não havia nenhuma razão para estar nervosa, mas sem o telemóvel e depois de ter estado
afastada de todas as redes sociais era como sair de uma bolha. Estava habituada a saber o que as
pessoas sentiam, o que estavam a fazer, com o clique de um botão. Mas agora isso acabara.
— Viva — disse. — Lembrei-me de… — Encolheu os ombros. — Sabes… Como amanhã…
Tasha ergueu os olhos. Estava sentada na cama, com uma caixa de sapatos velha ao lado, cujo
conteúdo estivera a examinar.
— Entra — disse finalmente, afastando-se para Becca se sentar na cama. — Que bom teres
vindo. Parece que há uma eternidade que só vejo a Bennett e os meus pais.
— Eu percebo. É como se nós é que estivéssemos presas.
— Estás bem? — perguntou Tasha.
Becca anuiu, mas focou-se no conteúdo da caixa. Não estava preparada para falar do que sentia.
— Que cenas são essas? — perguntou. Eram velhos crachás, bilhetes de concertos, madeixas de
cabelo, uma flor espalmada, todo o género de coisas.
— Oh, são coisas sem importância. Gosto de guardar recordações de momentos divertidos. —
Estendeu a flor roxa seca. — Isto é do dia em que descobrimos a clareira e fizemos dela o nosso
local secreto. Encontrei-a quando vinha a voltar para casa. Achei-a bonita, ali no meio de todo
aquele verde.
Becca pôs-se a vasculhar os objetos e encontrou uma coisa familiar.
— Isto é a minha pulseira da Livestrong?
Tasha tirou-a da caixa.
— Sim! De quando andávamos no sexto ano e fizemos aquele concurso. Bem, tu é que fizeste, eu
nunca cheguei a acabar. Ofereceste-ma, lembras-te?
Becca anuiu a sorrir, com o coração quase a derreter devido à recordação. Aquela caixa não era
para Barbies. Ela também lá estava. Uma arca do tesouro de recordações. Pensou em Hayley e Jenny.
— Como foram elas capazes? — perguntou em voz baixa, enquanto Tasha voltava a pôr a tampa
com cuidado na caixa e a enfiava debaixo da cama. Não foi preciso perguntar a quem se estava a
referir.
— Não acredito que elas me quisessem matar — disse, beliscando a capa do edredão. — Pelo
menos, a primeira vez. Queriam pregar-me um susto. Drogaram-me e abandonaram-me. Mas acho que
a intenção delas não era que eu morresse. — Fez uma pausa. — Mas a coisa deu para o torto.
— Do que te lembras? — perguntou Becca.
Tasha parecia tão frágil, com o cabelo quase colado ao rosto, já sem nada da gloriosa rainha das
abelhas da colmeia, que Becca lhe pegou na mão e a apertou por um momento. A pele dela estava
fria.
— Meu Deus, não quero falar disso. Parece que passei uma eternidade a repetir a mesma coisa
para o depoimento da Bennett, para a Procuradoria-Geral da Coroa e para toda a gente.
— Desculpa, não pensei nisso.
— Deve ter sido por ver a Hannah naquele estado. O choque. Aquilo deve ter obrigado o meu
cérebro a voltar a funcionar como deve ser. Foi como sentir uma torneira a abrir-se. — Olhou para
Becca. — Mas e tu, como estás? Ela era tua amiga. Era uma rapariga simpática.
Quantas pessoas diziam agora aquilo acerca de Hannah? Aluna de excelência, uma rapariga
adorável, essas coisas todas, quando na realidade até os professores quase não davam por ela.
— Acho que ainda não me mentalizei completamente. — Becca sentiu um aperto de náusea no
estômago. — Estou sempre a ver o painel de comando. Quando fecho os olhos, vejo-me a gritar com
ela e a deslocar a calha toda de uma só vez. Acho que nunca mais deixarei de ver esta imagem.
— A culpa não foi tua. Sabes disso. Elas é que fizeram isso. — Tasha endireitou-se e olhou de
frente para Becca. — Não fomos nós. Não foi por minha culpa que não estava eu naquele lugar e não
foi por culpa tua que o foco caiu. — Os seus ombros descaíram. — Gostava de ainda ter o diário que
a doutora Harvey me obrigou a escrever. Se calhar, vou começar um novo. Foi catártico, sabes?
Nunca pensei que funcionasse, mas fez com que uma data de coisas me saíssem da cabeça.
— Onde está?
— Com a polícia. Levaram-no assim que falei nele.
Soltaram as duas um gemido.
— Céus, apetece-me um cigarro — disse Becca. — Achas que os fotógrafos veem a janela do
sítio onde estão estacionados?
— Já não me interessa. Ainda nem saí de casa, exceto quando foi para ir à esquadra. Espero que
depois de amanhã se ponham a andar.
— Talvez outra miúda qualquer morra e isso os distraia — murmurou Becca, apercebendo-se
imediatamente de como aquilo era horrível. Mas não impediu que se rissem as duas. Humor negro.
Não lhes restava mais nada.
— Vamos sentar-nos no chão ao lado da janela — disse Tasha, abrindo-a um bocadinho. — Eu
desligo o candeeiro. Não verão mais do que uma ponta de cigarro a arder ao longe. Grande coisa.
O ar frio do exterior penetrou pela fresta, e Becca sentou-se encostada à parede, com os joelhos
debaixo do queixo, uma imagem em espelho de Tasha, à sua frente, mas com coxas mais grossas e
muito menos graciosa. A pequena abertura não impediria que o quarto — e provavelmente todo o
andar de cima — ficasse a cheirar a tabaco, mas os Howland não iriam repreendê-las naquela noite,
se é que alguma vez o fariam. Alison limitar-se-ia a servir-se de outro copo de vinho e a pensar no
seu falhanço como mãe, sem se aperceber de que nada daquela história horrorosa tinha fosse o que
fosse que ver com ser boa ou má mãe. Tinha que ver com elas. Com o mundo delas. Não havia nada
que as famílias pudessem ter feito.
— Vamos juntas amanhã ao funeral? — perguntou Tasha, depois de apagar a luz. — Para os
idiotas se regalarem todos? Aquilo vai estar cheio deles.
— Pode ser — respondeu Becca. Era um alívio. Só se apercebeu disso quando o coração lhe
bombeou calor para os membros. Não queria que as pessoas ficassem a olhar para ela sozinha. E
Tasha era a vítima trágica — não tanto como Hannah, mas essa já cá não estava. Natasha era o centro
de tudo. Na sua companhia, talvez as pessoas não olhassem tanto para ela nem a achassem tanto um
monstro. A rapariga que, sem querer, matou a melhor amiga. Se calhar, até parte da colmeia achava
que ela estava feita com as outras duas. Ela sabia como a colmeia funcionava. Que interesse tinha
uma história se não podia ser ornamentada?
— Peço ao meu pai que venha até cá de carro e vamos atrás do carro do teu? — perguntou,
soltando uma grande nuvem de fumo. O tabaco estava a deixá-la um bocado tonta e não aliviava a
sensação de vago enjoo com que estava a habituar-se a viver. Há vários dias que pouco comia e
quase não fumava. Sentiu um sabor desagradável na boca, mas inalou novamente.
— Porreiro — disse Tasha. — Estou ansiosa por que isto acabe.
— Também eu.
Pobre Hannah. Mesmo o seu derradeiro evento social, aquele em que a rapariga que raramente
juntava mais do que cinco ou seis amigas para almoçar no dia de anos podia finalmente contar com a
presença de quase todos os alunos do 11.º ano, se desejava que passasse depressa. Desculpa,
Hannah, pensou Becca, e inclinou a cabeça para trás para impedir que as lágrimas que lhe faziam
arder os olhos brotassem do seu poço interior de compaixão e de culpa. Desculpa ter sido tão
sacana contigo.
— Vais voltar à escola na segunda? — perguntou.
— Vou. E tu?
Becca anuiu.
— Apetecia-me que fosse noutro sítio, mas então teria desconhecidos a olhar para mim, em vez
de miúdos e de professores que conheço.
— Antes isso. Já alguém te disse alguma coisa?
— Não. O meu telemóvel tem estado desligado. Preciso de um número novo. Além disso, não me
apetece propriamente falar disto.
— Vieram cá uns professores, mas quase não falei com eles — disse Tasha. — Deixei isso para a
minha mãe. Mas andei a ver o Facebook. Caso não saibas, anda imensa gente a publicar nos nossos
murais. — Esboçou um sorriso na obscuridade. — Como se fôssemos celebridades em miniatura ou
coisa do género.
Becca tinha a certeza de que havia muito mais gente a publicar no mural de Tasha do que no seu,
mas era bom saber que as pessoas pensavam nelas.
— As contas da Hayley e da Jenny desapareceram — disse Tasha placidamente. — Deve ter sido
a polícia ou os pais que as apagaram. Provavelmente a polícia. — Fez uma pausa. — A da Hannah
ainda lá continua. Mas eu não era amiga dela lá. De certa maneira, ainda bem. Ia ser esquisito ver as
últimas publicações dela. — Ergueu os olhos para Becca. — Desculpa. Disse isto sem pensar. Isto é
muito pior para ti do que para mim. Ela era tua amiga. E tu… Bem, tu sabes. Naquela tarde.
Inclinei o foco. E era isso mesmo. Intencionalmente ou não, ela, Rebecca Crisp, matara a melhor
amiga. Fora o seu jogo de luzes, deixara que Hayley subisse ao escadote para as ajustar, apesar das
suspeitas que tinham e sem que ela tivesse qualquer formação para fazer aquilo. A culpa fora toda
sua. Facilitara-lhe a vida.
— Também lá está imensa coisa sobre o professor Garrick — disse Tasha. — Embora agora já
me lembre, ainda continuo a achar estranho. Com tantos professores, tinha logo de ser o Garrick? Ele
não é propriamente o Jones, pois não? Se fosse o Jones, até compreendia, mas o Garrick? — Tasha
abanou a cabeça. — Sei que a Jenny dava umas quecas aqui e ali, mas achava que ela tinha alguns
critérios.
Becca soltou uma gargalhada que mais parecia um ronco, talvez para afastar as lágrimas de
compaixão e de autocomiseração que continuavam a tentar escapar-se.
— Não os imagino a fazerem aquilo. — No momento em que o disse, a imagem veio-lhe à mente.
Jenny e o professor Garrick na secretária dele, ele com as calças pelas coxas, a dar às ancas. —
Bolas, agora estou a imaginá-los.
— E tu não viste nada! — exclamou Tasha.
Voltaram as gargalhadas, mas estas depressa se desvaneceram. Tinha acontecido muita coisa e
estavam as duas demasiado cansadas e pensativas para rir às gargalhadas. Sentiam-se vazias, pensou
Becca. Tudo lhes havia sido sugado de dentro.
— Eu gostava dele — acabou por dizer, atirando a ponta incandescente do cigarro pela janela. —
Ele era bondoso, não sei se percebes.
— Sim — respondeu Tasha. — Acho que percebo.
— E agora deu cabo da vida. Não foi só ter andado a dar quecas com uma aluna do décimo
primeiro ano. Agora está metido nesta merda toda. No que elas te fizeram para proteger o segredo.
— Becca fitou Tasha. — Como estará ele a sentir-se? — Fez uma pausa. — Como estarão elas a
sentir-se?
Não era necessário mencionar os nomes. Dali em diante, elas significaria sempre as outras duas
Barbies.
Tasha voltou o rosto para a parede e ficou a olhar para fora. Não disse nada durante um longo
momento.
— Encurraladas e assustadas — disse por fim. — E arrependidas. — Fez uma pausa. — Muito,
muito arrependidas.
— Pois — disse Becca. — És capaz de ter razão.
— É verdade… — Tasha pôs-se de pé e acendeu a luz. — Viste aquela rapariga? A Emma? No
Facebook? A amiga do Aiden?
— Quem? — Becca sentiu uma pontada forte no estômago, mas não percebeu bem porquê. —
Não tenho lá ido.
— Vi que ela publicou qualquer coisa no mural dele, a dizer que estava contente por tudo se ter
resolvido. — Tasha estendeu a mão e ajudou Becca a pôr-se de pé. — Fui ver a página dela, não é
privada nem nada, e ela escreveu lá qualquer coisa na quinta-feira sobre ter salvado um tipo da
prisão. Que história foi essa? Sabes quem é?
Becca sentiu-se enjoada. Não, não sabia quem era. Como podia ela ter salvado Aiden? Becca é
que salvara Aiden ao sugerir à inspetora Bennett que revistasse os cacifos das raparigas. Ou teria
Bennett ido revistar os cacifos porque a tal rapariga fornecera um álibi a Aiden? Ele não contara
grande coisa sobre o interrogatório, dissera apenas que tinham estado a falar de umas coisas. E, para
rematar, como andava Tasha a ver a página de Facebook de Aiden? Agora eram amigos? Ele tinha-
lhe pedido amizade?
— Não tenho a certeza — respondeu. — Sou capaz de a conhecer. Às vezes já não sei, ele tem
imensos amigos músicos. — Desejou parecer indiferente, mas sentia a mente a fervilhar. Ele tinha
andado estranho com ela, mas ela achara que era por causa de Hannah, não devido a qualquer coisa
que tivesse feito.
— Mas ele não te disse nada acerca disso? — O olhar de Tasha era penetrante. Becca abanou a
cabeça. Por qualquer razão, aquilo fazia-a sentir-se uma falhada.
— Bom, talvez eu tenha percebido mal. Ela podia estar a falar de outra coisa qualquer. Ou de
outra pessoa qualquer. Ou talvez fosse só uma piada.
— Pois, deve ser qualquer coisa do género. — De repente, Becca sentiu vontade de estar sozinha
num sítio onde as formiguinhas no seu cérebro pudessem correr livremente sem ter de fingir que
estava a prestar atenção a alguém. — Bom, tenho de ir para casa. A minha mãe anda doida. Não
queria por nada que eu cá viesse.
— Pois, eu sei como é. A minha está na mesma. Mas passas por cá antes amanhã? Talvez por
volta das dez?
— Passo. Não quero ir sozinha. Prefiro ir contigo.
Tasha envolveu-a num abraço tão apertado que Becca teve a certeza de que a amiga conseguia
sentir o batimento acelerado do seu coração contra o peito.
— Obrigada por tudo, Becca. Tens sido o máximo. Não sei como teria aguentado sem ti. A sério.
Becca apertou-a também, com a cabeça cheia de pensamentos sobre Hannah.
— Até amanhã — disse. — Vamos lá acabar com isto.
Despediu-se com um aceno de mão de Alison Howland, que continuava a beber na cozinha, e
saiu. Pôs o capuz do casaco e manteve a cabeça baixa. Os jornalistas que ainda se moviam
furtivamente perto da sua casa e da de Tasha podiam fotografá-la, mas não conseguiriam uma boa
fotografia. E que importância tinha se escrevessem que as duas adolescentes envolvidas na tragédia
se tinham encontrado antes do funeral? Becca estava a perceber que começava a importar-se cada
vez menos com o mundo exterior. Só queria que a deixassem em paz e que as deixassem pôr um ponto
final naquela história toda.
A meio caminho de casa, o telemóvel zumbiu. Era Aiden, para saber como ela estava e a dizer
que, se quisesse, iria com ela ao funeral no dia seguinte. Jamie também ia e dava-lhe boleia. Três
beijos no final. Sentiu comichão nos dedos. Sentia comichão em todo o lado exceto no coração, que
lhe doía. Decidira ir ao funeral porque Jamie queria que ele fosse? Qual era o papel dela naquilo
tudo? Porque não ia para a apoiar? Dizia que a amava! Uma onda de raiva brotou-lhe do cérebro e
espalhou-se até às pontas dos dedos, que deslizaram velozmente pelo ecrã do telemóvel.

Quem é a merda da Emma?


Como é que ela te salvou de seres preso?
E quando pediste amizade à Tasha no fb??????

Uma pausa. A resposta dele pareceu levar uma eternidade a chegar.

Andas a coscuvilhar no meu fb??


A sério??

A raiva dela abafou a vergonha.

Responde!!

Agora corriam-lhe lágrimas. Tinha-as contido enquanto pensava em Hannah, mas agora já não
aguentava mais. Que cena mais marada. Hannah estava morta, mas era a ideia de Aiden a deixar que
a fazia chorar.

Vemo-nos amanhã.
Não tenho tempo para isto.

Becca soltou um ronco de raiva e quase atirou o telemóvel para os arbustos. Agora sentia-se
magoada e idiota. Porque tinha feito aquilo? Não podia ter deixado a coisa passar e ter esperado?
Mas porque não lhe dissera ele nada? E porque se tinha mostrado tão frio? Depois de tudo o que
acontecera, de tudo por que ela tinha passado, por que ainda estava a passar, porque não conseguia
ele ser simplesmente simpático? Sabia que às vezes ela se passava um bocado, não podia
simplesmente reconfortá-la? Porque tinha sempre de ser ela a pedir desculpa por ser tão palerma?
Foi para casa confusa, bateu com a porta e correu a refugiar-se no santuário do seu quarto, antes
que a mãe a encurralasse. Atirou-se para cima da cama e começou a chorar. Fingiu estar a chorar por
Hannah, mas sabia que não era verdade. Por muito patético que fosse, estava a chorar por si mesma.
42

O sol brilhava e fez Hannah subir à ribalta, à frente de uma multidão, pela primeira e única vez na
sua vida breve. Becca perguntou a si mesma se isso a incomodava. Se sentiria realmente alguma
coisa. Lançou um olhar a Tasha, que tinha o rosto escondido por trás de uns grandes óculos escuros
de estilo californiano, quando saíram da igreja e se espalharam pelo cemitério e pelo parque de
estacionamento. Desejou ter-se lembrado de levar óculos escuros. Tinha o rosto vermelho e
manchado das lágrimas, e o seu mal-estar era evidente para toda a gente. Aparecera imensa gente. A
igreja estivera cheia de gente de pé durante o curto serviço religioso.
Becca tentara cruzar o olhar com o da mãe de Hannah, mas esta estava perdida no seu desgosto
ou então evitara olhar para Becca. Sentiu o estômago a contorcer-se. Não conseguira ver Aiden nem
Jamie McMahon. Deviam estar algures mais para trás. O pai de Hannah e o vigário disseram algumas
palavras e depois anunciaram que haveria uma missa em homenagem da filha dentro de alguns meses.
Antes precisavam de tempo para aceitar a perda dela.
— Quem irá nessa altura? — murmurara Tasha baixinho e, embora fosse um pensamento cruel,
era realista. A celebridade de Hannah desvanecer-se-ia depressa.
Becca ficou satisfeita quando conseguiu fugir da igreja. Não tinha gostado de olhar para o caixão
pousado lá à frente e de imaginar Hannah, fria e azul, lá dentro. Não conseguia parar de imaginá-la
de olhos abertos, cheios de raiva e de desejo de vingança. A quem se atiraria? A Hayley ou a Becca?
— Foi horrível — disse Becca, cheia de vontade de acender um cigarro. Atrás das duas
raparigas, os quatro pais conversavam em voz baixa, daquela maneira que os adultos fazem, como se
compreendessem tudo aquilo muito melhor do que os adolescentes. Como se fossem detentores de
uma magia qualquer que lhes desse mais clarividência. Era tudo treta. — Odiei vê-la ali, estás a ver?
Não parava de pensar que ela estava a ouvir ou coisa do género.
— Ela está morta — disse Tasha. Becca não lhe via os olhos, mas a sua boca contraiu-se. — Eu
estive morta, lembras-te? Não há nada do outro lado. — Fez uma pausa. — Santo Deus, lá vêm elas.
Becca ergueu os olhos. Uma pequena lufada de feminilidade avançava na direção delas, com o
cabelo arranjado e roupas pretas um nadinha apertadas e bem escolhidas demais para quem está
realmente a sofrer. Aspirantes a Barbies. Mais tarde, iam aparecer fotografias no Instagram.
Flutuaram até Tasha, invadindo o espaço à volta dela como um perfume barato. Não lançaram um
único olhar a Becca, mas conseguiram afastá-la sem sequer reparar enquanto falavam efusivamente
sobre Hayley, Jenny e Hannah, e comentavam como tudo aquilo era terrível, mas que estavam
contentes por Tasha estar bem. Mesmo típico.
Atrás dela, a mãe de Becca não reparara no isolamento da filha. Tinha a cabeça ligeiramente
inclinada e estava a ouvir Alison Howland, com um braço a envolver o fundo das costas da mulher.
Ambas estavam impecáveis, claro, mas Alison levava ligeiramente a dianteira no que respeitava a
elegância descontraída. Desculpa, mãe, pensou Becca, observando uma a falar e a outra a ouvir.
Também nunca foste uma Barbie, pois não?
— Vão ter de me devolver aquelas pulseiras — disse Alison de lágrimas nos olhos. — Foi a
Natasha quem as escolheu, sabe? Aquelas raparigas eram as melhores amigas dela. Eu pensava que
elas a adoravam.
— Não se compreende — respondeu a mãe de Becca. — Que as terá levado a fazer uma coisa
destas? A Jenny, eu não conhecia, mas a Hayley, quando ia lá a casa brincar, parecia uma menina
esperta e amorosa. E bonita. Pobre Natasha…
Becca deixou de lhes prestar atenção e, nesse momento, Vicki Springer passou por ela e
introduziu-se cuidadosamente no círculo que rodeava Tasha. Becca quase nem reparou nela. Até a
sua própria mãe sentia mais pena de Tasha do que de Becca ou da pobre Hannah que morrera.
Esquadrinhou a multidão à procura de Aiden, mas os seus olhos pousaram em Amanda Alderton. A
mãe de Hannah tinha perdido, no mínimo, seis quilos desde a última vez que Becca a vira e
cumprimentava educadamente desconhecidos. Estava pálida e parecia exausta. A dor estava gravada
em todos os seus movimentos e o seu humor efervescente desvanecera-se por completo, como se não
tivesse passado de uma ilusão. Becca sentiu-se enjoada ao olhar para ela, mas respirou fundo e
obrigou-se a avançar. Apercebeu-se de que gostava dos Alderton. Mesmo quando troçava deles para
si mesma, a sua presença inspirava-lhe um certo bem-estar. Como se gostar deles fizesse diferença
agora. Acabaram-se os almoços de família. Acabaram-se as sanduíches na cozinha deles. Aquele
pensamento fez com que a realidade a atingisse com mais força do que a visão do caixão e antes de
chegar perto da mãe de Hannah já as lágrimas lhe rolavam, quentes e húmidas, pelas faces.
Fungou com força, limpou o nariz com as costas da mão, sem se importar com o que poderiam
pensar.
— Tenho pena — disse. — Tenho imensa pena.
Fitou a mulher com os olhos suplicantes. Precisava de saber que não estavam zangados com ela.
Precisava que a mãe de Hannah a abraçasse, lhe dissesse que ia ficar tudo bem.
Mas ela não fez nada disso. Ficaram paradas a olhar uma para a outra durante um momento,
Becca a chorar e Amanda a conter a dor. A visão turva impedia Becca de ler a expressão da outra,
mas estava consciente da presença de outras pessoas ali perto — Mark Pritchard, menos emproado
do que habitualmente, estava mesmo ao lado delas, de cabeça baixa e a falar com James Ensor.
Ergueram ambos os olhos.
— Tenho imensa pena — repetiu ela, desta vez mais baixo, pouco mais do que um sussurro.
— Não foi tua culpa, Rebecca — disse a mãe de Hannah. Mas não lhe tocou, e a sua voz era
pouco calorosa. Rebecca. Que formal. — Sabemos que não foste responsável pela morte da Hannah.
— Obrigada — respondeu Becca. — Eu gostava imenso dela, sabe? Era a minha melhor amiga.
Limpou os olhos para ver melhor.
— Pois era. — Amanda Alderton esticou-se e cresceu dois centímetros. — Foi uma boa amiga
para ti. Foi pena tu deixares-te distrair tão facilmente.
E depois voltou-lhe as costas, e foi como se Becca tivesse levado uma bofetada. O queixo caiu-
lhe. Era evidente que Hannah tinha falado de Becca à mãe. Hannah falava de quase tudo com a mãe.
— Eu não… — balbuciou ela. — Não queria…
Mas Amanda Alderton já não estava a ouvir. O sol, que cortava com dificuldade o frio de
fevereiro, ficou de súbito demasiado forte. Becca desejou não estar ali. Não queria estar em lado
nenhum. Queria voltar a correr para dentro da igreja, atirar-se para cima do caixão de Hannah e
implorar que ela a perdoasse.
— Não leves a mal.
Becca sobressaltou-se ligeiramente e em seguida sentiu-se aliviada. Era Tasha, que se tinha
livrado das suas novas seguidoras.
— Quando fizerem a missa, imagino que ela queira que leias qualquer coisa.
A cremação, naquela tarde, era reservada apenas à família. Depois da troca de palavras com
Amanda, Becca ficou duplamente aliviada por não ter de assistir. Natasha fez um movimento de
cabeça na direção da multidão que começava lentamente a dispersar, de regresso à sua vida.
— A polícia vê-se a milhas. Ali, ao lado do Jamie e do Aiden.
Becca ergueu o olhar. Aiden estava a fumar por baixo de umas árvores, com Jamie ao lado.
Sentiu o coração dar um pulo e afundar-se ao mesmo tempo. Tinha de falar com ele. Para ver se
melhorava a situação.
— Estás a ver? — perguntou Tasha. — Ali, ao pé da saída.
Becca deslizou o olhar e detetou imediatamente a polícia. Quatro homens ao lado dos portões da
igreja, de fato, mas com um ar indiferente, a olhar para os jornalistas que, sem dúvida, esperavam
para conseguir mais fotografias para encher as suas páginas mórbidas. Dois dos polícias pegaram
nos telefones ao mesmo tempo. Fizeram sinal a um dos outros.
— Passa-se qualquer coisa — murmurou Becca, franzindo o sobrolho.
— Passa-se sempre qualquer coisa — disse Tasha. — São polícias. Não deve ter nada que ver
connosco. — Deu o braço a Becca. — Anda, vamos falar com o Aiden e o Jamie.
Era o que Becca queria fazer… Mas não queria fazê-lo com Tasha a reboque. A mãe obrigara-a a
deixar o telemóvel em casa como sinal de respeito, fosse o que fosse que isso quisesse dizer, e não
houve suspiros nem súplicas que a fizessem mudar de ideias, de modo que não fazia ideia se Aiden
lhe enviara alguma mensagem ou não. Se tivesse enviado, Becca não queria que pensasse que ela
estava irritada com ele, mas como não tinha maneira de saber se ele lhe tinha enviado mensagens ou
não, não sabia se devia ou não estar irritada com ele. Santo Deus, o amor não devia ser assim tão
complicado, pois não?
Amaldiçoou interiormente a mãe. Não devia ter nada que ver com respeito, ela não devia querer
era que aparecessem fotografias no jornal de Becca a usar o telemóvel durante o funeral da amiga
que assassinara por acidente. E a verdade era que Becca também não queria. Muito menos depois da
conversa com Amanda Alderton. Mas a questão não era essa.
— Viva, meninas — disse Jamie. — Como vai isso?
— Que dia horrível — respondeu Natasha. — Isto é completamente surreal. Não é, Bex?
— Sim, horrível.
Aiden olhou para ela por baixo da franja. Normalmente, Becca achava o cabelo comprido dele
muito sensual, mas naquele momento sentiu que o estava a usar como uma barreira entre os dois.
Aiden não lhe tocou nem lhe pegou na mão.
— Estás bem?
Ela assentiu.
— Hei de ficar.
— A Becca tem sido incrível — disse Tasha com entusiasmo. — Não sei o que teria feito sem
ela.
— Estás com bom aspeto — disse Jamie. — E ouvi dizer que já recuperaste a memória?
Becca deixou-os desfiar a conversa. Sentia o coração a latejar nos ouvidos.
— Podemos falar? — perguntou baixinho, agarrando no braço de Aiden e afastando-o
ligeiramente dos outros dois. — Sabes, sobre ontem à noite. Estava chateada, talvez tenha exagerado
e…
— Exageras sempre, Bex. — Aiden parecia cansado. Esgotado. — Porque achas que não te conto
sempre tudo?
— Como assim, não me contas sempre tudo?
— Estás a ver? Lá estás tu novamente. Queres mesmo falar disto agora?
Ele olhou para ela como se ela fosse uma criança e isso feriu-a. Sentia o rosto a arder. Será que
queria mesmo fazer aquilo?
— Não quero discutir nem nada — disse, e odiou o tom carente da própria voz. — Só queria
pedir desculpa. — Mas ainda quero saber quem é a Emma e como ficaste amigo da Tasha no
Facebook. Reprimiu o pensamento.
— Pedes sempre desculpa — disse Aiden. — E dizes sempre que é sincero. Mas não tens mão
nos ciúmes nem na tua insegurança. Isso põe-me doido.
— Não é por mal, eu… — As lágrimas brotaram, quentes e fortes, quando ele a interrompeu.
— A Emma é apenas uma amiga minha. Trabalha num bar. Depois de te ter deixado naquela noite,
fui beber um copo e depois fomos fumar um charro perto do rio e adormecemos no meu carro. Ela
contou à polícia, e eles soltaram-me.
— Porque não me disseste? — perguntou Becca. — Eu não me teria importado. — Mas ao dizê-
lo, sabia que era mentira. Claro que se teria importado. Achava que aquele sítio era só deles. Era o
sítio aonde eles iam. E quem era aquela rapariga, de quem ele podia ser tão amigo sem nunca ter
falado dela? Teriam alguma coisa os dois? Emma. Devia ser gira e mais velha. Não uma adolescente
patética como ela.
— Sabes bem que isso é mentira — disse ele, acendendo outro cigarro. Tinha as mãos a tremer
quando lhe ofereceu um. Ela aceitou. Não lhe interessava o que a mãe pudesse dizer, nem se os
fotógrafos a viam.
— Não queria fazer isto aqui — disse ele.
— Fazer o quê? — Não digas, não digas, não digas. — Já não me amas? — Lá estava. A
pergunta lamurienta.
— As coisas não são assim tão simples. — Ele não conseguia olhá-la nos olhos. — Claro que
ainda gosto de ti. — Deslocou o peso do corpo de um pé para o outro, e o mundo de Becca
imobilizou-se. Era agora. Ele ia mesmo fazer aquilo. — Mas as últimas semanas foram um desatino.
Para os dois. Acho que precisamos de passar uns tempos sozinhos. Para pensar nas coisas. Tu
sabes…
Ela não sabia. Não queria saber.
— É o funeral da Hannah — foi tudo o que conseguiu dizer.
— Não queria fazer isto aqui. — Ele parecia tão tosco. Ele era tosco. De súbito, ficou cheia de
raiva.
— Porque vieste cá hoje? — perguntou. Jamie e Tasha ergueram os olhos quando a aspereza da
voz dela cortou o ar como uma faca. — Porquê?
— Achei que podias… — De repente, era ele que estava a recuar, e Becca gostou da sensação.
Cortou-lhe a palavra. O que quer que fosse dizer, eram tretas.
— Sabes como eu sou. Sabias que eu ia querer falar disso. Se não querias que fosse aqui, que
vieste cá fazer?
— Não pensei — balbuciou ele.
— Ei, vocês… — Jamie tentou intervir, mas Becca lançou-lhe um olhar que o calou. Aquilo não
era da conta dele, ele não era pai dela e não a tinha salvado de morrer afogada. Ele que calasse o
bico.
— Não vieste cá por causa de mim. Vieste cá por ti. Querias aliviar a consciência e sabias que eu
não ia fazer uma cena aqui, no funeral da minha melhor amiga. — Inspirou profundamente e limpou
as lágrimas. — O melhor é ires-te embora. — Voltou-se e afastou-se a grandes passadas em direção
aos portões, ainda agarrada ao cigarro.
— Becca? — chamou Tasha atrás dela. Becca não parou. Não podia olhar para trás. Se o fizesse,
Aiden perceberia que ela estava destroçada. Encostou-se ao muro e deu uma passa com força, mesmo
com as máquinas fotográficas na rua apontadas para ela. Não queria saber. Que se lixassem todos.
Deixou o fumo queimar-lhe os pulmões. Sentia as pernas e as mãos a tremer.
— Vai alguma equipa a caminho? Querem que eu lá vá?
Mal ouviu um dos polícias a falar ao telefone, a alguns passos de distância. Aiden acabara
mesmo com ela.
— A comunicação social já sabe? Acabaram de sair daqui dois carros deles.
Ela não sabia bem o que parecia mais surreal — se Hannah morta num caixão ou se Aiden que
não a queria mais. Talvez Hannah se risse daquilo tudo. Talvez achasse que Becca merecia.
— Vou já para aí.
Não, Hannah não acharia nada disso. Hannah não era assim. Hannah prepararia chocolate quente
e um bolo e escutaria Becca enquanto ela chorava, fumava e se lamentava do amor, e diria todas as
coisas certas. Hannah era uma pessoa boa. Fora uma pessoa boa.
Foi então que começaram a correr-lhe lágrimas copiosas.
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Excertos do Brackston Saturday Herald de sábado, 6 de janeiro

O escândalo que rebentou na Brackston Community School teve ontem uma viragem sombria.
Peter Garrick, de 38 anos, professor de Inglês da escola e responsável pelos exames, foi encontrado
morto em casa durante o funeral de Hannah Alderton, que por sua vez morreu durante o ensaio de
uma peça, em 26 de janeiro. Fontes próximas da investigação afirmam que Garrick fora suspenso da
escola, embora não fosse suspeito de nenhum envolvimento na morte da rapariga. Garrick, casado e
pai de dois filhos, estaria sozinho em casa no momento em que morreu. A polícia acredita que mais
ninguém esteve envolvido.

Embora a polícia não tenha confirmado que Garrick era o professor acusado de abuso sexual de
uma menor enquanto detinha uma posição de confiança, fontes confirmam que a Procuradoria-Geral
da Coroa não prosseguirá com o caso em relação com a sua morte.

Duas raparigas de 16 anos, cujos nomes não podem ser revelados por motivos de ordem legal,
continuam detidas e foram objeto de acusações no caso do homicídio de Hannah Alderton.

A Brackston Community School foi fechada ontem para permitir que alunos e funcionários
estivessem presentes no funeral de Hannah Alderton, a aluna do 11.º ano assassinada. Embora o sol
brilhasse, era evidente o desgosto da comunidade, e colegas e adultos choravam e trocavam abraços
à porta da igreja, depois do breve serviço religioso. É convicção geral que Hannah foi vítima de
morte acidental. Embora a nossa fonte não confirme quem era o verdadeiro alvo, Hannah Alderton
frequentava a mesma escola que Natasha Howland (em cima à esquerda, no funeral de ontem), que
em janeiro foi encontrada quase morta no rio.
No funeral estava também Rebecca Crisp (em cima à direita, a fumar), que, tal como Natasha
Howland, não regressou à escola desde a morte de Hannah Alderton. As duas raparigas foram vistas
a entrar e a sair da esquadra da polícia em diversas ocasiões, mas nenhuma foi considerada suspeita
neste caso. Ambas estavam presentes no momento da morte de Hannah Alderton. Rebecca Crisp
parece manifestamente afetada pela morte da amiga.

Embora a diretora e os representantes da escola tenham emitido uma declaração pedindo que
deixassem os alunos regressar em paz aos seus estudos, muitos pais estão preocupados com os
recentes acontecimentos e pediram que a polícia destacasse para a escola um agente de ligação com
a comunidade e que o governo abrisse um inquérito para averiguar como é possível que
acontecimentos deste género tenham lugar numa escola de tão elevado nível.
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Excertos do DEPOIMENTO DE NATASHA HOWLAND, REGISTADOS PELA INSPETORA


CAITLIN BENNETT E PELO SARGENTO MARC APLIN, NA TERÇA-FEIRA 26 DE
JANEIRO. A DOUTORA ANNABEL HARVEY ESTAVA PRESENTE COMO ADULTA
RESPONSÁVEL

Hora de início: 20h15.

Foi na quinta-feira depois da escola. Sim, a sete de janeiro. O dia antes de eu ir parar ao rio.
Estranho como agora me lembro de tudo. É como se uma caixa se tivesse aberto dentro da minha
cabeça — uma caixinha de surpresas — e todas as recordações tivessem saltado e ocupado os seus
lugares. Desculpe. Vou tentar não me desviar muito do assunto. Sim, estou bem. Ainda me sinto meio
abalada. Foi horrível, aquilo da Hannah. Santo Deus, coitada.
Muito bem. Eis do que me lembro. Na quinta-feira, depois da escola, segui-as. Sim, à Jenny e à
Hayley. Elas andavam estranhas comigo. Mais do que estranhas, era como se não me quisessem perto
delas. Sim, andavam assim há uns tempos. Talvez há dois meses. A coisa estava a piorar. Às vezes
apanhava uns comentários maldosos. Tinha andado a tentar descobrir se tinha feito alguma coisa de
mal, mas não me lembrava de nada. Só queria as minhas amigas de volta, não aquela sensação de que
elas estavam ali a fingir que gostavam de mim.
Adiante, quinta-feira. Elas andavam muito distantes, sempre agarradas uma à outra. Já as tinha
visto assim, aos risinhos. Depois diziam-me que não era nada. À hora do almoço, perguntei se
queriam ir ao Starbucks depois da escola. Eu tinha dinheiro — a Jenny nunca tem dinheiro, e os pais
da Hayley são mais rigorosos com o dinheiro de bolso do que os meus, ela tem de o ganhar a fazer
tarefas em casa e a tomar conta do irmão mais novo, mas os meus pais dão-me dinheiro sempre que
eu peço —, por isso achei que elas iam se eu pagasse. Parece patético, não é? Como se estivesse a
tentar comprá-las, mas é verdade, era mais ou menos isso. A Hayley disse que tinha de ir treinar para
a pista interior, e a Jenny disse que tinha uma aula de recuperação de matemática para os exames que
tinha de repetir.
Tive a sensação de que estavam as duas a mentir e fiquei magoada. Não era a primeira vez que
faziam aquilo, mas daquela vez fiquei um bocado chateada. Não podiam simplesmente ser francas
comigo? De modo que fui ao Departamento de Matemática — meu Deus, que coisa mais imbecil —
ver o horário das aulas de recuperação, mas não estava lá nada. Até falei com o professor Russell-
Woods, o diretor do Departamento de Matemática, e disse que a Jenny me tinha pedido para ir ver o
horário, mas ele disse que não estava nada marcado para essa tarde.
Então fingi que me tinha ido embora e segui-as. Sabia que estavam nas traseiras do pavilhão
desportivo, onde a Hayley vai fumar. Já lá se tinham escondido de mim antes. Só saíram da escola
depois das cinco, e agora sei porquê, eram as horas a que o professor Garrick saía. Tinha posto o
capuz e não o tirei, mas elas nunca olharam para trás. Estavam demasiado ocupadas a falar, de braço
dado, e a rir. Fiquei mesmo magoada. Nem me apetecia discutir com elas, só queria ver o que iam
fazer de tão interessante que tivessem de me mentir.
Elas dirigiram-se ao grande parque de estacionamento nas traseiras do Asda. Sabem qual é?
Então devem saber que aquela zona do fundo nunca está cheia. E é mal iluminada. Não percebo
porque fizeram aquilo tão grande, como se todas as pessoas de Brackston lá fossem fazer compras
exatamente ao mesmo tempo. Mas pronto, foi para lá que elas foram. Naquela altura, eu já começava
a pensar que devia estar enganada e que elas iam ter com o pai da Hayley ou coisa do género, para
ele lhes dar boleia para casa. Mas isso também não fazia sentido. Se fossem a pé ou de autocarro,
chegariam a casa mais depressa. Já tinha deixado de pensar por que razão andariam a excluir-me e só
queria descobrir o que tinham ido fazer àquele sítio.
Mantive-me afastada, perto da parede onde estão aqueles enormes contentores para reciclagem, e
escondi-me ligeiramente atrás do verde. A escuridão era total e começava a ficar frio. Ainda as
ouvia a rir e a falar, mas mais baixo.
E então apareceu um carro. Um jipe. Quando a porta se abriu e a Jenny entrou, vislumbrei o
homem que se encontrava lá dentro, mas não consegui perceber quem era. A Hayley acenou-lhe. Ele
disse-lhe qualquer coisa que não consegui apanhar, e ela respondeu que não era preciso, que o frio
não a incomodava.
A Jenny esteve com ele no carro durante talvez meia hora ou quarenta e cinco minutos. Por essa
altura, eu já estava congelada. A Hayley foi comprar um café, mas esteve à espera mais uns bons
vinte minutos depois de voltar. Tinha as Uggs e um casaco grosso. Estava bem preparada. Eu estava
morta de frio, mas não podia mexer-me para não correr o risco de ser vista. As janelas do carro
estavam todas embaciadas, mesmo apesar de o motor não estar ligado. Fiquei um bocado chocada,
mas não surpreendida. Quer dizer, todos sabemos que a Jenny não era virgem, e tinha acabado de
entrar no carro de um homem. De certeza que não estavam a jogar xadrez lá dentro.
Então quando achava que já não ia conseguir aguentar mais o frio, o carro pôs-se em
funcionamento e dirigiu-se para onde estava a Hayley. O vidro desceu, e Jenny, no banco do
passageiro, disse qualquer coisa, provavelmente para ele as deixar mais perto de casa, e entrevi o
homem que estava ao volante. Era o professor Garrick. Tive a certeza absoluta.
Fiquei como se me tivessem dado um soco na barriga. O professor Garrick? Parecia tão querido.
Quase desajeitado. Nada sensual. Como podia andar a comer a Jenny? Só consegui pensar que ela
devia estar a tentar arranjar maneira de conseguir o exame de Matemática antes da data. Fiquei
completamente embasbacada. Quando cheguei a casa, já começava a duvidar do que tinha visto.
Talvez fosse outro homem qualquer parecido com ele. Só o vira de relance. Podia estar
completamente enganada. Não sabia o que pensar.
De modo que me levantei cedo na sexta-feira; desta vez vesti o meu casaco mais quente e dirigi-
me ao parque de estacionamento da escola. Fingi que estava à espera de alguém e já tinha uma
desculpa pronta — a minha mãe vinha trazer-me um livro de que me tinha esquecido ou coisa do
género. Mas ninguém ia perguntar. Já viram como são os professores de manhã? Acho que eles
odeiam a escola mais do que nós até reporem os níveis do café, na sala dos professores. Adiante. Por
fim, vi o carro. A mesma matrícula — não me lembrava de tudo, não sou detetive nem nada disso,
mas tinha fixado as primeiras três letras. E era ele. Era o professor Garrick.
Senti-me enjoada. Mesmo a sério. Não sabia o que fazer. Só sabia que aquilo era errado e que
tinha de parar. Deve ter sido por isso que elas não me contaram. Sabiam que eu não ia concordar com
aquilo. Ele é professor, é casado e tem filhos e tudo isso. E nem sequer é propriamente giro. Não
conseguia perceber. Estaria ele a aproveitar-se dos exames para se aproximar da Jenny? Estaria ela a
fazer aquilo contra a sua vontade? Tinha a cabeça a zumbir com estas perguntas.
Não conseguia concentrar-me. No intervalo, anunciaram que iam fazer audições para a peça, por
isso enviei-lhes uma mensagem a dizer que lhes pagava o almoço no café, aquele mesmo ao lado do
quiosque dos jornais. Não é excelente, mas fazem umas tostas boas e podemos comer o que queremos
sem outras pessoas ao lado a vigiarem se estamos a engordar. Ser quem somos na escola nem sempre
é fácil. Estou sempre a ler coisas nos jornais sobre mim e sobre como somos populares, mas ser
popular é estranho. É um pau de dois bicos, não sei se percebem. Às vezes penso que deve ser muito
melhor ser como a Bex ou como a pobre Hannah.
Bem, adiante, lá fomos almoçar. Começámos a falar da peça, e eu sempre à espera que elas
dissessem qualquer coisa acerca daquilo, mas nada. Até que não consegui ficar calada. Fui direta ao
assunto e disse que as tinha seguido. Que tinha visto o que acontecera. A cara delas… Ainda as estou
a ver, a Jenny com a boca meio aberta e cheia de sanduíche de fiambre e queijo derretido. A Hayley a
olhar para mim daquela maneira — a ausência de expressão dela significa que está a reprimir tudo.
Foi dessa maneira que ela olhou para mim quando beijei o Mark Pritchard na festa dele. Ainda não
sei porque o fiz, se calhar uma parte de mim ainda se lembrava de tudo e tinha vontade de a magoar.
De modo que ficaram a olhar para mim. A Jenny começou imediatamente a dizer «Não podes
contar a ninguém» e esse género de coisas. Diz que precisa dele para os exames, para conseguir
passar no exame de Matemática e sair desta cidade. A Hayley disse que eu não tinha nada que ver
com aquilo e que não devia tê-las seguido. Respondi que aquilo era obsceno, que não podia ser e que
ia contar a toda a gente, a menos que elas acabassem com aquilo. Disse que o Garrick estava a ser
um estupor, independentemente do que Jenny pensasse. Não podia andar por aí a dar quecas com as
alunas, era completamente imoral. Era pedofilia. Não ia deixar que ele fizesse mal a uma amiga
minha, nunca. A Hayley disse que por isso é que não me tinham contado nada. Sabiam que eu não ia
aceitar. Discutimos um bocado. Surpreendeu-me que a Hayley parecesse tão descontraída. O pai da
Jenny deu-lhe cabo da vida e agora ela anda a foder com um substituto da figura paterna?
Então disse-lhes que tinham até segunda-feira para resolver aquilo. E não me referia apenas a
porem um ponto final na situação, mas a denunciarem-no. Se não o fizessem, eu ia falar com a
diretora. A Hayley ainda tentou dizer que ninguém ia acreditar em mim, mas sabia que não era
verdade. E também sabia que a Jenny não era boa mentirosa, sobretudo quando se via pressionada.
Disse-lhes que não queria chatear-me com elas, mas que o Garrick estava a aproveitar-se da Jenny.
Era abuso sexual, mesmo que ela passasse nos exames graças a ele, e que ela valia mais do que isso.
Adorava-as, mas aquilo não podia continuar.
Depois o almoço terminou e tivemos de sair. Elas disseram que iam pensar. Comecei a chorar
como uma idiota porque odiava que discutíssemos. Depois a Jenny também começou a chorar e
abraçámo-nos todas. A Hayley disse que eu era capaz de ter razão e que de facto talvez tivessem ido
longe demais, mas mesmo apesar de termos voltado para a escola mais ou menos bem, eu continuava
a sentir-me incomodada. Aquilo era tudo uma grande merda. Sentia-me um traste. Elas eram as
minhas melhores amigas.
Claro, na altura não percebi que me odiavam tanto.
Que aconteceu naquela noite?
Não conseguia dormir, a pensar em tudo aquilo. Tinha encontrado a Jenny depois da escola,
estava na casa de banho a enviar mensagens. Tinha um telefone diferente. Um aparelho barato,
básico. Pensei que devia ser o telefone que ela usava para comunicar com o professor Garrick.
Perguntei-lhe se lhe estava a dizer o que eu tinha sugerido. Ela respondeu que não. Estava nervosa,
talvez tivesse metido qualquer coisa, não sei. Com a Jen às vezes não se percebe bem. Ela diz que só
consome cenas comigo e com a Hayley, mas já viram a mãe dela, não? Talvez tivesse vodca ou coisa
do género no saco, se é que não eram drogas. Uma coisa é certa, consome mais cenas do que eu. Eu
só comecei a meter ecstasy para as acompanhar, mas é verdade que é bom. Vou arranjar problemas
por ter dito isto? Não sei onde ela o comprou e foi sempre só para nós e para os nossos amigos.
Disse-lhe que talvez fosse melhor ela contar-lhe. Ela respondeu que precisava de tempo. Era tão
estranho. Quase parecia que gostava mesmo dele. Como se gostasse dele a sério. Adiante. Como
disse, não conseguia dormir. Quando a mensagem chegou, comecei por me sentir baralhada e por
achar que se tinham enganado no número. Não respondi, fiquei irritada. Tinha demasiadas coisas na
cabeça. E então, quando estava já quase a adormecer, por volta das duas e meia, é que percebi. O
sítio do costume era como chamávamos à clareira no bosque. Pensei que talvez a Jenny estivesse
bêbeda ou coisa do género e me tivesse enviado uma mensagem do telefone com que eu a tinha visto.
Não respondi à mensagem porque não sabia se eram mesmo elas ou não. Decidi ir até lá, ver se as
duas lá estavam. Não sabia se me apetecia falar com elas. E se o professor Garrick lá estivesse? Não
queria nada enfrentá-lo a meio da noite. Muito menos sem um adulto ou outro professor presente.
Não vesti nenhum casaco. Estavam todos no andar de baixo e não podia correr o risco de acordar
os meus pais. Vesti apenas as calças de fato de treino, umas quantas camisolas de manga comprida e
o blusão de capuz por cima. Achei que não ia demorar muito tempo. Se falasse com eles, diria
apenas que não me fariam mudar de ideias.
Mas foi então que as vi. Tinha usado o telemóvel para iluminar o caminho até lá, mas elas tinham
uma lanterna forte, uma espécie de foco, acho. Devia vir da garagem do pai da Hayley. Como a
corda. Eles vão acampar às vezes.
Estavam na clareira. À minha espera. Só elas as duas. Ao princípio, pareciam tristes, mas depois
pareceram muito contentes por me ver. Queriam fazer as pazes. Pediram desculpa. Perguntei se a
Jenny tinha um telefone novo. Disse que tinha hesitado em ir porque não percebera logo que a
mensagem era delas. Ela disse que era um telefone que utilizava para falar com o professor Garrick.
Disse que tinha acabado de lhe enviar uma mensagem a dizer que tinham de falar e que me enviara a
mensagem a seguir sem querer. Disse que tinha o meu número e o da Hayley lá gravados, para o caso
de o iPhone dela dar o berro. Ela tem-no há pouco tempo, mas não é novo. Está sempre a bloquear.
Ao princípio não desconfiei de nada. Nunca imaginara que elas tivessem outros telefones para dizer
mal de mim.
Adiante. Fiquei contente porque elas disseram que iam fazer o que eu tinha sugerido. Sabiam que
eu tinha razão. Fiquei tão aliviada! Descontraí imediatamente. Elas tinham levado bebidas. Pouca
coisa. Um vinho qualquer barato. E a Hayley deu-me um Crunchie. Disse que era um símbolo de paz.
Elas… Elas… Não acredito que me quisessem fazer mesmo mal. Não me parece que fosse essa a
sua intenção. Pelo menos, naquela altura. Ao princípio, só deviam querer pregar-me um susto para eu
ficar calada. Mas depois começaram a vir à baila todas aquelas outras cenas. O que sentiam
realmente sobre mim. Deviam ter tomado qualquer coisa. Ao princípio, estávamos só a falar. Elas
estavam a tentar ser simpáticas outra vez. Fiquei feliz. Bebi o vinho. Senti-me estonteada, e elas
começaram a ficar mais frias. Uns picanços. Uns comentários sarcásticos. Não me lembro o quê ao
certo, mas sobre eu me achar o máximo e não passar de uma mimada. Depois fiquei mesmo tonta e
comecei a passar-me. Não conseguia estar de pé. E então elas começaram a sério.
Amarraram-me à árvore. Puseram-se aos gritos, a dizer coisas horríveis. Não me lembro
exatamente o quê porque tinha a cabeça a andar à roda. Estava cansadíssima, mas morta de frio e fiz
um esforço para me manter desperta. A casca da árvore magoava-me as costas e doía-me tudo.
Estava cheia de medo. Medo das minhas amigas. Elas pareciam desvairadas. Diziam que me
odiavam. Que já me odiavam antes daquela coisa com o professor Garrick. Que odiavam a maneira
como eu dominava sempre tudo. Que não as deixava respirar. Que eu pensava que mandava nelas. A
Hayley andava de um lado para o outro e fumava, enquanto descarregava aquele veneno todo para
cima de mim. Que não queriam mais ser minhas amigas. Qualquer coisa sobre o James Ensor. Saí
com ele umas duas vezes. A Hayley disse que gostava dele e que eu lho tinha roubado. Tentei dizer-
lhe que não sabia que ela gostava dele, mas as palavras saíam-me entarameladas. Acusou-me de
estar a fazer a mesma coisa com o Mark Pritchard. Disseram tanta coisa que não fixei tudo. Disseram
que eu tinha a mania de que era melhor do que elas. Mais inteligente do que elas. E que ter metido o
nariz no assunto do professor Garrick só provava isso. Agora estavam bêbedas e furiosas. Não sei a
que horas se tinham encontrado, mas já deviam estar a beber há um bocado quando eu lá cheguei.
Depois disso, ficou tudo menos nítido. Acho que adormeci ou perdi os sentidos durante um
bocado. Não sei. A seguir, só me lembro de a Hayley me acordar. Cortou a corda que me prendia à
árvore. Estava tanto frio… Não sentia os dedos. A temperatura tinha baixado imenso. Não sei quando
começou, mas também estava a cair neve, pesada e branca. Embora a clareira estivesse bem
protegida pelas árvores, já conseguia ver uns dois centímetros de neve nos ramos. Devia estar a cair
com força há um bocado, o suficiente para nos pôr um pouco mais sóbrias.
Tentei pôr-me de pé e caí no chão, mas elas não me ajudaram. Tenho ideia de que perguntei o que
se passava. A Jenny tinha a lanterna numa mão e um pau comprido na outra. Já não via a garrafa de
vinho em lado nenhum. Elas devem tê-la atirado para o meio das árvores.

Posso beber mais um bocado de água? Obrigada. Isto é… difícil.

A Hayley estava de cócoras ao meu lado e murmurou qualquer coisa sobre eu ter aprendido a
lição para não falar de coisas que não me diziam respeito. Disse que tinha de as deixar em paz ou
elas faziam-me qualquer coisa ainda pior. Quase que vomitei ali no chão. Estava morta de medo.
Estava ainda meio baralhada e doía-me o coração do vinho e do que quer que lá tivessem posto para
me deixar naquele estado. Não percebia bem o que se estava a passar. Só queria ir para casa. Sei que
pode parecer frívolo, mas já não me interessava a história do professor Garrick. A Hayley também
tinha um pau, vergastou o ar com ele e atingiu o chão. Lembro-me do ruído seco no solo, mesmo ao
lado do meu rosto. Lembro-me de a Jenny se rir disso.
Mandaram-me correr.
Eu tentei.
Acho que me seguiram durante um bocado. Ouvi uns gritos. Mas não tenho a certeza. Estava cheia
de medo. Sentia os pulmões a arder. E as pernas sem força.
Continuo sem me lembrar de como fui parar ao rio. Estava a correr pelos bosques, com os ramos
a baterem-me no corpo. Não sabia se elas iam atrás de mim ou não. Só queria chegar a casa. À minha
mãe.
Lembro-me de bater na água gelada. Lembro-me de ver neve na margem. Mas não me lembro se
me empurraram. Sei que querem que me lembre, mas não me lembro. Não posso dizer que me
lembre. Lamento. Ia a correr pelo bosque e só me lembro de cair à água. Lembro-me de tentar nadar
para alcançar os ramos do outro lado. Depois é só escuridão, e quando acordei estava no hospital.
Lamento, é só isto. Não sei se fui eu que caí à água ou se foram elas que me empurraram. Não sei
mesmo.
45

Excerto dos APONTAMENTOS DA INSPETORA CAITLIN BENNETT (REGISTO NÃO


OFICIAL) PARA RELATÓRIO PARA A PROCURADORIA-GERAL DA COROA — SEXTA-
FEIRA, 5 DE FEVEREIRO

Nenhuma das raparigas apresentou uma confissão total nem um relato completo dos
acontecimentos relativamente à morte de Hannah Alderton ou ao incidente quase fatal com Natasha
Howland. Todavia, Jennifer Cole, atualmente submetida a avaliação psicológica, indicou que Hayley
Gallagher foi a instigadora — pelo menos, na morte de Hannah Alderton —, declarando repetidas
vezes que «A Hayley disse que tinha pensado em qualquer coisa». A possibilidade de isto vir a ser
considerado um elemento de prova admissível dependerá do resultado da avaliação.

Dada a natureza das mensagens que trocaram nos telefones pré-pagos, encontrados desligados e
escondidos nos seus quartos, parece evidente que as duas raparigas tinham a intenção de fazer mal a
Natasha, mesmo antes de esta descobrir a relação de Jennifer com Peter Garrick. Os telefones
parecem ter sido comprados com o intuito expresso de serem utilizados para dizer mal dela (talvez
não quisessem que ela visse as conversas. Os telefones principais estavam sempre à vista —
mostravam umas às outras coisas nos sites de redes sociais?), mais do que para contactar ou falar
sobre Garrick. Em nenhum dos telefones foram encontradas mensagens para ele. Todas as mensagens
são sobre Natasha Howland. Contêm invejas manifestas e fantasias claramente agressivas, que
aumentam de número e se tornam mais violentas até à noite do acidente de Howland. Ambas as
raparigas afirmam por diversas ocasiões nos textos das mensagens que desejavam que Howland
morresse. Já não queriam ser amigas dela. Queriam livrar-se dela. Na sexta-feira, 8 de fevereiro,
trocam mensagens sobre fazê-lo naquela noite. A atividade cessa nos dois telefones na sequência da
mensagem enviada para o telemóvel de Natasha Howland. Devem ter sido desligados depois de a
última mensagem ter sido enviada do telefone errado. É provável que tenha sido o hábito de consumo
de drogas de Jennifer, comprovado pelas análises sanguíneas, que conduziu a este erro.

Mensagens apagadas recuperadas dos telemóveis registados nos seus nomes, que utilizavam
diariamente, sugerem igualmente a culpa das raparigas e evidenciam uma antipatia continuada por
Natasha. Desejam abertamente que ela morresse; existem referências a um «ele» — cremos que se
trate de Peter Garrick — e enorme preocupação relativamente à possibilidade de Natasha recuperar
a memória. A forma como Hayley insiste para que apaguem as mensagens sugere uma vez mais a
culpa das raparigas. Há ainda muito por descobrir, mas o que aconteceu parece evidente. Elas tinham
medo do que Natasha Howland pudesse recordar e tivesse partilhado com Rebecca Crisp, que pode
ter tido sorte em não ter sido também vítima delas. Havia entre elas um sentido de urgência em fazer
qualquer coisa.

Isto está relacionado com os acontecimentos que se seguiram ao acidente, conforme descritos por
Natasha Howland no diário onde lhe foi pedido que registasse acontecimentos e sentimentos como
parte da terapia da doutora Annabel Harvey, e que foram posteriormente confirmados por Rebecca
Crisp.
46

Excerto da CONSULTA ENTRE A DOUTORA ANNABEL HARVEY E A PACIENTE


NATASHA HOWLAND, QUARTA-FEIRA, 2 DE MARÇO, 18H00

NATASHA: Escute, podemos continuar a falar disto eternamente, mas não vai mudar nada. Não
quero mais ter estas sessões. Acho que já estou bem. Além disso, não há nada que o tempo não
resolva. Vir aqui falar consigo faz-me sentir que ainda se passa qualquer coisa. Mas não.
Acabou-se. Recuperei a memória. A Jenny, a Hayley e o professor Garrick… Bem… Sabe o que
se passou.
DOUTORA HARVEY: Continuas a escrever o diário?
NATASHA: A polícia ficou com ele, apesar de lhes ter dito que era privado. Tinha lá pensamentos
pessoais. Por isso, obrigadinha. Daí em diante, nem me dei mais ao trabalho. Comecei o diário
porque a doutora me pediu, porque tinha perdido a memória, mas agora já não preciso de
continuar. Todos os mistérios foram desvendados. Ou quase.
DOUTORA HARVEY: É isso que achas que andámos a fazer nestas sessões? A desvendar os
mistérios para a polícia?
NATASHA: E não foi? Não me diga que a Bennett não estava mortinha por que eu me lembrasse do
que aconteceu naquela noite e não queria que a senhora lhe desse uma ajuda. Não interessa, fiz
uma pesquisa no Google sobre si; trabalha sempre com a polícia, por isso não se trata apenas dos
meus sentimentos, pois não?
(Pausa)
Também tem estas sessões com a Hayley e a Jenny? Sei que com a Becca teve, pelo menos, uma.
DOUTORA HARVEY: Sabes que não posso falar de outros pacientes. Como vai a escola?
NATASHA: Sinto que está a tentar construir um quebra-cabeças com pedaços das nossas cabeças. A
ver se as peças encaixam todas numa imagem total. Nessa altura, saberá tudo sobre nós.
(Pausa)
A escola vai bem. Já não andam por lá jornalistas — imagino que só voltem na altura do
julgamento —, por isso está toda a gente mais calma. Não há público. Não é que isso me
incomode. É bom poder andar à volta de casa ou pelo quintal sem ter de me preocupar com as
objetivas que poderão estar a observar-me. Convidaram-me para participar nuns programas de
televisão, acho que também convidaram a Becca. Mas dissemos as duas que não. A polícia
também concordou que era melhor. Talvez depois do julgamento o possamos fazer, mas agora
não. Às vezes tenho saudades da Hayley e da Jenny. Tento não ter, até porque tenho novas amigas
— a Vicki e a Jodie foram rápidas a ocupar o lugar delas. Acho que a Jodie perdeu três quilos
num fim de semana só para que eu gostasse dela.
(Risos)
Que superficial. Mas eu também sou superficial, porque a verdade é que ela se encaixa melhor no
nosso visual sem aquelas coxas grossas.
DOUTORA HARVEY: Tens estado muito com a Rebecca? Pensei que tinham ficado mais chegadas.
NATASHA: Nem por isso. Acho que ela até está aborrecida por causa disso. Ela disse alguma
coisa?
(Pausa)
Claro, não pode dizer. Ah. Não tenho estado muito com ela. Agora que isto acabou tudo, é
demasiado estranho. A história da Hannah foi horrível, ela ainda está a tentar ultrapassar isso.
Quando olho para ela, vejo esta cena toda, todas as traições à amizade, e pode não ser por sua
culpa, mas não me apetece estar com ela. Às vezes manda-me mensagens, parece idiota, mas
estávamos a jogar um jogo de xadrez e enviávamos as jogadas uma à outra por mensagem. Ela
pergunta-me pela jogada seguinte, e eu respondo sempre que não tive tempo para ver. Não tem
coragem para me perguntar diretamente, Ei, porque me andas a evitar?, por isso fala antes do
xadrez. Isso também me faz retrair um bocado. Santo Deus, sou uma sacana, mas isso fá-la sentir-
se um pouco como a Hannah. Uma atada. Só quero seguir em frente, sabe?
DOUTORA HARVEY: Porque pediste que fosse eu a estar presente, como adulta responsável, e não
a tua mãe, quando fizeste o teu depoimento?
NATASHA: Já viu como é a minha mãe.
DOUTORA HARVEY: Parece uma mulher muito simpática. E vê-se que te ama muito.
NATASHA: Ela sufoca-me. Não se lembra como era? Quando tinha a minha idade? A falta de
privacidade… Não se deve lembrar. Queria falar sem que ela ouvisse tudo. E sem que me
apertasse a mão e coisas do género. E depois, ela ia querer falar de tudo. Era mais fácil ser a
doutora. Sem ofensa, mas estou-me nas tintas para o que pensa. A senhora não vive em minha
casa.
DOUTORA HARVEY: O que sentes acerca da recusa de te submeteres a hipnose? Não perguntas a
ti mesma se a Hannah não estaria ainda viva se isso te tivesse ajudado a recuperar a memória
mais cedo?
NATASHA: Isso é uma pergunta para eu me sentir culpada? Claro que penso nisso às vezes. Mas não
era capaz. A própria maneira como se referem àquilo, ir ao fundo, é quase como um afogamento.
Não era capaz. Não era.
(Pausa)
Está a sugerir que devia sentir-me culpada? Ninguém sabe que recusei fazer hipnose a não ser nós
e a polícia. Ninguém sabe que eu não quis.
DOUTORA HARVEY: Não, não acho que devas sentir-te culpada. Mas isso não significa que não te
sintas.
NATASHA: (Pausa)
Bem, não me sinto. Tal como não me sinto culpada por já não falar com a Becca.
(Pausa)
Mas agora falo mais com o ex-namorado dela. O Aiden. Gosto mais dele agora que está mais
maduro. Conversamos no Facebook. Às vezes, trocamos mensagens. Acho que ele está quase a
convidar-me para sair.
DOUTORA HARVEY: O que achas que a Rebecca vai sentir em relação a isso?
NATASHA: Isso é uma pergunta estúpida. Não vai gostar. Vai odiar. Mas não fui eu que fiz com que
eles acabassem. E não podemos passar a vida preocupados com o que os outros sentem. Então e
aquilo que nós sentimos? Eu vi a Hannah morrer. Aconteceu de uma maneira tão fácil. Tão
indiferente. Foi como uma luz a ser apagada. Morreu e pronto. Acabou-se a Hannah. Ela passava
a vida preocupada com as outras pessoas. Se tivesse sido mais egoísta, talvez se tivesse
divertido mais. Foi por um triz que não morri eu em vez dela. Podia ter sido o meu funeral que
toda a gente pôs no Instagram e chorou e esqueceu no dia seguinte.
DOUTORA HARVEY: Porque te deixa isto tão agitada, Natasha?
NATASHA: (Pausa)
Desculpe, não reparei que estava tão excitada. É que… Faz-me confusão a maneira como somos tão
rapidamente esquecidos. Já agora, o melhor é divertirmo-nos um bocado, não? Podia ter sido eu.
Para quê preocupar-me com todas estas cenas insignificantes? Talvez isso inclua outras pessoas.
Talvez também elas sejam insignificantes. A menos que as amemos. E talvez mesmo se as
amarmos. Parece uma loucura o que estou a dizer? Não consigo bem explicar.
DOUTORA HARVEY: Estás a dizer que não te importas de magoar a Becca ao falares com o
Aiden?
NATASHA: (Risos)
Sim, acho que é o que estou a dizer. Embora isso me faça sentir uma sacana. Estranho, não é?
Tentaram matar-me porque achavam que eu era uma cabra dominadora e egoísta, e agora sou
mesmo. Mas ele já me tinha convidado para sair. E somos adolescentes, eles não iam
propriamente casar-se nem nada parecido. Se calhar, até lhe estou a fazer um favor.
(Pausa)
Às vezes, penso que não devia falar mais com ele, mas isso não o faria voltar para ela, pois não?
Então qual era o interesse? Não posso obrigá-lo a não gostar de mim. E eu gosto dele. Não se
arma em bom como os rapazes da escola. Acha que sou uma pessoa horrível?
DOUTORA HARVEY: Acho que não existem pessoas horríveis. Existem apenas pessoas.
NATASHA: Tenha cuidado, quase fez um sorriso!
(Riso)
Está a ver? Parece quase humana.
DOUTORA HARVEY: Que tal andas a dormir?
NATASHA: (Pausa)
Aquilo é de propósito? Ali, na estante?
DOUTORA HARVEY: O quê?
NATASHA: Aquelas conchas. São treze. E os livros no parapeito da janela. Treze. Não me lembro
de lá estarem antes. É algum teste?
DOUTORA HARVEY: Estás muito observadora.
NATASHA: Porque não perguntou simplesmente «Ainda vês tudo em grupos de treze, Natasha?»,
nessa sua voz de Siri? Porque me montou uma armadilha?
DOUTORA HARVEY: Não vi a coisa dessa maneira. Ficaste perturbada?
NATASHA: Não gosto que me enganem.
DOUTORA HARVEY: Peço desculpa.
NATASHA: E se tivesse reparado, mas não dissesse nada?
DOUTORA HARVEY: Eu queria saber se dizias alguma coisa ou não.
NATASHA: Porquê?
DOUTORA HARVEY: Porque falares sugere que queres ajuda para compreender.
NATASHA: Para me conseguir convencer a continuar a vir cá?
DOUTORA HARVEY: Compreendo porque queres seguir em frente, mas também acho que poderias
ainda beneficiar com o prosseguimento das nossas sessões.
NATASHA: A senhora acha que eu sou doida.
DOUTORA HARVEY: Acho que passaste por situações extremamente perturbadoras.
(Pausa)
NATASHA: Peço desculpa.
Por me ter irritado com a história do número. Não tem importância nenhuma, pois não?
DOUTORA HARVEY: Como tens dormido?
NATASHA: Quase sempre de lado.
(Riso curto)
Desculpe. Não sei. Ainda… continuo com medo do escuro. Ainda tenho aquele sonho. Sabe,
aquele da voz no escuro.
DOUTORA HARVEY: De quem é a voz?
NATASHA: É esse o problema, nos sonhos sei de quem é, mas quando acordo não me lembro. Só sei
que alguém fala comigo e eu fico aterrada. Pensei que quando recuperasse a memória isto ia
parar, mas não.
DOUTORA HARVEY: Pode levar algum tempo. O teu inconsciente está ainda a processar isto tudo.
Esses sonhos podem durar até te lembrares exatamente como foste parar ao rio.
NATASHA: Fantástico…
DOUTORA HARVEY: Sei que estás relutante, mas a hipnose poderia ajudar-te. Se conseguíssemos
alcançar o nível dos teus sonhos e…
NATASHA: Não. Hipnose, não.
DOUTORA HARVEY: Bem, pensa nisso.
NATASHA: Não mudarei de ideias. E também não vou mudar de ideias quanto a parar com estas
sessões. Esta é a última. Acabou-se. Saiu-lhe o tiro pela culatra com o truque das conchas. Já não
confio em si. Não quero falar mais consigo.
DOUTORA HARVEY: Lamento que sintas isso. Posso recomendar-te outro…
NATASHA: Chega de terapia. Já não preciso.
47

Não sabia se tinham deixado o jornal aberto naquela página de propósito para ela ver ou se fora
acidental. Naquele momento era difícil perceber. O sol primaveril entrava a jorros pelas grandes
janelas e isso deveria ter animado Becca. Ela adorava a aproximação do verão, a ideia das longas
férias que se avizinhavam, a alegria de sair de casa sem a aborrecerem para levar um casaco, mas
naquele momento o luminoso calor do final de março quase não a afetava. Estava tudo uma confusão,
ficara tudo uma barafunda desde o funeral de Hannah, que parecia ter sido há séculos. Um longo
inferno, sem perdão iminente, que parecia não ir acabar. O cabeçalho era apenas a cereja no topo do
bolo.

Nota de suicídio encontrada na casa de Nicola Munroe confirma que a adolescente pôs termo
à própria vida.

Fantástico. Sentiu-se confrangida ao recordar como entrara de rompante em casa de Jamie


McMahon como um demónio aos gritos. Tanta preocupação para nada. Afinal, Aiden não tivera nada
que ver com aquilo. Fitou o telefone e mordeu com força o lábio inferior. Escreveu rapidamente antes
de poder mudar de ideias.

Já sei da Nicola Munroe.


Estás triste, mas aliviado por estar resolvido?
Bjs

Carregou em «enviar». Não sabia se seria um alívio ou não. Não sabia se a polícia o voltara a
interrogar ou não. Não sabia praticamente nada.
Nos primeiros dias depois de ele ter acabado com ela, fizera todas as coisas que tinha jurado
nunca fazer: enviar mensagens bêbeda, a pedir-lhe que voltasse, enviar mensagens furiosas, enviar
mensagens simpáticas, tentar ligar-lhe. Encolhia-se toda quando pensava em algumas das mensagens
que lhe mandara. Só tivera resposta a uma ou duas das mensagens simpáticas, mas mesmo essas eram
breves. Como se fossem dois desconhecidos. Como se ela não tivesse curtido com ele no carro, nem
dado uma queca na cama dele e dito que o amaria para sempre.
Para sempre. Aquelas palavras não a largavam. Melhores amigas para sempre. Vou amar-te
para sempre.
Para sempre tornara-se uma coisa incerta. Os únicos que tinham encontrado finais para sempre
eram Hannah e o professor Garrick. Becca deixara de se sentar no corredor de Ciências, embora
fosse preferível à sala de convívio do 11.º ano, onde toda a gente a ignorava. Tentara, mas achara
assustador. Como se Hannah andasse por ali. À espera dela, pronta para a censurar. Nunca
considerara Hannah uma pessoa vingativa, mas era difícil separá-la das repercussões causadas pela
Hannah, como se tivesse sido o fantasma dela a causá-las.
Fitou o telefone. Nenhuma resposta de Aiden, embora tivesse terminado com um ponto de
interrogação para instigar uma resposta. Tentou não se sentir desiludida. Naquela altura já devia estar
habituada. Odiava-se por enviar as mensagens. Já não tinha nada que ver com ele, mesmo acordando
ainda todas as manhãs à espera de encontrar uma mensagem dele a dizer que mudara de ideias e que
deixá-la tinha sido um erro enorme. Que ainda a amava.
Olhou para o jornal, mas não leu o artigo. Devia estar em Tecnologias de Teatro, mas baldara-se.
Não é que isso viesse a constituir algum problema. Era mais fácil se desistisse da disciplina; na
verdade, tinha a certeza de que toda a gente ficaria mais contente se abandonasse a escola
completamente.
Tasha também já não falava com ela.

Tenho imensa pena, Bex, a sério que tenho, mas


quando te vejo só me lembro da pobre Hannah e do
que a Hayley e a Jenny me fizeram. Sei que a culpa
não é tua, mas tenho mesmo de tentar seguir em
frente.

Até deixara de responder às mensagens de Becca sobre o jogo de xadrez. Tinha as novas Barbies,
que andavam sempre a reboque dela, e a constante compaixão da cidade e da escola inteira. Becca
nem queria imaginar quantos amigos no Facebook Tasha teria agora. Às vezes sentia-se tentada a ir
novamente à Internet ver o que se passava nesse outro mundo, mas desativara a sua conta e apagara a
conta do Twitter depois de todas as cenas horríveis que tinham acontecido.
Ia ser sempre assim. Tasha continuava a ser a vítima bonita, mas quem odiava precisava de
alguém para odiar, e Becca era a candidata ideal. Afinal, era ela quem estava a comandar as luzes.
Tinha deixado a Hayley subir ao escadote. Na prática, como já ouvira na casa de banho das raparigas
quando regressara à escola, era tão assassina como a Hayley e a Jenny.
Descobriu-se também que Hannah tinha outros amigos. Era possível que Becca estivesse
demasiado absorvida em si mesma para reparar, mas eles existiam. Talvez Hannah gostasse mais
dela, mas Becca não era a sua única amiga. Aparentemente, ser invisível na escola não era o mesmo
que não ter amigos. Quando Becca recomeçou a dar-se com Tasha, não fora apenas com a mãe que
Hannah partilhara a tristeza. Aquela rapariga sem nome que Becca vira a dirigir-se com Hannah para
a aula de Geografia chamava-se afinal Adele Cotterill, e Hannah fartara-se de chorar no seu ombro.
A pior parte, segundo Adele e todas as publicações na Página em Homenagem a Hannah Alderton,
era Hannah nunca ter dito mal dela. Hannah vira sempre o que Becca tinha de melhor. E era bem
capaz de ser verdade. Mas Adele assumira como sua missão dizer ao mundo que Rebecca Crisp não
era merecedora de simpatia alguma. Os Alderton também achavam que não, e ela estava de acordo
com eles. Havia ali vítimas, mas Becca não era uma delas. Era apenas uma rapariga superficial que
abandonara uma boa amiga e, sem querer, a matara. Adele teve o cuidado de nunca acusar realmente
Becca pela morte de Hannah. Mas a coisa pairava no ar, era uma nuvem estagnada que cobria o seu
espaço na Net e não se dissipava.
Passara-se cerca de uma hora desde a criação da página de homenagem até Becca ver a primeira
publicação malévola. Era impossível não ver. O seu telemóvel soava com notificações de pessoas
que tinham escrito no seu mural. Nada do que diziam era bom. Outras pessoas enviaram-lhe tweets.
Sentira-se enjoada. Ainda se sentia enjoada quando se lembrava. O pior era Tasha a tentar refrear as
pessoas e a defendê-la. A santa Natasha, que, de repente, era amiga de toda a gente. Ninguém queria
saber de Tasha nunca ter passado cartão a Hannah. Porque Tasha, pelo menos, fora sincera em
relação a isso. Não acontecera ser amiga dela e depois deixá-la. Como fizera com Becca no 7.º ano,
embora aparentemente isso tivesse sido esquecido. Mas, passado um dia ou dois, Tasha desistiu de
lutar contra a ofensiva online e Becca acabou por desativar as contas todas, Twitter, Facebook,
Instagram, tudo. Era mais fácil assim. As pessoas não eram tão maldosas quando a encaravam, e ela
aguentava ser ignorada e os comentários maliciosos que ouvia nos corredores. Mas isso era
suficiente.
Às vezes, olhava para o destroço que era a sua vida e pensava, Como é que isto aconteceu? Eu
estava só a tentar ajudar. Pior, Natasha enganara-se quando dissera que Hannah seria esquecida
rapidamente. Hannah tornara-se um símbolo de uma espécie de pureza discreta. Becca, por outro
lado, era uma pária. Uma oportunista. Uma rapariga fútil, egoísta e fraca que só pensava em voltar a
ser aceite no grupinho das populares e que se aproveitara do acidente de Tasha para o conseguir.
Ninguém queria esquecer Hannah, mesmo que ninguém soubesse quem ela era até morrer, porque isso
significava que não teriam o prazer de odiar Becca.
Duas raparigas e um rapaz entraram, lançaram um olhar na sua direção e sentaram-se num círculo
de cadeiras no extremo oposto. Becca achou que era a dica para se ir embora. De qualquer maneira,
apetecia-lhe um cigarro e já tinha um enrolado. Tinha deixado de fumar cigarros dos outros e
começara a fumar tabaco de enrolar porque andava a fumar imenso, talvez vinte por dia, e a
semanada já não dava para os comprar. Até a mãe dera pelo aumento — Becca percebia pela sua
expressão de dor permanente quando a olhava. Era evidente que Julie Crisp tinha muita coisa para
dizer, mas fora, sem dúvida, aconselhada a deixar Becca resolver as coisas sozinha. A mãe nunca
tivera muito jeito para aquilo. Becca achava que o esforço para sorrir e ser compreensiva devia ser
mortal para ela. Ainda assim, pelo menos podia fumar o que lhe apetecia sem que a chateassem.
A brisa estava suficientemente agreste para a fazer tiritar, mas o sol estava quente. Dentro de um
mês, os últimos vestígios do inverno desapareceriam para só voltar em outubro. Hannah é que
morrera, mas ali fora Becca era atormentada por Hayley. Ou antes, pela ausência de Hayley. Quase
conseguia vê-la encostada à parede, com uma expressão desdenhosa, a fumar o seu Vogue com
cuidado. Para ela não havia cigarros de enrolar desagradáveis e que punham a cabeça à roda. Posso
estar na prisão, disse a ausência de Hayley na cabeça de Becca, mas tu não és propriamente uma
vencedora, pois não?
Antes de a autocomiseração a dominar, Becca abandonou o seu cigarro parcialmente fumado e
voltou para dentro. Não queria ficar na escola, mas não tinha para onde ir. Não havia ensaios de
peça, nem Aiden, nem amigos com quem ir ter. Talvez fosse ela o fantasma, a errar sem destino pelos
corredores.
Acabou por ir ao único sítio onde tinha uma certa sensação de paz, as salas de Arte. Ficavam na
cave e estavam quentes e abafadas agora que o inverno estava a chegar ao fim mas o aquecimento da
escola continuava ligado. Eram como um mundo exterior à escola, mais tranquilo do que a biblioteca,
com os estudantes perdidos na calma indolente que acompanha a criatividade concentrada, e com
espaço suficiente para ela instalar o cavalete a um canto e se esconder por trás. Era mais fácil não se
sentir ignorada nas salas de Arte. Assim como assim, as pessoas que lá estavam falavam pouco.
Não era uma peça para ser avaliada, mas algo que a doutora Harvey lhe sugerira que
experimentasse. Pintar o que sentia. Parecia estar a resultar. Becca pensara que o resultado seria uma
tela pós-moderna intensa, de manchas de cor revoltadas, mas acabara por ser uma imagem de
bosques e neve e de um rio gelado ao romper da aurora. Era uma imagem da calma que antecede a
tempestade. O palco vazio antes de Tasha irromper por entre as árvores e de ser empurrada ou de ter
caído na água. Era o princípio. Sim, para Tasha, Hayley e Jenny, tudo se passava nos bastidores, mas
aquela era a grande entrada para o centro do palco que atirava Becca para a ação.
— Está a começar a ficar maravilhosamente misterioso. — A professora Borders pousou duas
canecas de chá na mesa ao lado e puxou um banco. — Gosto especialmente dos apontamentos de
vermelho no céu e do brilho naquele canto de gelo.
— Obrigada.
— Tens passado aqui muito tempo. — Esperou que Becca enfiasse o pincel no frasco com água e
estendeu-lhe uma caneca. — Pus um bocadinho de açúcar, espero que não te importes.
Becca achou o chá demasiado diluído com leite e também doce de mais, mas sorriu na mesma.
— Obrigada mais uma vez.
Gostava da professora Borders, mas esperava que ela não se fosse atirar para a conversa bem-
intencionada do Está tudo bem contigo? que tantos professores haviam insistido em ter com ela.
Todos tinham reparado na forma como andava a ser rejeitada e era provável que todos tivessem
ouvido as histórias do Facebook e da Internet, por isso traziam o assunto à baila, mas sem querer
realmente falar dele. Os alunos achavam que tudo aquilo só lhes dizia respeito a eles e que os
professores não eram para ali chamados, mas Becca reparara nas expressões tensas e preocupadas
deles. O professor Garrick podia ter sido muito popular, mas agora estava morto. Morto e aviltado.
— É engraçado — disse a professora Borders, pensativamente. — Lembro-me de vocês todas no
sétimo ano. Na altura, a Hayley era uma trinca-espinhas, não era? — Falou sem olhar para Becca e
sem desfitar a pintura. A rapariga pensou que não era preciso ser-se nenhum génio para perceber por
que razão tinha escolhido aquela paisagem.
— Sempre achei que ela te admirava. Lançava sempre um olhar na tua direção quando dizia
alguma piadinha.
— Acho que está enganada — respondeu Becca. Pousou o chá e pegou novamente no pincel e na
paleta; não queria que as manchas de acrílico secassem. — A Natasha era o nosso centro. Ela devia
olhar era para a Tasha.
— Sim, olhava primeiro para a Tasha, mas era um olhar diferente. — Fez uma pausa e deu uns
golinhos no chá. — Nos meus tempos livres, pinto retratos de pessoas. Sei interpretar os olhares. —
Soltou uma pequena risada, meio suspiro. — Céus, parece que foi ontem. Agora estão todas
crescidas. Eu estava a dar aulas há dois anos quando vocês entraram para o secundário. Todas
desejosas de agradar. Sem arrogância. Como os tempos mudam…
Becca ficou sem saber o que dizer. Não sabia o que dizer de nada daquilo. Gostava da professora
Borders, mas que podia ela saber sobre elas? Nem devia lembrar-se das amigas que tinha quando
andara na escola.
— É muito raro que alunas do sétimo ano se desentendam como aconteceu com vocês. — Desta
vez, olhou para Becca, mas não com uma expressão de piedade. Podiam estar a falar sobre um
programa qualquer de televisão em vez da destruição de vidas adolescentes. Era apenas uma
conversa. Uma conversa refletida, é certo, mas só isso. Becca estava a sentir-se um pouco melhor. —
Há discussões e lágrimas, desentendimentos e reconciliações — prosseguiu a professora Borders. —
Mas normalmente as alunas dessa idade estão ainda demasiado fascinadas com a escola dos grandes
para serem realmente perversas. Isso costuma começar a acontecer por volta do nono ano.
— Devo ter tido azar — murmurou Becca. Inclinou-se para a frente e concentrou-se numa
pequena mancha em que o rio se unia à margem.
— É estranho. — A professora Borders tinha-se instalado. Parecia evidente que ia falar durante
tanto tempo quanto durasse o seu chá. — A maneira como as coisas mudaram. De vocês as três, a
Natasha era a única de quem eu não gostava. Sei que não devia dizer isto, é pouco profissional. —
Piscou o olho a Becca. — Mas é verdade. Para ser franca, continuo a não gostar dela, mesmo depois
de tudo o que passou. Sempre a achei uma rapariga mimada. As crianças não deviam poder ter tudo o
que querem. Não é bom para o carácter. E o dela já não devia ser muito doce.
— Os pais da Tasha são muito simpáticos — disse Becca. Mesmo naquele momento, continuava a
defendê-la.
— Tenho a certeza que sim.
— Mas tem razão — concordou. — Fazem-lhe as vontades todas.
— Não são só eles. — A professora Borders inclinou-se ligeiramente para trás no banco. —
Nunca percebi por que razão vocês as duas, e depois a Jenny, eram tão fascinadas por ela. Nunca me
pareceu que fosse assim tão extraordinária. Tu e a Hayley, bem, vocês eram miúdas como deve ser. E
no meio, lá estava a Natasha. Sempre contida.
— Não me lembro bem — disse Becca. — Éramos apenas crianças. — Não ergueu os olhos da
pintura, mas teve a sensação de que a professora estava a fazer aquela expressão Pois eram.
— Ela era realmente muito bonita. E a Jenny também, quando apareceu. E a Hayley tinha aquela
beleza muito própria. Muito antes de vocês repararem, já lá estava, a ferver por baixo da pele, à
espera que as maçãs do rosto ganhassem alguma proeminência. Adorava pintar um retrato da Hayley.
— Se calhar, agora até podia. Ela não deve andar propriamente ocupada.
— A malevolência não te fica bem, Rebecca.
— Depois do que ela fez?
Seguiram-se uns momentos de silêncio e, ao princípio, Becca pensou que a professor Borders se
estava a sentir constrangida, mas depois percebeu que ela estava ainda a vaguear pelas suas
recordações, a peneirá-las e a selecioná-las.
— A Hayley ficou perturbadíssima quando vocês se zangaram.
— Não ficou assim tanto — respondeu Becca, e encolheu os ombros.
— Olha que ficou. Foi a única vez que a vi fazer frente à Natasha. Nunca ninguém o tinha feito.
— Olhou para Becca com um sorriso caloroso. — Nem tu. Limitavam-se a andar atrás dela. Mas
quando se zangaram e começaste a sentar-te na sala de Arte sozinha, e a pequena Jenny ocupou o teu
lugar, a Hayley ficou triste. Tentou emendar as coisas, mas a Natasha não deixou. Eu costumava ouvi-
las à hora do almoço, e a Hayley empenhava-se em defender-te. E depois um dia, acho que
simplesmente desistiu. Vi-a chorar no corredor, perguntei-lhe o que se passava, mas ela não quis
dizer. Perguntei se tinha que ver contigo e tentei falar-lhe de amizades, mas ela disse que eu não
percebia. Depois disso, ficou mais fria. Em todos os sentidos da palavra. Foi o início da loura de
Hitchcock.
Becca não sabia o que era uma loura de Hitchcock, mas percebeu o que a professora queria dizer:
o início das Barbies.
— Inteligência, beleza e sexo, as três coisas juntas. É incrível vê-las a crescer.
— Pois — disse Becca. — É capaz… — Começava a sentir-se aborrecida. Até a professora
Borders se sentia fascinada pelas Barbies.
— Ah — disse a professora, interpretando a expressão dela —, mas com exceção desses traços,
elas são… elas eram… absolutamente artificiais, ao passo que tu és uma criação de ti própria. És
quem deves ser. O teu estilo é único. Isso é muito mais digno de ser admirado. É uma arte. Deve ter
sido por isso que a Natasha se voltou novamente para ti quando perdeu a memória. As pessoas
precisam da verdade.
Becca escutou com atenção, à procura de qualquer indício de compaixão ou de condescendência,
mas não o encontrou. Aquelas eram as palavras mais simpáticas que alguém, exceto a sua família, lhe
havia dirigido no que lhe parecia uma eternidade.
— Tenho pensado nelas desde que tudo isto aconteceu. Bem, nelas e em ti. E nesta história toda, e
sei que é terrível dizer isto, dou por mim a sentir mais pena da Hayley do que da Natasha. — Pôs-se
de pé. — Acho que ainda vejo aquela menina magra e desengonçada a chorar no corredor. É
engraçado como estas coisas nos podem afetar durante tanto tempo. — Fez uma pausa. — Acho que,
apesar de tudo, foi uma sorte teres-te afastado delas.
— Bem, ser de novo arrastada para o grupo é que não me fez bem nenhum.
Tentou sorrir. Arrastada para o grupo era um exagero e toda a gente o sabia. Becca atirara-se a
Tasha, quer o tivesse na altura admitido para si mesma ou não.
— Ela foi sempre imensamente dominadora — ponderou a professora Borders, e esticou um
pouco o corpo. — Algumas mulheres são manipuladoras, e a Natasha Howland nasceu para isso. Tu
foste varrida do tabuleiro, e a Jenny foi substituir-te.
— Como uma nova rainha no xadrez — disse Becca.
— Sim, mais ou menos isso. — A professora de Arte pegou na sua caneca. — Mas suspeito que
aos olhos de Natasha, todas as outras pessoas presentes no tabuleiro sejam peões. Ela substituiu as
amigas depressa demais. — Pousou a mão sobre o ombro de Becca. — Sei que agora pode parecer
difícil, mas vais ver que tudo isto acabará por desaparecer.
E lá estava. O momento adulto. Becca sorriu e pousou o pincel.
— Eu sei. Tem razão. — Não sabia nada, mas a professora ficaria mais tranquila se ela dissesse
que sim. — Acho que vou limpar isto a apanhar um bocado de ar fresco.
— Deixa, eu trato disto. Vai lá. Um passeio faz-te bem.
O sorriso de Becca mais parecia uma careta, mas ela manteve-o, apesar de lhe apetecer gritar
«Não, o que me fazia bem era que o meu namorado voltasse e que toda a gente percebesse que
nada disto foi por minha culpa!»
— Obrigada, professora — disse em vez disso, pegando no casaco e na mochila. De repente, o
calor parecia claustrofóbico e a sua professora favorita estava a irritá-la. Os adultos não sabem dizer
nada como deve ser, com aquelas frases complacentes que estão sempre a atirar, do género Quando
cresceres, vais ver. Becca pensava às vezes se se teriam todos esquecido como era realmente sentir
coisas. Aquilo não era apenas uma briga de recreio, tinham morrido pessoas.
Faltava pelo menos meia hora para o último toque, o pátio estava vazio e não havia professores
relutantes a cumprir o seu dever junto dos portões. Becca não olhou para trás quando os transpôs e
ainda não tinha acabado de dobrar a esquina quando acendeu o resto do cigarro que fumara mais
cedo. Não sabia para onde havia de ir. Era bom estar fora da escola e longe de todos os mexericos,
mas também não queria ir para casa. Tinha algum dinheiro, mas não lhe apetecia ir sentar-se no
Starbucks sozinha e, de qualquer maneira, dentro de uma hora os alunos da escola iam começar a
chegar e não estava com disposição para aguentar os olhares deles.
Caminhou lentamente, sem prestar atenção para onde os pés a levavam, com a mente a remoer o
que a professora de Arte lhe dissera. Não se apercebera de que a professora Borders lhes tinha
prestado tanta atenção quando eram pequenas. Que estranho nunca ter gostado de Tasha. Havia nisso
qualquer coisa que incomodava Becca, que fazia mover as areias das suas recordações, mas não
sabia bem o quê. Sabia que ela podia ser perversa. Ou, pelo menos, era assim na altura, por isso
aquilo não era surpresa nenhuma. Talvez fosse o ter descoberto que a Hayley ficara tão perturbada
que lhe provocava aquela sensação estranha.
Talvez.
Mas havia qualquer outra coisa. Algo mais recente, que as palavras da professora Borders lhe
tinham trazido quase à superfície da memória, mas que não conseguia bem captar. Como Tasha
agarrada aos ramos no rio, só que, neste caso, o que quer que estivesse a incomodar Becca era
sugado para as profundezas sempre que ela tentava deitar-lhe a mão.
Talvez não fosse nada. Fosse o que fosse, não devia ser assim tão importante. Olhou para o
telemóvel pela milésima vez, para ver se Aiden teria enviado alguma mensagem, mas claro que não
tinha. Uma pequena labareda de raiva ardeu dentro dela. Era um bocado indelicado, não era?
Custava assim tanto enviar um breve Obrigado ou coisa do género? Ele devia estar a trabalhar,
tentou dizer-lhe o lado racional do cérebro, mas afastou o pensamento. Aiden era um merdoso. Mais
nada.
Ficou petrificada quando viu os três letreiros a dizer Vende-se no relvado da frente, rígidos e
encaixados uns aos outros, como que a lutar pela melhor posição. Não percebera que tinha
caminhado tanto. Estivera a olhar para os pés e estava perdida nos seus próprios pensamentos.
Porque teria ido até ali?
Ficou parada no passeio a olhar para a casa. A casa de Hayley. Parecia cansada. Uma ligeira
coloração vermelha manchava as portas duplas brancas da garagem, como se tivessem andado a
raspar tinta. E talvez tivessem. O caixote da reciclagem à porta estava cheio de garrafas de vinho e
de bebidas brancas. Não era apenas a mãe de Jenny quem andava a beber. As cortinas estavam
cuidadosamente corridas sobre as janelas, tanto no andar de cima como no de baixo. Seria igual nas
traseiras? Estaria a família de Hayley a viver às escuras, à espera que alguém lhes comprasse a casa,
para poder ir-se embora dali e recomeçar a vida? A avaliar pela quantidade de letreiros de
imobiliárias, não estavam com grande sorte.
Becca sentiu de repente uma grande tristeza e o corpo invadido por uma dor pesada e
avassaladora, como as dores do primeiro dia do período. Talvez Aiden não fosse o único merdoso.
Talvez ela também fosse. Não tivera um único pensamento para com a crise que a família de Hayley
estava a enfrentar. Nem para com a mãe de Jenny. Teria sido realojada pelo município? Teria
passado da bebida para as drogas? Não devia ter propriamente dificuldade em arranjar qualquer uma
delas. Tal mãe, tal filha. Se os pais de Hayley esvaziavam aquela quantidade de garrafas numa
semana, então tudo era possível.
Teve vontade de chorar. Pela milionésima vez, pensou como as coisas teriam chegado àquele
ponto. As lágrimas toldaram-lhe a vista e não reparou na porta da frente que se abria.
— Tu.
A palavra era azeda, e Becca deu um salto e limpou rapidamente as lágrimas.
— Desculpe, estava só…
— Só o quê? Vieste espiolhar? — A mãe de Hayley, com o corpo escanzelado dentro de uma
grande camisola e de umas calças de ganga, atirou o saco preto para dentro do caixote com rodas no
caminho de acesso. — Deitar mais um bocado de veneno sobre a nossa casa?
— Eu não… Não faria… Lamento… — Becca sentia o rosto a arder. Porque fora até ali? Por que
razão a mãe de Hayley a odiava? A culpa não era dela. Não era. Ela não tinha feito nada. A outra
avançou precipitadamente para ela até ficarem frente a frente. Becca recuou ligeiramente, e a sua
respiração acelerou. Será que ela lhe ia bater?
— Desculpe. Eu… — Sem saber o que dizer, perguntou debilmente: — Como está a Hayley?
A senhora Gallagher soltou uma risadinha amarga.
— Isso interessa-te? Ou agora que não tens outros amigos já a queres de repente outra vez?
Becca recuou um pouco, chocada.
— Sim, eu ouvi umas coisas. A minha menina não é a única que recebe mensagens de ódio no
Facebook, pois não? Os olhos da mãe de Hayley estavam orlados de vermelho e tinham uns círculos
tão escuros por baixo que pareciam sacos flácidos pousados sobre as suas faces magras. — O que
foi? O gato comeu-te a língua, senhora detetive? Achas-te muito esperta, é? Pois olha lá o que fizeste.
A Jenny está no hospital psiquiátrico e a minha Hayley está desfeita. Está medicada, sabias? Sabias?
— Apontou a Becca um dedo escanzelado. — Está desfeita. — Bateu no peito. — Aqui dentro.
Quase não diz coisa com coisa, passa os dias a balbuciar frases sem sentido. Mas fala de ti e da
Jenny. Ainda gosta de ti. Depois disto tudo. E agora nem me quer ver. Diz que não vale a pena. —
Estendeu a mão, agarrou os braços de Becca e abanou-a até a mochila lhe deslizar do ombro. —
Imaginas o que isso é? Imaginas como me sinto impotente?
A sua raiva desapareceu de repente e ela começou a soluçar, soltando sons fortes e revoltados
que lhe vinham do fundo do peito. Deixou-se cair no chão, sobre o asfalto, ao mesmo tempo que os
seus dedos frouxos deslizavam pelo corpo de Becca.
Esta olhou em volta, impotente. Sentia-se enjoada e sem saber o que fazer. Acabou por se
ajoelhar ao lado da mulher frágil:
— Devia voltar para dentro — disse, tão suavemente quanto conseguiu. Queria pôr-lhe um braço
à volta dos ombros, mas teve medo de que ela a enxotasse. — Posso ajudá-la a voltar para casa?
— Ela diz que a Jenny tem razão. — Estava de olhos fixos num inferno pessoal qualquer; Becca
pensou se já estaria bêbeda. Talvez. — Diz que a culpa é toda dela. Não devia ter pensado que
podiam compor a situação. E agora a Hannah e o Peter Garrick estão mortos. — As suas palavras
não eram mais do que um gemido. — E recusa-se a explicar-me. Diz só que nunca ninguém acreditará
nela. Diz que não quer ver ninguém. — Os soluços tornaram-se mais fortes, arrancados de um poço
fundo. — Tenho tanto medo de que ela morra.
— Tenho imensa pena — repetiu Becca. Não sabia que mais havia de dizer. Não tinha
propriamente pena de Hayley, mas lamentava todo aquele sofrimento. Ficou onde estava, acocorada,
e começou a sentir formigueiros nas pernas, até que as lágrimas da senhora Gallagher abrandaram.
Soltou um suspiro longo e entrecortado e limpou o nariz às costas da mão antes de erguer os olhos.
Estava esgotada, como se aquele colapso emocional lhe andasse a acontecer com demasiada
frequência.
— Senti ódio por ti — disse a mãe de Hayley, sentando-se sobre os calcanhares. — É possível
que ainda sinta.
Becca sentiu as lágrimas a picarem-lhe os olhos. Os adultos não odiavam os adolescentes. Não
deviam odiar. E Becca não fizera nada de mal.
— Mas ela, não. — A mulher levantou-se, Becca fez o mesmo, e ficaram as duas novamente
frente a frente. — Ela pensa mais em ti do que pensa em mim.
Becca dominou as lágrimas.
— O que quer dizer? — Porque havia a Hayley de pensar nela? Estaria a planear alguma
vingança?
— Diz que não quer que eu a visite mais.
Estava prestes a deixar-se submergir de novo pelo desgosto.
— Que diz ela sobre mim? — insistiu Becca.
A mãe de Hayley começou a cambalear em direção à porta. Deteve-se após alguns passos e
voltou-se.
— Não para de repetir «Ela usou a Becca». — Entreolharam-se, e a mulher encolheu os ombros
antes de se tornar a voltar. — Mas talvez seja dos medicamentos — disse, deixando as palavras
perderem-se no ar. — Já não sei o que pensar. Mas não quero pensar em ti.
48

Percorreu a correr quase todo o caminho até à casa com a cabeça em chamas, algures entre a
ansiedade e a dor. Precisava de um espaço tranquilo e privado para pensar. Fora horrível ver a mãe
de Hayley naquele estado. Estava mais devastada do que Amanda Alderton no funeral, e a filha desta
última tinha mesmo morrido.
Hayley. A trepadora de árvores. A loura fria como gelo. A assassina. Parecia estar a entrar em
colapso total onde quer que a tivessem prendido. Seria fácil conseguir drogas na prisão? Talvez. Mas
porque se teria Hayley deixado ir abaixo agora? Becca recordou a maneira calma como ela subira ao
escadote para ajustar o foco do palco. Na altura, não parecia nervosa. Talvez na altura ainda nada
parecesse real. Pensou na professora Borders, a referenciar calmamente o fim da amizade delas, e
sentiu uma dor intensa ao recordar a simplicidade daqueles primeiros tempos de escola. Que teria
acontecido que impedira Hayley de a defender quando Tasha a substituíra por Jenny? Porque acabara
Hayley a soluçar num corredor?
Que te interessa isso? perguntou a si mesma. Foi tudo há imenso tempo. Não precisas de
ninguém. Estás bem sozinha. Eles que se lixem. Eram palavras duras, às vezes quase acreditava
nelas, mas eram ocas. Era mais fácil acreditar quando tinha Hannah e Aiden, e quando pertencer ao
grupo das fixes era apenas uma recordação longínqua. Agora era diferente. Tinha feridas frescas para
tratar. Era como estar novamente no 7.º ano, mas muito pior. Seria a recordação que tinha das
amizades de infância fiel? A professora Borders dissera que elas só faziam o que Tasha mandava —
seria mesmo assim? Sim, era verdade que Tasha sempre fora o centro, mas que sentia Becca de facto
em relação a ela?
A cabeça começou a latejar-lhe. Tinha a boca seca e precisava de água, mas não queria correr o
risco de encontrar a mãe lá em baixo. Em vez disso, tirou um bocado de pastilha elástica de um papel
amarrotado que tinha no bolso, pôs-se a mastigá-la e depois abriu a janela. Na gaveta ao lado da
cama estavam os últimos Marlboro Lights, os cigarros que agora reservava para ocasiões especiais;
tirou um. O fumo soube-lhe bem, sem o sabor a petróleo dos cigarros de enrolar sem filtro que lhe
punham a cabeça à roda, apenas quente e com um sabor a madeira. Lembravam-lhe Aiden. Verificou
novamente o telefone. Continuava a não ter mensagens.
Sacana.
Com o cigarro delicioso numa mão, dirigiu-se à estante desarrumada e repleta de coisas e tirou
os antigos álbuns de fotografias que ali estavam esquecidos e quase a cair para trás. Não olhava para
eles há séculos. Continuava a haver qualquer coisa que a incomodava, algo de que não se lembrava
bem e que talvez um mergulho no passado fizesse vir à superfície. Virou as páginas de cartolina, com
as fotografias coladas atrás de celofane. Era bom ver fotografias que eram só dela e não partilhadas
com o mundo no Instagram e no Facebook.
Rostos de criança a rir — o seu mais redondo do que era naquele momento, mas também muito
mais feliz. Roupas horríveis. As três juntas. Um dia na praia — teriam ido com os pais de quem? —
de que não se lembrava, embora se lembrasse das máquinas de dez cêntimos em que jogavam sem
nunca ganhar. O dente da frente que faltava a Hayley — ela esperou uma eternidade até que o novo
nascesse. A festa de aniversário dos seis anos de Becca — agora menos sorridente porque fora
obrigada a pôr um vestido roxo que odiava, pois tinha estragado o verde e…
… e então imobilizou-se, com a mão ainda a tocar na fotografia. O vestido verde. Como se
esquecera do vestido verde perfeito? Estragara-se. Natasha estragara-o e culpara Hayley.
Sentiu-se enjoada e ficou ligeiramente tonta ao inalar mais fumo. A história do vestido verde
acontecera há muito tempo. Não devia ter nenhuma relação com o que se passava naquele momento
com Tasha e Hayley. Fora apenas Tasha a comportar-se como uma criança mimada. Mas ainda assim.
Era um pedaço de jade acerado alojado na sua cabeça. Tinha um significado. Não era tanto o que
Natasha fizera na altura, mas como o fizera.
Olhou para as belas peças de pedra-sabão, sobre o tabuleiro de xadrez empurrado para o fundo
da sua pequena secretária, aguardando pacientemente a próxima jogada de um jogo não terminado.
Estavam empatadas quando Tasha parara de jogar. Agora os reis tinham sido quase esquecidos e
fitavam-se um ao outro por trás das suas defesas.
Xadrez.
Sentiu novamente a comichão no fundo da mente. A sensação de lhe ter escapado alguma coisa
importante. Qualquer coisa que estava mesmo debaixo do seu nariz. Xadrez. Olhou novamente para
as peças imobilizadas, sentindo o bichinho da recordação a contorcer-se na lama para chegar à
superfície. O tabuleiro de xadrez. O funeral.
De repente, estava ali. Límpido na sua mente. A conversa que entreouvira.
Foi a Natasha que as escolheu. Aquelas raparigas eram as melhores amigas dela.
Teria sido isso que a senhora Howland dissera realmente? Ou seria a memória a pregar-lhe
partidas? Só havia uma maneira de descobrir.
Olhou para o relógio. Se fosse rápida, podia chegar a casa dos Howland antes de Natasha acabar
a escola. Atirou o cigarro pela janela aberta sem se dar ao trabalho de o apagar e pôs-se a vasculhar
o armário até encontrar o que precisava: uma camisola de caxemira vermelha, que uma tia lhe
comprara no Natal e que era um ou dois tamanhos abaixo do seu. Perfeito.
Saiu pela porta da frente antes de a mãe a chamar e partiu a passo de corrida. Não tinha muito
tempo. Natasha podia ou não ter planos para depois da escola. Becca já não fazia parte daquele
círculo.
Só abrandou quando contornou a esquina para a rua dos Howland. Não podia entrar a arfar e a
escorrer suor. Tinha de ter um ar normal. Firme. Encostou-se à parede de tijolo frio ao lado da porta
durante uns segundos até recuperar o fôlego e depois endireitou as costas e tocou a campainha.
— Rebecca!
Sempre Rebecca, nunca Bex nem Becca.
— Boa tarde, senhora Howland.
— Entra, entra. A Natasha ainda não chegou.
Alison Howland tinha regressado ao seu estilo sofisticado, perfeitamente maquilhada e com cores
a condizer, embora fosse uma tarde normal da semana e ela tivesse provavelmente ido apenas ao
supermercado, se é que fora. Talvez tivesse ido almoçar com amigas. Becca imaginava que Alison
Howland levava uma vida perfeita e perfumada. Até a tragédia da queda de Natasha ao rio se
revelara mais trágica para outras pessoas do que para os Howland.
Em cima do Airbook não utilizado, na mesa da cozinha, estavam empilhadas revistas, mas nem
isso dava um ar desarrumado ao espaço — as revistas tinham demasiada qualidade. O espaço
parecia antes decorado, como naquelas fotografias de casas de pessoas famosas. Um estilo mais
descontraído do que convencional, mas ainda assim a ressumar elegância.
Becca mostrou a camisola.
— Encontrei isto em casa e pensei que devia ser da Tasha. Não é minha.
Alison pegou nela e examinou-a.
— Acho que não. Ela não gosta muito de caxemira. — Fez um sorriso como que a desculpar-se.
— Mas é linda.
— Ah, talvez seja da Hayley ou da Jenny — disse Becca.
O rosto de Alison endureceu, e Becca quase se odiou pela pontada de dor que obviamente
causara à mulher. Talvez afinal Alison ainda tivesse feridas por sarar.
— Então bem podes queimá-la — disse com azedume. — Depois de o julgamento terminar, elas
não vão usar senão fardas prisionais durante muito tempo.
Becca anuiu, com o rosto a arder novamente. Alison, que deve ter dado pelo seu constrangimento,
apertou-lhe o ombro:
— Ah, desculpa. A culpa não é tua. É que eu… Bem, tem sido difícil para toda a gente. Sei que o
Gary também está magoado. Ele gostava muito delas. Sobretudo da Hayley. Mas depois elas… elas
tentaram… bem. Nunca o vi tão perturbado e furioso. É a falsidade. As mentiras.
— Foi um choque enorme — murmurou Becca. Queria passar para o tema das pulseiras, mas não
sabia como. Será que devia simplesmente perguntar diretamente por elas? — Elas eram tão
chegadas.
— E foram tão amorosas, tão atenciosas, depois, isso é o que me magoa mais. Chorei com elas.
Estiveram sentadas no hospital com a Tash, vieram-lhe buscar coisas ao quarto para nós não termos
de sair da cabeceira dela. E afinal, eram elas as responsáveis? Às vezes, ainda me custa a acreditar.
Mesmo agora, que já se descobriu tudo.
Becca não via os Howland desde o funeral de Hannah e, embora Alison estivesse agora menos
perturbada, a dor provocada pelo que as raparigas tinham feito não diminuíra de intensidade. Vivia
ainda aquele momento em que tudo mudara. Precisava mais de terapia do que Becca. Como teria ela
reagido se visse a mãe de Hayley a chorar à entrada de casa? Becca tinha esperança de que ela fosse
simpática, mas o ódio gélido que via em Alison levava-a a pensar que não teria sido uma cena
bonita. Tinham destruído a sua vida perfeita. Isso não se perdoava facilmente. Tal mãe, tal filha.
— Vou querer que elas devolvam aquelas pulseiras — sibilou Alison. Já não estava a olhar para
Becca. — Foi a Natasha quem as escolheu. Pedi àquela inspetora que as recuperasse, mas parece que
ainda não mas podem dar.
E lá estava. Becca nem precisara de perguntar. Tinha ouvido bem no funeral. Sentiu o rosto a
arder e a respiração acelerada. Tasha dissera que tinha sido a mãe a escolhê-las, mas não era
verdade. Quem as escolhera fora ela. Lançou uma olhadela ao relógio.
— Bem, é melhor ir andando — disse. — Tenho uma consulta com a psicóloga daqui a nada. —
Não tinha, mas não queria estar ali quando Natasha voltasse a casa. Iria parecer carente. E queria
pensar.
Apesar de tudo, não era uma grande mentira. Talvez Tasha tivesse dito que fora a mãe a escolher
as pulseiras por não querer que Becca se sentisse excluída. Mas que outras pequenas mentiras teria
ela contado?
— Claro. — Alison deu-lhe um abraço súbito, que a surpreendeu, e Becca retribuiu, demasiado
chocada para fazer outra coisa. — Sempre foste a melhor delas todas, Rebecca. Fiquei muito triste
quando vocês se afastaram.
Sem dar resposta, Becca murmurou apenas uma despedida e saiu. Sentia-se trémula. Era óbvio
que Alison Howland não sabia que tinham voltado a afastar-se, nem devia ter visto o que tinham
escrito sobre Becca na Internet. Mas segundo Tasha, ela nunca usava a Internet. Nunca utilizara o seu
computador novinho em folha. A própria Becca começava a achar que talvez fosse melhor assim.
— Bex?
Ergueu o olhar. Oh, merda.
— Que fazes aqui? — Tasha franziu os olhos para se proteger do Sol baixo do final da tarde. Não
se percebia se estava aborrecida ou apenas a esforçar-se para ver, mas o seu tom era de manifesto
descontentamento.
— Vim cá trazer isto. — Mostrou a camisola. — Encontrei-a e pensei que podia ser tua.
— A sério? — Tasha ergueu uma sobrancelha. — Isso?
Becca apertou os dentes. Tasha, a sacana, estava de volta. Mas tinha uma certa razão. Além do
tamanho, havia outro motivo para Becca nunca ter usado a camisola. Tinha qualquer coisa de mulher
de meia-idade.
— Pois, devia ter percebido. Acho que… — Passou o peso de um pé para o outro e girou os
ombros. — Queria estar contigo. Há que séculos que não falamos. Queria saber se estavas bem. —
Foi o melhor que conseguiu dizer. E não era inteiramente falso. Magoava-a já não serem amigas.
Magoava-a imenso.
— Estou bem — respondeu Tasha num tom mais suave. — Lamento imenso aquela cena toda na
Internet. Deve ser uma chatice teres de apagar as contas todas.
— Na verdade, não me faz grande diferença — respondeu, embora não fosse verdade. Embora se
tivesse livrado dos comentários maldosos, era como se lhe tivessem cortado um braço. Ainda se
punha a abrir contas falsas só para sentir que não vivia num universo totalmente diferente do resto da
escola. — Tenho saudades de estarmos juntas. Estava a saber-me bem sermos outra vez amigas.
Tasha fez um ar constrangido, e os seus olhos saltaram de Becca para a porta de casa, como que à
procura de uma escapatória.
— Ainda não me sinto preparada, percebes?
— Claro — respondeu. Mas pela primeira vez desde que tudo aquilo começara, Tasha parecia
pouco sincera. — Claro, eu compreendo.
— Obrigada, Bex. Não penses que não gosto de ti. Gosto. Sem ti, bem, quem sabe como seriam
as coisas agora?
E como seriam?, pensou Becca. Que fiz eu por ti precisamente, Tasha? Porque acha a Hayley
que me usaste?
Encolheu os ombros:
— Vou andando.
— Está bem — disse Tasha, aliviada. — Eu também vou para casa.
Becca deu quatro passos antes de se voltar para trás.
— Tash? — chamou.
— O que é?
A outra rapariga estava quase à porta e avançava depressa.
— Porque me disseste que tinha sido a tua mãe a escolher as pulseiras que ofereceste à Hayley e
à Jenny?
— O quê?
Agora estava claramente irritada. Queria que Becca se pusesse a andar.
Pois, azar, Miss Perfeição, pensou Becca, dirigindo-se para ela. Ainda aqui estou.
— Aquelas pulseiras de amizade. Quando me ofereceste o jogo de xadrez. Disseste que tinha sido
a tua mãe a escolhê-las, mas ela disse que foste tu.
— Isso tem alguma importância? — perguntou Tasha. Enfiou a chave na fechadura enquanto
olhava para Becca por cima do ombro. — Que diferença faz isso agora? Não me lembro. Eu disse
isso? Talvez quisesse dizer que as escolhemos juntas.
— Sim, talvez. — Becca não estava convencida. Lembrava-se nitidamente. Estavam na sala de
teatro. Lembrava-se porque se sentira toda especial por Tasha ter escolhido a sua prenda e não a
delas. Sentira-se a arder por dentro. — Tens razão, não tem importância.
Voltou-se e afastou-se, à espera de ouvir o som da porta de casa a bater. Só o ouviu passados
alguns segundos. Tasha ficara a olhar para ela.
Ela mentiu, pensou Becca, e nesse instante teve a certeza. Ela mentiu-me. Mas porquê? As
palavras de Hayley, que a mãe repetira lavada em lágrimas, ecoavam-lhe na cabeça. Ela usou a
Becca. E, a seguir, claro, lembrou-se do vestido verde. O mundo tremia com possibilidades que
Becca não queria analisar. Não queria pensar naquilo. Não conseguia. Mas a situação começava a
parecer-se com o episódio do vestido verde. Talvez afinal não tivessem mudado tanto. Se assim
fosse, Natasha enganara-a. Será que a tinha enganado mais uma vez?

Naquela noite, fumou o último Marlboro à janela e pensou na mentira de Natasha, nas palavras
de Hayley e no vestido verde, até sentir como se o cérebro estivesse a ser espremido na máquina de
sumos da mãe. Porque tinha Tasha mentido? Não era uma grande mentira. Podia não querer dizer
nada. As pessoas fartam-se de mentir para não magoar os outros. Talvez se tivesse sentido mal por a
prenda de Becca ser menos pessoal. Talvez tivesse sido isso. Talvez. Mas não parecia ser. E Tasha
podia ter perdido a memória, mas não fizera nenhum transplante de personalidade. Não era do género
de mentir só para consolar alguém. Podia ter reconquistado a amizade de Becca sem ter de recorrer à
mentira. Então, porque teria mentido?
Inclinou-se para fora da janela e deixou o ar fresco tocar-lhe no rosto. Naquele momento, Hayley
estaria deitada, acordada, na sua cela? Estaria cheia de drogas que arranjava na prisão? Ou
encerrada num hospital qualquer a fazer uma desintoxicação?
As pulseiras. O vestido verde. Ela também usou a Becca.
O vestido verde era como uma gavinha, enrolada à volta das suas pernas, arrastando-a para
baixo, para a escuridão onde o passado e o presente colidiam.
Tasha foi sempre o centro do grupo. Era verdade. Faziam tudo o que ela mandava, como se ainda
em crianças soubessem que ela era a especial e que o lugar delas no mundo dependia da sua
aceitação. Mesmo depois do episódio com o vestido verde, em que ela se revelara manhosa e
mesquinha, tudo continuara na mesma. Natasha conseguia sempre reconquistá-las com o seu charme.
Becca soprou o fumo para o ar da noite e passou os olhos sobre as formas escuras do jardim; a
grande sombra escura que era o anexo do pai; o baloiço de dois lugares perto da vedação; as plantas
que se erguiam da terra negra. Tudo parecia estranho, sinistro e indistinto sem a luz do dia. Um
mundo obscuro.
Tasha mentira. O pensamento não desaparecia. E agora sabia que Becca sabia que tinha mentido.
Tasha, a aluna de notas excelentes, a rapariga que terminara os exames à frente de toda a turma, a
jogadora de xadrez que não fazia nada sem um motivo, não se deixaria enganar só porque Becca
fingira ter posto o assunto de lado. Pegou no telemóvel e procurou o número de Tasha. Já não
constava nos números mais recentes. Novamente descartada. Engraçado.

Lembrei-me de repente do meu vestido verde. Não é


de doidos? Foi há tantos anos e lembrei-me agora.
Porque será?

Escreveu as palavras depressa e carregou em «enviar». Atirou a ponta do cigarro pela janela,
fechou-a e deitou-se na cama com o coração a bater acelerado.
Quando o telefone zumbiu imediatamente a seguir, deu um salto.

Desculpa, estava a trabalhar.


Sim, é um alívio. Obrigado.

Não era Tasha, mas Aiden. Ficou a olhar para as palavras. Eram frias e distantes. Não mandava
beijos. Não parecia nada o seu Aiden. Mas como acabara por descobrir, ele nunca fora realmente
seu. Como podia ser, quando lhe tinha escondido tanta coisa? Odiou-se por lhe ter enviado a
mensagem. Porque era tão fraca? Porque era tão idiota? Apagou a luz e mergulhou na escuridão cheia
de raiva, a lutar contra a vontade de reativar a página do Facebook só para ver o que se passava no
mundo dele. Acabou por desligar o telefone e pô-lo do outro lado do quarto, em cima da cómoda,
para não chegar lá tão facilmente. Sentia-se enjoada. Porque levava o sofrimento emocional tanto
tempo a passar?
49

No dia seguinte, faltou às aulas de manhã para ir olhar para o umbigo com a bem-intencionada,
mas enfadonha, doutora Harvey. Não lhe contou que tinha estado com a mãe de Hayley nem com
Tasha. Não falou do vestido verde. Aliás, não falou de quase nada e no final alegou estar com dores
de cabeça para terminar a sessão mais cedo. A tarde passou-se numa névoa de Inglês, com o fantasma
do professor Garrick ainda a pairar sobre a aula, e sobretudo sobre o ombro da nervosa e agitada
professora substituta que ocupara o seu lugar. Becca achou que ela era boa professora, mas não tinha
nenhuma relação com eles, e a expressão mórbida no seu rosto sempre que os seus olhos pousavam
em Becca revelava a todos que estudara avidamente os jornais, em busca de todos os pormenores da
saga macabra que afetara tantos alunos da sala.
Becca manteve a cabeça baixa e deixou que a aula decorresse. Tasha não lhe respondera. Não
conseguia descortinar se achava isso estranho ou se estaria agora tão no fundo da estrutura social da
colmeia que nem era digna de uma mensagem como Não faço ideia do que estás a falar. Talvez
Tasha não se lembrasse. Ela própria só se lembrara ao ver a fotografia. Mas devia ter-se recordado
assim que Becca o mencionou. Apesar de tudo, Tasha tinha arranjado um enorme sarilho com a mãe
por causa daquilo. Fora uma das raras vezes em que os pais lhe tinham dado uma valente reprimenda.
Talvez estivesse ainda a pensar como havia de responder. Talvez tudo aquilo não passasse de um
disparate da cabeça de Becca.
Quando a campainha tocou, dirigiu-se ao cacifo para deixar os livros e viu as novas Barbies,
Jodie e Vicki, um pouco mais adiante. Rosnou para consigo. Não eram propriamente maldosas com
ela — ela nem era digna de atenção suficiente para isso —, mas estava bem ciente do seu desdém.
Aquelas duas eram bem piores do que Hayley e Jenny. Sabiam que eram segunda escolha e não
faziam tenções de perder o seu prestígio recém-adquirido, nem de desperdiçar um momento que fosse
a desfrutar dele.
Lançaram um olhar na sua direção, soltaram umas risadinhas e puseram-se a mexericar. Becca
abriu a porta do cacifo para as ocultar, mas continuou a ouvir as palavras delas.
Ela vai ter com ele ao Starbucks — AGORA.
Não acredito que ela goste dele, mas ela diz que ele tem sido superamoroso.
Eu sei! O Mark Pritchard vai ficar fulo quando souber.
O Mark é muito mais giro.
Sim, mas os guitarristas devem ser mais jeitosos com os dedos.
Credo, és nojenta!
O estômago de Becca deu uma volta. Ela. Ela. Ela. Havia apenas uma Ela capaz de dominar a
conversa daquela maneira. Apenas uma Ela atrás de quem Mark Pritchard andara. Natasha.
Dedos de guitarrista.
Sem saber se ia vomitar ou não, bateu com força a porta do cacifo e correu para o exterior.
Precisava de apanhar ar fresco e de fumar um cigarro. Aiden. Elas estavam a falar de Aiden. De
Aiden e de Natasha. Ficou de repente com as palmas das mãos todas suadas. Não podia ser verdade.
Não podiam andar juntos, ou andariam? Ele não faria uma coisa dessas, pois não?
O Starbucks. Era o que as cabras tinham dito. Ela ia ter com ele agora ao Starbucks. Teriam feito
de propósito para ela ouvir? Para lhe espetar uma pequena faca no coração já destroçado e fazê-la
girar? Apostava que sim. Não bastava ferirem-na, tinham de acabar com ela.
Aiden não lhe faria uma coisa dessas. Os seus pés pisavam o chão com força e fez um esforço
para caminhar sem correr, para não parecer demasiado desesperada. Ele não faria uma coisa dessas.
Sabia como isso a iria magoar. Era verdade que, por vezes, fora um bocado exagerada, mas ele não
tinha razão para a magoar mais do que já a magoara ao deixá-la. Não podia ter convidado Tasha para
sair. Não podia.
Mas tinha convidado.
Isso tornou-se muito evidente quando espreitou pela janela. Aiden estava de costas voltadas, mas
era o seu blusão de cabedal e o seu belo cabelo. Tinha os cotovelos pousados na mesa e, enquanto
ela o observava, Tasha inclinou-se para a frente e pegou-lhe nas mãos, com a sua cabeça perfeita
inclinada para um lado, o cabelo louro a cair-lhe sobre uma das faces. Estava a sorrir e depois riu-se
de qualquer coisa que ele disse. Becca quase a conseguiu ouvir, provocadora e imensamente
confiante. Nada parecida com ela.
Teve vontade de entrar de repente e de arrancar aquele cabelo louro pelas raízes escuras.
Apeteceu-lhe gritar de ódio, de dor e de fúria. Apeteceu-lhe matar os dois. Tirou o telefone e enviou
uma mensagem a Aiden.

A sério? A sério? A Tasha?!


Eu sabia que gostavas dela. EU SABIA.
Não acredito que tenhas feito isto.
Não acredito que me tenhas magoado desta maneira.
És um merdas.
São os dois uns montes de merda!

Os dedos tremiam-lhe quando premiu «enviar». Tinha o nariz a pingar devido ao choque. Pelo
vidro viu Aiden a olhar para o telefone. E nesse instante, os olhos de Becca encontraram os de Tasha.
Ficaram a olhar uma para a outra, a vencedora e a vencida, como sempre fora. Tasha sorriu. Um
sorriso entendido. Foi como se a tivessem esbofeteado.
Becca voltou-se e desatou a correr.
Nem percebeu que estava a chorar quando chegou a casa. Não queria parar de correr. Queria
correr até chegar ao outro lado do mundo, longe de Brackston e de todo aquele veneno. Como fora
ele capaz de lhe fazer aquilo? Como fora capaz? O telefone dela zumbiu. Era Aiden.

Qual é o teu problema???


Estou a tomar um CAFÉ. Nada de especial.
Santo Deus, Becca, qual é o teu problema?
Estás passada.
Andas a seguir-me?

Desatou novamente a chorar. Aquela mensagem nem continha raiva, apenas irritação, o que era
ainda pior. Ela aborrecia-o. Mais nada. Não havia sequer emoção suficiente para o levar a odiá-la.
Fizera novamente figura de parva e, desta vez, com o conhecimento de Tasha. Eles estavam juntos.
Não era possível ele ter recebido a mensagem e não lha ter mostrado.
Santo Deus, só queria morrer. Subiu a correr para o quarto e bateu com a porta, sem se importar
se parecia infantil ou não. Enterrou o rosto na cama e chorou até a almofada ficar ensopada de
lágrimas e de ranho. Não queria saber da mentira de Tasha, não queria saber das palavras de Hayley,
não queria saber da porcaria do vestido verde. Nada disso interessava e, de qualquer maneira, não
fazia sentido. Aquilo, pelo contrário, era real. Se sentira antes que a sua vida tinha acabado, sentia-o
agora a dobrar. Tasha contaria a Jodie e a Vicki, e elas contariam ao resto da escola. O mais
provável era já estar tudo na Internet. Devia estar toda a gente a rir-se dela. A doida e ciumenta
Becca Crisp.
Sentiu saudades de Hannah. Repentinamente. De uma forma aguda. Hannah teria conseguido
acalmá-la. Se Hannah não tivesse morrido, metade daquela treta não estaria sequer a acontecer.
Talvez ela e Aiden ainda estivessem juntos. Respirou fundo, antes que a autocomiseração
esmagadora começasse a fazer com que tudo aquilo parecesse ser culpa de Hannah. A culpa era dela
própria. Não tivesse sido tão paranoica. E de Aiden por ser um mentiroso. E de Tasha por ser o
género de rapariga que tem sempre tudo o que quer.
Odiava-os a todos. Odiava-se a si mesma. Não ia continuar a remoer naquilo.
Arrastou-se até ao andar de baixo para jantar, fingiu que comia e evitou conversar. Quando a mãe
lhe perguntou o que se passava, encolheu os ombros e disse que tinha saudades de Hannah. Foi a
maneira mais fácil de fazer com que deixassem de falar com ela. Os pais tinham tão pouco jeito como
ela para falar das suas emoções. A última coisa que queria era dizer-lhes que Aiden e Tasha tinham
saído juntos. Passaria bem sem a sua compaixão.
Mais tarde, nessa mesma noite, recebeu uma mensagem de Casey a dizer que estava novamente a
ser achincalhada no Twitter. As contas da Jodie e da Vicki estavam cheias de cenas a dizer que ela se
tinha passado por causa do Aiden. No Facebook, a mesma coisa. Enterrou a cabeça na almofada e
ficou novamente a pensar que se odiava. Porque tinha a Casey de lhe dizer aquilo? Ela era
praticamente a única pessoa que ainda a tratava com alguma gentileza — provavelmente por, no 10.º
ano, ter passado por aquela história toda de Será a Casey Morrison lésbica? Devia saber como era.
Mas ainda assim; porquê contar a Becca que aquilo estava a acontecer? Talvez Casey achasse que
ela devia arregaçar as mangas e fazer qualquer coisa. Voltar a ligar-se à Internet e a enfrentar aquilo.
Olhou para o telefone. Não lhe interessava o que andavam a dizer a seu respeito, pelo menos, não
se importava muito, mas a curiosidade que sentia em relação a Aiden e Tasha era insuportável.
Teriam escrito Numa relação nas suas contas de Facebook? Será que ela queria mesmo ver? Se
calhar, iam reparar imediatamente que ela estava online e desamigá-la. Seria assim tão mau? A ideia
de Aiden anunciar no Facebook que a tinha deixado fez o seu estômago dar outro salto. Decidiu dar
uma olhadela rápida e desativar depois a conta outra vez. Dois minutos, prometeu a si mesma. Só
para saber.
Respirou fundo e iniciou a sessão.
50

— Então, apetece-te repetir? — perguntou Jamie enquanto subiam o caminho de gravilha que ia
dar à casa. Embora a noite tivesse sido boa e a tensão se tivesse dissipado depois do primeiro copo
de vinho, naquele momento sentia-se como um adolescente, constrangido e desajeitado. Sugerira irem
beber um copo e talvez comer qualquer coisa, um convite vago que não tinha de ser considerado um
encontro formal, mas o segundo convite anulara essa intenção. Perdera a prática daquilo. Ao menos
tinham a lei em comum, apesar de ela ter mostrado mais interesse na música dele, o que fora uma
surpresa agradável.
— Pode ser — respondeu Caitlin Bennett e fez-lhe um sorriso. — Porque não?
Jamie fez um grande sorriso.
— Ótimo. Pode ser este fim de semana?
Ela ia responder, quando a discussão vinda de casa dele os distraiu.
— Tens visitas? — perguntou ela baixinho. O seu comportamento alterara-se e surgiu-lhe uma
tensão no olhar que, de repente, a fazia parecer novamente uma polícia.
— O Aiden está cá a passar uns tempos, mas mais nada.
— Problemas com raparigas?
— Parece que sim.
Estavam quase à frente da porta quando esta se abriu e Aiden empurrou Becca para a rua. A
rapariga estava a soluçar. Debaixo da luz de segurança, Jamie viu que ela tinha o rosto vermelho.
— Babas-te por ela no Facebook! — gritou ela. — Pões likes em tudo o que ela faz. Até lhe
pediste amizade antes de acabarmos! Eu sabia que gostavas dela! Eu sabia!
— Ela é que me pediu amizade a mim. — Aiden parecia esgotado. — Mas não estás a ouvir. Na
altura, ainda não gostava dela. Mas ela, ao menos, não é doida. Dá-me algum espaço.
— Vocês estão bem? — perguntou Jamie. Era uma pergunta idiota. Não estavam, obviamente.
Aiden dissera-lhe que tinham acabado e que Natasha andava a enviar-lhe umas mensagens, mas
aparentemente Becca estava ainda muito magoada.
— Vou-me embora — disse ela.
Viu Caitlin e na sua surpresa quase disse qualquer coisa, mas calou-se. A chegada deles
amainara-lhe a fúria. Voltou-se para se ir embora e quase tropeçou em Biscuit, que andava por ali à
volta dos seus tornozelos, triste por a ver infeliz. Ela acocorou-se, fez-lhe festas por um segundo e
escondeu o rosto, antes de partir, passando por eles como um furacão. Biscuit ganiu quando a viu ir.
Jamie teve vontade de dizer Oxalá pudéssemos ficar todos bem com uma lambidela na cara e uma
abanadela de cauda. Mas a vida não é bem assim.
Estava contente por já não ser um adolescente. Podia ter perdido a prática no que dizia respeito a
sair com raparigas, mas pelo menos ele e Caitlin eram suficientemente adultos e cínicos para saber
que umas vezes as coisas funcionam, mas outras vezes há muita merda que se mete pelo meio. Não
havia promessas de amor eterno.
— Peço desculpa — murmurou Aiden quando Caitlin se despediu e os deixou. Bebera apenas um
copo de vinho e o seu carro ainda ali estava. O que começara como uma visita de acompanhamento
rotineira transformara-se numa noite fantástica, e parte dele tinha esperança de que ela entrasse para
beber um café e de que não tivessem de se despedir já. Mas a cena de Becca pusera fim a tudo isso.
Mas ela aceitara voltar a sair, pelo que nem tudo estava perdido.
— Que aconteceu?
— Era a Becca igual a si mesma.
— Continuam a atormentá-la na Internet?
Jamie sentia uma certa pena dela; passara um mau bocado e acabara por ser tão difamada como
as duas raparigas que tinham sido presas. Era uma loucura.
— Um bocado. Mas ela não vai lá muito. Nem sei porque lá foi ontem. Ver aquelas coisas só a
fará sentir-se pior. — Acendeu a ponta de um charro e deu uma passa.
— Então e tu e a Natasha? — Sentia-se mais como um pai do que como um amigo, a tentar
navegar pelo campo minado que era a vida dos adolescentes para ver o que se passava. — Isso está
a transformar-se em alguma coisa?
Aiden encolheu os ombros.
— Ela é gira e isso tudo, mas não sei. Para já, não é nada. Mas ela é diferente. É segura. E foi ela
que se atirou a mim. Eu não fui atrás dela, embora a Becca ache que sim. — Fez uma pausa. A
sombra que lhe obscurecia o rosto dissipou-se e fitou Jamie através do fumo. — Então e tu e a
inspetora? Onde estiveram até estas horas?
Jamie riu-se perante a súbita inversão de papéis.
— Foi só um jantar informal.
— Pois, está bem… — disse Aiden. Parecia que ia dizer mais qualquer coisa quando o seu
telefone tocou.
— É a Becca? — perguntou Jamie.
Aiden abanou a cabeça.
— É a Tasha.
— Deixo-te em paz, Casanova — disse Jamie e dirigiu-se com Biscuit para a sala de estar.
Talvez também devesse enviar uma mensagem a Caitlin. Um Obrigado pela noite tão simpática.
Qualquer coisa do género. Qualquer coisa descontraída, que não o fizesse parecer demasiado idiota.
Sorriu para si mesmo. Talvez devesse pedir conselhos a Aiden.
51

De qualquer maneira, desculpa.


Sinto que foi culpa minha.
Amanhã vou matar a Jodie e a Vix.
Não deviam pôr essas merdas online.
Já não estamos no 6.º ano.
Bjs

Carreguei em «enviar» e fiquei à espera. Estou sentada na cama às escuras, mas as cortinas estão
abertas, a Lua está cheia e baixa e lança uma mancha de luz sobre a carpete, fragmentada em riscos
brancos pelos ramos espessos da árvore lá fora.

11h45
Aiden
A culpa não foi tua. N fizeste nada de mal.
Ela é doida. Foi azar ter-nos visto.
Esquece.

11h46
Tasha
Desde que tu estejas bem, tudo bem.

11h49
Aiden
Só fiquei envergonhado por ela fazer
aquela cena à frente do Jamie e da polícia.
Mas pelo menos foi-se embora.

11h49
Tasha
A Bennett estava lá?

Fico surpreendida. Que quereria ela? Porque ainda anda por aqui?

11h50
Aiden
Acho que saíram juntos.
O Jamie está interessado nela.

11h51
Tasha
Que nojo! ;-)

Sorrio, aliviada. É mesmo nojento. A Caitlin Bennett nem deve depilar as pernas. Mas, de certa
maneira, também é perfeito. A Bennett a ver a Becca histérica, é um bónus feliz.

11h51
Aiden
Pois!

Mordo o lábio inferior e os meus dedos voam sobre o teclado.

11h52
Tasha
Se quiseres tomar um café ou coisa do
género novamente, diz qq coisa.
Gostei imenso ;-) Bjs

11h55
Aiden
Eu também
Bjs
Como se ele me tivesse de dizer que gostou. Claro que gostou. Já sei que sim. Ele é
absolutamente previsível, como toda a gente.

11h57
Tasha
Boa noite ;-)

11h58
Aiden
Boa noite
Bjs

Penso em como beijei o Aiden esta tarde, depois de a Becca nos ver no Starbucks. Ele deu-me
boleia para casa, eu inclinei-me no carro que cheirava a cabedal, a erva e a tabaco, e os lábios dele
já estavam sobre os meus. Foi fácil. E não foi tão mau como estava à espera. Ele não tentou enfiar-
me a língua pela garganta abaixo como o Mark Pritchard fez. Talvez tenha ficado surpreendido, mas
ainda assim foi meigo. Não sei bem o que pensar disto. Se calhar, o melhor é não pensar sequer.
Devia ir dormir ou, pelo menos, tentar. Preciso mais do que as três ou quatro horas de sono que
ando a dormir por noite e estou a ficar esgotada. Tenho a certeza de que a doutora Harvey teria
imensa coisa para dizer acerca disto se eu lá voltasse, mas não tenciono fazê-lo. lho para o tabuleiro
de xadrez, com as peças brancas e pretas impecavelmente alinhadas e prontas para uma nova batalha.
A Becca não sabe, mas já acabei o jogo contra ela — eu contra mim. Tentei pensar como ela quando
movimentei as outras peças. Mas ganhei na mesma. Agora, este jogo acabou. Está feito.
A Becca deixou-me um bocado perturbada. Primeiro, aquela pergunta sobre as pulseiras. Percebi
que ela estava transtornada, mas não tem importância. Não significa nada, agora já não somos
amigas. Mas o vestido verde? Nunca mais tinha pensado no assunto. Porque foi ela desenterrar
aquilo? Porque foi de repente lembrar-se de uma coisa que eu fiz há uma data de anos? Se tem tantas
saudades de andar comigo, porque trouxe aquilo à baila? Não é das melhores recordações da nossa
amizade. Que queria ela com aquela mensagem? Que esperava ela que eu respondesse? Seria algum
aviso?
Fico a olhar para o tabuleiro de xadrez bem organizado. Faço a jogada de abertura mentalmente,
calculando todas as possibilidades, com a mente sempre adiantada no mínimo três movimentos,
estudando constantemente o tabuleiro e decidindo que peças vou sacrificar e quais vou salvar. É uma
tendência automática. Quase envio uma mensagem a Becca, mas não o faço. O silêncio vale ouro. Se
isto é um jogo novo entre nós, então já estou a ganhar.
Os meus olhos ardem de cansaço, deito-me na cama e fico a olhar para o teto. A luz da lua
desenha golpes através da superfície pintada. Conto os fragmentos de luz. Treze. Claro. Tudo o que
conto dá sempre treze. Obrigo os olhos a manterem-se abertos. A escuridão espera por mim no sono,
sussurra-me, e eu não quero ir para lá. Não vou. Conto novamente até treze e penso porque terei tanto
medo.
52

Depois de passar uma hora a navegar num charco de lágrimas de vergonha, quando chegou
finalmente a casa e se enfiou na cama, Becca quase não conseguiu dormir. Nos sonhos agitados
revivia aquele momento vezes e vezes sem conta — via Aiden e Tasha juntos através do vidro do
Starbucks. As mãos a tocarem-se. Aquele olhar de Tasha. Nos seus sonhos estava cheia de raiva e
descarregava a fúria contra o vidro até os pulsos sangrarem. O vidro resistia. Becca estava separada
deles e a sua frustração tornava-a assassina. Tinha vontade de os matar. Ansiava por isso.
Acordou suada, confusa e desorientada no escuro, mas tinha o cérebro em efervescência. Um
momento de clareza por entre toda a estupidez — a sua estupidez. O olhar no rosto de Tasha quando
vira Becca. Aquele pequeno sorriso.
Como se estivesse à sua espera.
Abriu a janela, enrolou um cigarro e acendeu-o com as mãos a tremer. Precisava de pensar com
clareza. Talvez estivesse a ficar paranoica ou mesmo a enlouquecer, mas sentia na mente uma
confusão de nós que precisava de desatar. Que lhe dissera Aiden na noite anterior? Quando ela
estava aos gritos com ele e a tentar dar-lhe murros, antes de Jamie e a inspetora Bennett terem
voltado? Ignorou a tendência para sentir vergonha do seu próprio comportamento e tentou focar-se
antes nas palavras dele.
Natasha pedira amizade a Aiden no Facebook.
Natasha convidara-o para ir tomar café.
Fora ela que começara a pôr likes nas fotografias dele.
Talvez ele estivesse a mentir. Talvez. Mas Becca não parava de pensar na expressão de Tasha
através do vidro. Uma discreta satisfação pessoal. Um triunfo. Que dissera a professora Borders?
Suspeito que, aos olhos da Natasha, todas as outras pessoas no tabuleiro sejam um peão.
Agora bem desperta, Becca acendeu a luz da mesa de cabeceira e agarrou num papel e numa
caneta. Tinha de tentar pôr as ideias em ordem.
Somos todos peões foi a primeira coisa que escreveu.
Aiden, eu.
Hayley? Jenny???
Hannah??
Ela mentiu sobre as pulseiras. Porquê? Para conquistar a minha amizade.
A Hayley diz «Ela usou a Becca». Podia não se referir a Tasha, mas que outra pessoa havia de
ser?
Depois de apanhar a mentira das pulseiras, enviei-lhe uma mensagem sobre o incidente do
vestido verde. Não houve resposta.
MAS a seguir foi tomar café com o Aiden. Eu vi-os.

Fez uma pausa, puxou uma grande fumaça até ouvir o papel crepitar. O grande Porquê?
continuava a incomodá-la, mas ela ignorou-o. O que queria não era raciocinar nem descobrir nada.
Queria pôr as ideias em ordem. Olhar para os bastidores daqueles acontecimentos. Os bastidores
eram a especialidade dela.

Mas não por acaso. Ouvi a Vicki e a Jodie falarem acerca disso. E deram pormenores exatos. O
suficiente para eu saber que se tratava do Aiden. Dedos de guitarrista. Terá sido ela que as
mandou fazer aquilo? Na certeza de que eu ouvia? E dizer mal de mim? De qualquer
maneira, já toda a gente me odeia.
Mas elas eram capazes de o fazer só para lhe agradar.
PORQUÊ???

Voltou a encostar-se às almofadas. Sempre os porquês. Os grandes porquês e os pequenos


porquês — as suas suposições iam todas dar a nada. Talvez estivesse apenas a ver coisas que não
existiam. A fazer associações disparatadas entre coincidências. Talvez tudo aquilo fosse um
disparate…
Imobilizou-se, os seus olhos dilataram-se ligeiramente e um arrepio percorreu-lhe a pele quando
pedaços do quebra-cabeças se encaixaram na sua mente. Que cena. Que cena do caraças. Becca
apertou a caneta com força enquanto escrevia as palavras a toda a pressa e com ângulos vivos.

A Tasha sabia que eu ia ficar passada quando soubesse do Aiden.


Questiono-a sobre a mentira das pulseiras. Ela sente-se ameaçada.
Envio a mensagem sobre o vestido verde. Ela acha que quero dizer qualquer coisa/ameaça?
Está com medo de que eu saiba qualquer coisa.
E então faz a sua jogada: arranja as coisas para eu a apanhar com o Aiden. Usa as novas
Barbies para me dar a informação de que estão no Starbucks e para se certificar de que
irei lá ver.
(CABRAS.) E depois enchem a Internet daqueles comentários de merda sobre eu ter-me passado.
Ela sabe que eu acabarei por me aperceber da tempestade de comentários merdosos na net.
Que farei a figura da ex-namorada ciumenta. Que ninguém acreditará numa palavra do que
eu disser.
SERÁ ESSE O OBJETIVO DELA?
Ela não sabe o que eu sei (Que pensará ela que eu sei?), por isso faz-me fazer figura de louca
varrida.
É como um jogo de xadrez. Tem todas as peças posicionadas para a eventualidade de um
ataque.
Peões. Somos todos peões para ela.
Mas que receia ela que eu saiba?

Satisfeita por ter conseguido passar os pensamentos confusos da cabeça para o papel, deixou cair
a caneta. Qualquer outra pessoa acharia aquilo um disparate. Tinha a certeza. Mas ela conhecia
Natasha. A verdadeira Natasha, não apenas a fachada carismática. Esquecera-se dela durante muito
tempo, devido à inveja e ao desejo desesperado de voltar para a matilha. E Natasha ocultara essa
parte de si mesma. Mas Becca conhecia-a. Seria disso que Natasha tinha medo?
Pensou em Aiden pela primeira vez sem se sentir furiosa com ele. Pobre desgraçado. Era apenas
mais um peão, como todos os outros.
Acabou o cigarro, mas não enrolou outro. Deixou a janela aberta e apreciou a brisa fresca. As
cortinas esvoaçavam e a lua brilhante lançava faixas no teto. Olhou para elas, com a cabeça ao
mesmo tempo calma e a zumbir, e passou várias vezes os acontecimentos em revista. Pensou em
Jenny, num hospital psiquiátrico, ou lá para onde fosse que a tinham levado. Em Hayley, devastada,
assustada, que se recusava a ver a mãe. Ninguém ouvia uma palavra do que elas diziam. Natasha,
novamente rainha da colmeia, com Barbies novas a reboque. Becca descartada, depois de ter
cumprido a sua função.
Ela sabia que ainda não fazia sentido. E sabia que devia ir dormir. Pelo menos, devia tentar. Mas
o coração batia-lhe furiosamente com a adrenalina e o corpo desejava que a manhã chegasse mais
depressa para poder avançar com aquelas pistas; de modo que ficou ali deitada, a olhar para a
escuridão turva e à espera de que tudo se tornasse mais claro.
53

A madrugada trouxera-lhe lucidez. Às seis da manhã, Becca já estava a pé, vestida e sentada ao
computador, com a casa silenciosa à sua volta. Não foi ver as contas das redes sociais — Aiden e
Natasha tinham-na desamigado no Facebook e não havia mais nada de útil. De qualquer maneira, já
vira tudo o que precisava de ver, ou talvez o que era para ver. O resto da colmeia podia ir saltar de
um precipício como lemingues que eram, que ela não queria saber. Faria as pazes com Hannah à sua
maneira.
Os apontamentos da noite anterior estavam sobre a mesa, ao seu lado, enquanto procurava na
Internet. Sabia o que procurar: artigos de jornais relacionados com o caso. Mais importante, uma
pista qualquer sobre a versão que Hayley dera dos acontecimentos. Toda a gente conhecia a versão
de Tasha — Becca ouvira-a da própria — mas a agitação provocada pela morte de Hannah e pelo
suicídio do professor Garrick submergira tudo o resto. Talvez os jornais não pudessem sequer
publicar as versões de Hayley e de Jenny. Talvez os advogados as tivessem aconselhado a não dizer
nada. À luz do que acontecera a Hannah — e o facto de Hayley ter sabotado o foco era um ponto
importante para Becca —, talvez se considerasse que o assunto estava encerrado.
Podia simplesmente resumir-se a ninguém querer saber a versão delas. Na altura do julgamento,
logo se veria.
Ainda assim, Becca esquadrinhou e vasculhou por entre a miríade de artigos locais e nacionais.
Alguns eram breves, com apenas um parágrafo, outros mais longos. Não olhara para os jornais
imediatamente a seguir aos acontecimentos. A mãe não devia tê-los em casa e, para todos os efeitos,
se Becca os vivera, porque havia de querer ler acerca deles? Era estranho ver o seu rosto choroso a
fitá-la, captado por algum repórter à saída do funeral de Hannah. Imensas fotografias de Tasha.
Nenhuma de Hayley nem de Jenny. Os seus nomes não eram sequer mencionados. Leu e voltou a ler
até os artigos começarem todos a misturar-se num só. O melhor que encontrou foi uma declaração de
um advogado que dizia que as duas adolescentes acusadas não se iriam dar como culpadas das
acusações de homicídio, nem de tentativa de homicídio, e que nenhuma delas apresentara uma
confissão completa.
Estava quase a desistir quando tropeçou naquilo. Olhou para o artigo de um jornal local qualquer,
escrito uns dias depois das detenções. Antes do funeral de Hannah.

a mãe de uma das adolescentes acusadas do homicídio de Hannah Alderton e da tentativa de homicídio de Natasha
Howland, cujos nomes, por motivos de ordem legal, não podem ser divulgados, fez a publicação que se segue no
Facebook (subsequentemente apagada) após a detenção da filha:
«A versão dos acontecimentos apresentada por [nome omitido] é muito diferente, a verdade virá à superfície e então
hão de arrepender-se. Sim, elas foram para o bosque, mas não foi como andam todos a dizer. Houve um filme. Houve
chantagem. A minha filha não matou ninguém e, fosse certo ou errado, amava-o. Malditos sejam vocês todos por
acreditarem naquela cabra. A minha filha é a verdadeira vítima disto tudo.»
A mãe da rapariga de 16 anos teria desenvolvido problemas de alcoolismo depois do fim do seu casamento, durante
o qual uma fonte local afirma que tanto a acusada como a mãe foram vítimas de abusos. Desconhece-se se isto virá a
fazer parte da sua defesa. A rapariga, cujo nome também não pode ser divulgado por motivos de ordem legal, está
atualmente em avaliação, para determinar se estará ou não em condições de ser julgada. Uma fonte da polícia disse ao
jornalista que não fora encontrado nenhum filme de natureza relevante na posse de Natasha Howland.

Becca leu várias vezes o artigo, até ele lhe ficar gravado no cérebro, e, a seguir, anotou frases-
chave nos seus apontamentos.

Um filme.
Chantagem.
Não foi como todos pensam.

Ficou muito tempo a olhar para o que escrevera. Chantagem. Um filme. Se os acontecimentos
daquela noite não tinham corrido como Natasha dissera, talvez tivesse sido por isso que Hayley e
Jenny se tinham mantido em silêncio. O tal filme. Teria Natasha qualquer coisa contra elas? Mas o
quê? E porque não tinha a polícia encontrado nada? Que podia ter acontecido durante o período de
que Natasha não se recordava? Pensou no dia em que encontrara Hayley e Jenny no hospital. Estavam
perturbadas ou nervosas? Haviam estado pouco tempo juntas, e a seguir elas tinham ido buscar
qualquer coisa para Tasha. Uma campainha soou na sua cabeça. Elas foram a casa de Tasha
sozinhas. Teriam ido procurar o tal filme e não buscar música e livros?
Reuniu as suas coisas e fechou o computador com o coração aos pulos. Quando ouviu o chuveiro
na casa de banho do quarto dos pais, desceu as escadas, gritou uma despedida e saiu para o ar fresco,
a caminho da escola.
Continuava a não fazer sentido. Que outra coisa podia ter acontecido, a não ser o que Natasha
contara? Onde encaixava Hannah naquilo tudo? Parecia tão evidente que aquilo fora uma segunda
tentativa de matar Natasha, depois de terem convencido Hayley e Jenny de que ela tinha recuperado a
memória. Devem ter tentado segunda vez com medo de que ela se lembrasse do que lhe haviam feito.
Deve ter sido como Tasha dissera. Deve ter sido assim. Provocaram-na, drogaram-na, amarraram-na
e depois ela quase morreu. Uma situação de intimidação que dera para o torto.
As peças flutuavam na sua mente como um quebra-cabeças, sem que nada encaixasse como devia
ser. Mas se tudo era exatamente como Tasha descrevera, porque havia ela de se preocupar com o que
Becca podia pensar? Para quê montar-lhe uma armadilha para a deixar enlouquecida ao ver Aiden
com ela? E porque não conseguia Becca deixar de pensar no vestido verde estragado? Quando
chegou à escola, não foi para a sala de convívio do 11.º ano nem às aulas a que devia ir, mas antes
para a sala de teatro.
Não se aproximava do local desde a morte de Hannah e quando percorreu o corredor frio sentiu-
se enjoada, com a boca seca e a cabeça um pouco à roda. A certo momento, quase voltou para trás a
correr, mas tinha de ver onde tudo se passara. Tinha de se lembrar claramente do que acontecera a
Hannah. Se não conseguisse dar sentido àquilo, então a mentira das pulseiras, a recordação do
vestido verde e o Ela usou a Becca não quereriam dizer absolutamente nada. Seriam apenas peças
que sobravam de um quebra-cabeças que ela não conseguia completar e ficaria para sempre
encalhada na sensação de que tudo estava muito, muito errado.
Inspirou fundo e empurrou a porta. O espaço estava vazio. O professor Jones encontrava-se a dar
aulas noutra sala e, agora que a peça fora cancelada, a sala de teatro tinha o aspeto de um local
esquecido. As pessoas evitavam requisitá-la para eventos, que eram agora realizados no Pavilhão
Desportivo. Ninguém queria lembrar-se de que morrera ali uma rapariga. A sala estivera fechada
durante uns tempos, enquanto a polícia inspecionava as luzes e o restante equipamento, e depois para
manter afastados os mórbidos alunos do 7.º ano, mas os interesses dos miúdos mudaram rapidamente
de direção e, a certa altura, a diretora deve ter decidido que a sala deveria ficar disponível para
alunos e professores. Mas claro que não a utilizaram.
Quando parou à entrada, os fantasmas do passado tremeluziram à sua frente como num filme
antigo. As recordações voltaram, umas mais nítidas, outras menos.
Ela a gritar com Hannah e a dirigir-se depois, furiosa, para a régie.
Natasha a sentir-se mal. Hannah a ocupar o seu lugar.
O foco a cair.
Quase conseguia ver a sua própria cara através do vidro da régie, o horror e o choque a
instalarem-se ao ver Hannah ser atingida.
As sombras das suas vidas anteriores recuaram até àquele almoço. Jenny exaltada. Becca e Tasha
envolvidas no seu pacto para tentar perturbar as duas antigas amigas. O foco que precisava de ser
deslocado. Hayley a oscilar no alto do escadote. Jenny, pedrada e irritadiça, a gritar com Hannah. A
discussão que se seguira. Jenny a dizer a Hannah que Becca tinha estado em casa de Tasha. Tudo era
exatamente como ela se lembrava. Não havia ali segredos à espera de serem revelados. Voltou-se
para sair, um pouco receosa de que o fantasma de Hannah se materializasse e lhe implorasse para
ficar porque se sentia sozinha, e então estacou. Percebeu. Era claro como o dia.
Não fora ela que tinha ido guardar o escadote e as ferramentas no lugar.
Fora Natasha.
Elas tinham ido todas para as aulas — todas exceto Tasha. Ela dera um abraço a Becca,
agradecera-lhe por ser tão boa amiga e oferecera-se para ir arrumar as ferramentas.
Becca deixara Tasha sozinha com o foco, o escadote e tudo de que precisava para soltar os
parafusos e retirar a correia de segurança.
Hannah só estava por baixo do foco porque Tasha dissera que se sentia enjoada e tonta. Seria
possível que Tasha tivesse feito de propósito para não ir para ali? E, a seguir, Hannah, amorosa,
ansiosa por agradar, fora substituí-la. Talvez Tasha quisesse que se pensasse que Hayley e Jenny
tinham tentado fazer-lhe mal e, por isso, não sugerira que deixassem a cena para outro dia, mas
Hannah pusera-se por baixo do foco e, de repente, a coisa dera para o torto.
O foco devia simplesmente cair, pensou Becca, com as pernas a tremer. A intenção era parecer
que elas tinham tentado fazer mal a Tasha.
Mas porquê?
Voltou-se, deixou a porta pesada fechar-se com estrondo atrás de si e encostou-se a ela. Porque
havia Tasha de as tramar daquela maneira? Tasha perdera a memória. Nessa altura, ainda não se
tinha lembrado de Jenny e do professor Garrick. Não se lembrava de nada do que acontecera depois
de quinta-feira à hora do almoço. E fora retirada do rio gelado, morta, para todos os efeitos, por
Jamie McMahon, que, por sorte, ali estava e a encontrara.
Becca sentiu-se enjoada. Estava convencida de que Natasha causara a morte de Hannah,
acidentalmente ou não. Havia mais peças daquele estranho quebra-cabeças que não encaixavam. Se é
que eram mesmo peças. Becca não tinha provas de que Tasha tivesse mexido no foco. Talvez não o
tivesse feito. Mas não parava de lhe vir à cabeça aquela expressão que ela fizera através da vidraça
do Starbucks. Como se Becca tivesse feito exatamente o que ela esperava que fizesse. Por um
momento, o véu abriu-se e outra pessoa surgiu. Mas isso não podia ser considerado uma prova. Uma
prova de quê? O que lhe estava a escapar? Que jogo era aquele?
A pergunta mais importante era: teria ela sido utilizada como um peão? Desde o início.
E então ocorreu-lhe outra pergunta, que a deixou ainda mais atordoada.
Quando tinha tudo aquilo começado?
A campainha tocou e Becca abriu caminho até à aula de Inglês, por entre o súbito tumulto de
alunos. Emily já não se sentava ao seu lado e, ao entrar na pequena sala, sentiu todos a rirem dela à
socapa.
— Tens de ver se arranjas um bocado de dignidade — disse Emily, verbalizando o que toda a
gente estava, sem dúvida, a sussurrar. — Que te deu? Ninguém anda a perseguir ex-namorados como
uma doida. Vê se te recompões! — Ouviram-se uns risinhos, mas Emily não estava a rir. — Ainda te
transformas numa daquelas mulheres que cortam a pila ao marido!
— Oh, vai-te foder — murmurou Becca no momento em que a professora Rudkin, a substituta,
entrava. Não era espirituoso nem inteligente, mas foi o melhor de que se conseguiu lembrar, com a
mente ocupada como estava com coisas mais importantes.
Deslizou para o seu lugar, tirou o bloco de apontamentos e o livro de poemas, mas pegou também
nas ideias recentes que havia reunido. Quando a aula começou, deixou-se levar pelo próprio
pensamento. De qualquer maneira, a professora Rudkin nunca fazia perguntas. Observou as ideias
dispostas à sua frente e pegou na caneta para anotar mais.
Havia duas maneiras de ver a situação, concluiu Becca. Tudo apontava para que a versão de
Natasha fosse verdadeira. Tudo encaixava bem na versão dela. Tudo encaixava impecavelmente, as
provas batiam certo e apontavam para Hayley e Jenny. Quase pareciam ter sido embrulhadas com um
laçarote e entregues à inspetora Bennett. Essencialmente pela própria Becca. Ao pensar nisso, gemeu
interiormente.
Então e se se vissem as coisas pelo outro lado?
E se Hayley e Jenny estivessem a dizer a verdade e Natasha estivesse a mentir? Que peças
encaixariam se assim fosse?
Pensou nos dois telemóveis que continham as provas tão incriminatórias. As imagens de Jenny na
loja, captadas pelas câmaras de vigilância. A inspetora Bennett a fazer aquele truque com o casaco
no gabinete do diretor. A expressão de Jenny quando viu o casaco. Parecia verdadeiramente
surpreendida. Não culpada. Surpreendida. Que dissera Hayley? Qualquer coisa sobre o casaco da
Jenny ter uma queimadura na manga? Uma rapariga loura com um casaco da Primark comprara os
telefones. As câmaras não lhe tinham apanhado o rosto. Podia ser qualquer rapariga loura.
Quando pintara Tasha o cabelo de louro?
Fora mais de um mês antes do Natal, isso sem dúvida. A meio do período, no Outono? Em
outubro? Deve ter sido por essa altura. Anotou os pensamentos à medida que lhe vinham numa onda
desordenada.
E se Natasha tivesse descoberto a história entre Jenny e o professor Garrick antes daquela
quinta-feira? Muito antes.
E se tivesse estado à espera? E planeado?
Houve uma longa pausa antes de Becca movimentar novamente a caneta.
E se Natasha nunca tivesse perdido a memória?
54

Respondi à mensagem de Aiden a dizer que estava com dores de cabeça e que lhe telefonava
mais tarde. É uma tática para adiar e estou aborrecida comigo mesma por não ter aceitado. Sei que
devia, mas só quero uns minutos de paz. A Jodie e a Vicki irritam-me. O Aiden irrita-me. São todos
tão carentes, foda-se. Não gosto do som do palavrão na minha cabeça. É como uma perda de controlo
momentânea.
Tenho de me recompor. Eu não cometo erros. Sou meticulosa, sempre fui. Sou boa a planear. Até
naquele diário idiota — que, reconheço, até foi útil — o admiti. As pessoas esforçam-se imenso por
parecer verdadeiras quando mentem. Mas o importante não é realmente isso. O importante é distraí-
las da verdade. É irrelevante se parecemos verdadeiros ou não. O que interessa é sermos credíveis.
Sempre soube que a Bennett acabaria por me pedir o caderno. A doutora Harvey acabaria por lhe
falar dele e, se não tivesse falado, eu teria introduzido o tema na nossa conversa e feito exatamente o
que fiz — um grande alarido por não o querer entregar, mas acabando por fazê-lo. Voilà.
Há muitas coisas verdadeiras naquele caderno com que a inspetora Bennett ficou. Os meus
pensamentos sobre a família, o sexo e o meu medo de dormir — tudo isso é verdade. Tal como todas
as conversas que relatei. É fácil mentir quando fomos nós a criar a situação, e as melhores mentiras
são quase sempre meias-verdades.

Estou a ouvir a minha mãe a chamar-me para jantar, e a voz dela recorda-me que ninguém gosta
de uma pessoa perfeita. Ou são demasiado tensas — como a minha mãe — ou amorosas demais. As
raparigas amorosas não têm amigas. Vejam a Hannah. Tento não pensar na Hannah. Ela não fazia
parte do plano. Foi ela que se introduziu no meu plano. Justiça me seja feita, aquele foco foi uma
improvisação. Planeei tudo o resto meticulosamente, mas o foco apresentou-se-me e não consegui
resistir.
E agora há mesmo uma acusação de homicídio. Pobre Hayley. Pobre Jenny. Isto não fazia parte
dos planos. Estava zangada com elas, mas só queria dar-lhes uma lição. Envergonhá-las
publicamente. Excluí-las, talvez. Uns anos de acompanhamento psicológico por um incidente de
bullying que dera para o torto. Não estava planeado que eu morresse. Isso tornou imediatamente as
coisas mais sérias, mas podia ter previsto esse pormenor. Desleixo meu.
Porém, a Hannah é que mudou as coisas. E isto também me irrita, mas agora não posso fazer nada
e talvez até seja melhor assim. Por muito que a ideia me agradasse, duvido que a Hayley, a Jenny e eu
pudéssemos voltar a ser amigas, quer a lição que lhes dei fosse de dois anos ou para a vida. De
qualquer maneira, a culpa é toda delas. Se não tivessem andado a planear pôr-me de lado como se eu
fosse uma insignificante como a Hannah Alderton e não a pessoa que as criou, não teria tido
necessidade de fazer nada. Elas estavam preparadas para me humilhar. Toda a gente quer ser minha
amiga. Toda a gente. Sempre foi assim. Como se atreveram elas a pensar que eram melhores do que
eu? Isto tudo começou quando elas acharam que já não precisavam de mim. E quanto à Hannah, bem,
não fui propriamente eu que a obriguei a pôr-se debaixo daquele foco. E ela nunca seria mais do que
uma vela à espera de ser extinta. Nunca percebo qual é o interesse de pessoas como a Hannah.
A Becca. Que estará a passar-se na cabecinha ciumenta e doida da Becca? A Becca é a causa do
meu humor estranho, eu sei. Só quero voltar ao normal, mas aparece logo a Becca a falar de vestidos
verdes e de mentiras. Esta tarde, quando íamos a sair da escola, ela veio ter comigo e perguntou
quando eu ia voltar a pintar o cabelo de castanho.
Já não precisas mais de ser loura, pois não?
Foi o que ela disse. Vi uma expressão de desafio nos olhos dela, tenho a certeza. Estaria à espera
de que eu reagisse? Que me traísse? Se é assim, é tão estúpida como o carente do ex-namorado que
tresanda a tabaco.
Ou terá sido outra coisa qualquer? Estaria a dizer-me alguma coisa? Mas o quê? Que pode ela
saber? A situação do vestido verde é semelhante — mesmo que, desta vez, o resultado tenha sido
mais dramático. Na altura, também fiz as coisas de maneira que a Hayley ficasse com as culpas. A
Becca lembra-se disso. Mas mesmo que tenha suspeitas, não pode provar nada. Ou pode? Não sei se
a minha incerteza em relação às intenções dela me perturba ou me diverte. Ela não pode prejudicar-
me. Sobretudo agora. Está feito. O jogo acabou. Mas continua a fazer exatamente o que se espera
dela. A sua raiva ciumenta foi perfeita. Ninguém acreditará numa palavra sua, mesmo que saiba
alguma coisa. A reação dela foi absolutamente previsível.
Toda a gente é tão previsível.
A minha mãe chama novamente. «Já vou!», respondo, também aos gritos. Agora anda que nem um
ratinho. Vejo nos seus olhos que está constantemente preocupada e pergunto a mim mesma como é
possível que me tenha dado à luz, criado e continuar sem me ver.
Mas compreendo que ela tenha alguma razão para estar inquieta. Na prática, estive morta durante
treze minutos e, por muito meticuloso que fosse o meu plano, essa parte foi inesperada.
Treze minutos. Talvez seja por isso que vejo trezes em todo o lado. Um lembrete de que tudo
esteve tão perto do fim. De que a brincadeira quase se virou contra mim. A culpa nem sequer foi
minha. Só prova que os melhores planos podem correr mal…
Ainda me enfureço ao pensar naqueles cinco minutos a mais que passei dentro de água. Se
pudesse fazê-lo sem ser apanhada acho que matava aquele cão. Lembro-me do hámster que tivemos
na aula, no 1.º ano. O que me mordeu e me pôs o dedo a sangrar. Aquele que a Hannah Alderton
adorava. Como lhe parti o pescoço, enquanto ele guinchava e se contorcia nas minhas mãos.
Apetecia-me fazer o mesmo ao cão. Talvez ainda o faça um dia, quando tudo isto for esquecido.
Tantos planos bem elaborados… Todas aquelas corridas de madrugada pelo bosque e pelo
parque, observando quem lá ia regularmente, as pessoas que levavam cães, as que iam para o
trabalho ou simplesmente alguém que tivera insónias e não conseguia dormir. Tinha tudo
cronometrado ao minuto; o Jamie McMahon e o rafeiro dele nunca falhavam. Observei-os escondida
atrás das árvores, do outro lado do rio, vi onde o cão gostava de ir cheirar perto da margem. Às
vezes, o McMahon estava ao telefone, o que era perfeito. Precisava que ele tivesse um telefone a
funcionar. Todos os dias a mesma coisa. Exceto naquele dia. No meu dia. No dia em que precisava
que lá estivessem. O cão escondeu a coleira logo naquele dia. Quando fui agradecer-lhe com a mãe e
tive de lhe fazer festas, só me apetecia partir-lhe o pescoço.
Ainda assim, apesar de a situação se ter tornado mais complicada para a Hayley e a Jenny, eu não
cheguei a morrer e foi muito mais eficaz do que fingir que tinha perdido a consciência durante uns
instantes. Ninguém pôs em causa a minha amnésia. Continuei a cingir-me ao plano. Mesmo quando a
doutora Harvey sugeriu que fizesse uma sessão de hipnose, tinha uma resposta pronta. É uma espécie
de afogamento.
Tenho orgulho na maneira como continuei com tanta calma, embora não sinta verdadeiramente
orgulho nas coisas que faço como os outros. Às vezes, fico satisfeita, mas isso é diferente. Morri
mesmo, mas acordei e consegui que tudo se desenrolasse conforme planeado e, nesse aspeto, acho
que um bocadinho de orgulho é justificado. Planeei tudo e mesmo com a falha inesperada a coisa
desenrolou-se na perfeição.
Será que devia fazer alguma coisa em relação à Becca? Qualquer coisa definitiva. A ideia parece
menos radical depois do que aconteceu à Hannah. Se vamos arriscar, que seja tudo. Mas decidi não
fazer nada. Pelo menos, por agora. Fiz da Becca uma anedota. Ninguém a leva a sério. Ainda não sei
quais são as intenções dela, até pode não saber nada. E, para ser franca, até estou a gostar da
imprevisibilidade pontual dela.
Vou à casa de banho e ponho uns pingos nos olhos antes de ir jantar. Não alivia o ardor
provocado pelo cansaço. Tenho de deixar de ter medo de dormir. Tenho de deixar de ter medo do que
me espera na escuridão. Ter medo nunca fez parte dos meus planos. Não sou pessoa de ter medo.
55

Daquela vez, Becca saiu de casa antes mesmo de a mãe acordar. Já passava das sete, mas ela
estava a pé há horas, a dar voltas e a pensar. Enviara uma mensagem a Aiden por voltas das duas da
manhã — Tem cuidado — mas não obtivera resposta. Era possível que ele tivesse contado a Tasha,
mas Becca não se importava. Aquilo já não tinha que ver com Aiden, e Becca descobrira que a raiva
e a dor se estavam a desvanecer. Só sentia um pouco de pena dele. Estava a ser usado exatamente da
mesma maneira que ela fora.
Tinha de fazer duas coisas antes de ir para a escola. A primeira era a mais difícil, mas tinha de a
fazer se quisesse compreender o que acontecera com os dois telemóveis.
— Que queres?
A mãe de Hayley estava a pé, mas parecia a morte personificada.
— Quem é? — perguntou o pai de Hayley lá de dentro, antes de aparecer à porta. — Ah, és tu…
O coração de Becca deu um salto e o rosto ruborizou-se, mas fez um esforço para falar.
— Peço desculpa, só preciso de lhes perguntar uma coisa. É importante. Acho que pode ajudar a
Hayley.
— Até agora, tens feito um excelente trabalho. — Era tal o desdém que transparecia na voz dele,
que ele nem conseguia manifestar ódio. Ela devia estar com um ar patético. O animalzinho de
estimação de Natasha que ajudara a pôr a filha deles na prisão. E tinham uma certa razão.
— A Natasha alguma vez veio cá? — Chegou-se para a frente, não queria que lhe fechassem a
porta na cara antes de ter feito a pergunta: — Depois de ter sido encontrada no rio. Alguma vez cá
veio sozinha?
Fitaram-na durante um momento e, a seguir, a mãe de Hayley soltou um suspiro.
— Não. Não, nunca veio. Nem sequer cá veio com a Hayley. Na altura, era tua amiga. E não
vinha cá há uns tempos antes do acidente. Só a Jenny é que veio.
Becca sentiu uma onda de desilusão. Se Tasha não fora lá, então estava num impasse e talvez
aquilo tudo não passasse de um acesso de paranoia.
— Tem a certeza? — perguntou.
— Sim, tenho — repetiu a mãe de Hayley. — Agora desaparece. — As palavras, cansadas e
carregadas de dor, foram como um enorme soco no estômago, e Becca recuou instantaneamente dois
passos. Aquilo não eram palavras que uma mãe dissesse. No simpático mundo da classe média onde
Becca vivia, não.
— Desculpe, estava só a tentar ajudar. Peço desculpa.
— Deixa-nos em paz — rosnou o pai de Hayley, e atravessou-se à frente da mulher para fechar a
porta. — Já fizeste estragos suficientes.
— Espera.
A palavra foi pouco mais do que um suspiro.
— Espera — repetiu a mãe de Hayley. Olhou para Becca; uma ave frágil e ferida.
— Houve uma vez. Quando ela trouxe a pulseira. A Hayley ainda estava na escola e eu estava cá
sozinha.
O coração de Becca deu um salto, como um cão a abanar o rabo à frente de uma trela.
— Ela deu-lhe a pulseira a si?
— Não. — A mulher franziu os olhos num esforço para se recordar. — Não, eu fiquei cá em
baixo. Ela foi lá acima ao quarto da Hayley e deixou a caixa com a prenda em cima da almofada.
Lembro-me de ter achado amoroso.
Becca não conseguiu evitar fazer um grande sorriso. Deve ter parecido louca, ali parada à frente
daquelas duas pessoas em sofrimento, a sorrir como uma doida.
— Obrigada — disse. — Obrigada.
Voltou-se e deixou-os a olhar, enquanto descia a rua apressadamente. Afinal, não era nenhum
impasse. Aliás, as peças estavam quase todas no lugar para a jogada final.
— Que importância tem isso? — gritou a senhora Gallagher. — Que diferença faz?
Becca não respondeu. Talvez eles chegassem lá sozinhos. Agora, ela tinha de o provar.

O encontro com a inspetora Bennett não deu em nada. Becca apanhou um autocarro para a cidade,
chegou à esquadra às oito da manhã e esperou quinze minutos até Bennett chegar. Esta apareceu com
um café na mão e com ar de ter dormido pouco.
— Rebecca? Que fazes aqui?
— Preciso de falar consigo. É sobre as imagens da câmara de vigilância.
A inspetora franziu o sobrolho, perplexa.
— Porquê? Agora estou a trabalhar noutro caso. A informação foi toda para o Ministério Público.
— Verificou as câmaras da loja de telefones? Seguiu a rapariga quando ela saiu? Ou viu as
imagens das câmaras da Primark?
— Rebecca, isto é porque a Natasha anda a sair com o Aiden? Sei que é penoso, mas…
— Não tem nada que ver com isso! — Apetecia-lhe dar-lhe um murro, a ela mais à sua falsa
simpatia, para a obrigar a ouvir. — É por causa do casaco. Até foi a senhora que disse: era um
casaco barato. Havia centenas deles. Como pode ter a certeza de que era a Jenny? Como sabe que
não foi outra pessoa que o comprou e o usou para parecer a Jenny? A Hayley, a Jenny e a Natasha
eram todas louras. Era capaz de as distinguir à distância? Nas imagens desfocadas da câmara? Seja
franca.
— Escuta, o caso foi encerrado — disse Bennett. Em grande parte, graças a ti. Esquece. Segue
em frente com a tua vida.
— A Hayley pode não ter sido a última pessoa a mexer no foco que matou a Hannah — disse
Becca, num tom de desafio. — Nós tivemos aulas, mas a Natasha tinha um tempo livre. Disse que ia
arrumar as ferramentas e ficou lá quando nos fomos embora. Deixámos a Natasha ao lado do foco,
com as ferramentas e o escadote.
Bennett fitou-a, incrédula.
— Estás a tentar dizer que foi a Natasha que comprou os telefones e que foi ela que matou a
Hannah?
— É exatamente isso que acho.
Ficaram a olhar uma para a outra durante um longo momento, no meio do burburinho da área da
receção. Bennett nem sequer a convidara a entrar para falarem. Via-se que considerava Becca um
incómodo.
— Quando é a tua próxima consulta com a doutora Harvey? — perguntou a inspetora por fim.
Becca soltou um riso frustrado.
— Sei o que pensa. Acha que estou a fazer isto por causa do Aiden. Que estou revoltada,
ciumenta e doida, e talvez até esteja, um bocadinho. Sei que fiz uma figura mesmo triste, mas… não é
por causa disso.
— Vai para a escola, Rebecca. — Bennett começava a impacientar-se. — Não compliques mais
as coisas para ti mesma.
Becca fez um sorriso amargo, encolheu os ombros e começou a afastar-se. Na verdade, não
esperava outra coisa.
— Não a incomoda? — perguntou por cima do ombro, antes de a mulher atravessar a porta de
entrada e entrar no rebuliço do edifício.
— O quê?
— Ser tudo tão evidente. O recibo no cacifo, os telefones nos quartos, ainda com as mensagens
todas? Como se as provas tivessem sido embrulhadas com um laçarote para serem oferecidas. Foi
isso mesmo que aconteceu. E o objetivo foi cumprido. Não acha estranhas as mensagens? Aposto que
param imediatamente depois da noite em que a Natasha caiu ao rio. Não disseram mais nada depois
disso? Não acha esquisito?
Ficou a olhar para a inspetora, mas esta não reagiu.
Bennett não disse nada durante um longo momento. Depois, repetiu:
— Vai para a escola, Becca — e deixou a porta fechar-se.
Becca ficou parada lá fora ao sol e enrolou um cigarro.
Não tinha resultado. Ia ter de recorrer ao plano B.
As provas que Bennett não tinha.
O filme de que a mãe de Jenny falara naquela publicação que depois apagara.
Era essa a chave.
Disseram que a polícia não o tinha encontrado, e Becca pensou durante algum tempo que Tasha se
desembaraçara dele de alguma maneira. Mas depois lembrou-se da caixa de recordações que Tasha
tinha debaixo da cama, cheia de coisas de anos anteriores. Natasha guardava coisas. Devia ter
guardado aquele filme algures, fosse lá ele o que fosse. Como garantia contra Hayley e Jenny, nem
que fosse para as impedir de falar. E depois de passar a noite acordada a pensar naquilo, Becca tinha
quase a certeza de saber onde ele estava escondido.
Sorriu. Estava excitada, não conseguia evitar. Por um lado, estava contente por Bennett não a ter
levado a sério. Essa teria sido a via mais razoável. Mas assim poderia orientar o jogo à sua maneira.
Chegou a hora da vingança, Tasha, pensou. Desta vez, sou eu a mover as peças.
Verificou o relógio. Tinha muita coisa para fazer naquele dia.
56

Excerto da SESSÃO COM A DOUTORA HARVEY E A PACIENTE REBECCA CRISP,


SEGUNDA-FEIRA, 4 DE ABRIL, 15H30

DOUTORA HARVEY: E que sentimentos suscitam em ti essas publicações no Facebook e nas redes
sociais? Deixam-te zangada?
REBECCA: Deixavam. Um bocado. Não tenho pensado muito nisso nos últimos dias.
Tenho andado distraída.
DOUTORA HARVEY: Porquê?
REBECCA: (Pausa)
Qual é a diferença entre um psicopata e um sociopata?
DOUTORA HARVEY: Porque perguntas isso?
REBECCA: Tenho andado a pensar nas motivações. Nas razões que levam as pessoas a fazerem
coisas umas às outras.
DOUTORA HARVEY: Por causa da Hayley e da Jenny?
REBECCA: Qual é a diferença entre os dois?
DOUTORA HARVEY: A maneira mais fácil de explicar é a seguinte: um psicopata não tem moral
nem ética. Um sociopata tem moral, mas a sua bússola moral é muito parcial. Ambos são
manipuladores. Ambos podem ser encantadores.
REBECCA: Era capaz de reconhecer algum?
DOUTORA HARVEY: Qual deles?
REBECCA: Qualquer um dos dois.
DOUTORA HARVEY: Talvez. Nem sempre.
REBECCA: Porque é que eles fazem mal às pessoas?
DOUTORA HARVEY: Não fazem sempre.
REBECCA: Mas os que fazem.
DOUTORA HARVEY: Não me parece que a Hayley ou a Jenny sofram de algum desses distúrbios.
REBECCA: Partiu do princípio de que eu estava a falar delas, mas eu não disse isso. Perguntei por
curiosidade.
DOUTORA HARVEY: Um psicopata pode não precisar de uma razão. Pode ser movido apenas por
um sentimento de poder. O prazer que lhe dá a dor de outra pessoa. Um sociopata já tem uma
razão, embora talvez não uma razão que levasse alguém que não sofresse do distúrbio a tais
extremos. Uma coisa que, a mim ou a ti, apenas nos irritaria, pode levá-lo a fazer mal a alguém.
Mas cada caso é um caso.
(Longa pausa)
Voltaste a apagar a conta do Facebook? Sentes-te revoltada contra os teus pares?
REBECCA: (Riso)
Não se preocupe, não estou a planear transformar-me numa Carrie na escola. Estou só a tentar
descobrir como pensaria uma pessoa dessas.
DOUTORA HARVEY: Tanto os psicopatas como os sociopatas são, devido à natureza do seu
distúrbio, absolutamente egoístas. Só as motivações egoístas fazem sentido para eles.
REBECCA: Compreendo.
DOUTORA HARVEY: Não sei bem se isto será um interesse saudável para ti neste momento. Já
pensaste em experimentar alguma ocupação física ao ar livre? Há vários campos que recomendo
para jovens que sofrem de perturbação de stresse pós-traumático, como tu.
REBECCA: Eu não sofro disso.
DOUTORA HARVEY: Foi a avaliação que fiz de ti.
REBECCA: (Pausa)
Para ser franca, doutora Harvey, não tenho grande fé nas suas avaliações neste momento. Mas
obrigada, desta vez revelou-se útil.
(Agita-se na cadeira)
DOUTORA HARVEY: Ainda temos vinte minutos até ao final da sessão.
REBECCA: Vou seguir o seu conselho e apanhar um pouco de ar fresco.
57

Hoje, na escola, dei por mim atenta à Becca, à espera de que ela aparecesse de repente numa
esquina e ficasse a olhar para mim com aquele ar de quem sabe tudo, como naquelas séries de
detetives antigas que a minha mãe vê aos domingos à tarde. Mas não a vi. Depois da escola, fui tomar
café com as minhas novas Barbies, e elas perguntaram-me pelo Aiden, de modo que namorisquei um
bocadinho com ele por SMS para as deixar felizes. Elas acham que, não tarda, vou com ele para a
cama. Não me conhecem mesmo. Mas ele está mortinho.
Chego a casa, atiro a mochila para o chão e vou buscar sumo ao frigorífico. O café dá-me sede e
deixa-me um bocado enjoada. Nem sei porque bebo aquilo. Bebo um copo de sumo de laranja e
encho outro para levar para o quarto. A casa está silenciosa. Por uma vez, a minha mãe saiu em vez
de ficar à espera que eu chegasse para poder andar a cacarejar à minha volta.
Penso como é fácil manipular os rapazes. Pô-los todos malucos. Não é preciso grande coisa, pois
não? Disse ao Aiden que tinha pensado nele a meter os dedos dentro de mim. A Vicki guinchou a rir
quando leu — disse-lhe que tinha de fazer qualquer coisa para dominar aquele riso se quisesse
continuar comigo —, e eu corei, fiz um sorriso entendido e revirei os olhos como se fosse uma coisa
que deixasse os rapazes fazerem regularmente.
Não faço nenhuma tenção de deixar o Aiden meter os dedos dentro de mim.
Só a ideia me faz contrair as coxas com força. Mesmo apesar de o beijo dele não ter sido mau,
não estou disposta a ir mais longe do que isso nesta palhaçada. Penso se deveria mostrar-me
preocupada com a Becca e pôr um ponto final nisto antes mesmo de começar. Já consegui o que
queria. Ela anda com um ar mais desvairado do que nunca e parece azeda e revoltada com tudo.
Mesmo assim, e apesar de já ter conseguido o que queria, o seu comportamento recente dá-me
vontade de a castigar.
Conto os degraus enquanto subo, contente ao verificar que o número passa dos treze e, a seguir,
vou para a cama preguiçar. São apenas cinco e meia mas estou cansada. Também estou aborrecida.
Quando mais não seja, estes últimos meses têm sido interessantes. Mesmo que apenas para mim.
Agora sinto-me um bocado desiludida. Bem vistas as coisas, foi tudo muito fácil. E agora, bem, está
outra vez tudo normalíssimo. Nem sequer há a peça de teatro para aguardar com expectativa. Se a
Hannah não tivesse sido uma idiota tão chapada e não se tivesse posto por baixo do foco, teríamos
escolhido um novo elenco e tinha-se continuado.
Oiço um zumbido e olho para o telefone. Nada. Sento-me. Passados alguns segundos, oiço de
novo o zumbido. Vasculho na minha mochila e ali, no fundo, misturado com um batom e alguns lenços
de papel, está um telemóvel. Outro telemóvel.
Fico a olhar para ele. É barato e básico e não é meu. Sinto o coração a bater aceleradamente.
Não sei se de medo ou de excitação, mas de repente a vida tornou-se outra vez interessante. Carrego
no ícone das mensagens. O aparelho é pré-histórico, mas sei manuseá-lo. Foi cuidadosamente
escolhido. É exatamente igual aos dois que comprei na One Cell Shop.
Vê as mensagens gravadas, diz o texto, letras pretas contra fundo verde. Isto nem sequer é
retro. Escolho as opções e carrego novamente. Vejo as mensagens recebidas e depois as enviadas.
Está lá uma conversa inteira, entre este telemóvel e o que me está a enviar instruções. Nada de
extraordinário, só conversa. Bebo um grande trago de sumo enquanto absorvo aquilo tudo. Quase
sorrio, mas não o chego a fazer. Tenho o coração aos pulos. Chega outra mensagem.

Fácil fazer isto, não é?

E, a seguir, outra.

Adivinha onde está a fatura?

Continuo sem responder.

No teu cacifo. Incrível como aqueles


papelinhos são finos. Deslizam na perfeição
pela fresta ao lado das dobradiças.

O pequeno cérebro de Becca anda a fazer horas extraordinárias. Terá sido a recordação do
vestido verde que desencadeou isto tudo? Ou terá sido a mentira? Devem ter sido as duas coisas. A
Becca gosta de quebra-cabeças. Nesse aspeto, somos parecidas.
Estou bastante impressionada. Uma estrelinha dourada para a gorducha da Rebecca Crisp. Mas
nada disto é concreto. Ela que invente as hipóteses que quiser sobre telemóveis e faturas. Vou deixá-
la fazer as suas jogadas e logo decidirei o que fazer. Ela sempre fez aberturas agressivas, mas o jogo
ganha-se ou perde-se nas últimas jogadas. Está na altura de responder:

Sempre tiveste uma imaginação muito fértil.

É escusado fingir que não sei quem é, embora não esteja a admitir nada. É como se estivéssemos
a observar-nos uma à outra por cima de um tabuleiro de xadrez.

:-)

Olho para o smiley ultrapassado e, pela primeira vez, sinto uma ponta de irritação.

Qual é a piada?

Uma pausa. Estou quase a atirar o telemóvel para dentro da mochila, irritada, quando ele volta a
zumbir.

A minha imaginação não inventou este filme


que estou a ver.

Fico imobilizada a olhar. Sinto a pele a arrepiar-se. Ela não pode ter o filme.

Desapareceu-te alguma coisa de casa?

O choque acelerou-me a respiração. Desço a correr à cozinha. Ela não pode ter aquilo. A cabra
não pode ter encontrado aquilo. Não é possível.
58

Becca fitou o fino Airbook com o autocolante de Nova Iorque na tampa e esperou a chegada da
mensagem seguinte, com as palmas das mãos quase a suar devido aos nervos. Não fazia ideia se o
filme estava no computador ou não — as tentativas para introduzir a palavra-passe tinham falhado
—, mas era o único sítio onde achava que Tasha o poderia ter guardado em segurança: no
computador esquecido que a mãe não utilizava, em cima da mesa da cozinha.
Fora relativamente fácil deitar-lhe a mão. Tirara as chaves da mochila de Tasha, no canto das
Barbies da sala de convívio, e entrara sorrateiramente numa altura em que Alison Howland saíra.
Tivera apenas de esperar uma hora e pouco. Depois introduzira as chaves e o telefone pré-pago na
mochila de Tasha durante a última aula. Era Teatro, e ela sabia que as Barbies não iam carregadas
com tudo para a sala. Tasha, pelo menos, não ia. Sobretudo se houvesse uma mochila de uma nova
Barbie desejosa de agradar onde ela pudesse enfiar o telemóvel e a carteira.
E assim foi. Claro que agora iria descobrir se valera a pena. Esperou, deixando os segundos
decorrer no silêncio.

Não o estás a ver.

O seu coração deu um salto. Merda. O que tinha falhado?

Não conseguias descobrir a palavra-passe.


Eu mudei-a. É completamente aleatória.

Becca fez um grande sorriso. O jogo tinha recomeçado. Respondeu:

OK, menti. Não o estou a ver. Mas está aqui.


Tu sabes e eu sei.
Ficou à espera.

É perfeitamente explicável.
Memória frágil. Talvez tenha filmado
naquela noite e me tenha esquecido.

Tasha era tão arrogante. Era inteligente, mas nunca fora tão inteligente como se julgava.

Possível, mas improvável, respondeu Becca.


Como estaria Tasha naquele momento? Suada? Irritada? Não é tão agradável quando somos nós
os peões.

Provável e possível.

Ela era sempre tão segura. Becca desejou ver a cara da outra ao perceber que um pequeno
pormenor do filme poderia desmascarar toda a sua versão dos acontecimentos. Resumia-se tudo ao
acidente de Hayley. O seu pulso lesionado. A sequência temporal. Natasha era uma planeadora. A
primeira parte do seu plano teria consistido em criar alguma coisa concreta que pudesse guardar e
utilizar. O filme. Devia tê-lo feito antes de pintar o cabelo e comprado os telefones. O que
significava que, se Hayley aparecesse no filme, teria o pulso lesionado, pois só tinha tirado o gesso
mesmo antes do Natal. Ainda o teria no filme.
Becca enviou outro smiley, certa de que isso iria enervar a antiga melhor amiga. Passado mais um
momento, acrescentou:

Pensa melhor. Se não descobrires


em cinco minutos, não és tão esperta
como eu imaginava.

Pousou o telefone e foi buscar o seu iPhone. Selecionou o número de Aiden.

Só para saberes.
A Tasha vai dar-te com os pés
em menos de uma hora.

Carregou em «enviar» e atirou o telefone para o lado. Não se deu ao trabalho de ver se tinha
resposta. Aiden já não era importante.
59

Faço quatro respirações profundas e fico irritada por todas serem irregulares e por sentir as mãos
trémulas. Sento-me na cama e fico a olhar para o telefone. Está a escapar-me qualquer coisa. A
Becca nunca é assim tão confiante. Que sabe ela que eu não sei? De que estará tão certa sem ter visto
o filme?
Revejo tudo na minha cabeça enquanto ando para trás e para a frente para me livrar da energia
nervosa que sinto nas pernas. Apetece-me ir dar uma corrida no bosque, mas não posso. Fica calma,
digo a mim mesma. Isto continua a ser apenas um jogo. Um jogo perigoso, mas, ainda assim, um jogo.
Mais do que isso, é o meu jogo. E, pelo menos, já não me sinto aborrecida. Tento sorrir, mas
vislumbro a minha imagem no espelho e pareço ligeiramente transtornada. Que pode ela saber?
Fiz o filme no parque de estacionamento do Asda. O mesmo carro, o mesmo homem, as mesmas
raparigas. Só o carreguei para o computador da mãe naquela sexta-feira à noite, por isso podia
facilmente ser uma falha de memória ter-me esquecido dele. Não era grande coisa, mas servia.
Então, o que será? Oh, Becca, Becca, a Rebecca gorduchinha que ainda carrega essas feridas
como se ainda tivesse a gordura agarrada à pele, o que achaste que me tinha escapado?
Imagino-a sentada em casa, convencida, à espera de que eu responda. Odeio ser ultrapassada por
alguém. Estou sempre dois passos à frente. Recuso-me a perguntar.
Terá sido alguma coisa relacionada com o tempo? Não, das duas vezes, foi em noites limpas e
escuras. Nada estava diferente. Nada!
E então, qualquer coisa se detém por um instante. E o meu coração também. Já sei o que é. Já sei
porque está a Becca toda calma e convencida a mandar carinhas sorridentes.
O pulso da Hayley.
Se tivesse feito o filme na quinta-feira à noite, quando disse ter descoberto a Jenny a foder com o
professor Garrick, a noite antes de ir parar ao rio, a Hayley não teria nada no pulso. Mas fiz o filme
muito antes, na altura em que descobri mesmo. E nessa altura, o pulso da Hayley tinha aquela tala.
Fitei o telefone e apeteceu-me apunhalar a Becca nos olhos através da porcaria daquele ecrã. Isto
é suficiente para dar cabo de mim. É uma prova, e a Becca está bem ciente disso. Se a Bennett
descobre que eu sabia da Jenny e do professor Garrick meses antes de ter ido parar ao rio, então o
caso muda de figura. Pode não explicar porquê, mas prova que menti acerca da minha perda de
memória. E que me fartei de mentir. É um fio capaz de desenredar toda a meada. Inverte
completamente a situação.
Sou invadida por uma calma fria enquanto penso no contexto geral. A Becca ainda não disse isto
à Bennett. Em vez disso, veio ter comigo primeiro. Porquê?
O objetivo da Becca não é que me prendam.
Olho para o tabuleiro de xadrez ao canto, com as peças ansiosas por avançar, e envio uma
mensagem.

Parabéns. Boa jogada.


Foi um bispo que comeste?

Este jogo continua a ser meu.

Oh, não brinques! Foi mas foi a tua rainha! ;-)

Ranjo os dentes. A minha tolerância em relação a smileys começa a rarear.

Então, o que queres?

Espero.

Para começar, quero que mandes passear o Aiden.

Quase solto uma gargalha ruidosa. A sério? Isto deve valer mais do que isso.

Ainda o queres???

A resposta veio depressa.

Não. Mas acho melhor ele ficar fora do tabuleiro.


Já cumpriu o seu objetivo, não foi?

Sinto-me quase impressionada. Talvez tenha subestimado Becca. E ela tem razão. Seria bom
livrar-me dele. Pego no meu telefone normal e escrevo a mensagem, quase embaraçada. Estou com
pena da Becca, é demasiado cedo para isto, blá-blá-blá, conversa amorosa. Carrego em «enviar». A
seguir mando uma mensagem à Becca do outro telefone.

Está feito.

Quase me apetece agradecer-lhe por me ter libertado dele e da possibilidade de ele me acariciar,
mas não sei se ela estará já pronta para isso. Afinal, a Becca gostava dele.

Que mais?

Uma pausa. Para obter efeito dramático, o que é irritantemente óbvio, mas dou-lhe essa benesse.
Este jogo está longe de estar decidido.

Quero a minha vida de volta.

Ainda não acabei de ler, e o telefone volta a zumbir. E depois mais uma vez.

A minha vida melhor.


Quero voltar a ser a tua melhor amiga.

Sorrio, deixo-me cair sobre as almofadas e olho para a árvore do lado de fora da janela. Claro.
Foi isto que a Becca sempre desejou. Isto resolve-se bem.

Vamos conversar.

A Becca marcou um ponto com a história dos telefones. Ela é esperta. Descobriu-me a careca.
Agora, teremos de nos livrar deles e do filme. Santo Deus, ela tem um lado tão astuto e outro tão
previsível! Aquele pedido que me fez vai dar algum trabalho, se eu decidir alinhar. Devolver-lhe a
popularidade. Se calhar, devia fazer isso durante uns tempos. É capaz de ser mais interessante do que
o atual tédio, mas há outras direções para onde posso levar este jogo. Vá para onde for, tenciono
ganhar.
Pelo menos, agora sei qual é o objetivo dela. O meu outro telefone toca, mas ignoro-o. Deve ser o
Aiden. Para mim, já passou à história.
É bom ter qualquer coisa para refletir. Para planear.
Ainda tenho mais vontade de sorrir quando me apercebo de que não tentei contar nenhuns trezes
desde a primeira mensagem da Becca. Ela é melhor terapeuta do que a doutora Harvey.
60

Jamie abriu a garrafa de vinho tinto e deixou-a respirar. Passava das onze, mas tinha preparado
uma ceia tardia com queijo, tostas e carnes frias para quando Caitlin chegasse. Uma vantagem
daquela relação de amizade era nenhum deles ter horários normais. Em Brackston, outras pessoas
estariam a pensar em ir para a cama naquele momento, mas Jamie estava ainda bem acordado e tinha
acabado de trabalhar apenas a tempo de tomar um duche e de se pôr o mais apresentável que
conseguia.
Ouviu o carro a parar na gravilha e sentiu o coração acelerar um pouco. Odiava sentir-se tão
nervoso, mas havia já algum tempo que não saía com ninguém, e embora não tivessem planeado que
ela iria lá dormir, isso estava mais ou menos implícito. A inspetora vivia do outro lado da cidade e
vinha direta do trabalho; nem pensar em beber e conduzir a seguir.
— Viva — cumprimentou-a.
Ela estava com bom aspeto. No trabalho usava sempre fatos com calças, escuros e formais, como
gostava de se apresentar, mas agora estava de calças de ganga e com uma blusa vermelha a condizer
com o batom. Tinha o cabelo solto, que lhe caía, brilhante, à volta dos ombros. Ele respirou fundo.
Não havia dúvida, aquilo era um encontro romântico.
— Posso entrar? — Ela estava à porta, hesitante. Baixou-se para fazer festas a Biscuit, que
estava todo entusiasmado, e depois exibiu uma garrafa. — Para o caso de ter acabado.
— Não havia perigo disso.
Desviou-se para a deixar entrar e segurou-lhe no casaco. Enquanto se dirigiam para a sala de
estar, os dois um pouco nervosos, Aiden veio sentar-se nas escadas. Enfiou imediatamente no bolso o
charro que tinha na mão, mas Jamie duvidou que Caitlin não tivesse reparado.
— Não tinhas planos para esta noite? — perguntou Jamie.
— Lamento, foram cancelados. Mas eu deixo-os à vontade, vim só buscar uma bebida.
Parecia desanimado. Jamie serviu a todos um copo de vinho. Era bom ter ali Aiden durante uns
momentos, ele desanuviava a tensão e dava aos dois adultos constrangidos algo em que se focar.
Jamie pensou quando teria sido a última vez que Bennett saíra com alguém. Conforme se ia ficando
mais velho, era cada vez mais difícil conhecer pessoas e cada vez mais fácil viver sozinho.
— Estás com um ar muito infeliz. Está tudo bem?
Aiden encolheu os ombros, o movimento sem energia que geralmente queria dizer muita coisa.
— A Tasha deu-me com os pés.
— Tenho pena. — E tinha, embora Aiden pudesse beneficiar de algum do tempo de solteiro,
coisa que Jamie tivera de sobra. — Um bocado súbito, não?
— Pois. — Aiden fez uma pausa. — Acho que a Becca teve alguma coisa que ver com isto.
— Como?
— É estranho. Ela mandou-me uma mensagem a dizer que a Tasha me ia dar com os pés; não era
uma daquelas mensagem furiosas, dizia apenas que a Tasha me ia dar com os pés antes de passar uma
hora e, logo a seguir, recebi uma mensagem da Tasha a confirmá-lo. — Bebeu um pequeno gole de
vinho. — Não estou chateado nem nada, mas aconteceu de forma inesperada. Ela tinha-me enviado
umas mensagens mais cedo e estava tudo normal.
— Talvez a Becca e a Tasha tenham feito as pazes — disse Jamie. — Já sabes como são as
raparigas.
— Sim, talvez. — Aiden voltou a dirigir-se para o corredor. — Bem, vou deixá-los em paz. Vou
ver televisão no quarto. — Dirigiu um cumprimento de cabeça a Caitlin. — Passem uma boa noite.
Aiden estava com os ombros tão caídos quando saiu que Jamie achou que talvez estivesse mais
magoado do que deixava transparecer. Estava a aprender que, afinal, as mulheres não eram assim tão
fáceis de compreender.
— Não me parece que elas tenham feito as pazes — disse Caitlin, tirando uma uva da tábua dos
queijos e metendo-a na boca antes de se sentar no sofá. — A Becca e a Tasha.
— Porque dizes isso?
Ela descalçou os sapatos e puxou as pernas para cima, e Jamie sentiu-se de repente mais
descontraído. Ela estar ali, à vontade em casa dele, parecia, de alguma forma, natural. Sentou-se ao
seu lado.
— A Becca foi à esquadra. Basicamente, disse que acha que foi a Natasha quem fez aquilo. Cair
no rio, a morte de Hannah. Acha que foi a Natasha quem orquestrou a coisa toda.
— A Natasha? Isso é uma loucura. Quer dizer, sei que a Becca ficou abalada e isso, mas ao ponto
de inventar uma coisa dessas?
— Ela falou das imagens das câmaras de vigilância onde se via a Jenny a comprar os telefones.
Quis saber se tínhamos investigado para onde ela tinha ido a seguir. Disse que a Natasha foi a última
a sair da sala de teatro no dia em que a Hannah Alderton morreu. — Caitlin ergueu os olhos. Estava
pensativa. — Disse que ela me tinha entregado tudo aquilo num embrulho perfeito.
— Que conversa de loucos. Pobre miúda. Deve estar a precisar de mais acompanhamento
psicológico.
— Talvez. — Caitlin recostou-se como um gato no sofá e olhou para o copo de vinho. — Mas
disse umas coisas pertinentes. Nós não verificámos para onde a Jenny foi depois de sair da loja dos
telefones. Pedi a uma pessoa que me fosse desenterrar as imagens das câmaras esta tarde. O
desgraçado do Marc ainda está a trabalhar.
— Mas não acreditas nela, não?
— Não — disse, abanando a cabeça. — Mas temos de verificar tudo meticulosamente antes do
julgamento.
Jamie observou-a. Ela estava ali, mas não totalmente.
— Há alguma coisa que te esteja a incomodar? — perguntou.
— Só os telefones. A Becca tinha razão. Por que motivo a Jenny e a Hayley deixaram de os
utilizar depois daquela noite? Porque os guardaram, com todas aquelas provas incriminatórias?
Jamie recostou-se ao lado de Caitlin, com o braço a tocar no dela.
— Coisas de adolescentes, provavelmente. Nunca imaginaram que iam ser apanhadas.
— Sim, tens razão, foi o que eu pensei. — Olhou para ele e sorriu. — Mas chega de falar de
trabalho. Como passaram os dias, tu e o Biscuit?
61

No sítio do costume? À meia-noite?

Becca enviou a mensagem às dez e ficou sentada no quarto, a pesar todos os possíveis
desenvolvimentos, até que os pais desligaram a luz no andar de baixo e foram para a cama.
Depois de se ter esgueirado de casa, de mochila às costas, pensou pela milésima vez se não
estaria a ser ridícula. Ou estúpida. Agora podia estar tudo acabado. Talvez ela não conseguisse
aceder ao computador, mas a polícia conseguiria. Mas isso implicava convencer Bennett a tentar
entrar nele em vez de prender Becca por furto; e a conversa nos telemóveis pré-pagos não constituía
uma prova suficientemente sólida. Mesmo sem isso, Caitlin Bennett já achava que ela era doida.
Podia dizer que fora Becca quem enviara as mensagens dos dois telefones e ignorá-la. O que era
bastante irónico, pois fora exatamente isso que Tasha fizera.
O bosque estava escuro e Becca ligou a lanterna para ver o caminho. Tentou ignorar o nervoso.
Não estava sozinha. Tasha já devia estar na clareira — o sítio do costume. Provavelmente já lá
estava há imenso tempo. Havia de ter querido certificar-se de que Becca não montara nenhuma
armadilha, ou talvez estivesse ela própria a montar algumas. E Tasha não teria medo de estar sozinha
no bosque à noite. A maior parte das pessoas tem medo de monstros ou de tarados. Mas Tasha era,
ela própria, uma tarada.
Becca tentou manter-se confiante quando as árvores começaram a adensar-se à volta da estreita
passagem e os ramos escuros se prenderam às suas roupas e lhe arranharam o rosto. A lanterna era
um frágil David contra o Golias da noite, e ela sentia um frio na barriga. Devia ter simplesmente ido
à polícia. Sabia que devia. Mas não se tratava apenas de justiça. Tratava-se também de descobrir por
que razão Tasha fizera aquilo tudo. E nunca partilharia isso com Bennett. Podia inventar uma razão
qualquer, uma explicação plausível, mas não seria a verdade. Talvez naquela noite, estando as duas
sozinhas, Becca conseguisse arrancar-lhe qualquer coisa. Devia isso a Hannah. Devia-o a Hayley e a
Jenny. Devia-o a si mesma. Não tinha nada que ver com Bennett. Tinha que ver com elas.
Havia quatro lanternas na clareira, uma em cada canto, e criavam um palco iluminado em torno
de Tasha, que estava sentada sobre o tronco caído, com uma garrafa de vinho aberta aos pés. Quando
as últimas árvores se afastaram, Becca desligou a sua luz. Era desnecessária.
— Um bocadinho teatral, não achas? — comentou.
— Não gosto do escuro. — Tasha pôs-se de pé e ergueu o copo de plástico. — Um brinde a ti e
ao teu cérebro inteligente, Bex. — Bebeu um trago e voltou a sentar-se para servir um copo a Becca.
— Vem sentar-te aqui comigo.
Estava um ambiente estranhamente calmo quando Becca tirou a mochila e Tasha lhe estendeu um
copo. Olhou durante um longo momento para a antiga melhor amiga. Tasha riu-se, deu um gole nos
dois e deixou Becca escolher.
— Não te preocupes, não está envenenado.
Becca pegou num copo, bebeu e subiram-lhe bolhas ao nariz.
— Isto é champanhe?
— Achei que nós merecíamos.
Nós. De repente, falava no plural. Como se Becca fizesse parte daquela loucura toda. Becca
acendeu um cigarro — tinha estoirado o seu último dinheiro em dez Marlboro Lights para a ocasião
— e, durante algum tempo, ficaram sentadas em silêncio enquanto ela fumava.
— Então, concordas? — perguntou. — Somos outra vez melhores amigas?
O cabelo louro de Tasha ficara dourado com a luz. Mesmo naquele momento, com tudo o que
Becca sabia, ela continuava a parecer de uma beleza perfeita. Uma brisa agitou as árvores. Era como
se elas fossem os últimos habitantes da Terra.
— Sim — respondeu Tasha. — Sim, acho que sim. Para ser franca, é um alívio. As outras são
uma seca. Parecem fotocópias de má qualidade da Hayley e da Jenny.
— E tu já não gostavas propriamente delas.
A sua cabeça virou-se bruscamente para fitar Becca.
— Não é verdade! É certo que havia momentos em que me irritavam, mas eu adorava-as. Eram as
minhas melhores amigas. — Fez uma pausa. — Não souberam foi comportar-se. — Foi bebendo
pequenos goles de champanhe e ficou pensativa ao concentrar-se na situação do momento. — Vamos
ter de fazer isto com cuidado para não parecer estranho. Vou encenar uma discussão com a Jodie e a
Vicki. E invento umas tretas quaisquer elogiosas sobre ti no Facebook. As pessoas adoram-me. Neste
momento, adoram-me mais do que nunca. Engolirão tudo.
Ainda um bocado desconfiada, Becca pensou como funcionaria o cérebro de Natasha. Perceberia
que parecia louca? Não revelara o mais pequeno sinal de lucidez ao dizer que adorava Hayley e
Jenny. Depois de tudo o que havia feito, de as incriminar por homicídio e tentativa de homicídio e de
lhes ter destruído as vidas, como podia dizer aquilo seriamente?
Avança com cuidado, pensou Becca. Avança com muito cuidado neste terreno perigoso.
— O vestido verde — disse Natasha, com um sorriso contrito. — Nunca mais me tinha lembrado
disso. Adorava aquele vestido. E odiava que tu o tivesses.
— Eu também me tinha esquecido, até ver uma fotografia. Então, veio-me tudo à cabeça. Quase
matei a Hayley quando aquele verniz caiu em cima dele mesmo antes do meu aniversário. — Fez uma
pausa, recordando. — E aquela encenação toda que tu fizeste. Disseste-me que a Hayley tinha imensa
inveja do meu vestido. Tinhas posto o frasco de verniz no quarto dela uns dias antes, para eu o ver.
Acho que foste a responsável pela maior discussão que alguma vez tive com ela.
— E foi isso que agora fez com que ficasses desconfiada.
— Sim, isso e a mentira das pulseiras. Na altura, não eras tão inteligente.
— Éramos crianças — disse Tasha. — Se a estúpida da minha mãe tivesse ficado de bico calado,
tudo teria corrido bem. Ela ficou tão escandalizada. As mães das amigas não deviam ser amigas das
nossas mães. Se fosse agora, teria eu própria comprado o verniz, e a minha mãe nunca saberia que
era meu porque não o teria pago. E assim, nunca poderia dizer que devia ter sido eu a entrar no teu
quarto e a entorná-lo no vestido. Toda a gente teria acreditado que tinha sido a Hayley.
— Acho que, desta vez, foste um bocadinho longe demais — disse Becca secamente. Não tinha
conseguido jantar por causa dos nervos, e o champanhe estava a subir-lhe à cabeça. — Duas pessoas
morreram.
— Sim, pode dizer-se que as coisas se complicaram um bocadinho mais do que eu tinha planeado
— disse Tasha.
— Isso é dizer pouco.
O riso veio-lhe inesperadamente, mas assim que começou, Becca não o conseguiu travar, apesar
da incredulidade. Era ridículo. Estavam ali as duas sentadas a falar do que tinha acontecido como se
se tratasse simplesmente de uma discussão sem importância que se tinha descontrolado. Becca
recordou o rosto de Amanda Alderton no funeral e, por alguma razão, aquilo fê-la rir ainda mais. Era
rir ou chorar. Talvez fosse histeria. Fosse o que fosse, Tasha fitou-a por um momento e, a seguir,
estavam as duas a rir, incapazes de parar, provocando uma à outra novos ataques de riso sempre que
começavam a tentar dominar-se.
Parece antigamente, pensou Becca com uma pontada, quando lhe começaram a doer as costelas e
ficou com os olhos cheios de lágrimas. Há muito tempo, quando éramos crianças.
Por fim, já sem forças, o riso abrandou e deu lugar a uma ou outra risadinha ocasional, depois a
suspiros e, finalmente, ao silêncio.
— Parecemos as raparigas de As Bruxas de Salém — disse Tasha quando recuperou o fôlego
para falar. — Nos bosques, a rir e a lançar feitiços obscuros.
— Mas eu não me vou despir. Sobretudo com estas coxas.
— Hmm… — Tasha lançou-lhe um sorriso verdadeiramente caloroso. — Sempre foste a mais
engraçada. — Apertou com afeição o braço de Becca antes de desviar o olhar. — Sabes que preciso
que me devolvas o portátil.
Becca abriu o fecho da mochila e retirou o fino Airbook prateado.
— Toma. Tens de o carregar.
O coração deu-lhe um salto quando Tasha pegou nele. Viu os olhos dela pousarem sobre o
autocolante de Nova Iorque no canto da tampa. Depois voltou a sorrir.
— Obrigada, Bex. — Tasha pôs-se de pé. — Tenho as pernas dormentes. Estou aqui sentada há
séculos. Vamos dar uma volta? — Levantou o computador. — Sou capaz de atirar isto ao rio. De
qualquer maneira, a minha mãe nunca o usa.
Becca ficou parada, e Tasha deu-lhe o braço.
— Talvez isto estivesse sempre destinado a acontecer, Bex. Tu e eu. Melhores amigas para
sempre. E se descobriste isto tudo sozinha, imagina só o que poderíamos fazer as duas juntas. Limpar
o sebo ao cão do Jamie McMahon, para começar. Vingares-te do Aiden por ter sido um estupor?
— Teremos imenso tempo para isso — respondeu Becca.
Caminharam durante algum tempo antes de Becca voltar a falar. Tinha mesmo de perguntar.
Naquele momento, estavam numa bolha, um espaço privado só delas. Se Natasha alguma vez se
abrisse, seria agora.
— Deves ter levado séculos a planear tudo — disse. — E a fingir que tinhas amnésia. Até
morreste durante uns minutos.
— Isso não fazia parte dos planos. Foi por culpa do Jamie McMahon e do maldito cão, que se
atrasaram no passeio.
— Mas que te levou a fazer aquilo, Tasha? Foi por causa do professor Garrick? Por favor, não
me digas que também gostavas dele.
— Não sejas nojenta! — Tasha riu-se. — Claro que não.
— Então? — perguntou Becca novamente.
Tasha respirou fundo.
— Não é assim tão complicado — começou.
62

Estavam estendidos no sofá, Caitlin com a cabeça sobre o peito dele, a ver um filme de ação,
quando o telemóvel dela começou a tocar. Até ali, tinha sido uma noite muito casta, mas, com Aiden
no andar de cima, Jamie não estava com vontade de dar o passo seguinte e estava a saber-lhe bem
estar ali descontraidamente com ela. Parecia natural.
— Bolas, o que foi agora? — protestou Caitlin, estendendo relutantemente o braço para a mesa
para pegar no telefone. Tinham aberto a segunda garrafa de tinto e ambos estavam num agradável
estado de aturdimento. No ecrã, surgira o nome Marc Aplin. Caitlin sentou-se e atendeu.
— Espero que seja importante.
Olhou para Jamie com um ar culpado. Ele pensou se seria por causa daquilo que ela era solteira.
Como lidariam os homens com o virem sempre a seguir ao trabalho dela? Achou que isso não o
incomodaria. Afinal, seria hipócrita. Se havia alguém que adorava o trabalho que tinha, era ele. As
costas dela ficaram hirtas.
— Tens a certeza? — perguntou. — Podes enviar-mo? — Fez sinal a Jamie para lhe ir buscar o
casaco. Ele trouxe-o e limpou parte dos despojos do jantar, para o caso de ela precisar de espaço na
mesa. Ela procurou o iPad mini nos bolsos amplos e, depois de o encontrar, empurrou o casaco para
o lado.
Jamie sentou-se de novo junto dela, enquanto Caitlin enrolava a capa para formar um pequeno
apoio e ligava o tablet. Sentiu-se ligeiramente constrangido, como se estivesse a intrometer-se numa
conversa pessoal ou coisa do género, mas sentia-se igualmente curioso. Seria um caso novo que ela
não tinha mencionado? Ou teria ainda que ver com as raparigas? Ela dissera que Becca tinha ido
falar com ela e que ainda estavam a investigar. Seriam novas provas?
— Já está — disse ela, e clicou numa ligação.
Jamie levou um momento a perceber o que estava a ver. A imagem era granulada e irregular, até
que o iPad estabilizou e ela se tornou nítida. Era o centro comercial. Perto da saída.
— Estou a vê-la — murmurou Bennett para o telefone, com os olhos fixos no ecrã, onde uma
rapariga de casaco se dirigia para as portas da saída e para o parque de estacionamento. — Até
agora, nada de inesperado. — A imagem mudou para o exterior, e o cinema surgiu à distância, do
outro lado das filas de carros. A rapariga parou, abriu o casaco e despiu-o rapidamente. Olhou à
volta por um segundo e depois enfiou-o num caixote do lixo.
— Consegues aproximar a imagem?
Jamie ainda estava a olhar para a pequena figura do vídeo, quando Caitlin o fechou e voltou à sua
caixa de correio. Clicou numa segunda ligação. Uma imagem ampliada.
— Essa não é a Jenny — disse Jamie devagar. — É a Natasha.
Caitlin estava de pé, com o telefone ainda encostado ao ouvido.
— Então, ela comprou o casaco na Primark, vestiu-o e deitou-o fora depois de comprar os
telefones. Tens imagens da Primark? — Uma pausa. — Não interessa, isto é suficiente. Quero que a
levem à esquadra. E a Rebecca Crisp também. A Rebecca já tinha descoberto isto. Liga-me quando
as apanhares. Vou precisar que… — Parou quando Aiden apareceu à porta. — Bebeste mais do que
um copo de vinho? — perguntou-lhe. Ele abanou a cabeça. — Tudo bem, eu arranjo boleia. Descobre
lá as raparigas e liga-me depois.
— Que se passa? — perguntou Aiden. — Vim só cá buscar uma Coca-Cola.
Parecia ligeiramente pedrado, o que irritou Jamie, porque tinham uma inspetora da polícia em
casa, mas depois achou que, naquele momento, ela não ia dar grande importância a isso.
— É a Becca e a Tasha — disse Jamie. — Parece que, afinal, a doida não é quem tu pensavas.
Aiden fitou-o.
— Que queres dizer?
O telefone de Caitlin tocou, e os dois homens viraram-se para ouvir a conversa.
— Bennett. — Andava de um lado para o outro, uma figura pequena e tensa, com Biscuit colado
aos calcanhares. Estacou subitamente, e o cão quase lhe esbarrou contra as pernas. — Como assim,
não estão em casa? — Olhou para Jamie enquanto falava com o sargento. — Mas já passa da meia-
noite. Se não estão em casa, onde raio se meteram?
63

— Vocês eram todas minhas amigas — disse Natasha. — Não percebes?


Avançaram mais um pouco e depois pararam, e Becca fumou mais um cigarro.
— Era eu que decidia quem ficava e quem se ia embora. Como quando tu começaste a ficar toda
rechonchuda e quando a Jenny chegou à escola, percebi que tinha de as trocar. Tu não encaixavas no
que eu queria. Na imagem que eu queria transmitir. A Hayley disse que não tinha importância, mas
tinha. Tive de ameaçar que ia contar a toda a gente que ela tinha feito chichi no carro do meu pai
nesse verão para a convencer a parar de choramingar. A Jenny encaixava-se melhor. Não havia
espaço para ti também. — Olhou de soslaio para Becca. — Compreendes, não compreendes?
— Claro — respondeu Becca, contente por a noite lhe encobrir o rosto. Tasha fazia a sua
insanidade parecer perfeitamente banal. Mas acreditava que Becca estava disposta a esquecer tudo
só para voltar a ser sua melhor amiga. Devia achar que Becca era tão doida como ela. — Quero
dizer, ao princípio não percebi, mas agora, sim — prosseguiu, contente por, pelo menos, a sua voz
parecer tranquila. — Mas continuo sem perceber porque fizeste isto tudo. E porque me envolveste?
— Eu sabia que a Jenny e a Hayley não iam dizer nada — respondeu Natasha, após uma longa
pausa. — Sabes, a seguir. Quando acordei e fingi ter ficado sem memória. Elas iam querer encontrar
o filme e obviamente não sabiam que eu tinha deixado um rasto de provas que conduzia até elas.
Tinha realmente ido ter com elas ao bosque. Tínhamos combinado ao almoço, embora não por
mensagem. Tanto quanto elas sabiam, eu só tinha descoberto a história de Jenny com o Garrick na
noite anterior, como vem no depoimento que dei à polícia. Mas claro que eu não estava na boa com
elas em relação àquilo. Quando nos encontrámos naquela noite — e não foi às três da manhã, foi
mais cedo — contei-lhes que as tinha seguido e filmado no parque de estacionamento com o
professor Garrick. Disse-lhes que não decidira ainda o que fazer com aquilo, nem o que poderia
querer em troca.
Tasha afastou-se da árvore a que estivera encostada, agarrou no braço de Becca e recomeçaram a
andar, lenta e tranquilamente, como se fosse uma tarde de verão e não noite cerrada.
— Foi divertido vê-las contorcer-se e implorar para que não fizesse nada. Disse-lhes que ia
pensar no assunto e fomos todas embora. Mais tarde, voltei lá, atravessei o bosque, deixei lá a corda,
os invólucros dos comprimidos e essa treta toda, fiz uns arranhões a mim mesma e saltei para dentro
do rio. Sabia que ia estar frio — já estava a nevar havia algum tempo —, mas pensei que só lá ia
ficar uns minutos. Tinha planeado nadar até ao outro lado e sair a rastejar a tempo de me fingir
inconsciente, pronta para ser encontrada na margem por Jamie McMahon e o cão. Mas não contava
que a água estivesse tão fria. Nem que não ia aguentar. Nem que Jamie e Biscuit chegariam
atrasados. — Estremeceu, por momentos presa nas suas recordações. — Ele lá acabou por me
encontrar e eu fiquei bem. Até foi melhor para a história da amnésia. Depois de eu ter estado morta,
ninguém duvidou.
— Mas porque simulaste a amnésia? Porque não disseste simplesmente que elas te tinham
empurrado para o rio depois da discussão sobre a Jenny e o professor Garrick?
Tasha fitou-a um instante, como se a pergunta fosse estúpida.
— Que piada teria isso? Eu queria era castigá-las por guardarem segredos de mim. Por passarem
meses a mentir-me. Tinham de pensar que eu não me lembrava de nada. Sabia que me iam dar graxa.
Sabia que iam encontrar uma desculpa para irem ao meu quarto tentar encontrar o filme. Devem ter
procurado quando foram buscar o meu iPod e essas coisas para levar para o hospital. Nessa altura
deviam estar desesperadas. Sabiam que ia dar mau aspeto se dissessem que nos tínhamos encontrado
no bosque naquela noite, sobretudo tendo eu morrido acidentalmente. Ia dar ideia que tinham alguma
coisa que ver com aquilo. Era mais fácil para elas ficarem caladas e esperarem, na esperança de que
eu nunca me recordasse. O que, claro, as faria parecer ainda mais culpadas, quando viesse à luz tudo
o que eu tinha tramado para as incriminar.
— Somos todos assim tão previsíveis? — perguntou Becca.
O caminho alargava-se à medida que se aproximavam do rio. Não havia dúvida de que tinham
sido peças num tabuleiro de xadrez, mas não havia adversário. Só Tasha a movimentá-las como bem
entendia.
— Somos todas amigas há muito tempo — disse Tasha. — E a Jenny amava o professor Garrick,
por muito nojento que isso seja. Queria protegê-lo. Mas tu estás a revelar-te mais interessante. Mais
como eu. Lá no fundo.
— Talvez. Mas brincaste comigo. Sabias que eu iria ao hospital.
— Não pensava lá ficar tanto tempo. Mas tinha planeado voltar a ser tua amiga. Achei que não ia
ser difícil. Afinal, tu só te davas com a Hannah. Santo Deus, Bex, uma pessoa pode rebaixar-se, mas
há limites.
Becca ignorou o comentário. Fizera mal suficiente a Hannah enquanto ela era viva. Não ia dizer
mal dela agora que estava morta.
— Precisavas de alguém de confiança que começasse a desconfiar delas — disse. — Precisavas
que eu fosse apresentar provas e suspeitas à polícia enquanto tu ficavas sentadinha, a empurrar-me na
direção certa, e te fazias de vítima. Querias que parecesse ter sido uma ideia minha e que ainda
tinhas medo delas.
— Brilhante, não era? A encenação na clareira foi o primeiro teste. Para ver se engolias. E
engoliste. O anzol, a linha e o chumbo. Daí em diante, percebi que ias ver tudo o que elas fizessem ou
dissessem dessa perspetiva. Da minha perspetiva. E porque não, se tudo encaixava?
Becca tinha de admitir que era brilhante.
— E a Hannah?
— Ah, aí tens de admitir. A culpa foi tanto tua como minha. Se não tivesses querido mudar o foco
e não tivesses deixado que a Hayley o fizesse, a ideia nunca me teria passado pela cabeça.
Improvisei, mas tu preparaste tudo na perfeição. Pensei que era impecável para continuar a fazer
pressão sobre a Hayley e a Jenny e produzir um momento maravilhosamente dramático «para mais
tarde recordar». Não estava planeado aquilo cair em cima da Hannah. Devia apenas dar a ideia de
que elas tinham tentado fazê-lo cair em cima de mim. Quer dizer, para ser sincera, a Hannah é que
estragou tudo. Meteu-se pelo meio. Quem diria que ia morrer assim de repente? Não queria que a
Hayley e a Jenny desaparecessem para sempre. Só durante algum tempo. Só para aprenderem a lição.
Para não se esquecerem de que fui eu que as criei e que sem mim não são nada. Mas continuamos a
ser grandes amigas. Não podem esquecer-se disso.
Uma coruja piou, e Becca quase deu um salto. Tasha falava com um ar indiferente. Num tom frio e
distante. Como se Hayley e Jenny alguma vez voltassem a ser amigas dela. Estaria a cabeça dela
assim tão marada? Sociopata, não psicopata. Talvez as duas coisas.
— É bom falar disto tudo — disse Tasha. Estavam quase a chegar ao rio. — Foi difícil guardar
tudo cá dentro. — A voz dela acalmou-se. — Talvez agora que partilhei tudo me livre dos sonhos.
— E claro — disse Becca, querendo pôr tudo a limpo —, quando a Hannah morreu, foi a altura
perfeita para recuperares a memória.
— Quando vi a Hannah cair e a Bennett entrar, foi sublime. Tudo se virou imediatamente contra
elas. Ninguém ia pôr aquela prova em questão. Muito menos com o meu depoimento a apoiá-la e com
o caderno onde eu escrevia. Porque é que as pessoas acreditam sempre em diários? São só palavras.
Tinham chegado ao rio, e o coração de Becca batia com força quando deram a curva para
caminhar ao longo da margem irregular. Teria Tasha virado à direita com um intuito, de modo que
Becca ficasse mais perto da água? Para ser mais fácil empurrá-la?
— Porque não disseste que te empurraram? No depoimento.
— Pensei nisso, mas não foi preciso. Foi muito mais convincente dizer que não me lembrava de
como tinha caído, não achas? Dizer isso teria sido exagerado. É como no diário, não fui perfeita, mas
fui credível. — Fez um grande sorriso com um ar feliz. — Credível é o que importa. Percebes?
Ela está a gostar disto, pensou Becca. Tasha estava a adorar exibir como fora inteligente. Como
era mais esperta do que toda a gente. Como era meticulosa.
— Mas porquê, Tasha? Porque fizeste aquilo tudo? Porque estavas a castigá-las? Com certeza
que não era para guardar segredo sobre o professor Garrick.
Agora que tinha a confissão completa, precisava de perceber porquê. E, sociopata ou não, devia
haver outra explicação.
Tasha parou de caminhar. De perto, Becca viu qualquer coisa no rosto dela semelhante a dor. Dor
e talvez raiva. Muita raiva. Durante uma fração de segundo, Tasha pareceu verdadeiramente feia. O
luar banhava-lhe o rosto com uma luz pálida, acentuando as covas nas faces e fazendo-lhe brilhar os
olhos no meio de círculos negros e profundos. A sua boca formava uma fenda estreita enquanto ela
fervilhava de recordações. Até o cabelo, agora de um louro dourado, parecia manchado de alcatrão.
Fazia lembrar a Becca uma rapariga morta saída de um filme de terror. E, emocionalmente, talvez ela
fosse isso mesmo. Becca estava finalmente a ver a Tasha real. Como era por dentro. A Tasha marada.
— Elas já não querem ser minhas amigas — disse Tasha por fim, a fixar um ponto para lá de
Becca. — Eu sabia. Começaram a andar as duas juntas, só as duas. Sem me convidarem. A dar
desculpas para me excluírem. Não queria acreditar em tanta arrogância. — Como que cuspiu a
última palavra. — Uma noite, a Jenny apanhou uma pedra e disse que eu era demasiado dominadora.
Demasiado opiniosa. — Abanou um pouco a cabeça. — Como se atreve? Eu sou as Barbies. Claro
que as comandava. Fiz delas as miúdas mais populares da escola. Formei-as. Como puderam elas
dar-me com os pés? Sempre fui a rapariga mais popular, Becca, tu sabes isso. Desde a escola
primária. Agora, quase no fim do décimo primeiro ano, queriam tirar-me isso? Que iria toda a gente
pensar de mim se elas me deixassem? Ia ser uma falhada. E sabes que isso é coisa que não sou, Bex.
Tentei compor as coisas durante uns tempos, mas então ouvi-as falar de mim. A dizer que eu era fria.
Tarada. Dominadora. Achavam que eu era uma cabra para elas. Diziam que não regulava bem da
cabeça.
Não me digas, pensou Becca. Pensou se, ao longo dos anos, teria havido outros incidentes como
a história do vestido verde. Quantas vezes teria Natasha virado Jenny e Hayley uma contra a outra até
elas perceberem e decidirem que estavam fartas?
— Por isso, quando descobri aquilo do professor Garrick, percebi o que tinha de fazer. Tinha de
lhes mostrar. De lhes dar uma lição. Elas tinham de ver do que eu era capaz. Faltavam menos de dois
anos para acabar a escola e não ia deixar que me envergonhassem. Nem que me ameaçassem. Elas
não. — Tasha olhou para Becca. — Eu é que decido quem vai e quem fica, não são elas.
— Então isto não teve nada que ver com o professor Garrick?
— Claro que não. — Tasha soltou uma gargalhada áspera e desagradável. — Achas que me
interessa quem é que a Jenny anda a foder? Se ela me tivesse contado, se calhar até a tinha ajudado, o
que teria sido muito mais vantajoso para ela. Mas não quiseram partilhar comigo aquele segredinho.
Não, preferiram guardá-lo para elas. Como se isso fosse possível. Como se alguma vez me
conseguissem esconder o que quer que fosse. Pensaram que eu ia fazer qualquer coisa horrível ao
Garrick. Foi o que a Hayley disse. E não queria que isso acontecesse. Dá-me cá uma vontade de rir.
Como se soubessem o que é melhor para elas. Para isso tinham-me a mim. Acharam que eu ia pôr o
filme no YouTube e fazer deles motivo de chacota. E podia tê-lo feito. Mas teria sido demasiado
óbvio, não te parece? Isso era o que qualquer pessoa faria. Teria sido apenas uma vingança. Mas o
que eu fiz, isso, era para lhes dar uma lição. O que eu fiz tinha uma finalidade. Só que as coisas
descontrolaram-se um bocadinho.
És doida, teve Becca vontade de dizer. És completamente passada dos carretos. Mas em vez
disso, encolheu os ombros.
— Elas quase que estavam a pedi-las.
— Exatamente! — exclamou Tasha. — Não são elas que me dão com os pés. — Voltou-se e fitou
a água escura. — Nem se atrevem a pensar dessa maneira. Deviam sentir-se gratas. Elas pertenciam-
me.
Embora o tempo estivesse mais quente, naquele momento, a meio da noite e à beira-rio, a brisa
era fria; fez esvoaçar o cabelo de Becca, e ela estremeceu. Já estava pronta para ir para casa. Estava
quase a terminar o que a levara ali.
— Vais atirar isso para a água? — perguntou, fazendo um sinal com a cabeça para o portátil.
Tasha olhou para ele um segundo e, em seguida, lançou-o como um disco para o meio do rio. Viu-
se um lampejo prateado, seguido do som do computador a cair na água. Ficaram as duas a olhar.
— Pronto — disse Becca. — Já está.
Recuara um passo para se afastar da margem. O coração batia-lhe furiosamente e teve de fazer
um esforço para obrigar os pés a permanecerem colados ao solo. Aquela era Natasha. Não havia
maneira de saber o que faria a seguir.
— Não tenhas medo — disse Tasha, ainda a olhar para a água. — Não vou empurrar-te. — Olhou
por cima do ombro. — Confesso que tinha pensado nisso. Nem sequer teria levantado suspeitas. Tu a
suicidares-te no sítio onde eu quase morrera. Isso é que seria emocionante, não? Como se quisesses
ser eu.
— Toda a gente quer estar no teu lugar, Tasha. — Por um momento, Becca achou que tinha
exagerado. Nunca fazia elogios diretos daquele género. Mas Tasha continuou a falar.
— Aquela história toda no Facebook e eu ter andado com o Aiden seriam razão suficiente para tu
te passares para o outro lado. — Soltou um risinho. — Literalmente.
— E o que te fez mudar de ideias? — perguntou Becca.
— Não sei. O afeto que sinto por ti, talvez. Foste tão esperta em desvendar isto tudo. Afogar-te
seria um desperdício de inteligência. Acho que nos podemos divertir. Pelo menos, durante uns
tempos.
Becca perguntou a si mesma quanto tempo a deixaria Tasha jogar antes de mudar de ideias. Uma
semana? Um mês? Becca estaria sempre com medo, à espera que o machado lhe caísse em cima.
— Melhores amigas para sempre — disse com suavidade.
Natasha voltou-se e abraçou Becca inesperadamente com firmeza.
— Melhores amigas para sempre — repetiu, com a respiração quente no ouvido de Becca.
De súbito, o velho gravador do pai emitiu um sinal sonoro estridente no bolso de Becca, e as
raparigas separaram-se com um salto, surpreendidas. Becca sentiu o coração aos pulos quando os
olhos de Tasha se dilataram e escureceram de raiva.
— Que foi? — perguntou Becca, tentando fazer um ar descontraído. Normal. Tranquilo. Deu um
grande passo para trás e quase caiu sobre um monte de terra. Merda, merda, merda, pensou. A
cassete tinha chegado ao fim. Merda, merda, merda.
— Que foi isso? — perguntou Tasha, com os lábios subitamente apertados. — Estiveste a gravar
tudo? Gravaste o que eu disse?
A voz dela transformou-se num rosnar. Quando curvou os ombros e recuou para atacar, Becca
viu-a como um animal, um predador noturno, um lobo ou uma raposa, toda ela presas e fome.
— Não… — começou Becca a dizer, sem convicção, consciente de que devia estar com um ar
patético e assustado. — Não, deve ter sido o meu telemóvel que ficou sem bateria.
Não tinha sido o telefone, e Tasha sabia.
— Dá cá isso! — guinchou, atirando-se para a frente e agarrando os bolsos de Becca.
— Para, Tasha!
Becca tentou empurrá-la para trás, mas Tasha era forte e musculada e arranhava e silvava:
— Sua cabra! — cuspiu-lhe no rosto enquanto lutavam. — Sua cabra de merda! Ia fazer de ti uma
pessoa especial! Dá-me cá essa cassete!
— Vai-te foder, Tasha! — disse Becca, encontrando finalmente a sua raiva. — Vai-te foder!
Agarrou os braços da outra rapariga e empurrou-a. Tasha manteve-se firme. O mundo girou
enquanto as duas se desequilibravam.
Oh, merda, pensou Becca quando os seus olhos encontraram os de Tasha e viu refletido neles o
seu choque e o seu medo. Oh merda, oh merda. Vamos cair à água.
64

As sirenes uivaram na noite. Estavam a aproximar-se, mas não tanto quanto Jamie desejava. As
pernas ardiam-lhe enquanto corria, e a respiração quase lhe fazia rebentar o peito. Conseguia ouvir
Caitlin atrás de si, a praguejar enquanto avançava no escuro aos tropeções, com uma lanterna cuja luz
aos saltos iluminava tão pouco o chão que quase não se justificava usá-la.
A clareira onde Natasha dissera que as raparigas a tinham amarrado. Lembrara-se daquilo apenas
dez minutes antes, enquanto Caitlin mandava agentes à escola e ao cemitério onde Hannah fora
enterrada. Julie Crisp, a mãe de Becca, ligara-lhes quase histérica. Ao passar revista à casa à
procura de pistas do paradeiro da filha, tinha encontrado um Airbook, que não era o do marido, com
a marca de um autocolante que fora arrancado. Estava em cima da secretária dele, com um bilhete de
Becca:

Se eu não voltar, adoro-te e entrega isto à polícia. Tem dentro um filme que eles têm de ver.
Não sei a palavra-passe.

De repente, tudo se tornou claro para Jamie: tinham-se encontrado no bosque. Só podia ser. A
casa dele ficava do outro lado do rio, mas havia uma ponte estreita, talvez a cinco ou dez minutos do
local onde encontrara Natasha. Podiam atravessar aí, disse ele a Bennett. Talvez lá chegassem antes
dos homens dela nos carros.
Jamie ainda não terminara a frase e já ela estava à porta. E agora estavam ali, já sem vestígios do
aturdimento provocado pelo vinho, a correr e a saltar os obstáculos o mais depressa que podiam.
Biscuit passara a correr à frente dos dois, e Jamie não desperdiçara fôlego a chamá-lo.
— Onde é a ponte? — perguntou Caitlin, ofegante, quando o apanhou.
— Por ali. À tua direita.
Viraram os dois, e Jamie agarrou-lhe no braço.
— Para! Espera!
— O que foi? — exclamou ela.
— Escuta!
Biscuit estava a ladrar. Um latido alto e agudo. Um latido que pedia atenção.
Mais um latido frenético, um grito e depois o som forte de qualquer coisa a cair na água.
— Por ali!
Sem esperar para ver se Caitlin o acompanhava, Jamie voltou-se e correu no escuro na direção
do cão.
65

Estavam aos gritos uma com a outra quando caíram na água fria, e o sabor a lama encheu o nariz e
os pulmões de Becca. Não conseguia respirar, mas continuaram a lutar enquanto as correntes as
puxavam para baixo, para aquele mundo frio, escuro e estranho. O céu noturno parecia zombar dela,
e a luz da lua dançou sobre a superfície quando Becca se libertou finalmente, com os braços
magoados e doridos. Fez um esforço para voltar à superfície, desesperada por ar, mas umas mãos
voltaram a agarrá-la. Tasha não ia desistir. Tasha, apercebeu-se Becca, subitamente aterrada com a
ideia de poder morrer ali, nunca desistiria. Deu uma reviravolta na água para fazer face à sua antiga
melhor amiga.
Natasha parecia um espectro, com o cabelo a agitar-se à volta da cabeça dentro de água, os olhos
ainda cheios de raiva enquanto as suas mãos pálidas, quase fantasmagóricas, se agarravam ao casaco
de Becca. Estava a gritar qualquer coisa; bolhas de ar escapavam-se-lhe dos lábios ao articular as
palavras, mas eram abafadas pela água que estava a roubar a vida de ambas.
Becca desferiu um pontapé, mas os pulmões ardiam-lhe com a falta de ar, e o golpe não teve
impacte. Ervas agarravam-se-lhe aos pés enquanto a água as arrastava; afastou as pernas pesadas,
enquanto se contorcia desesperadamente para tirar o casaco. Já não queria saber do gravador. De
qualquer maneira, já devia estar destruído. Tasha agarrou o tecido, torceu-o e puxou-o, obrigando
Becca a contorcer-se ainda mais para se libertar. Porque estava Tasha ainda a lutar com ela? Porque
não saíam simplesmente da água? Seria completamente doida? Com um braço livre, Becca virou-se e
soltou o outro braço, batendo os pés em direção à superfície com a última réstia de energia, agora
que se livrara do peso do casaco. Lançou um olhar para trás, para Tasha, certa de que ela estaria a
tentar apanhá-la, decidida a afogá-la e depois a fugir. Tasha não era humana. Era um monstro.
Tasha estava realmente a tentar segui-la, com os braços estendidos, sem fôlego. Também ela
batia as pernas para subir, com mais força do que Becca, e por instantes estava a avançar depressa;
mas, de súbito, parou, detida por qualquer coisa que a puxava ligeiramente para baixo. Becca viu a
expressão de surpresa quando a outra largou o casaco e olhou para baixo. E então Becca também viu.
Gavinhas, das profundezas, a dançar na corrente. Ervas escuras, semelhantes a polvos, a
enredarem-se nas pernas de Tasha. Quanto mais ela se debatia, desesperada por se libertar, mais elas
se apertavam.
Ajuda-me.
Foi a última imagem que Becca teve de Tasha. Aquele pânico súbito. O choque. O medo. As
palavras articuladas por lábios que pareciam negros contra o branco fantasmagórico do seu rosto.
Ajuda-me.
E depois Becca rompeu a superfície da água e encheu os pulmões com uma lufada de ar doce,
belo e terrível. Tossiu e cuspiu e fez umas inspirações abruptas e ávidas. Ah, como sabia bem!
Soluçou, sem energia para chorar. Tentou nadar, mas os seus membros não funcionavam, cansados e
entorpecidos pelo frio. As sapatilhas, pesadas, puxavam-lhe os pés para baixo, como se a quisessem
afundar. A margem parecia muito distante.
Não posso ajudar-te, Tash, pensou, quando a cabeça mergulhou novamente abaixo da superfície,
naquele silêncio escuro e mortal. Acho que nem a mim própria consigo ajudar.
E, de repente, sentiu pelo e garras a arranharem-na e uma boca quente no pescoço. Uns dentes
morderam-lhe a camisola de capuz e arrastaram-na. Ouviu uns arquejos e umas rosnadelas, enquanto
um cão dava às patas e a arrastava para a margem; usou as últimas forças que lhe restavam para bater
as pernas.
66

Estou a vê-los ali, à superfície. Tão distantes. Um mundo diferente desta escuridão silenciosa
sem fim. Olho e enfureço-me. Patas a bater. As pernas de Becca a baterem, cansadas, em direção à
margem. A injustiça daquilo tudo dá-me vontade de gritar. Estrelas toldam o limite da minha visão.
Acabo por libertar o ar que me resta nos pulmões e deixo a água fria e suja entrar.
O rio suspira, satisfeito. Tem estado à minha espera. O rio e a escuridão dos meus sonhos. Talvez
nunca tenha conseguido libertar-me de tudo isso. Não acredito que me encontro aqui outra vez. Num
momento, estávamos na margem. No momento seguinte, estou a morrer na água. A morrer. Como a
Hannah. Um instante e acaba-se tudo. Não posso crer. Não pode ser. Alguém me virá salvar. Alguém
há de vir.
E então, oiço-a. A voz dos meus sonhos. Aquela de que nunca me lembro. Aquela que me
apavora.
Achavas que podias deixar-me aqui, diz a voz.
É a minha voz. Claro que é.
A parte de nós que morreu. Tive de esperar sozinha no frio e na escuridão. Este tempo todo.
As minhas mãos debatem-se novamente para tocar na superfície que já não consigo ver. Larga-
me. Os meus pensamentos parecem implorar. Odeio isso. Não estava destinada a morrer aqui. Não
estávamos destinadas a morrer aqui. E eu não estou destinada a morrer aqui.
Ela está a prender-me os tornozelos, esta parte louca e morta de mim. Dou-lhe pontapés,
enfureço-me, odeio-a. Consigo parar isto. Consigo pôr fim a isto. Ela tem de me libertar. Tenho de
viver, para encerrar este capítulo. Mesmo que tenha de ir para a prisão, conseguirei sobreviver. Sou
jovem, não será por muito tempo. Eu nunca perco, repito várias vezes a mim mesma. Eu nunca
perco. Penso no tabuleiro de xadrez que tenho em casa. As peças pacientemente à minha espera.
Larga-me, imploro novamente, fechando os olhos com força.
Quando volto a abri-los, o outro eu, o meu eu morto, cabelo desgrenhado e olhos rejubilantes,
continua a agarrar firmemente o meu pé com a sua mão pálida. Mesmo na frialdade do rio, os seus
dedos ossudos são gélidos. Vidro frio. Nunca me soltará. Não lhe vejo a parte inferior do corpo. Está
perdida no imenso vazio de areias movediças lá do fundo. Sorri. Oiço-a em pensamento, tal como
nos meus sonhos. Um murmúrio. Cruel.
Eu nunca perco, diz ela. Não penses que me largas e que continuas a tua vida. Vais ficar
comigo. O jogo acaba aqui, Tasha.
Apetece-me chorar, gemer e gritar contra tudo isto. Eu é que faço os planos, eu é que ganho. A
minha visão começa a toldar-se. Não consigo ver com nitidez. Mas continuo a vê-la. O eu que não
sou eu, que não pode ser eu.
Quero brincar contigo.
Solto um lamento, a minha última palavra, o meu último som, um som de horror, sugado pela
água.
Sê a minha melhor amiga, murmura ela com uma ânsia fria enquanto me arrasta para a terrível
escuridão. Sê a minha melhor amiga para sempre.
AGRADECIMENTOS

Um grande agradecimento a toda a equipa da Gollancz, em particular a Sophie Calder e a Jen


McMenemy, não apenas pelo trabalho que fizeram neste livro, mas por todo o esforço na promoção
dos autores da Gollancz que desenvolvem durante o ano inteiro, sem nunca perderem os sorrisos. E,
como é evidente, um grande agradecimento à minha editora, Gillian Readfearn, e à minha agente,
Veronique Baxter. E um último agradecimento especial ao irmão de Gillian, que ajudou com os
pormenores técnicos do equipamento de luz de teatro!

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