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6º Seminário Discente do PPGS 


Homenagem a Vera da Silva Telles

Bianca Freire-Medeiros

Vera da Silva Telles, professora livre-docente sênior do Departamento de Sociologia da


Universidade de São Paulo, um dos maiores nomes dos estudos urbanos e do mundo do trabalho no
Brasil, não é uma apreciadora de rapapés e salamaleques. Agrada-lhe, menos ainda, a ideia de ser,
ela mesma, objeto de homenagens, tributos e reverências. Nós que somos privilegiadas por
compartilhar de sua convivência inspiradora — quer como estudantes, colegas, amigas ou leitoras
— sabemos que quaisquer palavras que exaltassem sua criatividade transgressora, sua generosidade
imensa e seu humor fino (e felino!) ficariam aquém do que Vera Telles merece. Então a missão que
me foi atribuída — ou pior, que me atribuí! —, já nasce fadada, por um lado, ao desagrado e, por
outro, à incompletude.

Da incompletude, que é condição inescapável da linguagem, dou conta na certeza de que esta é
apenas uma de muitas e muitas celebrações por receber e já recebidas (não nos esqueçamos da
horda de fãs, na ANPOCS do ano passado, se digladiando por um espacinho no “encontro com os
autores” cujo propósito era celebrar o seu legado). Menos mal. Da aversão de Vera às ritualística
congratulatórias, podemos simplesmente fazer ouvidos moucos, como sugeriam minha avó e o
Lacan. Afinal, a despeito do constrangimento da nossa homenageada, não faltam evidências
empíricas a sustentar a validade de seguirmos na retórica da reverência. São nada menos que 40
orientações de mestrado e doutorado concluídas até aqui — com direito ao prêmio de melhor
dissertação no Concurso de ANPOCS de 2015 concedido a Andrea Roca Vera. São dezenas e
dezenas de artigos e livros, coletâneas e dossiês por ela escritos ou organizados, muitas vezes em
autoria generosamente compartilhada com jovens pesquisadores em formação. Escritos que
impactaram, de forma definitiva, nossa maneira de interpretar a riqueza das trajetórias sociais dos
que habitam as periferias; a complexidade das mobilidades dos corpos e das coisas que se cruzam
em diferentes escalas espaço-temporais; as formas de regulação do trabalho e dos territórios — tudo
isso onde antes o olhar enviesado pela idealização normativa enxergava apenas falta, atraso e
desordem. Impressiona ainda mais se atentarmos para o fato de que a força motriz dessas reflexões,
que hoje constituem o acervo de referências obrigatórias dos que têm as cidades como objeto de
estudo e campo de intervenção, já se fazia presente nos tempos em que a jovem Verinha se formava
sob orientação dos saudosos Professores Lucio Kowarick (no mestrado em Ciência Política) e
Maria Celia Paoli (no doutorado em Sociologia).

Por certo, seus companheiros nessas quatro décadas de viagens teóricas e descobertas epistêmicas
foram sendo reposicionados (quando não substituídos) — num primeiro momento, Polanyi, Claude
Lefort e Hannah Arendt, mais adiante Deleuze, Foucault e Agambem, aos quais se juntaram, neste
contexto de fim do mundo, Haraway e Tsing (como veremos daqui a pouquinho). Mas de fato não
importa, ou importa menos. Porque quaisquer que sejam os referentes teóricos, os desafios
analíticos e os problemas empíricos, podemos contar como certo que a criatividade indomável de
Vera Telles vai promover combinações inusitadas, afiar o corte do velho facão e encontrar, de
maneira arrebatadora, uma saída do “labirinto de dualismos” em que tentam sempre nos aprisionar.

Então, por mais que você, Vera, seja avessa à ideia, render homenagens à sua trajetória nos é
inevitável! Trata-se de um fato e não de opinião: neste fim de tarde de uma primavera pandêmica,
cada pessoa aqui presente, cada uma de nós, temos um sem-número de razões para celebrar Vera da
Silva Telles. Muitas vieram por conta da docente e orientadora que nos inspira na sala de aula, nos
grupos de estudo, nas frentes de batalha onde epistemologia e política são, como você nos ensina,
uma coisa só. Outras tantas estão aqui para aprender um pouco mais com a pesquisadora que soube
deslindar as teias do urbano — ou melhor, as “tramas da cidade” — e decifrar as dobras e fronteiras
onde legalismos/ilegalismos são produzidos. Dos dois hemisférios e de diferentes núcleos de
pesquisas, vieram colegas, amigas e amigos para quem Verinha é exemplo de postura intelectual,
retidão acadêmica e de conhecimento politicamente comprometido no melhor sentido.

Eu estou aqui hoje porque para mim você é tudo isso. É a colega que me acolheu quando aterrissei
em terras uspianas, é a vizinha com quem aprendi a reconhecer que os felinos podem ser tão
afetuosos quantos os coelhinhos, é a amiga com quem compartilho o signo do zodíaco e o gosto por
ficção científica. Não por acaso, a imagem mais imediata que me vem ao pronunciar seu nome é
aquela da ciborgue de que nos fala Donna Haraway: corpo de agilidade e forças invejáveis, mente
veloz, mente-corpo com uma vocação sempre renovada para encontrar prazer na confusão de
fronteiras, para desconfiar de qualquer holismo e, ao mesmo tempo, desejar e promover conexões
— ou “epistemologias colaborativas”, expressão que atravessa e conduz o belíssimo artigo que seu
grupo de pesquisa produziu e que nos servirá de bússola para o debate desta noite.
Em seu memorial do concurso de livre docência, cuja leitura e releitura eu recomendo
entusiasticamente, há uma passagem que eu gostaria de recuperar aqui. Vera nos diz que seu desejo
é (e eu cito):
“fazer das circunstâncias da vida acadêmica uma condição positiva para o trabalho
intelectual, quer dizer: uma experiência de pensamento que, provocada pelas
questões postas pelo mundo, seja capaz de deslocar os rumos da pesquisa e da
reflexão teórica, colocar outras perguntas, redefinir o horizonte das indagações,
arriscar sair do terreno seguro do já-dito e se enveredar por outros caminhos”.


Graças a essa potência desbravadora e inquieta de Vera Telles, todas nós temos a oportunidade de
trilhar caminhos outros, muito mais ricos, complexos e interessantes. E continuar com a certeza de
que, mesmo diante do fim do mundo, seguiremos.

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