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Belém – PA
2017
Sid Nazareno da Costa Quaresma
Belém
2017
Dados internacionais da catalogação na publicação (CIP),
Biblioteca do Centro de Ciências Sociais e Educação da UEPA, Belém-Pa.
_____________________________________________________________________
Banca Examinadora:
____________________________________ - Orientadora
Profª Maria do Perpétuo Socorro Gomes de Souza Avelino de França
Drª em Educação
Universidade do Estado do Pará
____________________________________ - Examinadora
Profª Denise de Souza Simões Rodrigues
Drª em Sociologia
Universidade do Estado do Pará
____________________________________ - Examinadora
Profª Josebel Akel Fares
Drª em Comunicação e Semiótica
Universidade do Estado do Pará
Sou grato, em primeiro lugar, aos meus pais, especialmente a minha mãe, Dina Costa, pelo
apoio essencial sem o qual não teria chegado tão longe. Estendo a gratidão aos meus irmãos,
Hugo, Naisa e Kadu, além de meu padrasto, Ubiraci, pois todos, de algum modo, com seu
tempo, sua paciência ou sua boa vontade, tornaram mais vigorosos os traços da minha escrita.
Sou grato a minha esposa Carline Ramos Quaresma pelos vários momentos de escuta, sempre
em primeira mão, pela atenção crítica, pelo carinho e apoio. Graças a ela, meus garranchos e
minha prosa braba ganharam em delicadeza e poesia.
Agradeço as minhas filhas, Karina e Adely, pelo simples e belo existir, por estarem ao meu
lado e até, pela atenção que os filhos sempre requererem, me tirarem da prospecção científica
e me devolverem ao mundo imediato, coisa que, na hora, não gostei, mas cujo valor
reconheço ser inestimável.
Sou grato aos meus amigos do meio acadêmico, os quais hoje, aliás, estão próximos de mim
para muito além desse pequeno mundo. Renata Costa, Elayne Santos, Francídio Abatte: vocês
moram em meu coração (e também em meu estômago), com vocês compartilhei muito do que
penso, escrevo e acredito, seja entre as paredes da universidade ou em meio à gostosa
vertigem das noites e dias ébrios.
Sou grato aos amigos do trabalho no meio insular, entre os quais fui engendrando a ideia que
um dia se transformaria em pesquisa, especialmente à Eli Pinheiro, Batista Moraes e Silvana
Farias.
Sou especialmente grato à Professora Socorro França, minha orientadora, pela paciência com
que tolerou e entendeu meu ritmo de pesquisa, além da tranquilidade com que partilhava sua
ampla experiência de pesquisadora.
Agradeço às professoras Denise Rodrigues, Josebel Fares e Maricilde Coelho, por aceitarem
compor minha banca de avaliação e pelas contribuições ao meu trabalho.
Agradeço aos que concederam depoimentos à pesquisa, sobretudo ao senhor Raimundo Oito,
homem de memória invejável, cujo relato de vida foi essencial aos caminhos pelos quais
conduzimos a investigação.
Sou grato aos moradores da ilha de Cotijuba, particularmente aos estudantes e aos amigos
Adriana Lima e Delso Conceição, além dos membros do Movimento de Mulheres, boas
gentes de quem, faz tempo, sou parceiro e a quem devo uma parte das descobertas da
pesquisa.
Por fim, agradeço aos colegas e pesquisadores do Grupo de Pesquisa História da Educação na
Amazônia, pelo espaço aberto e pela confiança. E à Professora Ivanilde Apoluceno, docente
exemplar, mestra maior da minha trajetória acadêmica, pelos muitos anos de aprendizagem,
desde à graduação iniciada em 2002.
Cotijuba,
sentinela da meiga e gentil Belém.
És a fonte, amiga e bela
de um sonho de fazer bem.
QUARESMA, Sid Nazareno da Costa. Memorial of the redemption island: the Primary
School Nogueira de Faria and the Cotijuba island (1932-1976). 2017. Thesis (MA in
Education) – University of Pará, Belém, 2017.
This research is linked to the Postgraduate Program in Education (Master’s degree), of the
Universidade do Estado do Pará, composing the line of research Cultural Knowledge and
Education in the Amazon, more specifically the Educational, Intellectual Institutions and
Handouts from the Research Group on History of Education in the Amazon (GHEDA). It is a
historical study related to an educational institution – the Primary School Nogueira de Faria,
created in the early 1930s by the government headed by Magalhaes Barata in Pará –, Focusing
mainly on the relationship between this institution and the place where it was built, namely,
the island of Cotijuba, located in the insular region of the municipality of Belém (PA). The
fundamental problem of the study is the following: How did the Primary School Nogueira de
Faria, created during the first Interpellation of Magalhães Barata in the government of Pará,
with the aim of educating destitute and abandoned children in the island of Cotijuba, bring the
redemptive and diabolical memories to the island between the 1930s and the 1970s? The
overall objective is: to analyze how the Primary School Nogueira de Faria, created during the
first Magalhães Barata Interventory on the government of Pará (1930-1935), with the aim of
educating destitute and abandoned children to the island between the 1930s and the 1970s.
Methodologically, it is characterized by historical analysis, supported by documentary sources
and memorials, with a qualitative approach. Among the documentary sources, the main ones
are: government messages to the Legislative Assembly (1936, 1937, 1948, 1954, 1955, 1956
and 1957), as well as the printed newspapers "O Imparcial" and "Folha do Norte" (1932 and
1933), “a Província do Pará” (1947, 1948 and 1975) and “O Liberal” (1976). The locus of the
research in oral history was the island of Cotijuba itself, where we collected testimonies of
three subjects, Raimundo Santos, Dona Eliete and sir Ceará. Besides these, we take oral
testimonies that are included in the documentary film "Cotijuba: a ilha do diabo?" (Cotijuba:
devil's island?). We interpret the sources by considering, among others, the following
theoretical references: New History and New Cultural History (Burke), Microhistory (Levi
and Ginzburg), the notion of Memory (Le Goff), particularly memory disputes Pollack),
concepts of oral history (Thompson) educational institution (Sanfelice), in addition to the idea
of redemption (Faria). Among the results of the research, it is more important: the
characterization of the education offered by the Primary School Nogueira de Faria, offered in
the elementary and technical modalities, functioning as boarding school, as well as the
description and analysis of the conformation of positive and negative postures related to the
island of Cotijuba due to the implantation of the reformatory and, later, of a penal colony.
Another contribution of the research was to help in the perpetuation of the memories of the
island of redemption and the island of the devil, threatened to perish in oblivion by the change
of the form of occupation of the island of Cotijuba after uninstallation of the reformatory and
penal institutions.
1 Introdução ........................................................................................................................... 12
1 Introdução
expostas às histórias que o repercutiram. Passadas várias décadas, essa memória ainda encontra
ocasião para se expandir, muito embora, naturalmente, sem a mesma força de outrora.
A origem mais remota do presente trabalho está, provavelmente, na inquietação
provocada pelo contato com os ecos desse passado curioso. Mesmo antes da experiência de
trabalho ou de residência na ilha, as histórias da “ilha do diabo” já me excitavam a curiosidade.
Porém, foi depois de me fixar na ilha de Cotijuba, na condição de educador vinculado à
fundação municipal Escola Bosque, e, mais tarde, como morador do lugar, que o extenso
memorial foi ganhando sentido e indicando veredas a uma pesquisa de mais fôlego.
Antes da prolongada experiência de educador, morador e pesquisador, eu havia
visitado Cotijuba na condição mais comum, isto é, como simples turista local sequioso de
diversão barata e fácil. O afluxo de hordas de turistas, aliás, vem alimentando a imagem de um
local exuberante e exótico, cujas delícias podem ser facilmente acessadas. E é deveras excitante
deixar a crueza urbana da capital e, após cinquenta minutos de travessia de barco, descortinar
um recanto paradisíaco, de natureza intensa e com uma magnífica faixa de praias de água doce
voltadas à maior de nossas baías, a de Marajó.
Figura 1 - A enseada da praia do Vai-Quem-Quer, banhada pela Baía de Marajó, um dos locais
mais apreciados pelos turistas.
No entanto, mesmo ao passante desavisado e não raro ébrio, a ilha permite entrever
notáveis vestígios de seu grave passado, particularmente urticantes aos entusiastas da História.
Ao entrar ali, por exemplo, pelo único trapiche público, o visitante, de chofre, depara-se com
as monumentais ruínas de um prédio em estilo pretérito, cujas paredes principais, altas e
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robustas, mantem-se rígidas, e cujo piso e parte do revestimento ainda subsistem, embora toda
essa estrutura seja continuamente batida pelo rigor do clima, pois completamente descoberta.
O frontispício é de alto pé direito, tem portaria e andar superior. Estendem-se, para direita e
para esquerda, simétricas, as paredes da face do prédio, cada uma delas pontilhada por quinze
espaços vazados, outrora preenchidos por janelões regulares e idênticos. Há dois grandes
pavilhões, bastante amplos, no prédio principal, vestígios da antiga cozinha, além de outros
pavilhões menores por trás, com compartimentos anexos, restos de um poço, estrutura de caixa
d’água e chaminé. O desenho da construção é austero, regular e grandioso ao mesmo tempo. A
única informação ali disponível aparece numa placa da prefeitura: “Ruínas do Educandário
Nogueira de Faria”.
Figura 2 - A chegada pelo trapiche principal da ilha depara o viajante com as ruínas do Educandário Nogueira
de Faria.
e curtição, data de pouco mais de trinta anos, tendo-se intensificado a partir da década de 1990.
Vi que essa “descoberta” da ilha ocorrera após a desativação das colônias reformatória e penal.
Essas informações as recolhi dispersas aqui e ali, em jornais, em revistas, na internet.
A partir do ano de 2010, quando eu já me tornara o Coordenador Pedagógico do principal
dos anexos da Escola Bosque em Cotijuba (a Unidade Pedagógica da Faveira), a pesquisa
ganhou contornos mais nítidos. Passei então a organizar um projeto experimental de difusão e
debate de cinema, principalmente de filmes produzidos no Brasil, no contexto escolar e
comunitário. Esse projeto passou a vingar a partir da parceria entre o Movimento de Mulheres
das Ilhas (MMIB) e a Escola Bosque, e se valia da estrutura fornecida por uma política nacional
de valorização do cinema brasileiro, chamada Cine Mais Cultura (um programa de governo
promovido pelo Ministério da Cultura). A missão maior do projeto era possibilitar às
comunidades mais afastadas dos centros urbanos opções de acesso à arte cinematográfica,
através da disponibilização de estruturas de difusão e de acervos de filmes.
Seu relato levou a um mergulho mais profundo na história do lugar e nos fez vislumbrar, um
tanto perplexos, a fisionomia mais antiga da ilha e da instituição que nela vicejou por tanto
tempo. No depoimento, esse senhor de tão fecunda memória, nos entreabriu um significado
bem distinto daquele inscrito nas histórias infernais relacionadas ao lugar – até então nossa
temática dominante –, sob o qual a ilha adquiria uma acepção profunda e positiva. A ilha do
diabo, nas palavras de Seu Raimundo Oito, transformava-se na ilha da redenção da juventude
desvalida, lugar de oportunidades, de educação, de moralidade e de ordem.
Raimundo Santos desenvolveu, por aquilo a que denominava “Colégio”, uma forte
empatia. Com efeito, sua trajetória de vida intercambia-se fortemente com a história da ilha e
do Educandário: aportara em Cotijuba no ano de 1943 – quando a instituição possuía pouco
mais de nove anos de existência – aos 14 anos, na condição de interno. A partir daí viveria todas
as fases da instituição, inclusive a aproximação do Educandário e da Colônia Penal (fim da
década de 1960) e a desativação do prédio (em 1979), permanecendo na ilha mesmo após esses
fatos. A fase de internato durou quatro anos (até que completasse 18), tendo Raimundo logo
evoluído para funcionário da instituição, no desempenho, ao longo de várias décadas, de
múltiplas funções, dentre elas almoxarife-provisionador, motorista e subdiretor. Em seus
primeiros tempos no Educandário foi marcante o acolhimento que recebeu de uma funcionária
da instituição, de nome Marta da Conceição, conhecida como Mãe Preta – ropeira do
Educandário, considerada grande protetora dos internos –, de quem provavelmente Seu
Raimundo proveu-se parcialmente dos cuidados maternos dos quais fora despojado muito cedo.
Nascera no município de Cametá, no ano de 1939. Tendo perdido os pais muito cedo, vivia
agregado a uma família em Belém. Submetido a maus tratos, procurou, por conta própria, a
polícia. Daí, foi remetido ao juizado de menores e, pouco depois, encaminhado ao reformatório
insular. Sujeito carismático, devotado ao trabalho, religioso, conselheiro dos internos (e mais
tarde dos detentos), recebeu a franca estima dos diretores e intendentes, com os quais manteve
proximidade e confiança, dentre eles o Desembargador Nogueira de Faria (na fase Educandário)
e o radialista e Tenente da Polícia Militar Teodorico Rodrigues (nos tempos da colônia penal).
O relato de Seu Raimundo Oito nos fez perceber, um pouco frustrados, a limitação do
recorte temático do filme, ao mesmo tempo em que indicou novo caminho a percorrer. Nesse
sentido, a presente pesquisa lhe é tributária em grande medida.
A mudança de campo expressivo – do cinema para a pesquisa científica –, queremos
enxergá-la, tanto quanto possível, como continuidade, como projeto integrado a incidir sobre o
mesmo objeto e suas várias faces.
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Devo a tal fase a conformação inicial de decisões que eu tomaria mais tarde, já no âmbito
acadêmico, após meu ingresso no Programa de Pós-Graduação em Educação-Mestrado da
UEPA, em 2014, na Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia, e da
participação no grupo de pesquisa História da Educação na Amazônia (GHEDA). Algumas
dessas decisões, antes do ingresso na academia, talvez não estivessem tão claras. Porém,
difusamente eu sabia não querer uma simples história daquela instituição, de modo a tão
somente evidenciar, por exemplo, suas fases através do tempo, ou minuciar a ação dos seus
diretores, ou, ainda, descrever os estatutos, atas, ofícios ou outros documentos institucionais.
Minha pesquisa deveria, diferentemente, pagar o devido tributo ao modo como fui
mergulhando naquele universo.
Daí que a opção pela História Oral, como aparato metodológico da incursão pelo passado
da ilha e do Educandário, deve ser vista como escolha parida no âmbito acadêmico, porém
fecundada anteriormente, no campo, na vida, no cotidiano.
A verdade é que, por conta de tão singular postura – de rejeição do tema proposto –
Raimundo Santos quase não aparece no filme “Cotijuba: a ilha do diabo?”. Sua figura de
octogenário aparece apenas em dois momentos. No último deles, perto do final do filme, Seu
Raimundo canta um trecho do hino da ilha de Cotijuba – curiosa fonte apresentada a nós, de
maneira inesperada, na ocasião das filmagens. Antes disso, no emaranhado dos depoimentos,
ele faz uma magra conceção consessão ao tema do filme, com a seguinte afirmação: “Cotijuba,
lá fora – apenas lá fora! – nunca foi um lugar bom!”.
Tal afirmação aparece corroborada nas palavras de outro depoente do filme. Seu Nildo,
ex-policial militar, empregado durante alguns anos na Colônia Penal, afirmou que “Desde muito
tempo, quando um moleque fazia alguma coisa errada, se dizia ‘vou já te mandar pra Cotijuba!’,
aí o moleque já sossegava!” 1.
Sendo Cotijuba considerada, em meios locais, lugar de má fama, é inquietante a postura
de Seu Raimundo. Ele não somente não endossa o famigerado legendário maldito sobre a ilha
de Cotijuba; ele deixou-se incorporar pelo universo instituído na ilha; ali se fez homem,
trabalhou, estabeleceu-se definitivamente. Com suas palavras protegia a instituição onde se
sentiu, por sua vez, acolhido e protegido. O modo como à ela submeteu-se – atentemos –, foi
contrário à tendência geral, que é a de partir, como no caso de qualquer internação compulsória,
fugir talvez. Tal tendência fica evidenciada no comentário de Seu Nildo: a juventude temia a
ilha, isso mesmo antes da implantação da Colônia Penal e do início de uma fase mais violenta.
Seu Raimundo, no entanto, parece ter encontrado em Cotijuba e no Educandário ocasião para
dar vazão a suas demandas pessoais e desenvolver seus atributos. Condição a qual, até então,
levando uma vida sofrida e instável, havia-lhe sido negada.
História pessoal entrelaçada à história do Educandário: a trajetória de Seu Raimundo Oito
foi se tornando, cada vez mais, algo empolgante de se estudar – o homem, a instituição e o lugar
interdependentes, conformando, juntos, a unidade histórica. Pareceu-nos, de início, irresistível
procurar um problema de pesquisa no qual a trajetória desse homem, sobretudo em seus
aspectos formativos, constituísse o ponto crucial. Espécie de biografia na qual as escalas de
observação histórica – individual, local, global –, se arrumassem num esquema argumentativo.
No entanto, novas evidências descobertas no correr da pesquisa fizeram alterar o foco do
interesse, conduzindo a uma dimensão que nos pareceu superior. A esse novo foco, no entanto,
a postura singular do depoente não é estranha. Ao contrário: a vereda definitiva da pesquisa,
agora nítida, decorreu das muitas veredas trilhadas até então, principalmente daquela sugerida
pelo relato de Seu Raimundo Oito.
É óbvio que essa postura de defesa da ilha, dentro da qual o legendário do lugar infernal
não tem lugar, possuía uma explicação razoável. Mergulhos em notícias de jornal, leitura de
trabalhos acadêmicos sobre a colônia correcional e sobretudo o contato com a obra de
Raymundo Nogueira de Faria, (idealizador, padrinho, primeiro diretor da instituição),
possibilitaram uma melhor apreciação do contexto dentro do qual Raimundo dos Santos erigiu
sua visão da ilha de Cotijuba e do Educandário.
Pudemos identificar agentes que se esmeraram em promover o empreendimento de uma
colônia reformatória na ilha de Cotijuba como o grande projeto de salvação da juventude
desvalida e abandonada – segmento social que causava grande incômodo à sociedade e ao
governo da época. O próprio Raymundo Nogueira de Faria, que já tinha larga trajetória como
magistrado, funcionário da alta cúpula do Estado, espírita e intelectual profícuo, conduziu, em
início da década de 1930, uma grande campanha de financiamento do empreendimento
correcional. Grandes pronunciamentos circularam na mídia impressa celebrando tão venturosa
iniciativa, contagiando a sociedade em geral com palavras eivadas de fervor pela causa
humanitária. Sobretudo no livro “A caminho da história” (1945), Nogueira de Faria alude a essa
mística redentora com a qual embelezou o projeto da colônia de Cotijuba, associando seu
esforço de tocar o empreendimento à política de seu chefe maior, na época o plenipotente
coronel Magalhães Barata.
Outro agente a endossar e difundir – outra vez com a ajuda essencial da imprensa local -
, a pretensa vocação redentora da ilha de Cotijuba foi o major Luiz Geolás de Moura Carvalho.
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O fez primeiramente quando ocupou a chefia de segurança pública na máquina estadual, durante
a segunda Interventoria de Magalhães Barata (1943 a 1945). Depois (a partir de 1947), ao
ocupar pela primeira vez o posto máximo do poder estadual, novamente voltou atenções à ilha,
reservando a ela lugar de destaque no sistema penitenciário que idealizou para resolver o
problema carcerário no Estado. Foi Moura Carvalho quem empreendeu a construção da colônia
penal, sob a denominação de Instituto de Reeducação Social, em 1945. O próprio Nogueira de
Faria narra, na obra a pouco citada, o início da nova aventura, e o faz não sem alguma esperança
idealista de ver o novo projeto somar-se ao antigo na transformação da ilha de Cotijuba na ilha
da redenção de jovens e adultos degradados pela imoralidade ou pelo crime.
Foi, portanto, a postura peculiar de Raimundo dos Santos que sugeriu percorrer a vereda
por onde chegamos aos referenciais relativos à ilha da redenção. Talvez seja esse homem
octogenário o único sujeito vivo em cuja memória ainda reverbera a mística criada por Moura
Carvalho, Nogueira de Faria e a classe da qual esses homens poderosos faziam parte, isto é, as
classes mais abastadas da sociedade paraense.
Não é de se estranhar que Raimundo dos Santos, homem do povo, haja endossado
semelhante visão idealizadora da ilha de Cotijuba, criada no seio de classes distantes dele? Não
se considerarmos dois fatores principais: órfão muito cedo, o futuramente conhecido Raimundo
Oito passou uma infância e um início de adolescência bastante sofridos, em casa de gente alheia
a sua família, e encontrou no ingresso no educandário uma oportunidade de vida, ali fixando-
se definitivamente; além disso, ao ser admitido na instituição conheceu e aproximou-se de
Nogueira de Faria, então diretor da entidade, de quem ganhou confiança e acolhimento, e por
quem nutriu a mais franca admiração.
No entanto, todo o esforço despendido por esses personagens idealistas e de sinceros
propósitos humanitários, esforço que buscamos sintetizar num memorial da ilha da redenção,
sequer arranhou outra legenda que há muito tempo vinha sendo alimentada a propósito da ilha
de Cotijuba, de significado bastante distinto, senão oposto. Foi como ilha do diabo, lugar de
sofrimentos, exílio e violência que Cotijuba foi paulatinamente sendo identificada. À excessão
de Raimundo Santos, os demais depoimentos exemplificaram episódios do extenso leque de
histórias malditas criadas a partir das arbitrariedades praticadas na ínsula. A desproporção
espelha o triunfo da legenda da ilha do diabo, amplamente disseminada, continuamente
reproduzida, fixada na memória coletiva, cujos ecos, mais tímidos que outrora, ainda ressoam.
Do ponto de vista do interesse estrito de uma pesquisa em História da Educação, a
dimensão ilha da redenção, associada à implantação do Educandário Nogueira de Faria, é a
mais importante. No entanto, o trabalho seria incompleto se permitíssemos que a dimensão ilha
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do diabo mergulhasse nas trevas do esquecimento, tal como desejam o principal depoente e
outros sujeitos afetados em seus sentimentos pelo legendário maldito.
Não obstante o interesse mais propriamente historiográfico, esmiuçar o memorial da ilha
do diabo nos foi essencial, seja pelo contraste com a memória positiva e idealizada, seja pela
missão comum reservada às instituições implantadas em Cotijuba, isto é, amparar o conflagrado
sistema prisional paraense. A própria permanência da memória da ilha do diabo em nossos dias,
nos pareceu motivo suficiente para assegurar-lhe um lugar no presente relatório.
Ao cabo dessas sinuosas veredas do pesquisar, fixamos o Educandário Nogueira de Faria
como objeto de pesquisa. Particularmente o modo como esse reformatório influenciou e
relacionou-se com a ilha de Cotijuba, aproximação tão marcante a ponto das duas instâncias
confundirem-se e da própria ilha ser referida como reformatório ou como presídio.
São vários os sujeitos com quem a pesquisa dialoga: os dois Raimundos, Santos e
Nogueira de Faria, são, evidentemente os protagonistas, homens cujas obras a pesquisa é
tributária em maior medida. Contudo, Clésio Ramos da Silva, o Mascarado, bandoleiro que
atuou em Belém nas décadas de 1960 e 1970, “rouba” a cena na última seção do estudo, num
caso alarmante envolvendo a ojeriza provocada por Cotijuba mesmo em tenazes bandidos.
Outros sujeitos coadjuvam a trama aqui descrita, a maioria deles oriundos das classes mais
humildes, gente cujo valioso testemunho colaborou na pintura geral do quadro, como os hoje
já falecidos seu Arthur e seu Mambo, além de seu Ceará, Dona Eliete, seu Getúlio e seu Jericó,
quase todos moradores da ilha de Cotijuba há 30, 40 ou 50 anos. Chefes políticos, delegados,
investigadores, funcionários do governo que intervieram na ilha ou na instituição também
emprestam à pesquisa algo de suas trajetórias.
Não lançamos mão de nenhum critério técnico na seleção de pessoas a entrevistar, pois
rareando os depoentes, entrevistamos, ou aproveitamos depoimentos, dos poucos sujeitos aptos
a tratar do assunto, maioria gente residente na ilha de Cotijuba.
Abordamos o tema com o critério histórico, em análises em que partimos principalmente
da memória negativa ou positiva formada a respeito da ilha de Cotijuba após a implantação das
instituições reformatória e penal.
O recorte temporal cronológico – entre 1932 e 1976 – considerou, em primeiro lugar, a
implantação do Educandário, a campanha em torno da construção do empreendimento e a
repercussão negativa a partir de seu funcionamento. Tivemos em vista, ainda, as intervenções
do poder público realizadas para “melhoramentos” na instituição, ao longo das décadas de 40 e
50, bem como o relato da chegada de Raimundo Santos na ilha, ocorrido no ano de 1943. O
recorte temporal se fecha na descrição minuciosa de um caso emblemático, que explodiu no
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ano de 1976, episódio cuja farta cobertura pelos jornais locais permitiu vislumbrar o nível de
saturação para o qual a ilha-presídio havia enveredado após quatro décadas da intervenção
estatal.
É preciso dizer que o Educandário Nogueira de Faria e a própria Colônia Penal foram
constantemente renomeados ao longo das décadas, ao sabor das transições administrativas. O
primeiro, por exemplo, nasceu como Colônia Correcional de Cotijuba, mas foi também referido
como Colônia Agrícola de Cotijuba, Educandário Monteiro Lobato, Educandário Magalhães
Barata, para, apenas bem mais tarde ser, enfim, denominado Educandário Nogueira de Faria,
em honra ao idealizador e principal promotor do projeto do reformatório insular. Já a Colônia
Penal, aparece inicialmente como Instituto de Reeducação Social, porém nas diversas fontes, é
também chamado de presídio, ou de colônia agrícola. Todos esses nomes, em maior ou menor
ocorrência, aparecerão ao longo da narrativa.
O levantamento de dissertações e teses junto aos bancos da CAPES, da UEPA e da UFPA,
no âmbito da educação, a partir das palavras “Cotijuba”, “Educandário Nogueira de Faria” e
“Colônia Reformatória de Cotijuba”, não obteve resultados positivos. Em meio ao universo dos
artigos científicos fomos um tanto mais felizes. Nenhum deles, porém, foi produzido no âmbito
da Educação. “Registro Histórico da Ilha de Cotijuba” (2002) de Assunção Amaral é um estudo
sociológico e “O poder das marés na Região Amazônica no final do século XVIII e início do
XIX: o Engenho de Cotijuba, Belém, Pará” (2001), de Diniz Guerra, foi urdido no âmbito da
História. Na revista acadêmica “Traços” do Centro de Tecnologia da Universidade da
Amazônia, consultamos outros dois artigos: “Cotijuba no contexto histórico da cidade de
Belém: a história da ilha que poucos conhecem” e “Belém Insular: a realidade urbana da ilha
de Cotijuba”, ambos de 2001, escritos por Pereira, Farias e Santos.
No laboratório de história da UFPA há uma monografia de especialização, autoria de
Jucivânia Moraes Gordo - “‘Punir para corrigir’: as crianças, os adolescentes e a Colônia Penal
de Cotijuba – Belem 1930 a 1936”. No levantamento de estudos sobre o tema que aqui
sumariamos, em termos de grau acadêmico, trata-se do trabalho mais graduado. Teve o mérito
de identificar o início da campanha pró colônia reformatória, deflagrada a partir de setembro
de 1931.
carentes e abandonados na ilha de Cotijuba, fez emergir as memórias redentora e diabólica para
a respectiva ilha, entre as décadas de 1930 e 1970?
distinção entre o que é central e periférico na história” (Ibidem, p. 12). Reagindo à tendência
de privilégio emprestado pelo paradigma tradicional aos grandes vultos humanos da história,
suas ações e conquistas, prossegue Burke, a Nova História fez desfilar pelos livros personagens
aparentemente medíocres: populares, criminosos, gente simples antes considerados destituídos
de interesse, fazendo possível, desse modo, a escrita de uma história vista de baixo2.
E foi ainda o movimento da Nova História que ampliou o leque de evidências
consideradas historicamente válidas. Trata-se de outra reação ao paradigma tradicional de
história, para quem as fontes históricas – consoante as lições do grande historiador alemão
Leopold von Ranke –, restringiam-se aos papéis produzidos pelo Estado, os chamados
documentos oficiais. A expansão do interesse dos historiadores por variados campos da
atividade e da experiência humanos, no entanto, solicitou deles atenção a um número mais
amplo de evidências (BURKE,2011 p. 14).
A base teórica que garante legitimidade à fonte oral é essencial aos caminhos da presente
pesquisa. Uma parte das informações obtidas são dessa natureza.
Uma das tendências mais fortes da Nova História, pode ser denominada, conforme ainda
Peter Burke (2005), de Nova História Cultural, igualmente crucial às bases de nosso estudo.
Decorrente daquilo que Burke definiu como “virada em direção à antropologia” (2011, p. 44),
a tendência é tributária de um conceito de cultura ampliado3, não restrito à dita alta cultura ou
às ambiguidades da chamada cultura popular. Burke procura explicar o encontro entre a História
e Antropologia a partir dos princípios da congruência e da convergência 4, assim como pelo
impacto dos conceitos de cultura e de descrição densa formulados pelo antropólogo Clifford
Geertz5.
Burke sintetiza no seguinte excerto as inovações das abordagens culturais em História:
2 Segundo Burke, “história vista de baixo” é aquela preocupada “com as opiniões das pessoas comuns e com sua
experiência de mudança social” BURKE, 2011, p. 13. Sobre a história vista de baixo (um dos pressupostos teóricos
da presente pesquisa), Jim Sharpe diz o seguinte: “Essa perspectiva atraiu de imediato aqueles historiadores
ansiosos por ampliar os limites de sua disciplina, abrir novas áreas de pesquisa e, acima de tudo, explorar
experiências históricas daqueles homens e mulheres, cuja existência é tão frequentemente ignorada, tacitamente
aceita ou apenas mencionada de passagem na principal corrente da história” SHARPE, 2011, p. 41.
3 Burke cita a definição de cultura “tomada em seu sentido etnográfico amplo” de Edward Taylor (em Primitive
Culture): “o todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume, e outras aptidões e hábitos
adquiridos pelo homem como membro da sociedade” BURKE, 2011, p. 43.
4
“Encontros entre disciplinas, assim como encontros entre culturas, muitas vezes seguem os princípios da
congruência e da convergência. O que faz as pessoas de uma cultura sentirem-se atraídas por outra é, muitas vezes,
a ideia de uma prática análoga à sua própria e, assim, familiar e estranha ao mesmo tempo. Seguindo essa atração,
as ideias ou práticas das duas culturas passam a se parecer cada vez mais umas com as outras” Ibidem, p. 56.
5
“Geertz enfatiza o significado daquilo que ele chamou, em um famoso ensaio com este título, de ‘descrição
densa’. Em sua própria definição cultura é ‘um padrão historicamente transmitido de significados incorporados
em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas simbólicas, por meio das quais os homens
se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atitudes acerca da vida’”, Ibidem, p. 52.
25
6
“a micro-história foi uma reação ao encontro com a antropologia. Os antropólogos ofereciam um modelo
alternativo, a ampliação do estudo de caso onde havia espaço para a cultura, para a liberdade em relação ao
determinismo social e econômico, e para os indivíduos, rostos na multidão. O microscópio era uma alternativa
atraente para o telescópio, permitindo que as experiências concretas, individuais, ou locais, reingressassem na
história” BURKE, 2005, p. 61.
7
“Montaillou faz o relato de uma pequena aldeia francesa nos Pirineus e seus cerca de 200 habitantes, no começo
do século XIV, retrato possível pela sobrevivência dos registros da Inquisição, inclusive os interrogatórios de 25
aldeões suspeitos de heresia. O livro tem a forma de um estudo de comunidade do tipo muitas vezes realizado por
sociólogos, mas cada capítulo levanta questões debatidas pelos historiadores franceses na época, acerca da
infância, por exemplo, de sexualidade, do sentido local do tempo e do espaço, ou da casa camponesa como
representação dos valores familiares. Montaillou foi uma contribuição à história cultural, no sentido amplo que
incluía cultura material e mentalidades” Ibidem, p. 61-62.
8
“O queijo e os vermes também se baseava nos registros da inquisição, dessa vez na região do Friuli do século
XVI, no nordeste da Itália, e tem seu foco na personalidade de um indivíduo interrogado sob suspeita de heresia,
o moleiro Domenico Scandella, conhecido como ‘Menocchio’. Para a surpresa dos inquisidores, Menocchio
respondeu às perguntas de maneira detalhada, expondo sua visão do cosmos. O título do livro deve-se à explicação
de Menocchio de que no princípio tudo era um caos, e os elementos formavam uma massa ‘exatamente como o
queijo faz com o leite, e naquela massa aparecem alguns vermes, que eram os anjos’. Ao longo de seu
interrogatório, Menocchio também falou longamente sobre os livros que havia lido e sobre a maneira como os
interpretava. Dessa forma, o estudo de Ginzburg contribuiu com a nova ‘história da leitura’” Ibidem, p. 62.
26
Seu trabalho tem sempre se centralizado na busca de uma descrição mais realista do
comportamento humano, empregando um modelo de ação e conflito do
comportamento do homem no mundo que reconhece sua – relativa – liberdade além,
mas não fora, das limitações dos sistemas normativos prescritivos e opressivos.
Assim, toda ação social é vista como resultado de constantes negociação,
manipulação, escolhas, e decisões do indivíduo, diante de uma realidade normativa
que, embora difusa, não obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e
liberdades pessoais. A questão é, portanto, como definir as margens – por mais
estreitas que possam ser – da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas e
contradições dos sistemas normativos que o governam. Em outras palavras, uma
investigação da extensão e da natureza da vontade livre dentro da estrutura geral da
sociedade humana. Neste tipo de investigação, o historiador não está simplesmente
preocupado com a interpretação dos significados, mas antes em definir as
ambiguidades do mundo simbólico, a pluralidade das possíveis interpretações desse
mundo e a luta que ocorre em torno dos recursos simbólicos e também dos recursos
materiais (2011, p. 137-138).
A atitude experimental que aglutinou, no fim dos anos 70, o grupo de estudiosos
italianos de micro-história... baseava-se na aguda consciência de que todas as fases
que marcam a pesquisa são construídas e não dadas. Todas: a identificação do objeto
e da sua relevância; a elaboração das categorias pelas quais ele é analisado; os critérios
9
“Havia, contudo, várias reações possíveis para a crise, e a micro-história em si nada mais é que uma gama de
possíveis respostas que enfatizam a redefinição de conceitos e uma análise aprofundada dos instrumentos e
métodos existentes” LEVI, 2011, p. 137.
10
“ao mesmo tempo, tem havido (para a crise) outras soluções propostas, absolutamente mais drásticas, que com
frequência desviam para um relativismo desesperado, para o neoidealismo ou mesmo para o retorno a uma filosofia
repleta de irracionalidade” LEVI, 2011, p. 137. Em outro trecho: “Assim, a micro-história possuía uma função
muito específica dentro da chamada nova história. Não era simplesmente uma questão de corrigir aqueles aspectos
da historiografia acadêmica que pareciam não mais funcionar. Era mais importante refutar o relativismo, o
irracionalismo e a redução do trabalho do historiador a uma atividade puramente teórica que interprete os textos e
não os próprios acontecimentos” Ibidem, p. 138.
27
de evidência; os modelos estilísticos e narrativos por meio dos quais os resultados são
transmitidos ao leitor. Mas essa acentuação do momento construtivo inerente à
pesquisa se unia a uma rejeição explícita das implicações céticas (pós modernas, se
quiserem) tão largamente presentes na historiografia europeia e americana dos anos
80 e início dos anos 90 (2007, p. 275-276).
O excerto de Ginzburg ao mesmo tempo que situa a micro-história no bojo de uma reação
geral à crise científica – caracterizando-a como um fazer historiográfico no qual as fases da
pesquisa e as escolhas do pesquisador são incorporados à narrativa –, rejeita os radicalismos
(ou ceticismos) que a substituição do paradigma moderno parecia sugerir, ou seja: tornar o fazer
historiográfico uma atividade estritamente subjetiva, teórica ou especulativa. Esse aspecto é
crucial, pois põe em debate o papel da narrativa no trabalho do historiador, ou mais
especificamente, o problema da comunicação com o leitor, ou, ainda, nas palavras de Giovanni
Levi, a questão das “técnicas de exposição” (2011, p. 155). Aqui o alvo é evitar as armadilhas
e negligências inerentes às grandes generalizações, as quais “acentuariam de uma maneira
funcionalista o papel dos sistemas de regras e dos processos mecanicistas de mudança social”
(Ibidem), excluindo, desse modo, qualquer experiência anômala às regras gerais. Visa-se
também, através da construção de uma narrativa que incorpora “os procedimentos da pesquisa
em si, as limitações documentais, as técnicas de persuasão e as construções interpretativas”
(Ibidem), a edificação de um discurso historiográfico através do qual o autoritarismo do
discurso objetivo da história tradicional seja evitado e criticado. Levi e Ginzburg, nesse ponto,
nos levam a refletir sobre as consequências éticas e políticas da narrativa historiográfica.
Um último aspecto da micro-história a interessar à presente investigação é o
desenvolvimento e uso que faz do procedimento analítico conhecido como redução da escala
de observação. Para Giovanni Levi, o mérito do procedimento reside nas possibilidades de
experimentação que ele oferece. Para ele, a existência individual jamais se submete
completamente às normatizações urdidas no nível da grande escala. A redução da escala
corrobora sua crítica às explicações redutoras, sejam elas funcionalistas ou estruturalistas 11.
É a reabilitação do sujeito junto a uma história que teimava em reduzi-lo a resíduo. Ou a
constatação de que a abordagem histórica restrita à grande escala é inevitavelmente excludente.
Daí estudos de micro-história abordarem tanto pequenas comunidades, quanto, indivíduos
11 “Em oposição a um funcionalismo supersimples, é importante enfatizar o papel das contradições sociais na
geração da mudança social; em outras palavras, enfatizar o valor explanatório das discrepâncias entre as restrições
que emanam dos vários sistemas normativos (ou seja, entre as normas do estado e da família) e do fato de que,
além disso, um indivíduo tem um conjunto diferente de relacionamentos que determina suas reações à estrutura
normativa e suas escolhas com respeito a ela” LEVI, 2011, p. 141.
28
singulares. “Reduzir a escala de observação queria dizer transformar num livro aquilo que, para
outro estudioso, poderia ter sido uma simples nota de rodapé”, diria Ginzburg (2007, p. 274).
Quanto à conceituação de memória, essencial ao presente trabalho, dentre os referenciais
consultados, a definição mais ampla e pertinente extratamos de Jacques Le Goff. No livro
“História e Memória”, o historiador francês apresenta a seguinte definição:
No entanto, são as reflexões sobre o tema obradas por Michael Pollack em “Memória,
esquecimento, silêncio” (1989) que melhor iluminam nossa abordagem. Pollack põe em debate
as disputas da memória, e o faz a partir de exemplos nos quais, de alguma forma, as memórias
de certos grupos socialmente menos expressivos, embatem-se com versões mais globalmente
aceitas ou impostas sobre o passado. Às vezes a eclosão das memórias subterrâneas, ou
marginalizadas, é acompanhada ou mesmo motivada por uma mudança radical na própria
sociedade – como no caso da destalinização e fim da URSS, período, como se sabe, de intensa
revisão da política brutal chefiada por Josef Stalin. O passado literalmente se altera, cai o mito
do pai dos pobres, ao mesmo tempo que um mundo de crimes, violências e brutalidade vem à
tona, numa apoteose que acompanha a própria desintegração do mundo soviético comunista
(POLLACK, 1989, p. 05).
O sociólogo austríaco, além disso, mostra como o silêncio sobre acontecimentos
traumáticos opera em casos de disputa da memória. Aqui Pollack descreve o drama dos
deportados judeus em seu retorno à Alemanha ou à Austria no pós segunda guerra, num
momento em que a consciência aguda do holocausto judeu fazia o mundo tremer. Precisaram
esses deportados tornar suportável a vida junto a colaboradores judeus da política antissemita
alemã. Mesmo que a colobaração de homens e mulheres judeus aos algozes alemãos possua
justificativa razoável, a violência do holocausto, a consciência da hecatombe, a própria
deportação da gente judia, colocariam em rota de colisão a gente que sobreviveu ao conflito no
exílio e os que mantiveram a vida por colaborar com os assassinos de seus pares. Argumenta
29
Pollack, nesse mesmo texto, curiosamente, toca em um ponto dotado de especial sabor
em se tratando da trajetória desta pesquisa: o potencial do cinema de intervir na dinâmica da
revisão do passado e dirigir em determinada direção o enquadramento da memória coletiva, ou
mesmo da memória nacional. A expressão cinematográfica é dotada de qualidades que a
diferenciam de formas mais tradicionais de enquadramento da memória – como a ação de
agentes, a propaganda, os dircursos oficiais, os monumentos. Como manifestação artística, os
filmes são capazes de se comunicar de maneira mais global, ao operar com uma linguagem,
30
voltando-se não apenas à inteligência das pessoas, porém igualmente apelando a seus
sentimentos.
Cita o historiador, como exemplo, o filme Holocausto, obra cujo impacto “permitiu captar
a atenção e as emoções, suscitar questões e assim forçar uma melhor compreensão desse
acontecimento trágico em programas de ensino e pesquisa e, indiretamente, na memória
coletiva” (Ibidem, p. 07). Especialmente o filme documentário e o que chama de “filme-
testemunho”, configurou-se como “instrumento poderoso para os rearranjos sucessivos da
memória coletiva e, através da televisão, da memória nacional” (ibidem).
Do ponto de vista da história oral a categoria que mais valor possui para o presente estudo,
é a de reminiscência pessoal. É essa categoria que dá bases ao trabalho de grande parte dos
historiadores dedicados a tal metodologia. Pode ser definida como o ato de lembrar e expor as
lembranças oralmente, sobretudo por indivíduos cuja idade os permite operar aquilo que Gwyn
Prins denominou “revisão da vida” (2011, p. 194). Palavras dele: “O que a reminiscência
pessoal pode proporcionar é uma atualidade e uma riqueza de detalhes que de outra maneira
não podem ser encontradas” (Ibidem, p. 195).
As entrevistas realizadas foram baseadas nas considerações sobre esse procedimento
básico da história oral feitas por Paul Thompson e Sônia Maria de Freitas. É esta última quem
sumaria os elementos básicos da técnica:
Por sua vez, Paul Thompson (1992), fazendo valer sua experiência com a técnica,
apresenta sugestões valiosíssimas, como, por exemplo, as qualidades necessárias ao bom
entrevistador: interesse e respeito, flexibilidade, compreensão e simpatia, disposição para ficar
calado, sabendo intuir, contudo, os momentos em que é necessário intervir (Thompson, 1992,
p. 254). Ele sugere que, anteriormente às entrevistas principais, o pesquisador realize entrevistas
explanatórias, a partir das quais informações básicas possam ajudar na elaboração de roteiros
necessários às incursões ulteriores; sugere ainda que, no ato da entrevista, as perguntas a serem
dirigidas aos entrevistados sejam as mais simples e em menor número possível (Ibidem, 258-
259). Sobre o tipo de entrevistas a ser utilizado pelo pesquisador, vale a pena transcrever a visão
de Thompson:
O argumento em favor de uma entrevista completamente livre em seu fluir fica mais
forte quando seu principal objetivo não é a busca de informações ou evidências que
valham por si mesmas, mas sim fazer um registro “subjetivo” de como um homem ou
uma mulher, olha para trás e enxerga a própria vida, em sua totalidade ou em uma de
33
suas partes. Exatamente o modo como fala sobre ela, como ordena, a que dá destaque,
o que deixa de lado, as palavras que escolhe, é que são importantes para a
compreensão de qualquer entrevista... Assim, quanto menos seu testemunho seja
moldado pelas perguntas do entrevistador, melhor. Contudo, a entrevista
completamente livre não pode existir. Apenas para começar, já é preciso estabelecer
um contexto social, o objetivo precisa ser explicado e pelo menos uma pergunta inicial
precisa ser feita (1992, p. 258).
12
A dimensão metodológica de levantamento e análise documentais desta pesquisa está minuciada no interior das
seções, como forma de evitar sobrecarregar sua introdução. Estão baseadas sobretudo em RODRIGUES &
FRANÇA, 2010.
34
13 Nosella & Buffa, a propósito, afirmam: “é preciso articular o particular com o geral, isto é, com a totalidade
social, evidenciando interesses contraditórios” NOSELLA & BUFFA, 2009, p. 62.
35
sofrida, parece ter ele encontrado no internamento a primeira grande oportunidade de sua vida,
agarrando-se a ela com fervor.
O subtópico seguinte é dedicado à caracterização educacional do Educandário Nogueira
de Faria, prestando especial atenção ao modo como estruturou-se o internamento dos
abandonados e delinquentes que para lá afluíram. Aqui nos valemos de fontes documentais e
especialmente do depoimento de Raimundo dos Santos, bastante fértil nesse aspecto.
Em conclusão à seção, analisamos detidamente a conformação, para Cotijuba, da imagem
de ilha da redenção, a partir da grande campanha cívica pelo soerguimento da instituição
reformatória e, principalmente, pela atividade de dois sujeitos de destaque na sociedade e na
política paraense – Nogueira de Faria e Moura Carvalho.
A seção final – Memorial da ilha do diabo – , preocupou-se em esmiuçar as repercussões
negativas que o funcionamento das instituições reformatória e penal provocaram em relação à
ilha de Cotijuba. Introduzimos o tópico com a análise de duas obras integrantes da chamada
Literatra de Cárcere, nas quais as prisões insulares ocupam lugar destacado. Muitos dos
caracteres descritos pelos narradores das duas obras memoriais, Henri Charriére e Graciliano
Ramos, encontram par na experiência prisional da ilha-presídio local.
Em seguida, abrimos espaço para diálogo com outros sujeitos cujas experiências de vida
os fez integrarem-se, de alguma forma, às instituições insulares. A maioria deles fixou
residência na ilha de Cotijuba mesmo após a desativação das colônias. A memória desses
sujeitos guardou especialmente os aspectos mais duros do regime prisional em vigor na ilha,
assunto sobre o qual não se acanham em dar detalhes.
O derradeito subtópico da última seção presta-se a detalhar um caso bombástico
envolvendo o sistema prisional do qual a ilha-presídio fazia parte. Trata-se do sequestro e
espancamento do último diretor geral da ilha de Cotijuba, Teodorico Rodrigues, crime cujo
desdobramento foi uma perseguição implacável aos evadidos, numa ação na qual fica evidente
a demonstração de força dos agentes da Ditadura Militar então em vigor no país. A ilha de
Cotijuba havia tornado-se definitivamente a ilha do diabo.
Nas considerações finais realizamos um balanço do percurso da pesquisa e apresentamos
os principais resultados da investigação.
36
A ilha de Cotijuba está fincada a noroeste do centro urbano de Belém. Situa-se numa
confluência de águas provenientes de inúmeros cursos hídricos. Sua costa sul está voltada
à foz do rio Pará, ao passo que a face estendida no rumo sudoeste/norte divisa a chamada
baía de Marajó. Juntas essas duas extensões, alongando-se um tanto a nordeste, perfazem
um vasto contorno de praias de aproximadamente 20 km. O lado da ilha que se estende do
sul ao extremo leste é banhado por um furo, o qual as gentes do lugar batizaram como Furo
do Mamão. É um canal influenciado conjuntamente pelos três estuários que compõe o
complexo hídrico confronte à capital. Ou seja, tem esse canal a sudoeste o estuário da foz
do Pará (que conforma a baía de Marajó); a leste a baía de Santo Antônio, da qual o furo do
Maguari (que separa o continente, na ponta do distrito de Icoaraci, da ilha de Caratateua-
Outeiro) é tributário; e a sudeste o acidente hídrico conformado pelas águas dos rios Guamá
(de quem o Capim é tributário) e Acará (já acrescido das águas do Moju, mais embaixo),
afluxo de águas a quem denominamos vulgarmente Baía de Guajará.
De poucos pontos da face sul/leste/norte da ilha (por onde fluem as águas do Furo do
Mamão) se pode divisar o centro urbano da capital. A vista bate-se na costa de duas ilhas
adjacentes, chamadas Paquetá e Jutuba. No extremo sul de Cotijuba pode-se avistar
Arapiranga, ilha cuja face voltada a oeste integra o estuário do Pará. A leste, num ponto em
que se tocam as águas das baías de Santo Antônio e de Marajó, Cotijuba avizinha-se de uma
micro-ilha, de apenas 10 hectares de área, batizada de Tatuoca, ínsula de singular relevância
histórica, por ter sido lócus geográfico protagonista de alguns dos episódios da Cabanagem
(1835-1840), revolução popular que estourou em Belém em 07 de janeiro de 1835 (RAIOL,
1970).
Os feixes de águas que cercam a ilha de Cotijuba avizinham-se, no rumo oeste/norte
da ilha de Marajó, e ao extremo nordeste se misturam ao Oceano Atlântico. São, portanto,
37
águas doces que, em certas épocas do ano, tornam-se salobras, por uma penetração mais
intensa das correntes marítimas 14.
A área da ilha de Cotijuba, segundo informa o Professor Gutemberg Guerra (2001, p.
75), tendo como fonte o estudo “A dimensão insular de Belém” de José Mariano Klautau,
é de 1.602, 50 hectares. Do ponto de vista físico-geográfico, Silva e Furtado assim
caracterizam a ilha de Cotijuba:
O critério de definição, se como ilhas antigas ou ilhas novas, aparece no livro “Belém e
sua expressão geográfica” (1966), de Eidorfe Moreira, o qual dedica um tópico ao estudo e
classificação das 39 ilhas que compõem a chamada região insular de Belém. Para o geógrafo
paraense, antigas são as ilhas “formadas de depósitos arenosos e argilosos, com uma ou mais
camadas de arenito, apresentando constituição semelhante à da terra firme continental” (1966,
p. 70), ao passo que as novas são constituições geológicas recentes, soerguidas por acúmulos
de vegetais apodrecidos, agregados pelas correntes fluviais. Cotijuba, ao lado das ilhas de
Arapiranga e Tatuoca, são exemplos do primeiro caso.
Já o Barão de Marajó, estudando a região como um todo, no livro “As regiões amazônicas”
(1992), classifica a ilha de Cotijuba no conjunto insular que denomina “Ilhas do Rio do Pará
até ao Tocantins”. Atribui o Barão pouca importância a esse conjunto de ilhas, à exceção de
quatro delas: Arapiranga, Paquetá-Assú, das Onças e Cotijuba (1992, p. 336). Sobre a última,
ele acrescenta que
presta-se pelo seu solo a qualquer cultura, e muito abundante em pedreiras, tendo um
lago em seu centro. Tem alli existido alguns estabelecimentos; são possuidores essas,
assim como outras d’este arquipélago por particulares, mas creio que com o simples
direito de posse (MARAJÓ, 1992, p. 336 e 337).
Fonte: http://www.belem.pa.gov.br/planodiretor/Mapas/1a_Mapa-Bairros.pdf
39
O Plano Diretor da Ilha de Cotijuba constitui uma das tentativas, embora frustrada, de
proporcionar desenvolvimento adequado ao lugar. Admite-se, no Plano, que a ilha de Cotijuba
possui duas faces: uma urbana e outra rural, cujas formas de ocupação são normatizadas no
capítulo IV da seção V do documento. A face urbana é constituída pelas ocupações em torno e
adiante do trapiche municipal Antônio Tavernad. É a região onde se oferece o maior número
dos serviços públicos, onde se localiza a pequena zona comercial e na qual o fluxo de pessoas
é maior, pois local de embarque e desembarque. Nesse setor, chamado pelos do lugar de centro
da ilha, a cobertura vegetal foi agredida fortemente. A ocupação se deu de modo rápido e em
conflito com o meio ambiente. O saneamento é mínimo. A especulação imobiliária é alta, muito
embora ninguém disponha de qualquer título legal de propriedade. A rede de distribuição de
água atinge apenas essa área. Nela estendem-se as praias do Farol e Saudade. Há aqui maior
densidade populacional.
40
A face rural é constituída pelas localidades interiores, cada vez mais distantes do trapiche,
definidas pelos nomes das praias que as banham: Praia Funda, Flexeira, Vai-Quem-Quer, Pedra
Branca, Poção e Fazendinha. Nesse locais, o único serviço público que chega é o de energia
elétrica, advento, aliás, recentíssimo em toda a ilha, implantado no início desse século. À
medida que se avança ilha adentro, a densidade populacional vai-se rarefazendo, ao passo que
segue aumentando a proporção de cobertura vegetal em pé. A paisagem aqui foi menos agredida
pela ação humana, embora a ocupação seja, como no centro da ilha, desordenada, não planejada
e sem qualquer controle ou acompanhamento pela Autoridade Pública.
Pereira, Faria e Santos (2001, p. 85), mencionam artigo da lei Orgânica do Município de
Belém, em que as ilhas de Belém aparecem com as seguintes prerrogativas:
A ilha sofreu uma transformação muito grande nos últimos 20 anos. A ocupação se
deu de maneira rápida e sem controle [...], parte de sua riqueza natural foi degradada
e seus recursos naturais mal aproveitados. Essa degradação se deu pela ocupação das
praias, falésias, e, principalmente, pela utilização de matéria-prima para construir essa
ocupação (PEREIRA, FARIA e SANTOS, 2001, p. 86).
Apesar de todos esses dilemas e problemas, a ilha de Cotijuba evoca, há algum tempo,
em meio à zona urbana da capital paraense, a imagem de um recanto paradisíaco. Lugar de
passeio e de lazer, próximo e de fácil acesso. Historicamente, no entanto, esse é um ideário
muito recente, construído a partir das décadas de 80 e 90 do século passado. Abrimos aqui um
parêntese para dizer que as considerações e afirmações feitas nesse e nos próximos três
parágrafos tem por base a vivência do autor da presente pesquisa, como morador e como
servidor público, em Cotijuba. Aquela é uma imagem, é preciso dizer, criada de fora, ou seja,
por pessoas que não vivem no lugar. Esse ideário estimulou e tem estimulado hordas de turistas
e aventureiros a buscarem a ilha como lugar de fuga da realidade e propício a experiências
extremadas, tais como o consumo excessivo de álcool e entorpecentes, ou mesmo a produção
de cinema pornográfico. Tráfico de drogas, prostituição, inclusive infanto-juvenil, e
41
O artigo primeiro do projeto de lei definia uma área na praia do Vai-Quem-Quer a ser reservada
à prática do Naturismo. Na justificativa do projeto o edil alegava que o Naturismo constitui um
movimento cultural universal, apoiado em federações nacionais e internacionais, “que visa
desenvolver o respeito do homem por si mesmo, por seus semelhantes e pelo meio ambiente”
(Belém, 1997, s.n.). Quanto aos benefícios a serem proporcionados, o projeto menciona
“harmonia cósmica”, “paz interior” e “respeito humano”. Visando fomentar a auto-aceitação, a
harmonia do sujeito com seu corpo, o projeto acreditava que a “nudez representa o símbolo
deste encontro mágico. Estar nu e vestir-se de natureza” (Ibidem). O vereador arremata a
justificativa afirmando ser a prática do Naturismo uma alternativa ao cidadão belenense para
contrapor-se à rotina estressante a qual está submetido pelo trânsito caótico, pelo desemprego,
pelo correr atrás da sobrevivência.
O projeto tramitou. Em 07 de junho recebeu parecer favorável da Comissão de Justiça,
Legislação e Redação de Leis da Câmara. A Comissão, chefiada pelo vereador Orlando reis,
considerou a finalidade do Naturismo – “pregar a relação direta homem-natureza, tendo como
sua principal característica a prática da nudez, que segundo seus adeptos representa o encontro
mágico entre a mãe natureza e o homem” (Belém, 1997, s.n.); considerou a Lei Orgânica de
Belém como asseguradora dos direitos dos munícipes de exercitar “os direitos culturais e o
acesso às diversas fontes de cultura” (Ibidem); considerou ainda que qualquer cultura, não
somente o Naturismo, são bens de acesso livre à sociedade, além de “inexistir no campo jurídico
óbices à tramitação da matéria” (Ibidem).
O Projeto chegaria à Comissão de Cultura, Lazer, Desporto e Turismo, sob presidência
do Vereador Joaquim Passarinho, no dia 17 de junho. Enquanto o projeto era estudado pela
Comissão, os moradores da ilha começaram a se mobilizar e encaminharam ao relator um
abaixo-assinado com mais de quinhentas assinaturas. Argumentaram os nativos, entre outras
coisas, não terem sido ouvidos pelo Vereador proponente do projeto, que o Naturismo é uma
prática de povos muito distintos em termos sociais e culturais e não contribuiria em nada para
a superação dos dilemas e problemas da população da ilha. A argumentação final era também
uma alfinetada nos poderes públicos:
Cultura e riquezas naturais é o que temos de sobra. O que nos falta é a iniciativa dos
nossos representantes públicos na elaboração de projetos que priorizem o
desenvolvimento autossustentável e que não venham ferir os princípios da moral e
dos bons costumes que são inerentes a nós, nativos da terra.
Face ao exposto, solicitamos o empenho de V. Exa., e de seus pares em favor da
rejeição do referido projeto ou, em última análise, pelo pedido de plebiscito sobre o
assunto na ilha de Cotijuba (BELÉM, 1997, s.n.).
43
Foi o abandono pelo Estado da Colônia Penal de Cotijuba, ocorrido ao final da década de
1970, por ocasião da construção da Penitenciária de Americano, o fato deflagrador de uma nova
fase histórica para o lugar. Curioso é que, até então, acontecimentos extraordinários haviam
legado à ilha uma configuração maldita, disseminada amplamente na imaginação local. A
passagem da ilha do diabo a recanto paradisíaco está eivada de ironia histórica.
A fase final da instituição da qual se ocupa o presente estudo, e o destino derradeiro de
suas instalações, foi servir de complemento ao conflagrado sistema carcerário estadual.
Cotijuba tornara-se, como é bem conhecido, um depósito de presos. Na vigência de um regime
de Ditadura chefiada por militares, no estado de exceção no qual se vivia, no abuso do poder
de polícia, nas torturas e interrogatórios violentos, a ilha foi adquirindo a fama de lugar maldito
do qual todos queriam distância. Lúcio Flávio Pinto, em edição especial do seu Jornal Pessoal,
menciona um dos fatos desse período maldito:
Francisco de Assis, jornalista local, assim se refere a esse passado macabro, no artigo
“Ilha de Cotijuba já foi palco de motins e crimes”:
A ilha de Cotijuba, localizada em frente à cidade de Belém, foi, nas décadas de 50, 60
e 70, palco de motins, fugas e assassinatos. Os autores desses delitos e desmandos
foram marginais da pesada, que eram transferidos da extinta DIC – Delegacia de
Investigações e Captura – em barcos, pela madrugada, para o educandário Nogueira
de Faria, que serviu, por muitos anos, para depósito de presos. [...]
Marginais como “Caboclo da Alzira”, “Cadeado”, “Colombiano”, “Pescoção”,
“Esqueriu”, “Caboclo Enéas”, “Carcará”, “Diabo Louro”, “Nego Lucas”, “Nego
Téo”, “Lourival Baixinho”, “Luciano Cara de Cachorro”, “Tenentinho”, “Narciso”,
“Marino”, “Gatinho”, “Cheiro Verde”, “Dico Mijado”, “Caboquinho”, dentre outras
dezenas de foras-da-lei, conheceram o “Inferno Verde da Ilha” (O LIBERAL, p. 07,
12/07/1995).
devem ser entendidos inseridos em tal condição histórica. O poder de coação física pela polícia
encontrou em Cotijuba – ilha distante das lentes da urbe e controlada pelo Estado – um lócus
no qual se exercitou fartamente. Os depoentes do documentário, é curioso ver, descrevem fatos
– a exemplos de interrogatórios sob tortura e castigos físicos – com um meio sorriso no rosto,
como se aquilo não passasse de coisa banal. Quanto às alcunhas atribuídas por Francisco de
Assis aos detentos da Colônia Penal, elas não deixam dúvida de que as atrocidades ali sucedidas
desabavam sobre o extrato mais baixo da escala social, classes nas quais pululam os
“Caboclos”, “Caboquinhos” e “Negos”.
A existência de uma colônia penal na ilha de Cotijuba remonta ao período entre 1943 e
1945, quando o Major Luís Geolás de Moura Carvalho estava à frente do sistema prisional do
Estado, a serviço de Magalhães Barata, este pela segunda vez ocupando a chefia máxima do
Governo do Pará. Nogueira de Faria testemunhou e descreveu as reformas que a atividade de
Moura Carvalho fez incidir sobre o sistema prisional do Estado. No livro “O caminho da
história” (1945), toda a terceira parte é dedicada a analisar a questão penitenciária no Pará.
Dentre outras coisas, o então Diretor da Colônia Reformatória de Cotijuba, descreve as
melhorias empreendida pelo major Moura Carvalho no Presídio São José, à época considerado
caótico e insalubre. Nas palavras de Nogueira de Faria, Moura Carvalho aparece como um
sujeito dedicado à causa penitenciária no Pará:
Resolvido o problema penitenciário no Pará – porque o está por muito tempo, Moura
Carvalho resolutamente enfrenta um outro, talvez mais sério ainda: o dos presos
correcionais. Belém estava cheia de vagabundos e larápios, criaturas infelizes, muitas
das quais imbuídas de pessimismo sombrio e desolador (1945, p. 125).
Moura Carvalho decidiu-se encarar o assunto (dos presos correcionais), embora ainda
preocupado com os remates da obra presidiária que o empolgou para sempre! Elegeu
uma grande área na ilha de Cotijuba [...] e lá fundou o Instituto de Reeducação Social.
Cinco meses apenas de intensa operosidade e já se desenham os pródromos de mais
uma bela e humanitária vitória. Limpou Belém de malandros e bêbedos contumazes,
de rufiões e vadios, destinados ao tratamento moral pela terapêutica intensiva do
46
Eleito para governar o Estado dois anos depois, aplicou-se Moura Carvalho em reformar
o sistema prisional do Estado como um todo e criar uma instituição dedicada à causa prisional
e carcerária, batizada por ele de Serviço de Assistência Penitenciário-Social. O Jornal “A
Província do Pará”, posto em circulação no dia 19 de fevereiro de 1948 (menos de um ano após
Moura Carvalho ter assumido o governo), dedicou duas de suas páginas a divulgar o decreto-
lei a partir do qual emergiu a nova instituição. Sob um título que demonstrava afinamento com
o governo – “Obra de Humanitário e Sadio Idealismo: a solução do problema penitenciário tem
sido uma das preocupações máximas do major Moura Carvalho” –, a notícia veiculava o “Plano
Geral da reforma Socio-Penal, no Pará”, plano em cujo primeiro tópico (A) figura a instituição
recém criada pelo governo. A ilha de Cotijuba ocupa um lugar destacado no plano. Nela estão
localizados três de seus tópicos: C) Educandário (à época chamado) Magalhães Barata; F)
Penitenciária Agrícola de Cotijuba; e H) Lar de Cotijuba. O referido “Lar” de Cotijuba seria
“destinado aos reclusos de 1ª classe e egressos, e onde é feito o aprendizado do livramento
condicional” (A Província do Pará, 19/02/1948, p. 4 e 5).
Todavia, tanto a existência de uma colônia penal a partir de meados da década de 40 e a
coexistência dessa com o Educandário, implantado uma década antes, quanto a própria história
desse Educandário, coincidem com o período no qual a presente pesquisa pretende realizar
maiores aprofundamentos. Vimos como necessário, porém, realizar uma breve digressão, de
modo a situar a história da ilha de Cotijuba numa de suas fases, seguindo a ordem cronológica
decrescente, tal como viemos fazendo até então. Tal fase obviamente inicia com a compra da
ilha de Cotijuba de particulares para implantação, no ano de 1932-3, da colônia reformatória
para menores, mais tarde batizada Educandário Nogueira de Faria. O passo seguinte, é a
implantação do Instituto de Reeducação Social e a coexistência das duas instituições até o final
da década de 60, quando o Educandário é desativado. Durante a vigência do período mais
doloroso da Ditadura Militar no Brasil (fins da década de 1960 a meados da década seguinte),
como já referimos, Cotijuba tornou-se uma ilha-presídio, cujas práticas de violência e abuso do
poder repressor, fizeram emergir a mística da ilha do diabo. Esse período encerra-se em 1979,
com a extinção da colônia penal.
47
governou Manuel Jorge Rodrigues nas piores condições. Ele havia de, a um só tempo, oferecer
algum tipo de resistência ao avanço cabano e cuidar da multidão que se aglomerava ao redor.
E a maioria das gentes que ali se resguardara não trouxe senão a roupa do corpo. A desgraça
não demoraria a vicejar, com epidemias, fome, sede e mais privações que uma retirada às
pressas não permitiu prevenir.
Raiol descreve a calamitosa situação:
A miséria não tardou a aparecer com todo o seu cortejo de desgraças. As provisões de
boca estavam quase acabadas. A alimentação reduzia-se à meia-ração de arroz. A água
que bebiam era da baía; barrenta e com partículas de sal, não saciava a sêde, antes
pelo contrário a excitava com sensível incômodo para quem não estava acostumado a
bebê-la. Nesse tempo baixavam, como ainda hoje baixam, as águas do Amazonas e
Tocantins, e na foz dêstes se misturavam com as do oceano, tornando-se por isso
salobras e prejudiciais à saúde dos refugiados.
Desta água e da comida salgada resultaram várias enfermidades como o escorbuto e a
diarreia de sangue que, grassando com intensidade na marinhagem, na tropa e no povo
aglomerado, deram causa depois à grande mortandade (1970, p. 864).
governante, denotando uma habilidade e uma calma deveras difíceis de se obter em momento
e circunstâncias tão críticos.
Participação mais consistente, no entanto, Cotijuba teria em outro episódio, ocorrido a
partir da chegada de uma tropa oriunda de Pernambuco, vinda em auxílio das forças legais, a
qual fundeou em Tatuoca no dia 15 de dezembro de 1835. É bom dizer que o período que vai
da retomada do poder central da Província pelos cabanos (23/08/1835) até a reconquista da
capital pelas forças comandadas por Soares D’Andreia (13/05/1836) – período em que o Pará
foi chefiado pelo terceiro e último presidente cabano, Eduardo Nogueira Angelim –, além de
constituir o maior excerto de tempo (quase nove meses) dos cabanos no poder, é a fase em que
eles estão mais empoderados. A força do movimento atingiu os arredores da capital e foi-se
alastrando pelo interior. Pouquíssimos lugares, como a Vila de Cametá, resistiram à sanha
cabana. Nesses lugares, no entanto, o perigo da invasão de “hordas tapuias”, alarmava a todos.
Um clima de paranoia, de grande insegurança, passou a vicejar.
É esse o contexto da segunda aparição da ilha de Cotijuba nos registros sobre a
Cabanagem. Os fatos ocorreram em meio à ação da Brigada Pernambucana e estão
documentados na correspondência entre o Comando da Brigada e o Marechal Rodrigues. Parte
dessa correspondência encontramos na obra de Jorge Hurley, “Traços Cabanos” (1936). Afirma
o historiador que a Brigada Pernambucana estava responsável pela administração de um
Hospital Militar na Ilha de Cotijuba. Apesar disso, continua Hurley, o Comandante
pernambucano, Major Francisco Sérgio de Oliveira, vinha solicitando ao presidente legal da
Província para remeter as praças que resguardavam o Hospital, de volta à Vigia (a sede do
Comando pernambucano), argumentando, em ofício de 03 de março de 1836, que assim seria
“tanto para ter o batalhão reunido como que este clima he mais salubre que o Cutijuba, e
encontra-se mais recursos para as dietas” (Ibidem, p. 121).
Explica Hurley que, entretanto, naqueles tempos de cerrado domínio cabano, a paranoia
grassava. De tal modo que tanto o comandante da Brigada Pernambucana, quanto os homens
da tropa responsáveis pela guarda do Hospital Militar, estavam aterrorizados com a expectativa
de um ataque cabano à Cotijuba. Um exemplo máximo dessa espinhosa conjuntura está
plasmado num ofício (de 29 de março de 1836) do Marechal Rodrigues ao Comandante da
Brigada Pernambucana, reproduzido por Hurley (1936, p. 151), no qual Rodrigues adverte
haver, em meio à Brigada, um soldado desertor. O Comandante Souza respondeu, em ofício de
31 de março de 1836, afirmando que tomaria “todas as medidas ao seu alcance para que tal
deserção não se reproduzisse” (Ibidem). A principal medida adotada pelo Comandante da
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Brigada foi submeter a fuzilamento quem quer que fosse identificado como “espião das tropas
de Pernambuco” (Ibidem).
O caso da deserção, mostra Hurley, haveria de levar o clima de paranoia ao paroxismo.
Alastravam-se boatos de que o chefe cabano Eduardo Angelim planejava invadir Cotijuba,
valendo-se das informações obtidas junto ao desertor quanto à precariedade das tropas
pernambucanas vigilante ao Hospital Militar.
Em novo ofício, de 05 de abril, mais um exemplo do sobressalto sob que vivia o Comando
Pernambucano. O texto do ofício, precedido e sucedido de palavras de Hurley, abaixo
transcrito, resume o clima daquele contexto melindroso. É importante também porque é um dos
mais importantes registros da participação da ilha de Cotijuba na Revolução Cabana.
As obras de Hurley e Raiol, no entanto, mostram que o tão temido ataque jamais veio
a se efetivar. As movimentações de cabanos em torno dos rios de Belém, que muitos tomaram
como preparações para novos ataques e invasões (e que tanta paranoia provocou entre a tropa
estacionada na ilha de Cotijuba), não era outra coisa senão o início da movimentação dos
cabanos para saída da cidade. Eduardo Angelim resolvera abandonar a cidade, seguindo
orientações do Bispo D. Romualdo, no fundo vislumbrando a possibilidade de anistia para si e
para seus pares e comandados (RODRIGUES, 2009, p. 249).
Essa segunda aparição da ilha de Cotijuba nos registros históricos relativos ao movimento
cabano, portanto, não chega a configurar um acontecimento, no nível factual. A invasão, que
seria esse acontecimento, não se procedeu. Mas, o episódio talvez configure um dos melhores
exemplos para se ter noção da atmosfera mental conflagrada, imposta pelo domínio cabano aos
partidários da legalidade.
Descendo um pouco mais a escala histórica, identificamos menções à ilha de Cotijuba na
obra do naturalista baiano Alexandres Rodrigues Ferreira, a conhecida “Viagem Filosófica ao
Rio Negro”. O contexto era o do Brasil Colônia agitado pelas conhecidas reformas pombalinas
(ocorridas entre 1750 e 1777). O naturalista baiano iria compor uma expedição governamental,
com múltiplas atribuições, através da bacia do Rio Negro, e permaneceria na Amazônia entre
os anos de 1783 e 1792. Nas palavras de Carlos Araújo Moreira Neto, prefaciador da “Viagem
Filosófica”:
Na mesma carta, Rodrigues Ferreira refere-se a uma fazenda da ilha de Cutijuba “onde
possue o Cappitão Luiz Pereira da Cunha hum perfeitíssimo Engenho de branquear o
arroz” [...] Essas e outras máquinas de beneficiar a produção agrícola foram
desenhadas a mando do naturalista e fazem parte da coleção de estampas da Viagem
Filosófica (MOREIRA NETO, IN: FERREIRA, 1985, p. 24).
15 Moreira Neto informa que essa carta foi publicada por Pires de Lima, o qual “prefaciou e editou a
correspondência de Alexandre Rodrigues Ferreira e outros documentos oficiais sobre a Viagem filosófica”
(MOREIRA NETO, IN: FERREIRA, 1985, p. 22).
53
16
A maior das ilhas da região insular de Belém, localizada ao norte do centro urbano, com as faces praianas
voltadas às baías de Santo Antônio e do Sol. Separa-se do continente e da ilha de Caratateua-Outeiro pelo Furo do
Maguari, sobre o qual foi construída, na década de 1970, uma ponte interligando a zona urbana. É a ilha, das que
compõem o Município de Belém, mais desenvolvida em termos de urbanização.
54
A Primeira República foi, por excelência, uma república de “coronéis”. Se, no plano
federal, as oligarquias economicamente mais poderosas e um pouco menos arcaicas
tomaram conta do governo central, no plano local a cena política era dominada pela
figura do “coronel”, grande proprietário rural que quase sempre detinha uma patente
militar. O resultado das eleições – nos planos municipal e estadual tanto como no
federal – dependia dos coronéis, pois esses potentados controlavam os eleitores e as
eleições, dando o tom da vida social e política. Com seus bandos de jagunços e
capangas armados, garantiam a vitória das oligarquias estaduais nas eleições (2015,
p. 568).
Nesse contexto, pouco ou nenhum espaço sobrava para as classes humildes, postas à
parte do sistema dominante. A miséria vicejava, as possibilidades de ascensão social eram
diminutas ou inexistentes, a educação um bem distante do grosso da população. A Segunda
República, socialmente falando, era atrasada e selvagem. Mota e Lopez analisam a situação:
Se no alvorecer dos anos 30 o Brasil enfrentava grande crise financeira por causa da
queda do café e da quebra da Bolsa de Nova Yorque, o Pará ainda sofria as graves
consequências da debacle da borracha. Aos dourados anos da primeira década do
século, quando Antônio Lemos transformou Belém numa moderna metrópole e
Augusto Montenegro realizou o mais profícuo de todos os governos, sucederam-se
anos de penúria. João Coelho assumiu em 1909 já com o problema financeiro
agravando-se; Enéas Martins, em seu quatriênio, ficou sem condições de melhorar o
erário estadual, completamente exangue: a falência da economia regional tornara-se
total. Lauro Sodré também nada pôde fazer e saiu desgastado, pois realizou um
governo muito diferente daquele que realizara entre 1891 e 1896, quando a borracha
dava o equilíbrio necessário na balança de pagamentos. Com Souza Castro a crise
atingiu o ápice: o funcionalismo com seus vencimentos atrasados em muitos meses, a
penúria batendo em quase todas as portas. Para uma despesa fixada em 14 mil contos
57
de réis, a arrecadação não ultrapassava a casa dos cinco mil contos, ou seja, quase
36% do mínimo necessário (1999, p. 85).
A revolução que eclodiria em outubro de 1930, estimulada por esse contexto de atraso e
pela mais franca exclusão das classes humildes do mundo dos negócios públicos, foi facilitada
por outro fator importante: é que nas primeiras décadas do século vinte emergiu, influenciada
por um conjunto de acontecimentos e de inovações nas visões de mundo e de sociedade que se
difundiam, em nível interno e internacional, uma nova mentalidade. Relativa a diversos ramos
da atividade humana, tal mentalidade fazia parecer cada vez mais rústica e atrasada a conjuntura
nacional.
A hegemonia dos estados Minas Gerais e São Paulo, capitaneada por elites econômicas
ligadas sobretudo à produção cafeeira e que se vinham alternando no poder desde o advento da
República em 1889, passou a ser dissecada e questionada duramente por historiadores e
intelectuais, e acusada de responsabilidade pelo atraso estrutural da nação. Mota e Lopez
afirmam que:
Embora atrasado do ponto de vista político-institucional, em algumas regiões,
sobretudo no sudeste, com a imigração, a industrialização e o crescimento urbano, o
país ia lentamente mudando de fisionomia. Refletindo a respeito de tantas alterações,
algumas lideranças mais atentas e viajadas denunciaram o tremendo atraso a que o
país parecia condenado. Surgiram nesse período após 1930 – depois da República
Velha (1889-1930) – intelectuais formados na Primeira República – como Euclides
da Cunha, Manuel Bomfim, Astrojildo Pereira, Monteiro Lobato, Jorge Amado,
Miguel Couto (“o Brasil só tem um problema nacional: a educação do povo”),
Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Mário de Andrade, Fernando de Azevedo, Anísio
Teixeira, entre outros –, que denunciaram o peso da herança colonial e propuseram
novas formas de organização social, política, educacional e cultural para o país (2015,
p. 524 e 525).
e a tentativa de revolução de 1924, chefiada por Izidoro Dias Lopes, que, tendo São Paulo como
epicentro, se espalhou pelo Brasil, inclusive pelo Pará, com a adesão de segmentos do exército
sediados em Óbidos e Belém. A famigerada Coluna Prestes também consistiu num movimento
contestatório, o mais radical de todos, eivado da ideologia comunista e chefiado também por
um oficial do exército, o Capitão Luís Carlos Prestes. O clima permanente de contestação e de
atividade revolucionária levou os últimos governantes da República Velha, Arthur Bernardes
(1922-1926) e Washington Luís (1926-1930), a adotarem posturas extremamente violentas
“acionando o tempo inteiro a Lei Celerada, de repressão, desterro e deportação dos dissidentes
e revolucionários”, nas palavras de Mota e Lopez (Ibidem, p. 607).
Há um episódio significativo, antecedente alguns meses à operação revolucionária de
1924, o qual importa aqui narrar, e que demonstra o descontentamento geral e a estratégia de
luta permanente empreendida pela oposição ao governo republicano, nesse caso o encabeçado
por Arthur Bernardes. O protagonista desse episódio pitoresco é o sujeito que se consagraria
como o mais importante político da Revolução de 1930 no Pará, o então primeiro-tenente
Joaquim de Magalhães Cardoso Barata. O comando revolucionário determinara uma ação após
a qual seria deflagrado o movimento de tomada dos governos. A ação seria a de aprisionar o
ministro de guerra do Governo de Arthur Bernardes, quando de uma viagem empreendida por
ele ao sul do país. Carlos Rocque, tomando por base estudo do historiador Hélio Silva, assim
resume o episódio:
Magalhães Barata é um dos muitos militares que atuaram de forma intensa e incansável
ao longo dos anos 1920, em prol da superação do status quo. Sua persistente motivação em
levar adiante a causa revolucionária o levou à prisão, inúmeras vezes, inclusive ao exílio.
Haveria, com efeito, de atuar revolucionariamente na própria cidade para onde fora
encaminhado quando de sua prisão por conta do caso do general Setembrino. Porém em
Manaus, quando da eclosão da revolta de julho de 1924, Barata iria muito mais longe que nessa
malograda tentativa de captura do chefe do exército nacional. Dessa vez, ao lado de militares
como José Carlos Dubois e Ribeiro Júnior, Barata veria triunfar o ato de tomada do governo do
Amazonas, numa ação rápida e precisa, ocorrida a 23 de julho de 1924, pouco mais de duas
59
semanas após a eclosão do movimento em São Paulo. Barata assumiria, uma vez instalado o
governo revolucionário em Manaus, a chefia da Polícia Militar.
As atividades revolucionárias de Magalhães Barata e de seus pares estenderiam-se para
além da capital do Amazonas, a jusante do grande rio, alcançando as cidades de Óbidos (onde
estava localizada estrategicamente a instalação militar 4º Grupo de Artilharia e Costa do Forte
de Óbidos), Juruti e Santarém. Carlos Rocque (1999, p.37), afirma que o desejo de Barata era
o de conquistar sua terra natal. Sabe-se porém que o insucesso da revolução em São Paulo,
esmagada pelas tropas legalistas, e a expedição chefiada pelo General Menna Barreto para deter
o avanço revolucionário no Baixo Amazonas, não permitiriam a Barata concretizar, por ora,
suas pretensões em relação ao governo do Pará. A ação revolucionária que eclodiu em Belém,
por ocasião das agitações desse conturbado julho de 1924, foram controladas pelas tropas
legalistas que protegiam o governo Souza Castro. A atividade revolucionária frustrada em
Belém, ocorrida a 26 e 27 de julho, teve como marco, como amiúde foi escrito nas páginas da
história do Pará, a morte do Capitão do exército Assis de Vasconcelos, fulminado por fuzilaria
na rua que, recentemente, foi batizada com seu nome.
Magalhães Barata ganharia vulto entre seus pares do exército em inúmeras outras
ocasiões em que se pugnava em favor da revolução, as quais não há espaço aqui para descrever.
Importa, entretanto, destacar que semelhante atividade pela alteração estrutural do país,
alteração a qual se constituía, de fato, como uma demanda nacional, criaria grande expectativa
quanto aos feitos do governo revolucionário. A convulsão nacional que levaria à superação da
República Velha e à instalação de novo sistema político a partir de outubro de 1930, induziu os
chefes revolucionários a responder à crise geral que vicejava no Brasil. É no âmbito das medidas
revolucionárias, e no significado de tais medidas para o governo instalado em nível local e no
Brasil como um todo, que reside a explicação histórica mais ampla, a qual permite elucidar a
gênese de nosso objeto de estudo.
A Revolução de outubro de 1930 implicou uma alteração nas formas de domínio político
e econômico no país. Fala-se aqui em revolução no sentido de alteração das formas de domínio,
de inauguração de nova fase da história, não, obviamente, revolução como redistribuição da
propriedade ou, tampouco, como superação da contradição opressores/oprimidos. Afinal, para
usar da argumentação de Boris Fausto:
poder político outra classe ou fração de classe com exclusividade. Esta última
circunstância elimina as explicações monistas do episódio, em termos de ascensão da
burguesia nacional, revolução das classes médias (1989, 86).
É importante dizer que o Pará, como diversos outros estados brasileiros, vivia, ao longo
dos anos antecedentes à revolução, uma situação terrível tanto social quanto economicamente.
As palavras mais usadas para referir-se a esse período são: decadência, descalabro e bancarrota.
O historiador Walter Pinto de Oliveira, em estudo relativo a um movimento de contestação à
Revolução de 1930 (a revolta do Forte de Óbidos, ocorrida em 1932), analisa a manipulação do
uso dessa caracterização pelo governo Barata, a partir de um documento (“Resumo da situação
do Pará”), no qual o Interventor presta contas de sua administração ao chefe maior da nação. O
61
Como o governo chefiado por Magalhães Barata procedeu para dar tento à crise financeira
a ponto de poder investir, apenas após três anos de instalado o governo, num educandário na
ilha de Cotijuba?
Uma vez aninhado ao poder central do estado, o governo de Barata adotou medidas que
podem ser consideradas radicais, dado o impacto de seu alcance. Tais medidas – batizadas por
Carlos Rocque como “medidas de choque” (1999, p. 178) – produziram dois efeitos principais,
os quais seriam características marcantes da administração revolucionária no Estado. Um
desses efeitos – o alcance de anseios populares através de ações imediatamente benéficas à
população – geraria dividendos políticos a Barata ao longo de toda a sua carreira política. Eis
três exemplos desse tipo de medidas com efeito popular imediato: a que reduzia os aluguéis
residenciais em 25 ou 30%; a desapropriação de latifúndios urbanos na capital do Estado e a
legalização da posse pela população que lá vivia; e a criação de uma Assistência Judiciária para
a população carente que não pudesse arcar com as custas de um processo judicial.
Por outro lado, o governo revolucionário necessitava reequilibrar as contas públicas,
recapitalizar o Estado e recuperar seu poder de investimento, sem o quê, obviamente, grande
parte do programa de poder revolucionário não se efetivaria. As medidas nesse âmbito
produziriam o efeito de restabelecer a força do Estado, de modo a possibilitá-lo dirigir
novamente o desenvolvimento local, conformando, ao mesmo tempo, um patrimônio de obras
62
Mas, sem dúvida foram os impostos aliados à boa situação do mercado internacional
em relação à castanha-do-pará, que lhe permitiria ao menos o indispensável: pagar os
funcionários, resgatar algumas dívidas, amenizando a situação de descrédito que
pairava sobre o Estado e realizar obras, que dariam ao seu desempenho no cargo um
dinamismo e um caráter empreendedor talvez excessivo, falso, mas que convencia o
povo e estimulava a relação governante-governados, mobilizando-os a seu favor.
Pobre povo, sofrido, mal vestido, mal alimentado, quase que analfabeto que precisava
crer em alguma coisa desesperadamente, para poder suportar a própria miséria
(RODRIGUES, 1979, p. 42).
avanço da educação escolarizada para o interior do Estado, afirma ser muito expressivo o
aumento quantitativo das matrículas nas escolas públicas. “De maio de 1929 a 1936, as
matrículas cresceram cerca de 242%, o que caracteriza, de fato, maior preocupação com a
expansão das oportunidades de escolarização.” (2012, p. 59). O estudo de Damasceno, que vai
além do governo de Barata e alcança os dois primeiros anos de seu sucessor, Gama Malcher,
aponta o aumento da oferta de educação pública não apenas na capital do Estado, porém interior
adentro, em outra atitude inédita do governo revolucionário: levar serviços públicos aonde
jamais o Estado o havia feito. Acrescenta Damasceno:
momento tal reforma transcendeu os limites do ideário tenentista revolucionário. Como adverte
Damasceno:
É preciso que se diga, todavia, que a modernização do ensino não tinha em todos os
momentos e lugares a marca da transformação social. No Estado do Pará pareceu-nos
ficar patente o forte vínculo que tal processo manteve com a “manutenção da nova
ordem” não atingindo, em nenhum momento, outro campo teórico, político e
ideológico que não fosse aquele permitido pelas novas oligarquias encrustadas no
poder estadual (2012, p. 70).
O dr. Nogueira de Faria não participou, é certo, dos conciliábulos revolucionários, das
luctas passadas.
E eu nunca reconheci essa qualidade como a única sufficiente a recommendar alguém
ao desempenho de alta funcções do Estado. [...]
Depois que a Revolução venceu esqueci as luctas, as paixões e me senti regressado
aos sentimentos que eu alimentava antes da victória. [...]
É justamente o que eu poderia declarar quanto ao dr. Nogueira de Faria.
Ele possue qualidades sufficientes para bem ajudar me.
Tem dado provas de lealdade, tão necessária a quem governa, nesta hora de paixões,
esforçando se, para que eu chegasse, pacificamente, aos fins desejados pelo meu
governo.
Lembro de seus actos que bem corresponderam ao meu contentamento ao vel o
acceder ao convite que lhe fiz, em acceitando aquella tremenda missão, deveras
espinhosa, verdadeira prebenda, que foi a chefia de polícia. [...]
Só elle e eu poderemos conversar, a sós, e lembrar o que occorreu, as iniciativas que
tomamos, os resultados que colhemos, tudo isso sem alarde, sem estrepitos,
silenciosamente. [...]
Ao dr. Nogueira de Faria, pois agradeço, o seu assentimento em vir colaborar mais
diretamente em meu governo (O IMPARCIAL, 03.03.1933, p. 01 e 04).
A quem quer que se detenha em estudos sobre o período histórico aqui analisado, não
passará despercebido o modo quase sempre agressivo com que, sobretudo a cúpula do governo,
dirigia-se e interpelava pessoas ligadas aos círculos de poder estabelecidos antes da Revolução
17
Ver: Pereira, Escorço histórico dos atos da Revolução de 30 no ParḠBelém: 1998. Nesta obra constam os atos
do governo revolucionário, desde os decretos do governo militar, chefiado pelo Coronel Landry Salles, passando
pelos decretos da Junta Governativa Provisória, até os emanados pelo governo do Interventor, ao longo dos meses
de outubro a dezembro de 1930.
Compunham a Junta Governativa: Antonio Rogerio Coimbra; Octavio Ismaelino Sarmento de Castro; Mario M.
Chermont e Padre Leandro Pinheiro.
66
Mas, aqui mesmo, na Capital, presenciei comovedores fatos. Foi a detenção de uma
criança na central de polícia o motivo da criação da Colônia Reformatória de Cotijuba,
que hoje conta por muitas e muitas dezenas de menores que, apanhados na Rua, se
encontram amparados e encaminhados, exercendo profissões dignas (1945, p. 89 e
90).
Seu Raimundo Oito muito provavelmente deve ter ouvido a narrativa do próprio Nogueira
de Faria. Na entrevista que nos concedeu em 17 de julho de 2015, ele fala o seguinte sobre o
advento do educandário:
juiz falou com ele, e eles andando por aí vieram bater em Cotijuba. E compraram essa
ilha de uma viúva por 36 mil réis... Aí começa a história por aqui.
68
A presente seção está divida em três partes, constando duas subdivisões na última delas.
A primeira parte está focada no relato de Raimundo dos Santos relativo às circunstâncias
de seu ingresso no Educandário. O futuramente conhecido Raimundo Oito chegou na instituição
aos 14 anos de idade, já tendo ultrapassado algumas etapas da vida, nas quais viveu em meio a
grandes sofrimentos. Cotijuba apareceu a ele como uma alternativa à existência atribulada.
Em seguida, intentamos minuciar, tanto quanto as fontes documentais e a memória
nostálgica de Raimundo Oito permitem fazer, as caraterísticas da educação formal oferecida no
Educandário. O testemunho, nesse caso, ajuda a conformar ideia da rotina da instituição, em
termos de funcionamento, ao passo que as fontes documentais revelam nomes e dados.
A última parte é dedicada a explorar o sentido positivo incrustado na imagem da ilha da
redenção, sobreposta à Cotijuba pelos governos e governantes responsáveis pelo soerguimento
do reformatório e da colônia penal. No primeiro subtópico, descrevemos e analisamos os termos
da campanha cívica em torno da construção da colônia de Cotijuba, em princípios da década de
1930, a partir principalmente das comunicações feitas nos jornais impressos da cidade de
Belém, em defesa do empreendimento redentor.
No segundo subtópico a preocupação principal está em identificar os ecos redentores na
atividade dos dois homens públicos que mais pugnaram pela efetivação da ilha de Cotijuba
como local de recuperação de jovens e adultos desvalidos. Nogueira de Faria e Moura Carvalho,
não obstante todas as energias que dedicaram aos empreendimentos, toda a sinceridade com
que se devotaram às causas, não obtiveram êxito na batalha que se travou em torno da memória
da ilha de Cotijuba. A legenda da ilha da redenção, não fosse Raimundo Oito, se perderia no
limbo das décadas. E Cotijuba seria lembrada simplesmente como a ilha do diabo.
Como já no presente trabalho foi uma vez referido, é no ano de 1943, aos 14 anos de
idade, que Raimundo dos Santos ingressa no Educandário e passa a morar na ilha de Cotijuba.
Ele já galgara então algumas etapas da vida: a infância e a puberdade. Ao longo de nossas
muitas conversas e entrevistas, contudo, fomos amadurecendo a constatação de que, para ele, a
fase venturosa da existência inicia com o ingresso no reformatório. Daí a narrativa dos
69
acontecimentos precedentes a tal ingresso ser por ele minimizada, descrita em resumos e
pausas, fragmentada e dita de uma forma desapaixonada, ou mesmo irônica.
Foi da seguinte forma, por exemplo, que ele introduziu o relato das circunstâncias sob as
quais fora internado no Educandário: “É aí que minha história vai começar!”. Tal afirmação,
acreditamos, consubstancia um aspecto muito singular da persona de Raimundo dos Santos, a
saber: sua declarada empatia pelo ritmo da vida com o qual se deparou na instituição, empatia
que o harmonizou e o ligou profundamente ao lugar, de sorte a, desde aí, jamais se apartar nem
da instituição nem da ilha, a não ser por força de circunstâncias alheias a sua vontade.
A memória desse sujeito e a própria exposição das reminiscências de seu passado anterior
à chegada à Cotijuba, são afetados por aquela singularidade. A narrativa do passado anterior à
ida para a ilha é mais sombria, ao passo que o relato de muitos dos acontecimentos ocorridos
depois disso, contrariamente, chegam a fulgurar.
Ambas as circunstâncias exigem, naturalmente, alguns cuidados do pesquisador, de modo
a evitar certas “ciladas” que o uso de dados de origem memorial tem levado amiúde. O primeiro
deles, para o qual alertou Pierre Bourdieu, é prevenir-se quanto à tendência organizadora do
sujeito relator em relação a seu passado, tendência de unificação da vida em torno de princípios
e coerências, pela qual também o escritor do relato costuma enveredar. Ensina Bourdieu que tal
tendência tem sido o principal problema de muitos estudos de cunho biográfico ou
autobiográfico, baseados preponderantemente em dados de natureza memorial. Para Bourdieu,
os relatos de tal natureza baseiam-se
Seguir tal tendência, alerta Bourdieu, é aceitar o paradigma tradicional da História, isto
é, a visão dessa ciência como descrição de uma “sucessão de acontecimentos” (Ibidem),
encadeados num relato coerente, e procurando extrair desse relato aquilo que muitos chamam
de “sentido”, seja esse o sentido da vida que está sendo narrada ou mesmo o sentido da história
de um tempo ou de um lugar.
A vida, no entanto, é de tal ordem variada, é plasmada de tantas dimensões, é revolvida
sem cessar por um dinamismo tão incessante, que reduzi-la a princípios unificadores ou a
sentidos únicos, não passa, nas palavras de Bourdieu, de uma “ilusão retórica” (Ibidem, p. 187).
70
Nos vários momentos de diálogos e entrevistas que tem subsidiado a presente pesquisa, a
tendência organizadora do passado através de relato coerente, sobre a qual alerta o sociólogo
francês, esteve presente nas narrativas colhidas junto a Raimundo dos Santos. A discrepância
entre os modos menos eloquente com o qual trata do seu passado anterior ao ingresso no
Educandário, e mais entusiasmado com que desenvolve a narrativa dos acontecimentos
posteriores a tal ingresso, configuram, em nossa leitura, os meios a partir dos quais Raimundo
dos Santos organiza e dá coerência a sua própria história de vida.
Cabe a nós, com efeito, evitar a ilusão retórica. Porém, ao mesmo tempo, devemos
entender a significação, para o próprio sujeito e para a conjuntura na qual viveu, dessa atitude
em relação a sua trajetória. Por que afinal Raimundo dos Santos assegura que sua história só
começa quando da entrada no Educandário?
No clássico “A voz do passado”, Paul Thompson – que diferentemente de Bourdieu é um
entusiasta da História Oral – sugere um caminho para lidar com o grau de parcialidade implícito
nos relatos autobiográficos. Num tópico onde defende a entrevista livre de determinações
prévias inflexíveis e perguntas rígidas – a qual ele prefere em relação a roteiros de entrevista
fechados –, como forma de interlocução principal com os depoentes, o historiador inglês diz o
seguinte:
O argumento em favor de uma entrevista completamente livre em seu fluir fica mais
forte quando seu principal objetivo não é a busca de informações e evidências que
valham por si mesmas, mas sim fazer um registro “subjetivo” de como um homem,
ou uma mulher, olha para trás e enxerga sua própria vida, em sua totalidade ou em
uma de suas partes. Exatamente o modo como fala sobre ela, como a ordena, a que dá
destaque, o que deixa de lado, as palavras que escolhe, é que são importantes para
compreensão de qualquer entrevista (1992, p. 258).
Na defesa da entrevista livre, Paul Thompson sugere um caminho para lidar com o grau
de subjetividade presente nos relatos autobiográficos: entender como e porque um sujeito
“ordena” de determinado modo sua vida, “destaca” certo aspecto ou “escolhe” essas ou aquelas
palavras. Eis o que intentaremos fazer no caso de Raimundo dos Santos. Além de descrever sua
infância e o início de sua adolescência, cabe no presente tópico investigar as formas com as
quais esse sujeito singular constrói e ordena o relato dessa fase de sua história pessoal.
No ano de 1929, quando Raimundo dos Santos veio ao mundo, a situação social no Estado
do Pará era caótica. A falta de perspectivas, a crise econômica, o descalabro do Estado
flagelavam a população mais pobre. Como em todo momento agudo de crise, havia muita
miséria. Sequer as classes médias urbanas seriam poupadas, porém obviamente as classes mais
humildes foram as mais afetadas. Como já foi dito aqui uma vez, a crise transmudou-se em
71
E, de fato, se o problema do desamparo à infância pobre persistia sem solução, não era
por falta de empenho de Raymundo Nogueira de Faria. Fazia muito tempo ele pelejava pela
causa dos menores desamparados. Quase trinta e cinco anos antes dessa notícia, em 06 de
outubro de 1912, o futuro desembargador, de par com os senhores Ophir Pinto de Loyola e
Raymundo de Campos Proença, fundava o Instituto de Proteção e Assistência à Infância do
Pará, “instituição de intuitos philantrópicos, destinada a amparar e proteger a infância
necessitada” (Pará, 1913, p 03.).
Dentre os inúmeros objetivos a que se devotava esse Instituto, consubstanciados em seus
estatutos, estão:
Raymundo Nogueira de Faria contava com menos de trinta anos quando ajudou a criar o
Instituto de Proteção à Infância. Nascera em 15 de outubro de 1884, em Belém. Santana, Pontes
e Barbosa (2006), em livro dedicado a traçar a história do Espiritismo no Pará – na qual
Nogueira de Faria figura como um dos vultos –, afirmam que o futuro diretor da Colônia de
Cotijuba ainda fundaria, em parceria com Sylvio Nascimento, em 19 de dezembro desse mesmo
ano de 1912, “a escola Mont’Alverne para crianças necessitadas. Os dois fundaram ainda ‘o
Grupo Espírita Filhos Pródigos’, em 1930” (Ibidem, p. 250). Com a fundação da Colônia
Reformatória de Cotijuba, em 1934, Nogueira de Faria ampliava sua obra dedicada à causa da
juventude desamparada.
Tal obra seria determinante na vida de Raimundo dos Santos. Nascido na ilha do Guajará,
região insular de Cametá, exatamente a 11 de junho de 1929, nem chegou ele a conhecer o pai,
Raimundo Machado. Quanto à mãe, Orminda dos Santos, de quem herdou o sobrenome único,
morrera quando Raimundo ainda era uma criança de dois anos. Conta Raimundo que, a partir
de então, fora criado pela família, por uma avó. Não muito depois, fora “adotado”
informalmente por um vendedor de castanhas que ia e vinha, a montante e a jusante do rio
Tocantins. Viera morar em Belém. Chegou a estudar, mas não mais que três anos, o suficiente
porém, para alfabetizar-se. Raimundos dos Santos não menciona, intencionalmente em parte, e
por esquecimento em outros casos, nenhum dos nomes desses sujeitos com quem conviveu
durante a infância, inclusive os dos pais.
Parece ter havido, após a “adoção”, uma definitiva ruptura com Cametá e com os
familiares remanescentes na ilha de Guajará. Evidência disso encontramos nas entrevistas
realizadas com uma de suas filhas, Dona Eliete, moradora da ilha de Cotijuba e também
testemunha do funcionamento das instituições aí implantadas. Raríssimos e breves contatos
teve a família com a parentada de Cametá, nenhum vínculo formado.
O “Padrinho” trabalhava no transporte de castanha, subia e descia o rio Tocantins, até
Marabá e adjacências, deixando semanas o pequeno Raimundo sob responsabilidade de uma
“Madrinha”. Nessas condições foi ele submetido a maus tratos.
essa senhora que eu estava lá, ela me maltratava muito. Aí que vai começar minha
história! Ela me maltratava muito, me batia muito, com fio elétrico, com imbigo de
boi. Qualquer coisa que a gente vacilasse... Eu senti que eu já tava crescendo, que não
ia ser fácil. Num dia ela me bateu muito, que eu fiquei todo marcado. Porque ela foi
no dentista e deixou uma comida lá, e eu dei atenção pra essas brincadeira de
papagaio. Aí a comida queimou. Foi uma surra de imbigo de boi que eu fiquei todo
73
Ele (o Juiz) falou comigo: “Que tal Raimundo o que tu escolheste pra ti?” “Doutor eu
estou escolhendo Cotijuba”. Aí ele me abraçou porque ele queria que eu fosse para
Cotijuba. O Doutor Nogueira de Faria, que era Desembargador, trabalhava num
gabinete assim bem perto dele (do Juiz). O Doutor Nogueira de Faria era o Diretor
daqui (do Educandário) e trabalhava lá como Desembargador. Então o Juiz me levou
com ele, me apresentou. Eles prepararam os papéis e me mandaram para Cotijuba.
Poderia alguém dizer assim: “E daí o senhor se arrepende?” “Não! Antes eu tivesse
nascido aqui no Cotijuba!” Com isso que eu estou falando eu já disse tudo. O que foi
Cotijuba para mim e para os outros colegas que aqui viveram (IBIDEM).
É certo que em 1943, a Colônia de Cotijuba, então com 09 anos de fundada e mantida
com os esforços pessoais sobretudo de Nogueira de Faria, não era o melhor lugar do mundo.
Aliás, o próprio Raimundo dos Santos, grande entusiasta do empreendimento, não escondeu
sua perplexidade diante da sugestão que ouviu do Juiz de Menores: “Quando ele falou em
Cotijuba, meu cabelo arrepiou todo. Porque Cotijuba tinha má fama. Não era verdade, mas tinha
má fama.” (Ibidem). Ir para lá implicava submeter-se às regras da internação, ao ritmo de vida
de uma instituição controladora do cotidiano. Era estar distante da cidade. Tudo indica, no
entanto, que Raimundo dos Santos não teve maiores problemas para se integrar ao novo
contexto. Ao contrário, valeu-se da internação como ocasião para iniciar o empreendimento de
uma vida melhor em relação àquela que, até então, pudera viver.
74
Ele jamais esqueceria o dia 25 de setembro de 1943, data de seu primeiro desembarque
em Cotijuba.
Hoje, o octogenário Raimundo – na ilha muitas vezes alcunhado Seu Oito –, resiste a
pisar no continente, não obstante todos os esforços de seus filhos para leva-lo dali. A fragilidade
de sua saúde é motivo de preocupação permanente. Debalde, porém, tem sido os esforços no
sentido de demovê-lo do apego ao lugar. Reside solitariamente num quarto de pousada no bairro
central da ilha. Setenta e dois anos após sua chegada, mantém total fidelidade ao lugar.
política, marcado pela primeira derrota mais consistente do baratismo, até então soberano. No
documento, é relatado que a Colônia há recebido ajuda financeira do governo, de modo a aliviar
sua ruim situação pecuniária, e para poder perpetuar “a obra meritória que realiza, subtrahindo
a juventude abandonada ao ambiente vicioso da rua” (1936, p. 88); tal ajuda é oriunda de fundo
pertencente à “Caixa especial da Polícia” (Ibidem). As instalações da Colônia contavam então
com dois pavilhões onde conviviam os menores internos e onde estavam instalados um posto
médico, as oficinas para efetivar o ensino técnico, a residência dos operários e “duas escolas,
destinadas á instrução dos filhos dos moradores da ilha” (Ibidem). Sabe-se além disso que o
mais tarde batizado Educandário Nogueira de Faria, está por receber a equipagem completa de
uma serraria, destinada pelo Governo Federal à ilha de Cotijuba, após a desativação da colônia
de Clevelandia, com o que espera o relator da mensagem “dest’arte apparelhar a Colonia com
elementos de renda, que lhe assegure a existência” (Ibidem).
Conclui-se o pequeno relato com a informação de que a direção da Colônia, até então
confiada ao Desembargador Nogueira de Faria, mudara recentemente, por ocasião da
reorganização formal da instituição, que tornara em Fundação, no mesmo ano de 1936, ora
denominada “Instituto de Assistência Social de Cotijuba” (Ibidem).
Uma constatação interessante da leitura dos dois documentos até então aludidos no
presente tópico é a de que a Colônia Reformatória de Cotijuba, embora haja recebido ajuda do
Estado para se erguer e se manter, principalmente por atitude dos dois maiores mandatários do
primeiro governo revolucionário – Magalhães Barata e Nogueira de Faria –, não constituía um
ente subordinado formalmente à Administração Pública. Tratava-se então de uma sociedade
civil, um Instituto. E pareceu mesmo motivo de preocupação ao governo Malcher a autonomia
financeira da Colônia.
Quanto à questão central do presente tópico, embora sem detalhar as práticas, a mensagem
apresentada por Gama Malcher deixa entrever que a educação oferecida pelo então Instituto
era, ao mesmo tempo, elementar e técnica, operada em parte no estilo escolar e em parte nas
oficinas.
Na mensagem apresentada no ano de 1948 por Luís Geolás de Moura Carvalho, no tópico
referente ao Departamento de Segurança Pública, assinado pelo Chefe de Polícia João Guédes
da Costa Neto, aparece um Educandário Magalhães Barata, com a informação de que se
vinculara recentemente àquela secretaria. Nesse mesmo tópico, pareados ao Educandário,
aparecem o Instituto de Reeducação Social (Colônia Penal instalada também na ilha de
Cotijuba), além de outras repartições sediadas em Belém, como o Albergue Policial, o Asilo de
Mendicidade D. Macedo Costa e a Ação Social da Polícia. Afirma o relator que o Educandário
77
“tem dado os melhores resultados dentro da finalidade para que foi instituído” (1948, p. 243),
e que nele encontram-se “internados, presentemente, 90 menores, os quais, recebendo as luzes
da instrução e exercendo uma profissão condizente com a sua idade, de certo, far-se-ão homens
úteis à pátria”.
O pequeno relato é rematado com a afirmação segundo a qual as duas instituições
coexistentes na ilha de Cotijuba, isto é, o Educandário e a Colônia Penal, “vêm sendo
cooperadoras de grande importância na ação social a que se propõe o Departamento” (Ibidem).
Em 1954, na mensagem submetida pelo General Alexandre Zacarias de Assumpção,
aparece o Educandário Monteiro Lobato, agora a compor o quadro da Secretaria de Interior e
Justiça. É curioso notar a composição ampla e heterogênea dessa Secretaria, em cuja malha
coabitam, entre outros, o Departamento de Segurança Pública, a Polícia Militar, o Presídio São
José, o Departamento de Assistência aos Municípios e a Junta Comercial.
A gestão de Zacarias de Assumpção empreendeu vistosa reforma e ampliação do
Educandário, investimento, aliás, estendido à própria ilha de Cotijuba. Não é estranho, portanto,
que o empedernido inimigo político de Magalhães Barata, como o foi o General, não permitisse
ao Educandário, onde investiu esforços, seguir reverenciando seu renhido opositor. O fato é que
a primeva Colônia Reformatória de Cotijuba haveria de ser fartamente rebatizada ao longo de
sua história, sem que a memória guardasse uma denominação específica. Algumas vezes essa
instabilidade de nomes refletia os jogos de poder, as oscilações políticas tão próprias da história
local.
Há certa ironia no fato de que a Colônia Reformatória de Cotijuba – criada no princípio
da década de 1930, na gestão de Magalhães Barata –, haja recebido consistente atenção da
facção política inimiga, vinte anos depois, em meados da década de 1950. A mensagem
submetida à Assembleia Legislativa no ano de 1955, por Zacarias de Assumpção, detalha a
intervenção então realizada pelo Estado na instituição e na ilha como um todo, e é esse
documento a melhor referência para visualizar as características da educação oferecida pelo
Educandário aos internos.
No tópico referente ao Educandário Monteiro Lobato, o relator do documento ocupa
grande parte do texto com descrições das reformas empreendidas pelo governo na instituição,
reformas iniciadas em 1951, primeiro ano da administração de Zacarias de Assumpção. Não
poupa acidez na descrição do estado das instalações físicas do Educandário no início do atual
governo, quando apresentava “um aspecto lastimável e de total abandono. A falta de sanitários,
água corrente e conservação da pintura, dizia bem do estado anti-higiênico em que viviam os
educandos” (1955, p. 32). Segue o relator detalhando as intervenções empreendidas pelo
78
governo, com a reforma dos três pavilhões do prédio e construção de quatro outros, nos quais
vieram a se instalar os setores de rouparia, dormitórios, banheiros, sanitários, salas de aula e
alpendre (Ibidem). Outras reformas são mencionadas, inclusive melhorias na própria estrutura
da ilha de Cotijuba, tais como abertura de estradas, construção de trapiche, da Igreja e da Praça
de São Francisco.
Serviços médicos e odontológicos eram prestados pelo Educandário não apenas aos
alunos, porém estendidos à comunidade em geral da ilha de Cotijuba e demais ilhas ao redor.
No tocante diretamente à educação oferecida pelo Educandário, o relato é cindido em
quatro partes: Primária, Física, Agrícola, Moral e Cívica e Religiosa. É importante transcrever
o trecho:
Santos fixara na memória algo do funcionamento da instituição nos tempos em que Raymundo
Nogueira de Faria a dirigia. Os demais sujeitos cujos testemunhos dispusemos referiam no todo,
ou em maior porção, a episódios relativos à colônia penal, em período cronologicamente mais
recente.
A memória de Raimundo Oito permitiu vislumbrar algumas características da rotina do
interno, as quais descreveremos a seguir. Antes disso, porém, cabe mencionar um ponto do
clássico estudo de Erving Goffman, especificamente sobre a situação do internado em
instituições totais. Conforme o estudioso, tais instituições, através da tensão provocada pela
separação entre o sujeito internado e o mundo onde esse sujeito vivia, engendram processos nos
quais sucede a “mortificação do eu”. Ao adentrá-las, o internado é de supetão instado a uma
brusca ruptura com as concepções anteriormente urdidas sobre si próprio, na vida civil, ao
mesmo tempo em que é levado a adotar um conjunto de regras, preceitos e rotinas organizadas
formalmente. “Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais,
começa uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu eu
é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado” (GOFFMAN,
1961, p. 25).
A profanação sistemática do eu, ensina Goffman, prossegue num turbilhão de práticas,
interdições e controles. Essa desfiguração manifesta-se, por exemplo, na perda da possibilidade
de apresentação do eu, traço tão comum na vida civil, e na correspondente impossibilidade de
assunção de papéis sociais distintos da condição de internado. É quase uma morte civil,
separação prolongada ou definitiva em relação a tudo aquilo que vinha caracterizando o eu do
sujeito em sociedade. Profana-se o eu pelos testes de admissão ou as tradições de boas-vindas,
nos quais constrangimentos e sofrimentos são infligidos através de exames, interrogatórios,
diversos tipos de exposição e até, no caso de ritos de ingresso (boas-vindas), suplícios físicos.
Mortifica-se o eu pela separação do sujeito em relação as suas propriedades, pela perda de
controle da aparência, pela suscetibilidade da segurança pessoal, pela exposição de fatos
íntimos. Ser forçado a movimentos aviltantes, estar obrigado a repostas verbais humilhantes,
ou a realizar atividades sem sentido simbólico para quem o faz, receber tratamento vil: são
outras formas de mortificação do eu (GOFFMAN, 1961, p. 24-69).
No relato de Raimundo dos Santos, no entanto, todo o peso do processo de mortificação
estudado por Goffman, parece estar relativizado. Sua narrativa é a de um sujeito nostálgico.
Houve certo voluntarismo em sua adesão à entrada no Educandário, sobretudo porque a vida
que levava antes do ingresso na instituição estava completamente desestruturada, como já
referimos aqui. O sociólogo não omite tal condição, embora a refira como menos comum,
80
Arthur Claudio Melo, então secretário de Interior e Justiça, escreveu a resposta ao diretor
interino à caneta, por sobre o próprio ofício original: “...falece de competência á sua Diretoria
para desligar educandos, antes de prévia e expressa autorização desta Secretaria” (Ibidem).
Os dramas da ruptura brusca com a ordem civil, tensão fundamental do internamento em
instituições totais, não foram, portanto, silenciados completamente no relato de Raimundo Oito.
Ele não os nega, porém os minimiza. Certamente vivenciara o caso do menor Pedro Henrique
da Silva, porém reserva a semelhantes casos um lugar marginal na memória e na correspondente
narrativa dessa memória.
Em nenhum dos relatos de Raimundo Oito aparece o castigo físico, prática não incomum
em semelhantes instituições. Os falíveis seriam admoestados de formas alternativas: eram
alijados de diversões, de brincadeiras e sofriam outras sanções leves. Aqui, porém, há
contradição com o depoimento de outro sujeito cujo testemunho ouvimos no correr da pesquisa.
81
Seu Jericó, embora haja sido internado apenas uma curta temporada de 5 meses, no início
da década de 1950, foi marcado pela experiência no Educandário. Não raro, a menciona entre
os amigos e clientes que frequentam seu pequeno comércio. Tudo indica haver amiúde
respondido a afirmações segundo as quais Cotijuba era lugar de ladrões, pois reafirma mais de
uma vez que ali encontrara apenas meninos levados, cheios de energia, como ele, José, aliás
internado por “excesso de traquinagem”. Não saiu de sua memória o choro de crianças,
principalmente à noite, por nostalgia de casa e da família; ou a brusquidão com que inspetores
da instituição tratavam os internos. Seu Jericó descreve uma educação severa e repressiva:
palmatória, cascudos e maus tratos. Na conclusão de sua narrativa tenta, contudo, minimizar a
brutalidade dos termos: “Mas isso aí era coisa comum na época, tinha em todo lugar”
(Entrevista realizada em 22/06/2016).
Diferentemente de Raimundo dos Santos, Seu Jericó menciona muitas das vicissitudes da
vida numa instituição total: a opressiva sensação de solidão, de abandono das condições de
vida, da distância da família. “A gente tinha que fazer outras amizades e sentia falta da vida de
antes. Muitos, à noite, choravam e sofriam. Os inspetores não ajudavam” (Ibidem).
Casos de fuga, portanto, não eram incomuns. Os mais ousados furtavam montarias de
moradores da ilha e arriscavam-se na travessia da baía. Raimundo dos Santos não esconde tais
ocorrências: “Sempre aparecia esse tipo de pessoa: pegava a montaria do morador e ia embora”;
porém, logo em seguida, acrescenta: “Tinha uma coisa que acontecia, logo a polícia segurava
ele” (Entrevista realizada em 05/05/2016). Muitas das fugas não se chegavam a efetivar devido
à vigilância dos inspetores.
A rotina estava dividida entre a educação formal, em sala de aula; a educação técnica, nas
oficinas; e as atividades de ajuda ao funcionamento do Educandário, como faxina, limpeza
interna e externa, reparos de avarias, etc. Os internos dormiam em dois alojamentos, em camas
patentes, e eram acordados ao soar de alvorada da corneta às cinco horas da manhã. Seguia-se
uma sessão de exercícios físicos, após o que o grupo tomava banho, às seis da manhã, no
trapiche do Educandário. Após o café, em torno das sete ou sete e meia, havia a formatura dos
internos na praça em frente ao prédio da instituição, para o hasteamento das bandeiras do Brasil,
do Pará e de Cotijuba e a execução dos respectivos hinos. Às seis da tarde, reuniam-se todos
novamente no pátio do prédio, e, ao som dos hinos, as bandeiras desciam dos mastros.
Havia dois turnos educativos, os que o frequentassem pela manhã, à tarde estariam
encarregados da limpeza, e vice-versa, ou frequentariam o ensino técnico, nas oficinas, ensino
esse ministrado pelos chamados mestres: marceneiros, padeiros, mecânicos, etc. As atividades
de sala de aula eram as elementares de leitura, escrita e cálculo, ministradas geralmente por
82
Ao longo dos últimos 80 anos foram urdidas três visões ou ideias sobre a ilha de Cotijuba,
três imagens aliás bastante pitorescas. Ao presente trabalho convém buscar elucidar a gênese
de tais ideias-visões-imagens, ou, ao menos, descrever a conjuntura dentro da qual foram
forjadas – por quais agentes, com quais intenções.
Como é natural, cada uma dessas visões ou ideias, na síntese que empreendem, são a seu
modo redutoras da realidade global da ilha, demarcadoras de uma única dimensão da ação
humana e objetivadas em clichês ou chavões: a ilha da redenção, a ilha do diabo e a ilha dos
prazeres. Ao mesmo tempo, porém, revelam elas um contexto, dizem de alguma forma de uma
atitude mental coletiva e induzem à reflexão histórica.
A mais recente dessas imagens nasceu ao longo dos anos 80 e 90 do século passado e a
descrevemos no tópico referente à história da ilha de Cotijuba, legenda que identifica a ínsula
a um local de lazer, rápido e de fácil acesso, cujas facilidades aliás fizeram surgir a imagem do
recanto bucólico, dos prazeres sensuais, do cinema pornográfico, etc. Não a retomaremos aqui.
Quanto às demais, nos deteremos nelas a partir de agora, no presente tópico e em tópico
posterior, pois dizem elas diretamente do objeto do presente estudo. Convém aqui demarcar
uma espécie de constatação: não se pode estudar, em nossa opinião, a história do Educandário
Nogueira de Faria em separado da história da ilha de Cotijuba. A presença do Educandário, e
mais tarde do Instituto de Reeducação Social, definirá em maior escala as formas de ocupação
e, portanto, de evolução histórica da ilha; assim como a derrocada de tais instituições facilitou
a urdidura de outra forma de ocupação e de uma distinta imagem do lugar. A história das
instituições e a história da ilha de Cotijuba se confundem e se interpenetram muitas vezes no
período em questão.
A conformação de uma atitude mental negativa em relação à ilha de Cotijuba foi sendo
urdida logo após a implantação do Educandário, no início da década de 1930. O Educandário,
de início batizado Colônia Reformatória de Cotijuba, constituía um internato forçado, e
funcionava em estilo instituição total. Era natural que despertasse repulsa. A atitude de
Raimundo dos Santos, de endosso da vida que lhe fora oferecida (ou imposta) na instituição, é
completamente singular. Porém mesmo ele, defensor ardoroso da instituição, em mais de uma
ocasião, reconheceu haver inúmeros descontentes. Seu depoimento no filme “Cotijuba: a ilha
do diabo?”, é revelador; disse ele: “Cotijuba, lá fora, apenas lá fora, nunca foi considerado um
lugar bom!”. E porque seria considerado? Tratava-se de um lugar onde os jovens iriam cumprir
84
medidas extraordinárias, completamente apartados da vida que levaram até então, submetidos
às regras da casa, encerrados numa bucólica ilha.
Em outra ocasião, comentando o trânsito burocrático antecedente a sua internação, o futuro
interno número 8, não sem uma nota de contrariedade, esmiuçou em maiores detalhes o assunto:
Quando o juiz de menores me chamou, ele me deu três opções: voltar pra casa onde
eu estava e tinha sofrido; ir pra uma casa de família em Belém; ou ir pra Cotijuba...
Quando ele falou em Cotijuba, aquilo me arrepiou todinho, porque Cotijuba nunca foi
bem vista lá fora. Não era verdade, mas nunca foi bem vista (ENTREVISTA
REALIZADA 05/05/2016 ).
A má fama parece ter-se difundido pela capital paraense. Outro depoente do filme – Seu
Nildo – é mais incisivo: “Quando algum moleque fazia algo de errado, se dizia logo ‘olha vou
te mandar pra Cotijuba!’, aí o moleque se quietava”.
José da Costa, alcunhado Seu Jericó, morador do bairro da Sacramenta, em Belém, onde
cuida de um pequeno comércio de periferia, passou uma temporada na ilha, internado no
Educandário, no ano de 1952, quando contava 11 anos de idade. Em depoimento, explicou que
foi remetido à instituição por atitude da família, preocupada com sua insubordinação, ou
“excesso de traquinagem”, nas palavras com as quais se referiu ao episódio. Vivia na rua,
dormindo às vezes longe da casa onde residia com a irmã e o cunhado. Por intermédio desse
último foi internado, numa medida extrema para conter os excessos de energia do jovem José.
A documentação oficial levantada ao longo da pesquisa parece confirmar essa tendência: a
internação – e a ameaça de internação –, constituiu por muito tempo um recurso usado pelas
autoridades oficiais e pelas famílias como meio de debelar a rebeldia juvenil. A consulta aos
livros de protocolo da Secretaria de Interior e Justiça, ao longo da década de 1950,
principalmente a partir de 1954, revelaram inúmeros pedidos de internação por parte de
familiares, sobretudo mães.
Em 26 de janeiro de 1954, por exemplo, está anotado no livro de despachos que a senhora
Madalena Ferreira Fáro solicita o “internamento dos menores Edvam Antônio Ferreira Fáro e
Francisco de Assis Ferreira Fáro, no I. Lauro Sodré ou no Educandário ‘Monteiro Lobato’”
(1954, p. 44). Em seguida, o veredicto do Secretário: “Interne-se no ‘Educandário Monteiro
Lobato’. Comunique-se á requerente” (Ibidem, p. 143). Outro exemplo, é o do menor Manoel
Afonso Alves da Silva, internado por petição de sua mãe, Zeneide Alves da Silva, petição
aquiescida pelo Secretário a 15 de março de 1954.
É bom dizer que ao longo da década de 1950, a partir da gestão de Zacarias de Assumpção
(1950-55), o Educandário e a própria ilha de Cotijuba receberam incremento oficial, em ambos
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os casos com melhoras infraestruturais. Não é estranho, portanto, que com as novas condições
da instituição e a consequente propaganda oficial em torno das ações do governo, passassem a
chover petições como as sobrecitadas à mesa do Secretário de Interior e Justiça ou mesmo do
Governador do Estado.
Porém mesmo antes disso, como mostrou o sociólogo Assunção Amaral em sua pesquisa
sobre o Educandário Nogueira de Faria, os insubordinados já haviam de se esquivar de tão
funesto destino. Notícias do jornal “O imparcial”, de 09 de junho de 1934, fontes do sociólogo,
asseguram que o menor Aurino Alves de Lima, de 13 anos, será em breve remetido para a
“Escola Reformatória de Cotijuba”, como medida para refrear a falta na qual ele incorreu, a
saber: perambular “sem ocupação”, pelo bairro de Val-de-Cans (1992, p. 08). Em 1936, a 15
de julho, “O imparcial” noticiava nova remessa de menores à C.A.C. (provavelmente Colônia
Agrícola de Cotijuba), dessa vez em grupo de seis indivíduos. A causa: eles “andavam pelas
nossas ruas sem destino certo” (Ibidem, p. 09).
Na sequência, o historiador afirma o seguinte: a clientela da instituição reformatória
compunha-se de “menores que não se enquadravam nos padrões sociais exigidos pela capital
da Amazônia; a maioria era filho de famílias residentes na periferia” (Ibidem).
Na monografia que realizou sobre a Colônia Reformatória de Cotijuba, período entre 1930
e 1936, a historiadora Jucivânia Moraes Gordo (2002), indica o início da conformação da
atitude mental negativa sobre a ilha e a instituição. Passada a euforia da campanha em prol do
soerguimento da colônia, a ação policial de cooptação dos menores, muitas vezes violenta,
inaugurou, nas palavras da historiadora uma
Tudo isso posto, não é descabido afirmar que a ascensão da colônia reformatória forçou
pouco a pouco a emersão de uma visão negativa do lugar, correspondente à repulsa provocada
pela simples menção ao nome Cotijuba. Trata-se de uma legenda com valor prático explícito:
forçar o enquadramento de jovens rebeldes ao padrão civilizatório então reinante. “Vou te
mandar pra Cotijuba!”, passou a ser a frase maldita, cuja menção provocava calafrios e cuja
ressonância ainda hoje não se extinguiu na memória de muitos dos que viveram aqueles tempos.
A instalação da colônia penal, a partir de meados da década de 1940, e mais tarde a
degeneração desta instituição em um depósito de presos, multiplicou a má fama já sobreposta
à ilha de Cotijuba, principalmente a partir da instalação dos militares no poder central do país,
pós abril de 1964, a partir de quando os abusos e truculências praticados pela polícia
disseminaram na imaginação coletiva local as histórias da “ilha do diabo”. Haveremos de nos
ater especificamente a esse aspecto em tópico próprio.
Queríamos a partir de agora, entretanto, empreender o movimento contrário, objetivando
descrever a forja de outra visão sobre Cotijuba, diametralmente oposta à visão maldita que se
formou consequentemente à instalação das instituições reformatória e penal.
Magalhães Barata, induzindo doações em dinheiro à futura colônia por parte do funcionalismo
estadual. Em nossa pesquisa, no entanto, localizamos um pronunciamento de Nogueira de Faria
de 29 de agosto, três dias antes, na mesma Folha do Norte, “Rôgo a fazendeiros e
commerciantes”, no qual conclama as classes abastadas a contribuir com o projeto cívico.
Importa, nisso tudo, notar que a campanha ecoaria fortemente pela imprensa local, sobretudo
ao longo desse mesmo mês de setembro.
Aqui é importante não perder de vista – e o texto de Jucivânia Gordo confirma isso – que
a sociedade paraense respirava um sentimento de renovação política consubstanciado pelo
governo revolucionário de Barata, após mais de vinte anos mergulhada numa crise
socioeconômica catastrófica. Ou seja, ao mesmo tempo em que ocorria a ascensão de uma nova
classe ao poder, um conjunto de expectativas positivas de melhorias sociais também se erigia.
Além disso, havia necessidade de superação de problemas espinhosos engendrados pela crise
de duas décadas. A questão da delinquência e abandono de crianças e jovens na capital
constituía um flagelo com o qual o governo revolucionário, em sua ânsia de ordem e
higienização social, haveria de se trombar necessariamente.
A presença de jovens delinquentes e mendicantes pelas ruas de Belém já constituía,
portanto, a justificativa do empreendimento correcional. A sociedade da capital encontrava no
projeto redentor esperança de regeneração dos jovens desvalidos vitimados pela má sorte. Ou,
mais provável, simplesmente encontrasse via de se ver livre da escória malsã que estorvava as
ruas da bela capital paraense.
Os agentes empreendedores da campanha cívica em favor da construção da colônia,
sobretudo a militância de Raymundo Nogueira de Faria, aproveitaram-se largamente do vácuo
de políticas públicas beneficiadoras de crianças e jovens. E azeitaram, com palavras singelas, a
benevolência geral da sociedade. Nesse particular, ninguém parece ter sido mais eficiente que
o magistrado espírita. Um quarto de século mais tarde seria ele homenageado com o empréstimo
de seu nome à instituição pela qual tanto pelejou.
Nas palavras de Gordo:
18 Curioso notar que esse sujeito de vida política e social tão intensa, ainda arranjasse oportunidade para
desenvolver consistente produção como escritor, cuja eloquência, aliás, requereu concurso de variados gêneros. À
maneira de outros intelectuais profícuos contemporâneos ou de gerações anteriores – Bruno de Meneses, Dalcídio
Jurandir, José Veríssimo –, o homem forte do governo interventor no Pará escreveu em diversas linguagens,
disseminando sua retórica humanista e moralizante em prosa e verso. Diria mesmo que em variedades da expressão
escrita, dentre os intelectuais de seu tempo, seja Nogueira de Faria insuperável. Escreveu livros nas áreas de
história, educação, direito, política, literatura infantil e religião (espiritismo), além de haver contribuído na
imprensa e ser inclinado à poesia.
89
mística que lhe correspondesse em gravidade, não estranho ser ela diametralmente oposta à
matriz romântico-ingênua empunhada pela alta sociedade na campanha, Nogueira de Faria à
dianteira.
Uma conclusão razoável seria a de que a mística da ilha da redenção foi chocada em meio
às elites locais, ao passo que a legenda da ilha do diabo nasceu em meio à camada do povo
sensível à brutalidade da instituição. Para esta e aquela visões muito contribuíram os jornais
impressos locais, como a Folha do Norte e O Imparcial, nos quais ecoaram e difundiram-se no
primeiro momento a campanha redentora, e, mais tarde, as histórias da ilha do diabo.
O trânsito entre o domínio de cada uma das versões foi rápido: entre o início da campanha,
em 1931 e a má ressonância das atividades de cooptação de menores, a partir de 1933, temos
apenas dois anos. Era o tempo no qual Magalhães Barata reinava quase absoluto no poder
central do estado, do qual seria apartado, temporariamente, apenas em 1935. A trama explica
porque ainda hoje, oitenta anos além, é na costa larga de Barata que bem cabe a conta dos
abusos praticados contra os internos pela polícia. Afinal, era a polícia de Barata, a responsável,
junto com o juizado de menores, pela cooptação e encaminhamento de menores à colônia.
Todavia, o tenaz empenho com o qual Raymundo Nogueira de Faria lançou-se à causa não
esmoreceria ao longo dos anos. De fato, alguns testemunhos veem no empreendimento
reformatório em Cotijuba a grande obra da vida do paraense ilustre. Silvio Hall de Moura, outro
notável magistrado local, afirma o seguinte: “O ponto alto, porém, da vida do Desembargador
Nogueira de Faria, foi a criação da ilha de Cotijuba como reformatório de menores carentes”
(1994, p. 34). No parágrafo seguinte do discurso – feito por Moura especialmente em alusão ao
centenário do nascimento de Nogueira de Faria –, porém, há uma espécie interessante de
ressalva: “Infelizmente não souberam aproveitar idéia tão magnífica e a ilha de Cotijuba,
aparelhada para reformatório, transformou-se em uma terrível prisão correcional” (Ibidem).
Outro relato de interesse, é o de Luís Farias, um dos filhos de Nogueira de Faria, cuja
carreira também enveredou pela magistratura, coletado num discurso de agradecimento,
reproduzido numa coletânea impressa 19 do Tribunal de Justiça sobre ilustres integrantes da
repartição. Diz o seguinte:
19 Dessa mesma referência foi extraído o fragmento do discurso de Silvio Hall de Moura.
91
párias, ao Deus dará, sem outra escola que a própria rua, sem outro destino que a
própria miséria, chegando ao crime – e é o que hoje se verifica – conseguiu na ilha de
Cotijuba (PARÁ, TJ, 1994, p. 43).
Não estranho parece ter sido a omissão, nesse discurso, relativa ao aspecto lúgubre do
legado da colônia de Cotijuba, afinal envolve o pai do autor do relato. Ignoramos a fragilidade
de tal fonte propositadamente, para cotejar esse discurso com o depoimento prestado pelo
mesmo Luís Farias ao sociólogo Assunção Amaral, quando realizava este sua pesquisa sobre a
colônia de Cotijuba. Para Farias, a construção da colônia penal na ilha de Cotijuba distorceu o
projeto original criado por seu pai. Os descendentes do magistrado ilustre, naturalmente
preocupados com a má fama que Cotijuba ia cumulando na imaginação local, e com a
vinculação inevitável do nome de Nogueira de Faria às instituições instaladas na ínsula,
posicionaram-se pelo legado do parente: “Durante décadas a família Faria travou uma intensa
luta para rever e desligar o nome do Desembargador ‘Nogueira de Faria’, do presídio”
(AMARAL, 1992, p. 18). Tudo debalde: a memória remanescente parece ter sido injusta com
o idealizador e principal criador do projeto de redenção da juventude desvalida. “No
depoimento, incialmente negado, Luis Farias, relatou com bastante sentimento, que a luta foi
árdua e chegou um momento que a família preferiu esquecer” (Ibidem).
Trata-se de um caso curioso de disputa pela memória. E se vê na postura de Luís Farias o
modo pelo qual tal contenda torna vulneráveis certos grupos humanos. O fato de nos dias de
hoje a memória histórica obscura sobre Cotijuba e as instituições que aí nasceram e
extinguiram-se, sobressair-se na imaginação coletiva local, em detrimento de visões positivas,
às vezes pitorescas, sugere o triunfo de uma memória eminentemente popular.
Dizemos isso ressalvando a singular visão de mundo de Raimundo dos Santos, homem do
povo que se posicionou – conscientemente – na batalha travada pela memória local, assumindo
a mística redentora.
políticos e em especial na figura do chefe maior do movimento, Magalhães Barata, com quem
o autor, como é sabido, manteve laços estreitos.
Em nota introdutória (Este Livro), na qual depõe sobre a condição daqueles tempos de
mudança política em todo o país, Nogueira de Faria fixa inicialmente o microscópio na
condição contraditória de seu chefe: sujeito de grandes virtudes, mas de rompantes
desagradáveis na mesma medida. “Personalidade complexa e insubmissa, êsse homem foi
sempre ele mesmo, num total de virtudes e defeitos, cujas parcelas se não alinham em verticais
exatas, dificultando a soma das nossas observações” (1945, p. 01). O autor, no entanto,
manteve-se distante dos dilemas, e pugnou por iluminar, com o livro “uma nêsga do lado bom
desse homem” (Ibidem), pois acreditava ser Barata alguém “Posto a destino de um povo, em
uma hora de transição difícil” (Ibidem). Eis os termos com os quais o autor descreve o “lado
bom” de Barata: “seu profundo e sincero idealismo; sua constante simpatia pelas classes pobres;
seu acolhimento reconfortante à queixa dos humildes; sua inclinação amiga pelas crianças”
(Ibidem, p. 01 e 02).
A cada uma das virtudes do chefe, Nogueira de Faria dedicará um capítulo do livro: às
formações revolucionária e ideológica; à instituição da Assistência Judiciária (em favor dos
direitos das classes pobres); à assistência prestada por Barata à infância, com a ampliação do
alcance do ensino público e a criação da Colônia Reformatória em Cotijuba.
Mas é no último capítulo desse livro laudatório, lançado mais de década após a inauguração
da Colônia Reformatória, que a ideia da ilha da redenção outra vez se desdobra. Cá, mais um
ilustre personagem entra em cena: Luís Geolás de Moura Carvalho, então chefe de polícia na
segunda Interventoria de Magalhães Barata (1943-45), e futuro governador do Estado.
Um dos militares a integrar a revolução tenentista em 1930 no Pará, o oficial militar Moura
Carvalho desde então integrou a vida pública regional, participando ativamente dos percalços
políticos próprios desse meio. Seja nos altos postos supracitados, ou na condição de deputado,
inclusive constituinte em 1946, ou mesmo como vice-governador no período agitado sucedido
ao falecimento de Magalhães Barata (1959), o Major Moura Carvalho inscreveria seu nome na
história paraense.
Pois na terceira parte de “O caminho da história”, Nogueira de Faria desloca atenção de
Magalhães Barata e, no mesmo tom laudatório, passa a focar um aspecto, a nós de grande
interesse, da obra pública de Moura Carvalho. No item “O problema penitenciário no Pará”
(Ibidem, p.95), o autor sugere ser o Major um dos dirigentes públicos cuja trajetória mais
concorreu para rebater as mazelas do sistema penal do Estado. Foi sob influência de Moura
93
Carvalho que se havia pouco antes procedido melhoramentos no maior centro penal do Estado,
o Presídio São José. Nas palavras, sempre estilosas, de Nogueira de Faria:
Resolvido o problema presidiário no Pará, – porquê o está por muito tempo, Moura
Carvalho resolutamente enfrenta um outro, talvez mais sério ainda: o dos prêsos
correcionais. Belém estava cheia de vagabundos e larápios, criaturas infelizes, muitas
das quais imbuídas de pessimismo sombrio e desolador (1945, p. 125).
E foi na senda de resolver o problema dos presos correcionais, e por atitude de Moura
Carvalho, que se urdiu o projeto do Instituto de Reeducação Social, cujo decreto de criação,
publicado em “O caminho da história”, aparece em 20 de fevereiro de 1945. Seria a segunda
instituição implantada pelo governo chefiado por Magalhães Barata na ilha de Cotijuba.
Raymundo Nogueira de Faria parece recobrar o entusiasmo com a nova obra, e mais uma vez
disseminará aos quatro ventos a vocação redentora com a qual veio dourando a ilha de Cotijuba
desde o início da década anterior.
Witzwil é uma penitenciária agrícola localizada no cantão de Berna, na Suíça, criada em
1895. Nogueira de Faria espelha o novo empreendimento a tal modelo, afirmando que Moura
Carvalho – “preocupado com a obra penitenciária que o empolgou para sempre” (Ibidem,
p.126) –, selecionou “uma grande área da ilha de Cotijuba para nossa Witzwil, para seu ‘novo
campo de operações’ e lá fundou o Instituto de Reeducação Social” (Ibidem). O autor não
testemunhara além de cinco meses de atividade da nova instituição – o livro é de 1945 –, mas
já arrolava os dividendos da obra e do autor: Moura Carvalho “Limpou Belém de malandros e
bêbados contumazes, de rufiões e vadios, destinados ao tratamento moral pela terapêutica
intensiva do trabalho obrigatório” (Ibidem).
Um empolgado com a vocação redentora da ilha a quem tanto trabalho já dedicara e ainda
haveria de o fazer, Nogueira de Faria parece delirar com os esperados frutos da nova obra:
antevê campos arados, lavouras, hortas, psicultura. Louva, em tom grandiloquente o “espírito
culto e idealista” do chefe de polícia, pela manutenção do qual roga a Deus. O excerto é prenhe
de exclamações: “Bendita obra! Três vezes bendita!” (Ibidem).
Após transcrever um ponto de Noé Azevedo, então professor de direito penal da
Universidade de São Paulo, no qual o docente descreve brevemente o surgimento da
penitenciária suíça e a atitude de seu primeiro grande agente, Kallerhals, Nogueira de Faria
outra vez delira:
Cerraram-se, enfim, para êles, simples desajustados sociais, as portas das enxovias de
negredada memória e, palmilhando a estrada larga da Redenção quando em breve
retornarem ao convívio social, regenerados e úteis pelo trabalho, pela moral e pela
saúde, bendirão o Govêrno do Cel. Magalhães Barata que lhes estendeu a mão,
considerando-os afinal, em lance de larga visão administrativa, sêres humanos dignos
(Ibidem, p. 130).
Uma polêmica matéria do jornal local “A Província do Pará”, publicada dois anos após os
sucessos de “O caminho da história”, exatamente a 26 de abril de 1947, dará oportunidade a
novas expansões da legenda redentora. Outra vez a imprensa abrirá espaço às palavras algo
extravagantes de Nogueira de Faria. O foco aqui voltava à colônia reformatória, apontada como
alternativa à resolução do problema dos menores delinquentes e abandonados, assunto que
agora retornava, com toda a força, à ordem do dia.
95
Em outra fotografia, é enquadrado apenas um dos cinco garotos, aliás o menor em estatura.
A legenda é a seguinte: “Com apenas nove anos ele já fuma como gente grande. Frequenta a
escola? Não. Para quê ? – Perguntou-nos” (Ibidem).
No texto, várias críticas são feitas ao tratamento do problema do menor em Belém,
problemática que, nas palavras do Jornal, fora já estudada, porém permanecendo sem soluções
satisfatórias. As medidas até então tomadas, critica o anônimo redator, “não alcançaram o
objetivo visado” e “Inúteis tem sido as portarias do juizado de menores” na “luta contra o
alastramento dos menores abandonados” (Ibidem). Contudo, “o desembargador Nogueira de
Faria muito vem fazendo em benefício dessa infeliz infância” e a Colônia de Cotijuba poderia
96
O Educandário Magalhães Barata vai receber do atual govêrno amplo e eficaz auxílio,
sob a direção do sr. major Francisco José de Menezes, administrador geral dos
serviços socio-penais. Tranformar-se-á, então realmente, na ilha de Redenção. Não há
lisonja nem otimismo ou exagero nessa afirmativa. Endossa-la-á quem conhecer o
plano socio-penal do sr. Major Moura Carvalho [...] Em breve, o depósito de menores
abandonados, de hoje, se transformará num dos mais notáveis estabelecimentos
congêneres de nosso país (A PROVÍNCIA DO PARÁ, 27/04/1947, p. 12).
Curioso no texto dessa carta, se é que não foi mal editada pelo jornal, é a atribuição
redentora (ilha da Redenção) ao Educandário. Pelo texto, é o Educandário quem deve ser
transformado em ilha da redenção. De todo modo, é bom não perder de vista que a história do
Educandário Nogueira de Faria, em tese nossa, determinou, em linhas gerais, a face da ilha de
Cotijuba pelo tempo no qual vigorou a instituição, isto é, entre o início da década de 1930 e fins
da de 1970. A história da instituição, na verdades das instituições (colônias reformatória e
penal), confunde-se com a história da ilha de Cotijuba, sendo impossível tratar de uma
escamoteando as outras. Não seria tão absurda, portanto, a notável construção textual de
Nogueira de Faria.
97
De todo modo, a mística redentora outra vez aparecia e difundia-se junto à sociedade
paraense, através da imprensa. Havia transcorrido década e meia da inauguração do
empreendimento – e não arrefecia a tenacidade com a qual o então desembargador lançava-se
à defesa do grande projeto de salvação da juventude desvalida.
O tom crítico adotado pelo Jornal “A Província do Pará” quanto ao tratamento dispensado
ao problema da juventude, e o conteúdo bombástico da matéria (4000 menores pelas ruas de
Belém), parece haver induzido novas esperanças com relação à missão redentora do
Educandário. O próprio matutino reconhece isso: a colônia de Cotijuba seria uma solução ao
problema, afirma.
Não é de estranhar, portanto, haver se difundido pelas diversas classes sociais a mística da
ilha da redenção.
Já dissemos que a postura do principal interlocutor da pesquisa é incomum. A singularidade
de Raimundo dos Santos, na leitura de interesse à presente pesquisa, reside na assunção
consciente que faz da legenda da ilha da redenção, e, inversamente, na recusa da legenda da
ilha do diabo. Em várias ocasiões deixou ele transparecer tal postura. Em mais de um momento,
por exemplo, queixou-se da inépcia de alguns entrevistadores que o tem procurado amiúde, por
se referirem às ruínas à porta da ilha de Cotijuba como presídio.
Numa de nossas entrevistas, houve ocasião na qual Raimundo dos Santos propôs algo
inesperado. Tratava-se de uma entrevista filmada. Na ocasião, se pôs ele alguns segundos a
meditar e, muito emocionado, entoou o hino da ilha de Cotijuba. Seus olhos enrubesceram.
Com efeito, esse hino, cuja execução compunha a rotina dos internos e cuja melodia
sobreviveu aos anos intacta na memória de Raimundo dos Santos, é mais uma instância onde
se desdobra o legendário da ilha da redenção. Infelizmente não pudemos apurar a autoria da
letra e da melodia. Mas pelo tom pomposo e idealista, pela menção ao ideário redentor, pelo
estilo em geral, não é impossível haver aí algo da verve de Nogueira de Faria, sujeito que, como
referimos uma vez, exercitava-se na composição poética. Seguem os versos do hino:
Não é improvável ser Raimundo dos Santos um caso isolado, único, a ainda endossar o
ideário desdobrado nesse hino. Nenhum outro interlocutor com quem dialogou a pesquisa
reservou-se com relação à má fama de Cotijuba. Aliás, todos depuseram mais ou menos
abertamente sobre os episódios da ilha do diabo. O conhecido Raimundo Oito, que muito
testemunhou, restringe o depoimento. Para ele, os episódios da ilha do diabo devem cair no
esquecimento.
Nesse ponto, é de se notar em Raimundo dos Santos o caráter singular dos dilemas da
memória relativos à ilha de Cotijuba. Além disso, ele guarda um lugar certo à outra dimensão
do acontecimento mnemônico. O octogenário Raimundo Oito, tal como já o vimos em Luís, o
filho de Nogueira de Faria, recorre ao artifício do esquecimento. A ambos o dilema afeta de
modo muito radical nas próprias concepções do passado. A irrupção e o domínio de uma
legenda recheada de terror sobre o local e a instituição aos quais devotam memórias plenas de
afeto, é por demais doloroso a ambos os lados.
Naturalmente a postura algo passional que assumem esses dois depoentes tende a inclinar
o analista a reservas. As visões de realidade que ostentam são explicitamente parciais. Pugnam
abertamente por um lado da contenda. No entanto, a parcialidade com que se referem ao
passado, e aqui pesa mais a postura de Raimundo dos Santos, é crucial para visualizar o ponto
central das nossas problematizações nesse tópico, ou seja, a presença de uma memória
“positiva” relativamente à ilha de Cotijuba, em nossos dias ofuscada por outra memória,
“negativa”. A tais memórias, contrárias muitas vezes, correspondem as legendas da ilha do
diabo e da ilha da redenção.
São os esquemas retóricos da ilha da redenção que explicam, em maior grau, as posturas
dos sujeitos ora referidos. A presença de Nogueira de Faria nos respectivos ambientes – familiar
e institucional –, deve ter pesado suficientemente.
Especificamente no Educandário, Raimundo Oito guardou na memória um dos modos de
Nogueira de Faria operar. Versado na arte do uso das palavras, o diretor do Educandário
exortava regularmente internos, funcionários e até moradores da ilha através de palestras e
encontros. É de supor que nesses encontros, plenos de um sentido pedagógico, ele se esmerasse
em promover a vocação redentora da ilha de Cotijuba. Foi com as seguintes palavras que
Raimundo Oito aludiu ao assunto:
99
O Dr. Nogueira de Faria quando era diretor ele fazia assim, à noite, uma preleção.
Ensinar as coisas pra nós, até morador ia pra lá também pra assistir a preleção, os
ensinamentos e tal, etc. E ele ensinava muito a gente aí nessa parte. Ele falava,
ensinava alguma coisa pra nós. Ele tratava de vários assuntos e no que ele falava era
cabível que falasse mesmo. Era uma beleza! (ENTREVISTA REALIZADA EM:
05/05/2016).
As preleções constituem evento significativo para Raimundo Oito. Guarda para tais
encontros uma memória cheia de afeto: “Era uma beleza!” (Ibidem). A vida no Educandário o
empolga. A influência de Nogueira de Faria sobre o jovem interno, e mais tarde sobre o jovem
funcionário, ocorreu de maneira direta, no cotidiano da instituição. O ideário consequente a tal
influência, parece, consolidou-se ao longos dos anos, cristalizou-se em memória indelével.
A ascensão da mística da ilha do diabo, com toda sua razão de ser, não logrou arrefecer tão
tremenda obstinação. Em Raimundo Oito ainda subsiste a memória da ilha da redenção.
100
Já explicamos que, não obstante todo o esforço desferido ao longo da campanha cívica em
favor da construção da Colônia Reformatória de Cotijuba, a efetivação do empreendimento
produziu um efeito profundamente negativo, devido principalmente à truculência com a qual
operou. Pouco tempo depois de instalada a colônia, a ilha da redenção metamorfoseou-se na
ilha do diabo.
Cabe ao presente tópico explorar os aspectos relativos à mística da ilha do diabo. Tais
aspectos estão relacionados mais à operacionalização das instituições que com a dimensão
formal da institucionalização. Em termos formais – isto é, de nomes, projetos, estatutos –,
sobressai na análise das duas instituições seus aspectos edificantes, sobretudo a dimensão
educacional. Seus principais idealizadores, Nogueira de Faria e Moura Caravalho, dedicaram-
se com paixão aos respectivos projetos redentores. Moura Carvalho batizou a colônia penal com
um nome significativo: era o Instituto de Reeducação Social.
O decreto de criação do Instituito de Reducação Social foi publicado na íntegra por
Nogueira de Faria no aqui já citado “O caminho da história” (1945). O artigo quinto do
documento enfatiza a dimensão educativa (e redentora) da nova instituição erguida em
Cotijuba:
A título de introdução ao assunto geral dos regimes prisionais insulados – aqui no sentido
de instituições prisionais erguidas em ilhas –, sejam no estilo reformatório ou prisão, antes de
mais nada, convém dizer que tais regimes tem cativo seu lugar na perplexidade humana. A
atenção ao assunto ganhou corpo em obras urdidas nas mais variadas linguagens, especialmente
nas expressões de caráter narrativo, sejam elas literárias ou audiovisuais.
Ricardo Lopes, em pesquisa de mestrado (UFJF, PPGL, 2014), sumaria e investiga a
denominada Literatura de Cárcere, apresentando, logo ao primeiro capítulo, um conjunto de
obras exemplificadoras desse gênero literário. A conceituação usada pelo pesquisador quanto à
Literatura de Cárcere como gênero literário autônomo, ancora-se na definição de gênero
102
discursivo em Mikhail Bakhtin, segundo a qual a língua, nas suas variadas formas de
articulação, desenvolve enunciados cuja estabilidade relativa forja tipificações discursivas – ou
seja, faz surgir os chamados gêneros discursivos (2014, p. 20).
No fluxo do relato das ocorrências havidas no porão do Manaus, outro aspecto, próprio
daquela conjuntura, ganha relevo. A prática da tortura, sobretudo em relação aos chamados
104
presos políticos, passaria a vicejar nos setores repressivos do governo, e sua efetivação tornaria
célebres alguns agentes públicos, como Filinto Müller, Serafim Braga e Emiliano Romão. Um
relato contundente, amiúde citado nos estudos sobre esses tempos espinhosos, foi o conjunto
de reportagens especiais realizadas pelo jornalista (e compositor) David Nasser, inicialmente
publicadas na revista O Cruzeiro, ao longo de 1946, e editadas em livro no ano posterior. Em
“Falta alguém em Nuremberg”, Nasser refere-se diretamente ao chefe de polícia da capital do
país (entre 1933 e 1942), então o Rio de Janeiro, Fillinto Müller (1900-1973). Nas reportagens,
o jornalista divulgava, também, relatos de sua própria experiência no cárcere, inclusive a
passagem pela Colônia Correcional de Dois Rios, num capítulo intitulado “A ilha miserável”
(NASSER, 1966, p. 37). O início da narrativa jornalística dá uma ideia do clima tenso da época:
A lembrança das torturas, ali visíveis na pele, desalenta-se ao ouvir as sílabas fatais
(o nome do rapaz ecoara pouco antes da porta da cadeia), e a significação delas surge
clara: perguntas invariáveis multiplicadas, a exigir denúncias, a teimosia silenciosa do
paciente punida com sevícias: golpes de borracha, alicate nas unhas, o fogo do
maçarico destruindo carnes. Quando a horrível ordem soou, o rapaz se ergueu aflito,
o rosto lívido crispado:
- Ah! Meu Deus! Não agüento mais. Vão matar-me (2006, Vol. I, p. 358).
A gente mais ou menos válida tinha saído para o trabalho, e no curral se desmoronava
o rebotalho da prisão, tipos sombrios, lentos, aquecendo-se ao sol, catando bichos
miúdos. Os males interiores refletiam-se nas caras lívidas, escaveiradas. E os externos
expunham-se claros, feridas horríveis. Homens de calças arregaçadas exibiam as
pernas cobertas de algodão negro, purulento. As mucuranas haviam criado esses
destroços, e em vão queriam dar cabo delas. Na imensa porcaria, os infames piolhos
entravam nas carnes, as chagas alastravam-se, não havia meio de reduzir a praga.
Deficiência de tratamento, nenhuma higiene, quatro ou seis chuveiros para novecentos
indivíduos. Enfim, não nos enganavam. Estávamos ali para morrer (Ibidem, p. 73 e
74).
20
Trata-se do romance “Angústia”, publicado em 1936, enquanto o autor estava preso, e sem que ele procedesse
a revisão do escrito.
108
Evasão é justamente o tema superior da segunda obra a ser citada como pródromo do
conteúdo principal deste tópico. A aventura que o francês Henry Charriére narra em “Papillon:
o homem que fugiu do inferno” (s/d), na forma de relato autobiográfico, enreda-se nas inúmeras
tentativas de fuga empreendidas pelo protagonista, até a conquista da liberdade definitiva, onze
anos além da condenação.
A narrativa de Papillon tem início com o julgamento, ocorrido a 26 de outubro de 1932,
na cidade de Paris. Aos 25 anos, seria ele condenado à prisão perpétua com trabalhos forçados,
sob acusação de homicídio. Daria, nesse mesmo dia, os primeiros passos no que chamou de “o
caminho da podridão” (s/d, p. 11). A via abjeta inicia pela detenção na Conciergerie, e, a seguir,
pela custódia na Central de Caen, à espera do comboio para a colônia penal, no além mar,
Guiana Francesa. Passagem rápida pela ilha de Saint-Martin-de-Ré, seguida de 18 dias de
viagem encarcerado no porão do La Martiniére, até Saint-Laurent-du-Maroni, o famigerado
complexo penitenciário na Guiana Francesa, destino final para quem envereda pelo caminho da
podridão.
Ainda em viagem, Papillon ouve de Julot (que seguia no comboio degredado pela segunda
vez), uma explicação sobre o sistema penitenciário da Guiana. Explica entre outras coisas, que
Saint-Laurent é um povoado às margens do rio Maroni, distante 120 quilômetros do Atlântico,
centro do sistema de degredo do ultramar francês. Há uma penitenciária com o mesmo nome à
distância de 50 quilômetros, para onde são remetidos os presos cuja pena é o desterro. Já os
apenados com trabalhos forçados, explica Julot, são ali classificados em três grupos, divididos
por escala de periculosidade. Os considerados mais perigosos
109
- Prisioneiros, vocês sabem que essa é uma casa de castigo para as faltas cometidas
pelos condenados. Aqui, não tentamos corrigi-los, porque sabemos que isso seria
inútil. Queremos é domar vocês. Aqui há só uma regra: bico calado. Silêncio absoluto.
Qualquer comunicação com as celas é arriscada: pode dar uma punição bastante dura.
Se vocês não estiverem gravemente doentes, não peçam médico, pois uma chamada
110
essa obra só ter sido publicada, inconclusa, em 1953, em edição póstuma, quase vinte anos após
a experiência do cárcere. A sevícia atroz inevitavelmente esmoreceria as forças do escritor.
Distintamente do famoso livro de Henri Charriére, as memórias de Graciliano Ramos não
narram nada de espetacular e heróico. Prisão sem acusação formal, sem sentido, desaventurada,
prisão da qual, muitas vezes, o recluso teme a libertação.
Há, contudo, certas convergências nas duas narrativas, a começar pelo fato de serem
extraídas da experiência dos escritores e narradas a partir da memória pessoal. Escritos
autobiográficos, portanto. Literatura de Cárcere. Ambos descrevem e comentam as agruras da
experiência de encarceramento num contexto histórico comum, ou seja, no chamado período
entre guerras, ao longo da década de 1930, conjuntura em que avançavam no Brasil, e no mundo
afora, as ideologias fascista e comunista.
Há outros pontos de contato importantes: os dois relatos descrevem o endurecimento do
regime prisional nas respectivas faces insulares, constituindo as ilhas da Salvação e a Ilha
Grande, locais de intenso mal falar, e onde os reclusos são submetidos a trabalhos extenuantes,
condições precárias de salubridade (no caso da Ilha Grande), ou onde cumprem as penas
“especiais”, como o isolamento total em Saint-Joseph. Além disso, despontam nesses locais,
nos quais o isolamento assegura o domínio quase absoluto dos agentes repressores – em geral
policiais e carcereiros –, a prática da tortura, como modo de obter do prisioneiro informações
ou de sumariamente castigá-lo.
Um aspecto especial das duas narrativas memoriais corrobora a afirmação feita
anteriormente, quanto ao lugar especial que ocupam na expressividade humana os regimes
prisionais, especialmente as prisões insulares. Trata-se da fecundidade com que o tema foi
apropriado e articulado pela expressão cinematográfica. As obras de Graciliano Ramos e Henri
Cherriére constituem exemplos expressivos. Os dois livros ganharam desdobramentos nas
grandes telas. No Brasil, o filme “Memórias do cárcere”, com Carlos Vereza no papel de
Graciliano Ramos, e dirigido por Nelson Pereira dos Santos, foi lançado em 1984. “Papillon”,
o filme, foi produzido nos Estados Unidos, dirigido por Franklin J. Schaffner, lançado em 1973,
e estrelado por Steve MacQueen, como Papillon, e Dustin Hoffman, na pele de Louis Dega, o
falsário.
O cinema dedicou especial atenção às prisões insulares. Nos Estados Unidos, na Baía de
São Francisco, Califórnia, a ilha de Alcatraz abrigou um legendário presídio, do qual a fuga era
considerada impossível. Ao longo de 29 anos, desde 1934, não houve registro de fugas, até o
ano de 1962, quando três reclusos desapareceram dos seus cárceres. A histórias dos fugitivos
Frank Morrris e os irmãos Anglin, John e Clarence, é narrada no filme, de 1979, “Alcatraz: fuga
113
impossível” (“Scape from Alcatraz”), dirigido por Don Siegel e tendo Clint Eastwood no papel
de Frank Morris. É um suspense no qual o enredo centra-se na minuciosa execução do plano de
fuga.
Outro filme conhecido sobre Alcatraz centra-se na figura de Robert Franklin Stroud, um
dos célebres criminosos ali internados. Lançado em 1962, “Birdman of Alcatraz” teve direção
de John Frankenheimer e foi protagonizado por Burt Lancaster.
Recentemente (2010), um filme norueguês deu a conhecer um pedaço da história do
Reformatório de Bastoy, erguido na ilha homônima, próximo a Oslo. O reformatório funcionou
entre os anos de 1900 e 1954, e a acreditar no enredo do filme, baseado em histórias verídicas,
foi palco de abusos e atrocidades. O filme foi dirigido pelo dinamarquês Marius Holst.
O essencial nos exemplos citados, em se tratando dos rumos do presente trabalho, é a
introdução que permitem fazer quanto aos regimes prisionais insulados. Sobretudo nas obras
de Henri Charriére e Graciliano Ramos, algumas características importantes relativas a tais
regimes ganham relevo. Constantes como prática de tortura, fugas espetaculares, revoltas,
arbítrios de agentes públicos, má fama, etc.
detalhes da vida ou da postura dos entrevistados, os quais fomos percebendo no correr dos
procedimentos de pesquisa ou no contato pessoal prolongado. Dizemos isso, porque é na
postura do depoente, ou em eventos específicos de sua vida pessoal, que algumas vezes aflora
o conteúdo mais importante para esta pesquisa, e não apenas na fala, no conteúdo verbal
emitido, por assim dizer.
Seu Artur, que se dizia ex-pracinha e ex-subdiretor da colônia penal, hoje já falecido,
tratava do assunto da maneira mais natural, não sem algum contentamento, às vezes com um
sorriso. Aliás, semelhante postura, de um quase escárnio com fatos não raro chocantes, é uma
constante entre os entrevistados do filme, à excessão do sempre circunspecto Raimundo Oito.
É em tom meio irônico que Seu Artur admite, sem pudores, os excessos por ele praticados na
instituição: “Eu era o chefe, eu é que mandava bater a palmatória na bunda. Não quer falar...
Que eles não tinham pena do cidadão na cidade, tomava o dinheiro do cidadão, dava no cidadão,
ou então matava, metia a faca. E eu não ia ter pena de um desgraçado desse!...” (In: Cotijuba:
a ilha do diabo?, 2012).
Outro depoente foi Seu Getúlio, ainda hoje morador da ilha de Cotijuba. Tendo prestado
serviço de transporte de gêneros à administração das instituições, ao tempo em que Teodorico
Rodrigues era diretor geral, teve oportunidade de presenciar algumas das situações responsáveis
pela má fama do lugar.
Aí eu via aquele movimento dos caras deitado, tudo apanhado, tudo batido, é isso aí
que eu via. Lá em cima, naquele sobradinho, eles apanhavam de palmatória (nas mãos)
até botar sangue no canto das unha todinho. Aí eles botavam as mão lá (na parede) e
ficava certinho a marca da mão dele lá... Nesse tempo a gente não falava nada, porque
não podia falar mesmo. A gente via, mas não podia falar (Ibidem).
A presença de tortura é evidente. Semelhante prática, como vimos, não é estranha aos
regimes de detenção em ilhas. Mas torturas em quais circunstâncias? Trata-se aqui
principalmente de “interrogatórios”, ou como se dizia então – e ainda hoje se diz – de “dar o
serviço”. É o que se depreende de outros depoimentos.
Seu Mambo, outro depoente cuja voz só se ouve pelo documentário, pois falecido há
pouco, morador antigo da ilha, prestou alguns serviços às instituições ao tempo de Teodorico
Rodrigues (década de 1970). Afirmou haver presenciado as bárbaras sessões.
Cheguei a presenciar uns dois ou três lá e o negócio não era fácil mesmo não. Os cara
apanhava mesmo. Aqueles que confessava logo, eles não batiam. Aí eles iam
averiguar se o cara tava falando a verdade. Se ficasse certo e recuperasse o roubo, aí
eles não batiam. Mas quando eles descobriam que o cara tava mentindo, voltava pra
cá e apanhava mais (Ibidem).
115
Seu Ceará é um ex-funcionário da colônia penal que atuava como marítimo no serviço de
transporte entre Cotijuba e Belém. Já aposentado, manteve-se na ilha, onde constituiu numerosa
família. Começou a trabalhar para a instituição no início dos anos 1970, auxiliando nos serviços
de transporte realizados com os barcos Marta da Conceição e Nogueira de Faria. Oriundo do
município cearense de Coreaú, e estando desempregado em Belém, conservou ele grande
reverência ao tenente Teodorico Rodrigues, pela oportunidade de trabalho. Em sua narrativa, o
tenente aparece como um sujeito razoável, cuja atividade como diretor geral das instituições
insulares, contribuiu para minimizar as explosões de violência que granjearam tanta má fama
junto à população local. Muito embora, como se sabe, Teodorico Rodrigues tenha sido quase
trucidado num violento motim de presos no ano de 1976, caso que narraremos em detalhes mais
à frente. Seu Ceará nos concedeu entrevista na ilha de Cotijuba, no dia 20/07/2015.
Para seu Ceará, as explosões de violência estavam principalmente associadas ao sistema
de polícia interna, então comum nos presídios. A polícia interna, afirma o ex-funcionário, era
constituída, em maior porção, por presos de justiça (já sentenciados), os quais gozavam de
alguns privilégios pelo serviço de controle prestado à administração. Responsabilizavam-se
pela chefia das turmas de trabalho que saíam dos pavilhões regularmente para atividades
laborais pela ilha. É o par, na dimensão do presídio, do inspetor-aluno no Educandário.
João Capiberibe, recentemente, fez publicar narrativa autobiográfica na qual descreveu
sua experiência nos cárceres paraenses, iniciada em 1970, experiência sucedida pela fuga até
Santiago do Chile, sob encalço dos agente da Ditadura Militar, então em vigor. O hoje senador
era acusado, como outros tantos à época, de conspiração pró-comunista. Encerrado em princípio
no Forte do Castelo, pouco depois é remetido ao presídio São José. Aqui, entra em contato com
o esquema da polícia interna. É provável haver mais excessos no caso de uma prisão insular,
porém o relato de Capiberibe já permite entrever algo do curioso e bruto sistema de poder
interno aos cárceres:
interna na colônia, sendo nisso bastante temido. Cruel e violento, esse sujeito não tardou a sofrer
revés à altura. Chefiava um grupo de presos responsáveis pela roçagem da estrada que então
ligava a ponta de baixo à ponta de cima da ilha. Nessas horas os cativos recebiam os respectivos
instrumentos de trabalho: foices, terçados, enxadas. Constituíam momentos propícios a motins
e fugas. Seu Getúlio referiu-se assim ao caso: “Elizeu era o nome do homem que era o polícia
interna. Deram uns golpes nele graúdo assim pelo pescoço, pelo peito, pelo braço. Cortaram ele
muito mesmo. E depois fugiram pelos matos” (Cotijuba: a ilha do diabo?, 2012).
Casos de fuga avultavam. Os relatos coincidem quanto aos métodos: era comum o furto
de montarias e pequenas embarcações dos moradores; referiam também a prática de construir
jangadas com o tronco de árvores flutuantes, mormente as comuns aningueiras, tão próprias da
região; houve casos de gente a sair nadando da ilha; e, por fim, casos de apropriação de
embarcações a serviço das colônias. Os destinos variavam, embora segundo Seu Ceará fosse
mais comum o desembarque na Vila da Barca. Seu Getúlio mencionou o Ver-o-Peso e as ilhas
costeiras, Mosqueiro e Outeiro, como destino dos evadidos.
Muitos dos planos e tentativas de evasão foram frustrados pelos agentes policiais a serviço
das colônias, ou mesmo pelas dificuldades da empreitada, pois os fugitivos haviam de encarar
a travessia sobre a baía Guajará, às vezes turbulenta, agitada pela maré, pelos ventos ou por
soberbas enxurradas. Casos de afogamento foram mencionados.
É possível que se usasse o afogamento como forma de acorbertar abusos e violências
cometidos, na ilha, pelos agentes públicos. O irônico Seu Artur, em depoimento usado no filme
“Cotijuba: a ilha do diabo?”, mencionou que sob a capa de afogamento decorrente de evasão
frustrada, certos indivíduos eram sumariamente eliminados. Seu relato, a respeito, foi em meio
a riso sarcástico:
Acontecia mesmo. Por que tinha inspetor que era mau. As vezes ele, com a turma
dele, no campo trabalhando, fugia dois, então esses já ia morrer, porque ele não ia
fazer o boletim de fuga deles... Então fazem a viagem pra ir pra Belém ou pra Icoaraci
e lá eles jogam o cara na maré e depois faz o boletim dizendo que ele fugiu meia-noite
numa embarcação do pescador, dizendo que tinha muito vento, muita onda na
travessia do Guajará e revirou ele e mais quatro colega de cima da embarcação e
morreu afogado. Ponto final.
117
Já dissemos, sobre a localização da ilha de Cotijuba, estar ela cravada no intermédio das
baías de Guajará, Marajó e Santo Antônio. É comum, no entanto, que se denomine esse
conjunto de águas, conformadoras de um vasto estuário, como simplesmente Guajará ou
Marajó. É o caso do modo como fala Seu Artur. Mas é também como se referem aos afluxos
aquáticos adiante de Belém, e em torno à Cotijuba, alguns historiadores e escritores que
registraram, mais detidamente, ou de passagem, acontecimentos extremos aí sucedidos.
A travessia do Guajará, ao longo dos períodos colonial, imperial ou republicano,
constituiu-se palco de várias atrocidades. Os casos envolvendo prisioneiros remetidos à
Cotijuba, tão fecundos na memória local, e comumente atribuídos à sanha de Magalhães Barata,
constituem os exemplos mais recentes.
Muitas desgraças tingiram de sangue as águas turvas do Guajará. Ainda em 1616, no mês
de agosto, por exemplo, recém fundada a cidade de Belém, os alferes Pedro Teixeira e Gaspar
de Freitas Macedo, no retorno da famigerada viagem à São Luís, onde foram levar a novidade
da fundação do povoado, mediram forças com uma nau holandesa, que transitava pelas águas
do estuário. Os portugueses sob mando de Francisco Caldeira Castelo Branco, “Assaltando a
embarcação, depois de nutrido e sangrento combate, conseguiram exito, incendiando-a”,
noticiou Arthur César Ferreira Reis (1993, p. 10), em livro bastante lido.
Ao longo das comoções sociais do período imperial, novas e sanguinolentas tragédias
arrebentaram sobre as águas barrentas em torno à Belém. Em meio às circunstâncias graves do
processo de adesão do Pará ao Império brasileiro, o Guajará foi o palco onde cenas de horror
inaudito timbraram indelevelmente a história local. Na tristemente célebre tragédia do Brigue
Palhaço, 256 paraenses pobres (entre soldados rasos, trabalhadores, gente do povo) foram
confinados no exíguo porão do referido navio, padecendo rapidamente dos mais atrozes
sofrimentos. A reclusão ocorrera em represália às agitações motivadas por protestos populares
contra a manutenção de gente de origem portuguesa, contrária à independência da Província,
na Junta do Governo e em empregos públicos. A medida fora determinada pelo Capitão John
Pascoe Greenfell, cuja chegada às águas paraenses, dois meses antes, forçou o processo de
anexação do Pará ao Brasil. A tragédia ocorreu entre a noite do dia 21 e a manhã do dia 22
de outubro. Sob as cores fortes da manhã amazônica, uma vez descerradas as escotilhas do
porão do brigue, o comandante em chefe e seus auxiliares depararam-se com 252 homens
mortos, em cujos hediondos traços traduziam-se tormentos terríveis. Cadáveres dilacerados,
118
estatal de telefonia paraense, a Telepará, de plantão ali perto, percebeu a estranhíssima e ruidosa
aproximação de um caminhão que, obliterando os ruídos da noite úmida, estacionou exatamente
em frente ao mercadinho Vidigal. Em segundos, seis indivíduos saltaram do carro e,
manipulando ferramentas pesadas, se puseram a estourar os cadeados da entrada do
estabelecimento. O vigia não deu alarde, e fez o que podia fazer: ligou para a Rádio Patrulha
(Ibidem).
Uma guarnição da Polícia Militar, sob ordem do Sargento Barbosa, chegou em poucos
minutos ao local. Antes, porém, irrompendo a calmaria da noite, permitiu aos arrombadores
dispersarem-se. Os policiais, apesar disso, capturaram dois dos meliantes. E foi o suficiente
para desbaratar uma pequena organização criminosa, cuja especialidade fez as autoridades
policiais de então, e os redatores de jornal em consequência, a batizarem de “a quadrilha do
cofre” (Ibidem).
Havia algum tempo que o problema perturbava a polícia. Firmas comerciais de Belém
pressionavam as autoridades, queixando-se de saques em estabelecimentos, crimes nos quais o
maior prejuízo decorria da subtração dos cofres das empresas e a decorrente perda de valores e
documentos importantes. Talvez, por isso, ou por pressão de autoridades do alto escalão, o
interrogatório daqueles bandidos seria realizado pelo comissário William Lima, policial cujos
métodos o celebrizavam como “o comissário do diabo”. Seja como for, se tem notícia de que o
temido policial preteriu a folga e o compromisso de passeio familiar a balneário próximo, para
atender o dever de ofício (Ibidem).
Vetererano, mal falado entre os bandidos, truculento, o comissário submeteu os dois
detidos à implacável sessão de interrogatório. As fontes escritas não dizem, mas não é
improvável que a energia empregada no procedimento fosse além de perguntas e pressões
psicológicas. Espremidos brutalmente, os dois bandidos, Clésio Ramos da Silva e Iadir Almeida
Braga, não demoraram a ceder. Além disso, o nome de um dos bandidos, Clésio, atiçou os
instintos e intuições do experiente comissário Lima. Recordou ter sido esse o criminoso que,
no início da década anterior, dera trabalho à polícia por roubos ousados que pertubaram Belém,
sendo então muito odiado por haver baleado policiais em truculentos conflitos. Como
realizasse, nessa época, suas empresas criminosas com um lenço a ocultar os traços, ganhou
Clésio a alcunha de “Mascarado”. Após capturado, passara por toda sorte de sevícia, inclusive
pelos temidos interrogatórios em Cotijuba. Mascarado havia sido libertado há um mês e poucos
dias da nova ocorrência, após longos anos cumprindo pena no presídio São José. Ligando as
peças, provavelmente não foi difícil para o “comissário do diabo” deduzir: aquele criminoso
incorrigível estava implicado em outros casos de arrombamento e saque (Ibidem).
121
O piloto Picuí, então, afirmando que o tenente já morrera, conseguiu evitar o disparo. Foi
dele a atitude de jogar Teodorico nas águas do Guajará. Picuí sabia que a lancha, então à deriva,
estava próxima da margem da ilha de Paquetá. No entanto, Teodorico Rodrigues, estonteado
pela sevícia brutal e sem a habilidade do nado, só não pereceu afogado devido à atitude de um
124
daqueles bandidos que seguiam espontaneamente para a ilha. Loló lançou-se à agua e conduziu
o tenente para a margem. Picuí não demorou a fazer o mesmo (Ibidem).
Os amotinados, ato contínuo, disfarçaram o nome da lancha com lama, de modo a evitar
a fácil identificação, e tomaram caminho inverso, porém agora percorrendo o furo entre as ilhas
de Arapiranga e das Onças, desembocando no rio Pará e penetrando, em seguida, o Barcarena.
Os fugitivos abandonaram a lancha às margens daquele leito lamacento e mergulharam na mata
serrada (Ibidem).
O que aconteceu depois sempre contou com a maior publicidade pelos jornais. Durante
dias, as forças policiais locais mobilizaram um conjunto de homens – recrutados entre a Polícia
Militar e Civil, a Rádio patrulha, a Patrulha Rodoviária, além de cidadãos comuns que se
voluntariaram para a empreitada. Seguiu-se 72 horas do que os jornais alardearam como “a
grande caçada humana”. Aos poucos, os fugitivos foram sendo recambiados. Carioca Preto,
Goiano, Tamuatá, Poconé e o Menino de Ouro foram presos no dia seguinte ao motim. A
maioria deles chegava num estado lastimável, não apenas vitimados pela fome e pelo cansaço,
mas pela sevícia a que foram submetidos pelos policiais. Muitos seguiam direto ao Pronto
Socorro para retirada de balas do corpo (O Liberal, 18 a 22/02/1976).
Clésio foi o último a ser recapturado. A grande caçada chegou ao fim por volta das 12
horas do dia 20, quando uma guarnição da Patrulha Rodoviária localizou Mascarado, em
companhia do comparsa Baiano, a vagar pela rodovia Barcarena-Abaetetuba.
As informações veiculadas pelos jornais, embora abundantes, não raras vezes são
desencontradas. Não há espaço aqui para esmiuçar o volume dessas informações, tampouco
detalhar desencontros e contradições nos textos jornalísticos que serviram de fonte
à presente narrativa. Observamos, no entanto, textos cheios de hesitação, nos quais fica evidente
a pressão pela divulgação de versões oficiais dos eventos. Às vezes, versões urdidas mais ou
menos sob o relato dos policiais, embatem-se com matérias nas quais os jornalistas narram com
mais liberdade os acontecimentos. E sobretudo versões baseadas nos relatos policiais se
contradizem com as foto-reportagens, nas quais se vê nitidamente cenas de violência explícita
contra homens já dominados. É de se estranhar que os jornais não temessem repressão ou
censura por parte do poder instituído, pois as informações veiculadas não deixam margem de
dúvida quanto ao uso excessivo (e criminoso) da força pelos policiais. Sobressai, ainda, nas
matérias o espírito de revanche e de demonstração de poder de que estava investida aquela
missão de recaptura.
Nas matérias sobre as buscas de Goiano e Clésio, principalmente, fica explícita a
truculência desnecessária com a qual agiram as forças policiais. No caso de José Eurípedes de
125
Souza, o Goiano, como legenda às fotos que documentam sua prisão, os jornalistas escreveram
o seguinte: “Manietado e atirado ao chão, o marginal ‘Goiano’ é espancado, depois despido
pelos soldados empenhados na captura, e intimidado com armas de fogo que todos portavam”
(O Liberal, 21/02/1976, Caderno I, p. 14). Goiano
Clésio Ramos da Silva, o Mascarado ou “Careca”, não teve melhor sorte. Uma vez
recapturado, foi seviciado com brutalidade e baleado. Poucas horas depois, Clésio dava entrada,
acompanhado pelo igualmente estropiado Baiano, ambos em estado crítico, no Pronto Socorro.
Ainda assim, naquele mesmo dia, os repórteres o entrevistaram. Naturalmente, se
encontrava em péssimo estado, reclamando grandes dores. As declarações foram publicadas em
páginas impressas no dia seguinte. Sobre as motivações do crime, disse:
fugiu e morreu afogado na Baía do Guajará. Eu, particularmente, sabia que eles
queriam dar cabo da minha vida” (O LIBERAL, 22/02/1976, p. 19).
É bem possível que em muitos aspectos a fonte jornalística seja imprecisa. Essa
imprecisão, não obstante os cuidados críticos usados na leitura, de algum modo pode invadir a
esta narrativa. É possível até mesmo que as declarações de Clésio, as descrições do caso, em
particular a narrativa da recaptura, estejam contaminados pelas circunstâncias graves do caso,
128
desviando-se em cada um desses parâmetros. Por exemplo: Clésio precisava mitigar, de alguma
forma, seu peso no motim, justificar o espancamento de que fora o líder. Daí recuperar o esforço
que fez para não ser transferido para Cotijuba, ou distribuir a responsabilidade entre os demais
sublevados. A maioria dos recapturados, aliás, e como é natural, minimizou sua participação,
distriubuiu o peso sobre o caso, acusou comparsas.
A própria narrativa jornalística, já o mencionamos, em muitos pontos se desencontra. No
calor dos acontecimentos, é bem possível que a boataria desatada que se estabelece em torno
de casos como esse, ganhe status de verdade e assim seja transmitida aos leitores dos jornais.
O tempo era curto para checar tudo o que se escrevia. Daí imprecisões, contradições,
desencontros. A influência da versão oficial é evidente. No entanto, tal influência não é total.
Uma versão dita aqui, é logo desdita depois, por outro jornalista mais ousado.
É o caso do jornalista Paulo Ronaldo, aliás único repórter que aperece no extenso material
consultado, a assinar a coluna de sua autoria. Ele acompanhou as diligências da grande caçada
humana a pedido do editor do caderno Encarte – suplemento noticioso publicado em O Liberal
aos domingos, sob direção de Lúcio Flávio Pinto. Em texto publicado no dia 22, não poupou
críticas aos procedimentos extremados e desnecessários com que a polícia seviciou os
criminosos recapturados. Em particular, descreveu a violência contra Goiano, fugitivo dos mais
odiados, porque tido como dos maiores responsáveis no caso. Goiano sofreu, nas mãos dos
policiais “não uma surra normal de polícia em bandido, mas um espancamento incrivelmente
impiedoso, onde as armas utilizadas sucederam-se entre coronhadas e golpes repetidos de
pedaço de pau” (O Liberal, 22/02/1976, Caderno Encarte, p. 9). A ousadia da descrição repete-
se no caso da prisão de Tainha, fugitivo que, nas palavra do repórter destemeroso, padeceu
“mordido pelos cães, espancado e com quatro balaços encravados nas costelas” (Ibidem).
É preciso dizer que a ousadia do repórter custou, a ele e ao editor do Caderno Encarte,
problemas com os homens da Ditadura Militar então em vigor no país. Lúcio Flávio Pinto
lembrou o caso mais tarde, nas páginas do Jornal Pessoal. Ele e Paulo Ronaldo foram
convocados a depor no inquérito que se instalou para apurar o caso. Ao chegar ao quartel de
Polícia, Lúcio Flávio foi induzido pelos policiais a incriminar Paulo Ronaldo, a quem já tinham
como desafeto, desacreditando em depoimento a versão apregoada pelos jornais sobre os
excessos cometidos pela polícia na recaptura. Ficou sabendo que outros jornalistas já haviam
corroborado a versão da manipulação de imprensa. No entanto, não só reafirmou a veracidade
dos fatos veiculados, como se declarou corresponsável pela divulgação das matérias. Em
conclusão: “O inquérito foi remetido pela PF à Auditoria Militar, Paulo e eu enquadrados na
lúgubre Lei de Segurança Nacional” (2012, p. 04).
129
O caso Teodorico Rodrigues, fixo por essas fontes imprecisas, portanto, configura um
episódio da Ditadura Militar envolvendo o sistema correcional implantado em Cotijuba. Evento
que, por si só, já mereceria trabalho específico.
À presente narrativa, no entanto, interessa outro aspecto desse material jornalístico, cujo
relevo transcendeu a fragmentação ou a imprecisão geral das fontes. A ilha de Cotijuba, após
quarenta anos abrigando as instituições reformatória e correcional, havia consolidado-se como
o mais indesejável dos lugares. A legenda da ilha do diabo disseminou-se em toda a sociedade.
Cotijuba tornou-se um nome que causava arrepios e temores, mesmo a criminosos
empedernidos como Clésio Ramos da Silva. “O certo é que os moradores de Belém sempre
tiveram a ilha de Cotijuba como um lugar de sofrimentos”, escreveu Lúcio Flávio Pinto, em
texto não assinado, naquele mesmo Caderno Encarte (Ibidem, p. 10), em matéria publicada sob
o título “A ilha dos silêncios pavorosos”.
Com o caso Teodorico, no entanto, toda essa história tormentosa chegaria a seu clímax.
A partir daí, a desinstalação da colônia apressaria-se. Em meio àqueles acontecimentos
chocantes que envolveram o motim e a recaptura, o governador Aloysio Chaves anunciou a
conclusão, para os próximos meses, da penitenciária de Americano. A notícia foi publicada em
O Liberal no dia 21/02 (p. 05).
Uma década depois, Cotijuba tornaria-se um paraíso turístico de belezas naturais, enfim
aberto à população civil. Abria-se, então, nova legenda: a da ilha dos prazeres.
130
5 Considerações Finais
Algumas décadas antes de participar como protagonista da cena turística local, a ilha de
Cotijuba era considerada um lugar de sofrimentos, do qual as pessoas gradas e mesmo
destemidos e intrépidos bandidos, queriam distância. A aura maldita, disseminada aos quatro
ventos numa extensa coletânea de histórias, foi motivada pela criação e funcionamento, na ilha,
de duas instituições: a Colônia Reformatória de Cotijuba, criada no inicio da década de 1930,
mais tarde rebatizada como Educandário Nogueira de Faria, e destinada à reclusão de menores
considerados delinquentes ou abandonados; e o Instituto de Reeducação Social, colônia penal
agrícola instalada em meados da década de 1940, em cujo regime eram vinculados,
inicialmente, os chamados presos de correção, tidos como de menor periculosidade.
O Educandário é, dessas instituições, a que possui maoir relevância do ponto de vista de
um trabalho em História da Educação. Pois, em se tratando de atender uma clientela jovem,
oferecia educação formal elementar e técnica. Foi concebido em projeto e erguido em seus
primeiros pavilhões durante a primeira interventoria de Joaquim de Magalhães Cardoso Barata
no Pará (1930-1935). O idealizador e principal defensor do empreendimento compunha os altos
escalões do governo dito revolucionário: Raymundo Nogueira de Faria já atuava há décadas em
prol da causa dos menores desvalidos, tendo criado, por conta própria ou em associação com
outros homens dedicados aos mesmos princípios (como Ophir Loyola), várias entidades
preocupadas com a defesa dos direitos, com o acolhimento ou com a educação das crianças
órfãs, abandonadas ou degeneradas pelo crime e pela pobreza.
O empreendimento reformatório insular fora apresentado e vendido à sociedade paraense
numa campanha monumental de arrecadação de fundos, perfeitamente identificável nos jornais
daquele agosto e setembro de 1931. Através dessa campanha, com Nogueira de Faria à
dianteira, inúmeros pronunciamentos foram divulgados pela imprensa, vozes por meio das
quais reconhecemos uma versão bem distinta, às vezes oposta, da imagem macabra forjada em
consequência do funcionamento das instituições. O projeto do reformatório havia sido urdido
sob o signo da redenção, numa singela imagem perfeitamente cambiável com a visão de mundo
do magistrado espírita, caridoso e moralista, que foi Nogueira de Faria.
Na década seguinte, a vocação redentora da ilha de Cotijuba será outra vez articulada por
gente do governo, dessa vez pelo chefe de polícia do Estado, em período no qual Magalhães
Barata assumiu, pela segunda vez, o governo em regime de Interventoria. O major Luís Geolás
de Moura Carvalho, que dois anos mais tarde assumiria o cargo de governador do Estado,
estendeu à ilha de Cotijuba sua obra de militante pela causa penitenciária, inaugurando, em
131
1945, o Instituto de Reeducação Social. Moura Carvalho sonhava com um sistema prisional
integrado para o Estado do Pará, baseado em modelos internacionais modernos, que ao mesmo
tempo saneasse o grave problema da precariedade das cadeias públicas locais e oferecesse à
clientela a possiblidade de redenção por meio da terapêutica de trabalho. Cotijuba, à época,
recrudesceu fortemente em sua dimensão de ilha de trabalho e redenção, lócus no qual os
socialmente degenerados encontrariam uma oportunidade de vida digna. Na difusão dessa visão
algo idealizada, os jornais da época muito contribuíram.
A presença das duas instituições na ilha de Cotijuba, a partir de 1945, determinou as
relações que a ínsula estabeleceu com Belém. O funcionamento do reformatório e da colônia
penal caracterizaram Cotijuba como a ilha-presídio, tornando-a o par local de empreendimentos
semelhantes e mais famigerados, como a norte americana Alcatraz, as Ilhas da Salvação na
Guiana Francesa ou a Ilha Grande no Rio de Janeiro.
E foi precisamente o funcionamento das instituições e toda a carga de violência que, via de
regra, cadeias e reformatórios instalados em ilhas geram em torno de si, que nos levou trilhar a
vereda em cujo término agora chegamos. Não nos ativemos ao aspecto educacional em sentido
estrito. A dimensão educacional da instituição reformatória (o Educandário) e mesmo da
instituição penal (o Instituito de Reeducação Social), ganha maior relevo quando analisamos os
documentos legais ou uma parte das notícias de imprensa. Isto é, quando se trata da missão
proclamada nos projetos, ou das boas expectativas em relação aos empreendimentos. A maior
parte da carga memorial relacionada ao lugar Cotijuba, no entanto, atrela as duas instituições a
um mosaico de histórias macabras, envolvendo violência, maus tratos e mortes.
Consequentemente, a amplitude do trabalho foi além do aspecto educacional formal, de
modo a abrir espaço para descrever e entender a memória maldita estabelecida sobre a ilha de
Cotijuba, memória essa não estranha às gerações que puderam viver ao tempo das instituições
ou que estiveram expostas às histórias da ilha do diabo.
Ao longo do tortuoso caminho do pesquisar, a face ilha da redenção foi vislumbrada
inicialmente a partir de um curiosíssimo depoimento colhido junto à comunidade da ilha de
Cotijuba. A política que induzia ex-internos e ex-detentos de ambas instituições a
permanecerem na ilha como colonos, resultou na presença de muitos deles no lugar mesmo
após a fim do ciclo de vida das colônias. A maioria desses homens e mulheres, como ocorre de
modo geral, guardou na lembrança fatos e histórias relacionados à dimensão mais grave e
terrível dos empreendimentos públicos. No entanto, em meio à miríade de histórias macabras,
localizamos um sujeito para quem a ilha de Cotijuba e sobretudo o Educandário Nogueira de
Faria são dotados de um sentido profundamente positivo.
132
Raimundo dos Santos, popularmente conhecido como seu Raimundo Oito, após uma
infância plena de sofrimentos e instabilidades, ingressou no Educandário Nogueira de Faria aos
14 anos, em 1943. Desde então, dedicou-se integralmente ao Educandário, à colônia penal e à
ilha de Cotijuba. A tenacidade com que procurou sempre afastar qualquer imagem negativa do
lugar e da instituição, de par com a defesa aberta que fazia de ambos, nos levaram inicialmente
a dedicar o trabalho à explicação de tão singular postura. Pois, a depender dos desígnios do
ilustre morador de Cotijuba, todas as histórias cujos sentidos repercutem os percalços da ínsula
maldita, deveriam soçobrar no esquecimento. A trajetória de Raimundo dos Santos como
interno, e mais tarde como funcionário, perfazendo mais de três décadas, parece induzir esse
sujeito peculiar a proteger o Educandário e a ilha de Cotijuba, tal como o faria com a própria
história pessoal.
Porém fomos além dos limites próprios do estudo de uma trajetória pessoal. Meses no labor
da pesquisa nos levaram a perceber os esquemas retóricos com os quais Raimundo Oito
constituía a defesa do lugar e da instituição, como correspondentes ao ideário redentor
propagado por Nogueira de Faria e Moura Carvalho nos jornais impressos da capital ou em
outros escritos.
É provável ser Raimundo dos Santos o único sujeito vivo a ainda endossar a mística
redentora criada para dourar os projetos das colônias insulares e, consequentemente, o único a
ainda se incomodar com a má fama que a ilha de Cotijuba foi cumulando, ao longo das décadas,
em meio à sociedade local. No entanto, encontramos evidências de que a aura maldita sobre
Cotijuba afetou a outros sentimentos.
A família de Nogueira de Faria lutou, durante anos, contra a vinculação do nome do
patriarca ao sistema em vigor na ilha de Cotijuba. Constituiu, por muito tempo, motivo de doído
constrangimento aos descendentes do magistrado espírita, sobretudo aos filhos, ver o nome do
patriarca associado a instituições tão repelentes. Não sendo possível, porém, efetivar o intento
de dissociar o nome e as instituições, a família optou pelo mesmo caminho que Raimundo dos
Santos sugeriu em caso semelhante: o esquecimento.
A trama sugere não apenas uma distinção, mas uma oposição, ou uma verdadeira disputa
entre a memória positiva e idealizada (a ilha da redenção) e a memória negativa (a ilha do
diabo).
Nessa batalha sobre o modo de olhar o passado de Cotijuba, não fosse a tenacidade de
Raimundo dos Santos, a memória da ilha da redenção teria se esmaecido sob a poeira das
décadas e não forneceria o recheio principal de nossa pesquisa. A imagem da ilha maldita, no
133
FONTES
Documentação Judiciária
- Pará. Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Série perfil dos magistrados do Tribunal de
Justiça do Estado do Pará. Volume I. Belém, 1994. Biblioteca do Tribunal de Justiça do
estado do Pará.
Jornais
Entrevistas
COSTA, Eliete dos Santos Campos. 59 anos. Entrevistador: Sid Nazareno da Costa Quaresma.
Ilha de Cotijuba, Belém, 17/07/2015.
COSTA, José. 75 anos. Entrevistador: Sid Nazareno da Costa Quaresma, Belém, 22/06/2016.
PINTO, José Wilson. Entrevistador: Sid Nazareno da Costa Quaresma, Belém, 22/06/2016.
SANTOS, Raimundo. 87 anos. Entrevistador: Sid Nazareno da Costa Quaresma. Ilha de
Cotijuba, Belém, 20/07/2015.
SANTOS, Raimundo. 87 anos. Entrevistador: Sid Nazareno da Costa Quaresma. Ilha de
Cotijuba, Belém, 20/09/2015.
SANTOS, Raimundo. 87 anos. Entrevistador: Sid Nazareno da Costa Quaresma. Distrito de
Icoaraci, Belém, 05/05/2016.
137
Referências
ALCATRAZ: FUGA IMPOSSÍVEL (Scape from Alcatraz). Direção: Don Siegel. EUA: 1979.
112 min., preto e branco, inglês.
AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. In: AMADO, Janaína &
FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs.). Usos & abusos da História Oral. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2006, p. VII-XXV.
ALCATRAZ: FUGA IMPOSSÍVEL (Scape from Alcatraz). Direção: Don Siegel. EUA: 1979.
112 min., preto e branco, inglês.
ASSUNÇÃO AMARAL, J. Registro Histórico da ilha de Cotijuba: uma análise da Colônia
Reformatória de Cotijuba. Belém: CFCH, UFPA, 1992.
BIRDMAN OF ALCATRAZ. Direção: Robert Franklin Stroud. EUA: 1962. 143 min., preto e
branco, inglês.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína & FERREIRA, Marieta de
Moraes (Orgs.). Usos & abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 183-
191.
BURKE, Peter. A Escrita da história. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da
Unesp, 2011.
___________. O que é História Cultural. Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro:
Jorge Zaar Ed., 2005.
CAPIBERIBE, João. Florestas do meu exílio. São Paulo: Terceiro Nome, 2013.
CARVALHO, José Murilo. Chumbo Grosso: Assassinato e torturas eram práticas comuns da
polícia política durante a Ditadura de Getúlio Vargas. Revista de História.com.br. Disponível
em: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/chumbo-grosso. Acesso em: 25/01/2017.
CHARRIÉRE, Henri. Papillon: o homem que fugiu do inferno. São Paulo: Círculo do Livro,
s/d.
COIMBRA, Creso. A Revolução de 30 no Pará: análise, crítica e interpretação da História.
Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1981.
CRUZ. Ernesto. História do Pará. Belém: Governo do Estado do Pará, 1973.
COTIJUBA: A ILHA DO DIABO? Direção: Kid Quaresma. Brasil, Belém: Maria Preta
Criações Artísticas e Insular Produções, 2012. Formato digital AVI (26 MIN.), widescreen,
colorido, português.
DAMASCENO, Alberto. A Segunda República e a Educação no Pará. Belém: Editora Açaí,
2012.
FARIA, Raymundo Nogueira de. A caminho da História: subsídio para a História Política e
Administrativa do Pará. Belém: Officinas Graphicas do Instituto Lauro Sodré, 1945.
FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: História e Historiografia. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1989.
138
2. Vida em família: Como era a casa em que passou a infância? Quantas pessoas moravam
nessa casa? Quem cuidava das tarefas domésticas? Como foi seu primeiro contato com
a escola? Alguém o ajudava nas tarefas escolares? Onde você dormia? Onde fazia as
refeições? Que tipo de comida era comum na sua casa? Havia criações de animais ou
algum tipo de cultivo de gêneros alimentícios em torno a sua casa? Como era a relação
com seus pais? Tem lembrança de conversas com eles?
3. Educandário e trabalho: Com que idade ingressou no Educandário? Como era a rotina
da internação? Onde dormia? Como eram as condições de higiene do ambiente? Como
funcionava o cotidiano dos estudos? O que pensa, sente ou se lembra dos professores
desse tempo? Que disciplina ou assunto mais gostava de estudar? Que tipo de formação
recebeu (pedagógica e técnica)? Houve oportunidade de frequentar o ensino superior?
Com que idade passou a trabalhar e em que função? Descreva suas atividades e seus
horários no primeiro emprego. Que tipo de vínculo possuía (informal, carteira assinada
ou outro)? Qual o salário recebido? Considerava bom o salário? Como usava esse
recurso? Nessa época como era o cotidiano na ilha de Cotijuba? Com que frequência
saía da ilha? Quando saía, onde se hospedava?
4. Casamento e filhos: qual idade tinha quando se casou? Há quanto tempo conhecia a
pessoa com quem veio a casar? Como conheceu essa pessoa? Qual a origem dessa
pessoa? Como veio a construir a casa onde moraram? Como se deu a cerimônia de seu
casamento? Que idade tinha sua noiva quando se casaram? Como foi a relação com a
família da noiva? Ela trabalhava? Quanto anos durou o casamento (ou tem durado)?
Quantos filhos teve? Quais os nomes e a data de nascimento de cada um deles? Como
se deu a educação das crianças? Frequentaram a escola?
5. Vida atual: como e com quem reside atualmente? Aposentou-se? Com que idade? De
que se ocupa? Como se dão as relações com filhos e demais parentes? De que, da sua
juventude, tem mais saudade? Como analisa as mudanças que ocorreram nos últimos
tempos no lugar em que mora?
142
Roteiro de Entrevista com as senhoras Eliete Campos Santos e Edina Campos Santos, filhas de
Raimundo dos Santos
2. Vida em família: Como era a casa em que passou a infância? Quantas pessoas moravam
nessa casa? Como estavam divididas as tarefas domésticas? Como foi seu primeiro
contato com a escola? Alguém o ajudava nas tarefas escolares? Onde você dormia?
Onde fazia as refeições? Que tipo de comida era comum na sua casa? Havia criações de
animais ou algum tipo de cultivo de gêneros alimentícios em torno a sua casa? Como
era a relação com seus pais? Tem lembrança de conversas com eles? Como era a relação
de Raimundo dos Santos com os filhos?
3. Educação e trabalho: Com que idade começou a estudar? Como era a rotina da escola?
O que pensa, sente ou se lembra dos professores desse tempo? Que disciplina ou assunto
mais gostava de estudar? Que tipo de formação recebeu (pedagógica e técnica)? Houve
oportunidade de frequentar o ensino superior? Com que idade passou a trabalhar e em
que função? Descreva suas atividades e seus horários no primeiro emprego. Que tipo de
vínculo possuía (informal, carteira assinada ou outro)? Qual o salário recebido?
Considerava bom o salário? Como usava esse recurso? Nessa época como era o
cotidiano na ilha de Cotijuba? Com que frequência saía da ilha? Quando saía, onde se
hospedava?
4. Casamento e filhos: qual idade tinha quando se casou? Há quanto tempo conhecia a
pessoa com quem veio a casar? Como conheceu essa pessoa? Qual a origem dessa
pessoa? Como veio a construir a casa onde moraram? Como se deu a cerimônia de seu
casamento? Que idade tinha seu noivo quando se casaram? Como foi a relação com a
família da noiva? Ele trabalhava? Quanto anos durou o casamento (ou tem durado)?
Quantos filhos teve? Quais os nomes e a data de nascimento de cada um deles? Como
se deu a educação das crianças? Frequentaram a escola?
5. Vida atual: como e com quem reside atualmente? Aposentou-se? Com que idade? De
que se ocupa? Como se dão as relações com filhos e demais parentes? De que, da sua
juventude, tem mais saudade? Como analisa as mudanças que ocorreram nos últimos
tempos no lugar em que mora?
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2. Vida em família: Como era a casa em que passou a infância? Quantas pessoas moravam
nessa casa? Quem cuidava das tarefas domésticas? Como foi seu primeiro contato com
a escola? Alguém o ajudava nas tarefas escolares? Onde você dormia? Onde fazia as
refeições? Que tipo de comida era comum na sua casa? Havia criações de animais ou
algum tipo de cultivo de gêneros alimentícios em torno a sua casa? Como era a relação
com seus pais? Tem lembrança de conversas com eles?
6. Educação e trabalho: Estudou? Com que idade começou a estudar? Como era a rotina
da escola? O que pensa, sente ou se lembra dos professores desse tempo? Que disciplina
ou assunto mais gostava de estudar? Que tipo de formação recebeu (pedagógica e
técnica)? Houve oportunidade de frequentar o ensino superior? Com que idade passou
a trabalhar e em que função? Descreva suas atividades e seus horários no primeiro
emprego. Que tipo de vínculo possuía (informal, carteira assinada ou outro)? Qual o
salário recebido? Considerava bom o salário? Como usava esse recurso? Nessa época
como era o cotidiano na ilha de Cotijuba? Com que frequência saía da ilha? Quando
saía, onde se hospedava? A existência do educandário na ilha interferia na rotina dos
moradores? Que tipo de relação o senhor manteve com o educandário ou presídio?
Presenciou o modo como eram tratados internos ou presos?
3. Casamento e filhos: qual idade tinha quando se casou? Há quanto tempo conhecia a
pessoa com quem veio a casar? Como conheceu essa pessoa? Qual a origem dessa
pessoa? Como veio a construir a casa onde moraram? Como se deu a cerimônia de seu
casamento? Que idade tinha sua noiva quando se casaram? Como foi a relação com a
família da noiva? Ela trabalhava? Quanto anos durou o casamento (ou tem durado)?
Quantos filhos teve? Quais os nomes e a data de nascimento de cada um deles? Como
se deu a educação das crianças? Frequentaram a escola?
4. Vida atual: como e com quem reside atualmente? Aposentou-se? Com que idade? De
que se ocupa? Como se dão as relações com filhos e demais parentes? De que, da sua
juventude, tem mais saudade? Como analisa as mudanças que ocorreram nos últimos
tempos no lugar em que mora?
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