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ENTRE O FRAGMENTO E A SÍNTESE:

O ARQUIVO DE FOTOGRAFIAS DE A EXPERIÊNCIA DO STATUS

Alexandre Bergamo

Quando recebi o convite de Edson Farias A versão original da dissertação traz fotos
para escrever sobre minhas fotos de e matérias reproduzidas das revistas de
pesquisa, pensei que essa seria uma ótima moda e de catálogos de grifes. Em termos
oportunidade para dedicar mais atenção a de imagens, minhas fotos ocupavam uma
um tema que me interessa tanto, a parte menor. Seria bom se pudesse ter sido
fotografia. Mas não sou mais o mesmo publicado da mesma forma, mas isso
fotógrafo e nem mais o mesmo exigiria obter, para cada uma das imagens,
pesquisador de há 20 anos atrás. É quase no mínimo três ou quatro autorizações: do
impossível deixar de ser cruel comigo fotógrafo, da(o) modelo, da marca, e por
mesmo: olhar para minhas próprias fotos vezes da revista. Isso tornava a reprodução
é olhar para o que poderia ter sido, mas das imagens utilizadas na dissertação algo
não foi. Para evitar transformar este texto quase impossível. A solução, e devo dizer
num exercício de autocrítica e, que gostei muito dela, foi utilizar minhas
possivelmente, de autodestruição, que de próprias fotos. Restringi ao máximo a
nada serviria para o leitor, decidi seguir escolha para que ela ficasse quase que
outro caminho: trazer à tona parte desse totalmente restrita às figuras públicas que
arquivo para discutir a relação, como estavam nesses eventos, salvo numa ou
veremos adiante, ora conflituosa, ora outra situação que considerei fundamental
conciliadora, entre fotografia e etnografia. que a foto fosse utilizada. Compuseram
Mais do que isso, a relação muito mais igualmente esse conjunto algumas das
tensa que pacífica entre fotógrafo e fotos para o projeto Memória da Moda, que
etnógrafo. Antes, no entanto, é preciso desenvolvi junto ao NIDEM/Núcleo
falar um pouco sobre as fotos publicadas Interdisciplinar de Estudos sobra Moda,
no livro, pela Editora da Unesp coordenado por Solange Wajman, com
(BERGAMO, 2007). financiamento da FAPESP e sediado na
UNIP, em São Paulo, onde
entrevistávamos nomes importantes especificamente, A Sociedade de Corte
ligados à moda no Brasil nos anos de 1960, (ELIAS, 1995) e As Regras da Arte
1970 e 1980. Também utilizei fotos feitas (BOURDIEU, 1996). Na fotografia, a
posteriormente, em especial de vitrines e influência principal era Horst. P. Horst.
interiores de lojas. São essas as fotos que Mas nenhuma dessas influências podem
compõem esse arquivo. O texto final da ser usadas, evidentemente, como perdão
publicação foi também revisado e para falhas que são somente minhas.
ampliado em algumas partes, já que só A discussão que farei a seguir tem muito
algum tempo depois consegui resolver mais a ver comigo hoje, com as indagações
certos questionamentos que me foram que tenho feito sobre a fotografia, mais
feitos pela banca na defesa da dissertação, especificamente a fotografia como um
composta por Heloisa Pontes e Leopoldo registro, um documento. Não tinha,
Waizbort. Mas não acrescentei mais do naquele momento, tais indagações. Mas
que isso. tinha algo muito claro em minha cabeça:
Antes mesmo de voltar a rever essas fotos, fotografia e escrita eram duas linguagens
sabia que havia uma linha divisória entre distintas, e precisavam ser exploradas
elas: de um lado o colorido, de outro o enquanto tal. Não via, portanto, a
preto e branco. Para a publicação, escolhi fotografia como “ilustração” para a escrita,
apenas fotos em preto e branco. Mas sobre como um acessório, um recurso para lhe
isso falarei mais adiante. Importante dar mais legitimidade. Nos eventos de
também destacar que como utilizei duas moda, compartilhava o mesmo espaço que
linguagens diferentes, a escrita e a os fotógrafos: com eles conversava sobre
fotografia, fiz questão de fazer de cada as personalidades dos eventos, assim
uma delas um objeto de experimentação como sobre fotografia. Fora dos eventos,
pessoal, mas com a evidente interferência minha interação maior era com estilistas,
de uma sobre a outra. Por um lado, tentar donos de lojas, produtores de moda para
criar imagens com a escrita e, por outro, revistas e professores dos cursos de moda
dizer com as imagens coisas que eu jamais e estilismo. O conjunto das fotos retrata
conseguiria com a escrita. Isso, contudo, esse trânsito no campo.
tem só a aparência de uma conciliação, por
motivos que pretendo expor mais a frente. FRAGMENTO E SÍNTESE
No que diz respeito à escrita, há duas
influências marcantes sobre mim: Norbert Do ponto de vista do registro, fotografia e
Elias e Pierre Bourdieu. Mais etnografia são recursos radicalmente

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distintos. A etnografia é um trabalho de Insisto nisso porque esse me parece ser
síntese, de descrição e narração visando à um dos aspectos mais importantes ligados
construção de uma imagem ampla, mas à fotografia. Quando decido tirar uma foto
coesa e coerente, de certas práticas sociais. de algo, decido por um “recorte”,
Interpretativa, mas fundamentada em temporal e espacial. Ignorar esse recorte
princípios sólidos de análise. Jamais significa ignorar o próprio ato fotográfico.
poderá ser um mero “ponto de vista” solto Portanto, tão importante quanto a própria
no ar (GEERTZ, 1989; DURANTI, fotografia é o “recorte”, o que ela deixou
2000). A escrita permite a construção de de fora, deixou de mostrar, a escolha por
um todo coeso e coerente, mostrando a trás da imagem (MARTINS, 2017).
interligação e a interdependência entre Quando reúno esses fragmentos em um
diferentes fontes de pesquisa e diferentes arquivo ou um álbum, ou mesmo uma
agentes sociais. coleção, dou-lhes uma ordem, estabeleço
A fotografia, ao contrário, é um uma relação entre as imagens. Sem essa
fragmento. Ela fragmenta o espaço e o ordenação, elas permanecem fragmentos.
tempo (ROUILLÉ, 2009). Reunir esses E mesmo que eu não as insira em uma
fragmentos em um conjunto é um esforço determinada coleção, mas as utilize como
evidente para tentar ordená-los. Mas ainda parte importante de uma narrativa ou uma
que sejam reunidos e ordenados, tentando descrição, são estas que lhes estabelecem
estabelecer coerência entre si, a fotografia uma relação e lhes conferem um sentido.
jamais será uma síntese. Ela será sempre Vejamos um exemplo. As imagens são dos
fragmento. interiores de três lojas:

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Isoladamente, essas fotos nada O fato de que essas três fotos não tenham
representam. Nem motivo para serem qualquer atrativo do ponto de vista
apreciadas elas chegam a ter, ainda que a estético é um detalhe importante a ser
terceira delas se “salve” quando explorado. Historicamente, a fotografia
comparada às outras duas. São fragmentos surge e se afirma como “registro
de três diferentes espaços, mas talvez objetivo”, em oposição à pintura,
possam ser úteis se olhadas a partir desse considerada “subjetiva”. O fato de que o
aspecto. Na primeira delas, as peças de registro era feito por uma máquina,
roupa aparecem empilhadas. Mas há outro diferentemente da pintura, feita a mão,
detalhe: o espaço é pequeno, não há como reforçava a crença na sua “objetividade”.
tomar distância das prateleiras. É uma loja Quando seu uso se ampliou para a
“popular”, de roupas baratas. Na segunda, imprensa, a criminologia e as ciências, a
o espaço é um pouco maior, e dessa forma crença em sua “objetividade” foi reforçada
consigo um certo distanciamento e (ROUILLÉ, op. cit.). Dessa forma, a
escolho qual a prateleira que irei fotografia pode ser “apreciada” como
fotografar. O uso do espaço tenta ser o “documento”, não lhe sendo cobrada
mais racional possível, assim como a qualquer atrativo estético. Figura, assim,
separação das roupas, seguindo uma lógica como registro de uma “verdade”, para a
cromática. Na terceira há muito mais qual não cabe qualquer tipo de
espaço, tanto que me dou ao luxo de fazer contestação.
uma “composição”: deixo em primeiro Paradoxalmente, é essa crença na
plano as bebidas, sinal de requinte, e, em objetividade da fotografia que permite sua
segundo plano, desfocada, uma moça total conciliação com a etnografia. A
fazendo prova de roupa auxiliada por uma síntese interpretativa representada pela
vendedora. É uma butique luxuosa. Ainda etnografia – fundamentada,
no caso específico dessa última foto, não evidentemente – se vale da fotografia
só o espaço foi fragmentado, mas também enquanto “documento comprobatório”,
o tempo: uma ação se desenrola ao fundo. atestado de “verdade”. Quando inserida
Poderia ser uma vendedora dobrando no texto científico, qualquer que seja ele,
roupas, alguém limpando etc. E poderia ela é imediatamente “monumentalizada”
também não ter ninguém naquele (LE GOFF, 2003). Primeiro, a fotografia
momento. Mas escolhi fotografar uma é “autorizada” e “legitimada” pelo seu
troca de roupa. contexto de origem: a pesquisa científica.
Ela não precisa ser “bela”, basta ser

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“documento comprobatório” do discurso “verdade”. Se, por um lado, o texto precisa
científico. Segundo, e essa é uma da imagem para ser “comprovado”, graças
característica importante das fotografias à crença construída ao longo de muitos
de pesquisa, ela é imediatamente anos de que a fotografia é um “registro
“monumentalizada” por esse mesmo objetivo”, um “documento verdadeiro”,
contexto de origem. Passa a figurar como por outro, quando inserida no texto,
“documento comprobatório”. Segue um mostra que tem caráter secundário,
caminho diferente das demais fotografias, depende inteiramente do texto, servindo-
que só são monumentalizadas quando lhe apenas de “ilustração”. O não-verbal
migram para um arquivo ou uma coleção, (imagem) é inseparável do verbal (texto).
pública ou particular.
No entanto, como afirmei pouco mais A RELAÇÃO COM O ESPAÇO
acima, ignorar que a fotografia é um
“recorte”, um fragmento, é ignorar o No caso dos eventos de moda, assim
próprio ato fotográfico. Mas a produção como das fotos de estúdio para as revistas,
científica se faz, ela mesma, cada vez mais, não só o espaço é fundamental, mas
de forma fragmentada. Colocados lado a também a perspectiva: são imagens para
lado, texto e fotografia nublam seu caráter serem vistas de frente, como nos
fragmentário, e deles emerge uma pequena exemplos abaixo:

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No caso da imagem acima, eu estava num acesso às modelos e às roupas, em
dos locais mais concorridos para os primeiro plano, e ao cenário e à
fotógrafos: de frente para a passarela. Na identificação do evento ou da marca, ao
imagem abaixo, a mesma coisa. Essa é a fundo, em segundo plano:
posição que possibilita ao fotógrafo ter

Quando vistas de outro ângulo, as imagens fotografias feitas da perspectiva “correta”


revelam os limites do cenário e da (de frente) têm mais chance de serem
perspectiva para a qual o evento foi aceitas pelos editoriais de moda. Abaixo,
planejado. Nesse universo, exemplo de uma perspectiva “ruim”, onde
especificamente, isso significa se tem a vista apenas da saída da modelo
comprometer a própria fotografia e, com em direção à passarela:
isso, o trabalho do fotógrafo. As

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Isso fica mais evidente ainda nas fotos de matéria sobre “a irmã do meio” para a
estúdio, como no caso abaixo, de uma Revista Atrevida:

O que essas fotos revelam é que a à modelo e à roupa, mas à relação que a
percepção da moda está ligada não apenas fotografia estabelece entre o primeiro e o

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segundo planos. Essa é, a meu ver, uma Não podemos nos esquecer, também, de
das primeiras relações às quais se deve que a percepção da fotografia esteve e
prestar atenção. Historicamente, a ainda está muitas vezes ligada ao “registro
fotografia vai da percepção de um único objetivo” de algo, uma “verdade” por si
plano, como os retratos em grupo ou mesma, para a qual a subjetividade pode
individuais feitos em estúdio, geralmente ser dispensada. Mas seria mais prudente
ocupando o centro da imagem, para a dizer que texto e fotografia operam dois
incorporação do espaço ao redor diferentes registros de “verdade”, onde
(ROUILLÉ, op. cit.). Há, a meu ver, uma cada um deles pode ser utilizado para
distância muito grande entre o registro de “comprovar” o outro, mostrando a
uma pessoa ou de um detalhe, no centro interferência e a interdependência entre o
da imagem, desprezando o que está ao verbal e o não-verbal.
redor, e o registro de uma imagem Durante minha pesquisa de campo,
elaborada em dois ou mais planos, utilizei, por muito tempo, a máquina
buscando estabelecer uma relação entre fotográfica mais como “suporte de (minha
eles. própria) memória”. Anotava detalhes-
Posso, igualmente, utilizar essa metáfora chave em meu diário de campo, muito
para pensar a relação entre imagem e mais um livro de anotações que um diário
texto. Há textos em que a imagem ocupa propriamente dito, e me valia também da
um “segundo plano”. O que está em máquina para fazer certos registros. Não
“primeiro plano”, o texto, é mais posso dizer, portanto, que a fotografia
importante. A imagem é secundária, ficava, para mim, em “segundo plano”.
meramente uma ilustração. Mas há textos Registro escrito e registro fotográfico
em que a imagem está em “primeiro eram duas peças de uma mesma narrativa,
plano”, e o texto em “segundo”, é de uma mesma síntese. Mas havia outras
basicamente uma “legenda ampliada”. peças: editoriais de moda, peças
Assim como há textos que não aceitam publicitárias, matérias de revistas e jornais
ficar em “segundo plano” e concorrem, etc. O mais importante, para mim, era o
estilisticamente falando, com as imagens esforço para tentar elaborar uma boa
em “primeiro plano”. São geralmente etnografia, uma boa síntese de tudo que eu
textos de comentários sobre fotografias, via e registrava. Esse foi um dos motivos
onde o autor do texto se sente obrigado a de eu ter explorado tão pouco minhas
brilhar tanto quanto o autor das próprias fotos. Olhando para elas hoje,
fotografias.

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percebo que elas tinham mais do que eu pensarmos na necessária distinção entre
conseguia ver naquele momento. fotógrafos e cameramen. O uso de uma
câmera de vídeo exige o conhecimento
FRAGMENTANDO O ESPAÇO E O básico da fotografia: enquadramento,
TEMPO: O CAMPO DA MODA EM perspectiva, iluminação etc. Mas ainda que
IMAGENS a televisão seja essencialmente visual, ali as
imagens ficavam sempre em segundo
Também no jornalismo há momentos em plano: as câmeras de vídeo são tão
que a imagem fica ora em primeiro plano, somente apontadas para as pessoas ou
ora em segundo. E isso é mais nítido se objetos a serem filmados.

Na imagem acima vemos apenas o registrados alguns detalhes do ensaio para


cameraman em ação. Significa que essa o desfile. São feitas também imagens mais
imagem será utilizada para uma gravação abertas, em plano geral, mas igualmente
em off do repórter. Será, portanto, apenas com o objetivo de serem ilustrativas. Isso
uma imagem ilustrativa do que estiver só muda quando é o próprio repórter que
sendo dito em off. A câmera está bem está sendo gravado, geralmente fazendo
próxima, o que significa que devem ser uma entrevista.

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Isso era visível não apenas nos desfiles, cameraman filma ora o repórter
mas também em outras gravações feitas entrevistando alguém, ora uma modelo ou
em lojas e ateliês. O procedimento, do as peças de roupa.
ponto de vista técnico, é o mesmo. O

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Outro detalhe importante é que as sendo tão somente um técnico, um mero
relações que os diversos agentes do campo operador de uma máquina. E mesmo não
estabelecem com a câmera de vídeo e com sendo de nenhum veículo de imprensa
a máquina fotográfica são bastante importante, as pessoas estavam sempre
desiguais. Ninguém conversa com os dispostas a se deixarem retratar por mim,
cameramen, mas com o fotógrafo a relação a se deixarem fotografar.
é direta. Todas as vezes que eu chegava É fácil entender a diferença entre o
com a máquina fotográfica, era cameraman e o fotógrafo. Quando uma
imediatamente indagado de onde eu vinha. equipe de televisão chega, quem interage,
A expectativa era de que eu fosse de algum dialoga e decide o que e quando filmar é o
jornal ou de alguma revista importante. repórter. Embora ele não opere a câmera
Claro que a decepção era grande quando de vídeo, é ele quem a conduz. Quando
eu dizia que era um pesquisador da USP. um fotógrafo chega, é muito comum que
Mas isso não impedia que as pessoas esteja sozinho. É ele quem interage,
conversassem comigo. Diferente do dialoga e decide quem ou o que fotografar.
cameraman, o fotógrafo não é visto como Quando a equipe de televisão chega, todos

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param e lhe dão atenção. É um evento que desigualmente nesse espaço. Além disso, a
foge à rotina diária de trabalho desses câmera de vídeo fragmenta o tempo
profissionais. Quando um fotógrafo porque o divide: as pessoas param, falam
chega, todos lhe dão atenção, mas as com a equipe, se deixam gravar, e depois
pessoas não param, continuam seu retornam às suas rotinas. A máquina
trabalho enquanto conversam. A não ser fotográfica, diferentemente, capta
que chegasse algum jornalista de moda fragmentos dessa rotina. Como nos casos
importante de algum grande veículo da abaixo, onde vemos o estilista Paulo
imprensa. A câmera de vídeo e a máquina Modena trabalhando e a ex-modelo Rosa
fotográfica circulam, portanto, Dolenk em sua loja na Galeria Ouro Fino:

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Este é um detalhe importante quando serem maquiadas e penteadas, e rápida
aparecem nas imagens fotógrafos ou agitação no momento imediatamente
equipes de televisão. Embora dar anterior e durante o desfile. O espaço às
entrevistas para programas de televisão vezes é bastante confuso, dividido por
seja parte da rotina desses profissionais, é profissionais que irão atuar nos muitos
também um momento de interrupção e de desfiles que se seguirão. Abaixo, por
divisão temporal. Isso fica evidente exemplo, vemos um grupo de crianças
também quando observamos que, em animadas com algum jogo enquanto
segundo plano, o trabalho dos esperam sua hora para desfilar. Há
profissionais de moda continua enquanto, conversas e brincadeiras. Nos momentos
em primeiro plano, a entrevista acontece. que antecedem os desfiles, cabeleireiros,
Ou seja, também o espaço fica dividido. maquiadores e costureiras (fazendo
Geralmente, os bastidores dos desfiles são pequenos ajustes nas roupas) trabalham
marcados por momentos de longas incessantemente.
esperas, onde as modelos aguardam para

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DA FOTOGRAFIA DOCUMENTAL À que representavam uma virada na forma
FOTOGRAFIA AUTORAL como vinha conduzindo minha pesquisa.
Duas mudanças estavam em jogo: com
- Filme preto e branco!? Como é que relação à escrita e com relação à fotografia.
alguém vem pra um desfile de moda com Cada uma delas foi vivenciada e registrada
um filme preto e branco!? de uma maneira específica. No caso da
- O Sebastião Salgado foi. escrita, a mudança estava, muito
- Mas você não é o Sebastião Salgado, né?, claramente, para mim, na página 17. Nem
Bergamo! sei mais se essa página corresponde à
De fato, não sou, e estou muito longe de versão final da dissertação, mas para mim
ser, infelizmente. Por isso foi assim, em estava claro que a partir daquela página
tom de total indignação, que uma amiga, tudo deveria ser diferente. Não pretendo
que àquele momento também estava me alongar nessa questão, pois meu
pesquisando moda, e por acaso estávamos objetivo aqui é discutir o uso que passei a
no mesmo desfile, recebeu a notícia de que fazer da máquina fotográfica. A mudança,
eu tinha na minha máquina não um filme nesse caso, não tinha página, mas tinha
colorido, mas sim um preto e branco. Era cor: deixar o filme colorido para abraçar as
evidente que para ela isso não fazia possibilidades do preto e branco. Não
nenhum sentido, mas para mim era a única estava nada contente com as fotos –
coisa que poderia fazer sentido. Várias coloridas – que vinha fazendo. Não me via
coisas estavam em jogo por trás dessa nelas. Elas pouco ou nada representavam
decisão, e creio ser importante expô-las, já para mim. E assim como eu queria ser

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“autor” de meu próprio texto, queria texto quanto nas minhas fotos. Parte dessa
também ser “autor” de minhas próprias ambicionada “honestidade intelectual”
fotos. significava igualmente “não trair” as
Isso, contudo, só seria possível se eu me pessoas desse universo que eu escolhera
colocasse inteiramente no texto e nas para pesquisa, não elaborar uma síntese
fotos. Por trás dessa decisão pesava sobre que as representasse de forma superficial,
mim uma discussão e uma autocrítica ou mesmo caricatural, mas tentar
sobre minha “honestidade intelectual”. compreender como elas vivenciavam sua
Estava em jogo “vestir uma roupa” que relação com a roupa e a moda. Daí o título
me fizesse “parecer um pesquisador” ou da tese. Na escrita, a referência principal
dispensá-la e não fazer o jogo das para mim, naquele momento, era o
aparências. Creio que essa é uma dúvida Norbert Elias de A Sociedade de Corte. Na
pela qual muitos passam durante sua fotografia, Horst P. Horst. era minha
formação, e comigo não foi diferente. principal influência, mas devo confessar
Isso, evidentemente, se incarnava naquilo que foi decisivo para mim ver a série de
que eu produzia, escrevendo ou fotos que Sebastião Salgado fez para a
fotografando. Fiz a segunda opção. Mas Folha de São Paulo sobre o universo da alta
isso precisaria estar presente tanto no meu costura.

Talvez eu possa expressar melhor a que a fotografia é um registro dependente


mudança por meio de dois diferentes de usos sociais específicos (BOURDIEU
termos: registrar e fotografar. É evidente e BOURDIEU, 2006). A diferença estava,

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para mim, não somente em “registrar” fotos: omissões ou escolhas erradas. Vou
aquilo que via, mas principalmente em exemplificar isso com base nas fotos que
“compor” uma imagem (SONTAG, fiz de Ana Frida, Dona Gabriela Pascolato
2004). Como se tratava de um contexto de e Thais Losso. As duas primeiras foram
pesquisa, o registro não poderia ser para o Projeto Memória da Moda.
negligenciado. Mas passei a dedicar As pesquisas para a Memória da Moda
atenção também a todos os outros eram sempre feitas pelos pesquisadores do
elementos a serem utilizados numa Nidem. Foi assim com Ana Frida. Suzana
“linguagem fotográfica”: os detalhes, a Avelar apresentou a mim e a Solange
composição em vários planos, a Wajman a ela para a entrevista, feita no
perspectiva, o uso da luz e da sombra etc. apartamento em que morava. Para minha
Mesmo assim, acho que falhei em certas própria surpresa e decepção, me dei conta
escolhas que fiz para a publicação das agora de que nunca revelei essas fotos.

No caso de Dona Gabriela Pascolato, dela nesse dia foi depois utilizado em um
fizemos uma entrevista nas dependências artigo (BERGAMO, 2004). A imagem foi
do Nidem, na Unip, e numa outra situação feita propositadamente de forma a
fui até o apartamento dela acompanhado compor uma relação direta entre ela, em
por Carlos Mauro. Um dos retratos que fiz primeiro plano, e a pintura, em segundo.

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No entanto, outros retratos foram feitos. em outros elementos significativos que
E me dou conta de que deixei passar um estavam ao meu redor.
detalhe muito importante: Carlos Mauro Já Thais Losso foi fundamental para que
pouco aparece, o que hoje me soa como eu compreendesse o ato de criação em
uma grande injustiça, pois ele foi o nosso moda, e a ela dediquei um lugar especial na
principal mediador nas conversas com pesquisa, escolhendo uma foto que fiz
Dona Gabriela. Além disso, enquanto enquanto seu cabelo era arrumado para o
insisti na construção de um retrato com momento em que iria entrar na passarela,
base em minha própria percepção de junto com suas roupas e suas modelos.
Dona Gabriela, deixei de prestar atenção Naquele momento, ela fazia as roupas para
a Cavalera.

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Estava interessado em mostrá-la alguma. Espero que, com essa nova
trabalhando, em ação, e a preparação do seleção, consiga corrigir, ainda que não
cabelo fazia parte dessa rotina de trabalho. completamente, minhas próprias falhas e
No entanto, percebo que deixei de fora omissões. E como disse inicialmente, a
uma característica muito importante dela: fotografia está condenada a ser sempre um
sua amabilidade. Ela era sempre amável e fragmento. Mas quando colocada em uma
afetuosa com as pessoas a seu redor. E foi “coleção”, ou em um “ensaio”, o conjunto
graças a essa amabilidade que ela me abriu lhe ordena e lhe confere uma certa
as portas de sua casa para conversarmos coerência. As fotos a seguir, com isso,
sobre os detalhes da criação em moda. foram escolhidas para serem olhadas em
Digo isso tudo porque o que se segue, a conjunto. Resta saber se elas podem ser
partir daqui, é uma nova seleção de minhas olhadas como um conjunto por si só ou se
imagens em preto e branco. Se eu fosse permanecerão para sempre dependentes
publicar meu livro hoje, novamente, estas de um texto, uma legenda, uma narrativa.
imagens não poderiam faltar em hipótese

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REFERÊNCIAS

BERGAMO, Alexandre (2004). Elegância e atitude: diferenças sociais e de gênero no mundo


da moda. Cadernos Pagu, jun., no 22, p. 83-113.
_____________ (2007). A experiência do status: roupa e moda na trama social. São
Paulo: Editora da UNESP.
BOURDIEU, Pierre (1996). As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras.
BOURDIEU, Pierre e BOURDIEU, Marie-Claire (2006). O camponês e a fotografia.
Revista de Sociologia e Política, jun., no 26, p. 83-92.
DURANTI, Alessandro (2000). Antropología Lingüística. Madrid: Cambridge University
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ELIAS, Norbert (1995). A sociedade de corte. Lisboa: Estampa.
GEERTZ, Clifford (1989). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora.
LE GOFF, Jacques (2003). História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP.
MARTINS, José de Souza (2017). Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo:
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ROUILLÉ, André (2009). A fotografia entre documento e arte contemporânea. São
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SONTAG, Susan (2004). Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras.

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