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Esta tese trata do enfrentamento a “crimes sexuais” em Fortaleza. Seu objeto transborda,
porém, o conjunto de práticas que costumavam aparecer juntas e que chamei de “crimes
sexuais”: tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, exploração sexual de crianças e
adolescentes, “turismo sexual” e, às vezes, abuso sexual. A partir da análise do cotidiano do
“resgate”, em que agentes do enfrentamento a esses “crimes” encontravam as supostas
“vítimas”, eu desenvolvo meu argumento principal de que, nas margens de Fortaleza, as
políticas de enfrentamento a “crimes sexuais” se desfaziam e se misturavam às dinâmicas das
economias sexuais. Sustento este argumento na análise etnográfica realizada entre 2015 e
2017 acompanhando os projetos missionários de enfrentamento a esses “crimes” da
Sociedade da Redenção, no Pirambu, e da Missão Iris, no Moura Brasil e na Praia de Iracema.
Nesses locais, compartilhei o cotidiano das pessoas consideradas “alvo” do enfrentamento a
esses “crimes” e percebi que a incidência de “crimes sexuais” era secundária, se não
inexistente, e as categorias do “resgate” eram articuladas às categorias da diferença para
produzir desigualdades na indeterminação das margens. Ao mesmo tempo, as pessoas
consideradas “vítimas” desses “crimes” eram confrontadas por crises recorrentes que
minavam os suportes para suas vidas e dos seus. Nestes contextos, a gestão da vida através de
sistemas morais era operada por instâncias estatais, missionárias e facções, que apesar das
diferenças, coincidiam ao enfatizar normas de gênero e sexualidade dicotômicas. Considerei
que, muitas vezes, as políticas de enfrentamento a “crimes sexuais” procuravam “dar voz” a
sofrimentos que não eram reconhecidos, relegando as “vítimas” ao lugar da falta. Interessei-
me, então, nas maneiras como essa “mudez” era enfrentada pelas supostas “vítimas”,
observando que elas iam desde o reforço das dicotomias até a produção de novos saberes.
Essas observações me levam concluir que a indeterminação das fronteiras entre políticas de
enfrentamento a “crimes sexuais” e dinâmicas das economias sexuais pode ser percebida não
somente nos mecanismos de governo, mas também nas experiências corporificadas dos
sujeitos.
This is a thesis about fighting “sex crimes” in Fortaleza. Its object, however, surpasses the
ensemble of practices that used to be mentioned combined, which I have named “sex crimes”:
human trafficking for sexual exploitation, child sexual exploitation, “sex tourism”, and,
occasionally, sexual abuse. Throughout the analysis of the daily “rescue”, in which agents
encountered the alleged “victims”, I have developed my main argument that, in Fortaleza’s
margins, the politics of fighting “sex crimes” dissolved and merged into the dynamics of
sexual economies. I sustain my argument based on the ethnographic study held from 2015 to
2017 with two missionary projects engaged in fighting “sex crimes”: Sociedade da Redenção,
in Pirambu, and Missão Iris, in Moura Brasil, and in Praia de Iracema. In the aforementioned
neighborhoods I have also shared day-to-day activities with people targeted in these policies
and came to realize that the actual occurrence of “sex crimes” was secondary, or even absent,
in their lives, and the “rescue” categories were articulated to the categories of difference to
produce inequalities amidst the margins indeterminate setting. At the same time, people who
were considered to be “sex crimes victims” were subjected to successive and disconnected
crises that withdrew the communal supports for their lives. In these contexts, daily living was
regulated through moral systems operated by state agents, missionaries, and drug dealers who,
in spite of their many differences, seemed to agree to focus on gender and sexualities
dichotomist rules. I have came to realize that, many times, the politics of fighting “sex
crimes” tried to “give voice” to sufferings that were not acknowledged, and this usually
relegated “victims” experiences to a void. That inspired me to examine the ways people
fought back this void, which went from reinforcing dichotomies to the making of new ways
of producing knowledge. These observations led me to conclude that the indeterminate
boundaries separating the fighting of “sex crimes” and the dynamics of sexual economies
were inscribed not only in government apparatuses, but also in the embodied experiences of
people.
INTRODUÇÃO 27
PARTE I: FORTALEZA 44
CAPÍTULO 1: COPA 47
CAPÍTULO 2: CONTEXTO 90
BIBLIOGRAFIA 382
CADERNO DE IMAGENS 409
MAPAS 409
PANFLETOS 411
OBJETOS 426
RETRATOS 436
27
Introdução
1
Ao longo da tese utilizo aspas para indicar expressões que são objeto de disputa, termos empíricos e
citações curtas. Já a grafia em itálico está reservada para palavras estrangeiras e títulos de produções
acadêmicas e culturais.
2
Sempre que o texto de referência estiver em língua estrangeira, a tradução livre foi feita por mim.
28
3
Conferir o mapa dos bairros de Fortaleza no caderno de imagens.
29
4
Categoria empírica que faz referência a estrangeiros, sobretudo brancos e do norte global.
5
Categoria empírica acionada para indicar mulheres locais em contextos de encontros transnacionais.
30
6
Foram usados nomes fictícios para fazer referência à maior parte das pessoas mencionadas na tese.
Quando dar crédito aos sujeitos que contribuíram com a pesquisa foi considerado mais importante que
preservar seu anonimato indiquei seus nomes e sobrenomes.
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Em meio a muitas histórias sobre a política financiada pela droga nas margens, suas
facções7, suas regras e suas guerras, Graça nos contou o caso da cachorra que fora abusada
sexualmente. Ela falou que sempre soubera que o homem considerado “culpado” não era uma
boa pessoa, porque nunca olhava as pessoas nos olhos. Ele frequentemente chamava as
crianças para ir à praia. Graça recomendava às mães que não permitissem. Certo dia, a
cachorra do homem apareceu morta. Eu não sei qual foi o procedimento da investigação, mas
chegou-se ao consenso de que a cachorra havia morrido em decorrência do abuso sexual
perpetrado por seu dono.
A população demandou justiça. Os “meninos” do Comando Vermelho, facção que
“pacificara” o Pirambu no início de 2016, e que, até aquele período, comandava corpos e
territórios, fizeram a “justiça”. Quebraram os dois pulsos e o fêmur do dono/agressor da
cachorra. Depois disso, ele não saiu mais de casa, mas, segundo Graça, o homem era tão ruim
que já estava andando.
Essa situação é chave, porque leva ao extremo algumas das dinâmicas que observei ao
longo da pesquisa de campo, ressaltando a importância da política financiada pela droga na
regulação das moralidades nas margens. Isto conduz ao meu terceiro argumento. As facções,
com as missões católicas e evangélicas, constituíram-se em importantes instâncias de gestão
da vida através de sistemas morais nas margens em que as ações do estado eram intermitentes
e ambivalentes.
Relaciono esse argumento com as teorias sobre a distinção entre poder e violência que
partem da elaboração de Hannah Arendt (1970) e atravessam grande parte do debate
brasileiro sobre crime. O evento da “pacificação” de vários territórios em Fortaleza por
facções permitiu analisar os pressupostos raciais que opõem a violência “legítima” associada
ao estado daquela “criminosa” imputada aos “traficantes”.
Seguindo as formulações Franz Fanon (1968), reconheço a violência intrínseca às
relações de poder nas colônias, considerada indispensável nos processos de descolonização.
Os “traficantes”, à maneira dos “indígenas” coloniais, acionavam a violência para se tornarem
os “primeiros da fila” na política pós-colonial. A novidade da “pacificação” repousa na
limitação do uso da violência à guerra contra “inimigos” internos ou externos e na ênfase na
produção de um poder legítimo nas margens.
Considero a guerra nas margens dialogando com diversas/os autoras/es que tratam da
temática em contextos pós-coloniais. Os argumentos de Asad (2007) contribuíram para
7
Grupo de jovens armados financiado pela droga que disputa o poder nas margens.
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com as demais ações da política financiada pela droga nas margens, os corpos feminilizados,
de mulheres e também de cachorras, estavam em relação metonímica com os territórios. A
punição para a transgressão sexual materializava a moral do seu governo.
Mas essa punição não foi somente a expressão do poder soberano da facção. O corpo
do “culpado” foi moldado pela tortura para a vida em imobilidade. A tortura mostrava “o que
significa viver num corpo” (COETZEE, 2006, p. 153). O fêmur quebrado não o levaria a
nenhum lugar, os pulsos quebrados não permitiriam tocar. Mas a vida continuava, anotando a
“lição de humanidade” que lhe fora ensinada. À crueldade da tortura se soma o cálculo dos
sofrimentos e a precisão de seus efeitos. Ela teria o objetivo de imprimir o comportamento
moral através da transformação do corpo.
Nesse ponto, as moralidades das missões divergem irreconciliavelmente das
moralidades das facções. O sofrimento que permite a agência no pensamento cristão, conduz
à salvação das almas. O sofrimento que garante o governo sobre um território num cálculo
moral, atua na lógica da biopolítica (FOUCAULT, 2005).
Mas, e a cachorra? Seja no governo da população ou na salvação da alma (não poderia
haver “resgate” nesse caso), a cachorra se enquadra na categoria de “vítima” e é, em seguida,
esquecida. Nós não pensamos em quais seriam as demandas da cachorra diante da violação de
seu corpo. Poderíamos mesmo descartar essa ideia, uma vez que a cachorra não fala. Mas, se
pensarmos um pouco mais, perceberemos que, certamente, a cachorra se comunica. O
problema está na nossa própria obsessão com as palavras. Ela nos abstrai do fluxo de
sentimentos que experimentamos com cachorras e outras viventes (COETZEE, 2004).
Esta não é uma tese sobre animais. Na verdade, só olhei para eles quando estava no
final. E fiquei surpresa ao notar como os animais, ou suas representações, muitas vezes
acompanhavam as cenas com seu olhar “ao mesmo tempo inocente e cruel, talvez, talvez
sensível e impassível, bom e malvado, ininterpretável, ilegível, indizível, abissal e secreto”
(DERRIDA, 2002, p. 30).
Olhando novamente para a imagem que serve de epígrafe para esta tese, registro de
um muro na Praia de Iracema no início de 2015, desloquei minha atenção da cena central, e
aparentemente óbvia, que me despertou o interesse de capturá-la e passei a perceber também
o animal contingente que está ao lado. Esse coelho de cores extravagantes que se intromete na
cena, encara e comunica a despeito da falta de fala. O seu olhar expressivo (provocador?), que
tem um “ponto de vista” (DERRIDA, 2002), desnuda a cena ao lado, aparentemente
desconexa, na qual a “vítima” tem os olhos brancos de um vazio inescrutável. Como se não
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houvesse nada ali dentro. E faz sentir vergonha da perda de subjetividade da imagem humana
(AGAMBEN, 2008).
A falta de fala dos animais, que os distinguiriam irrevogavelmente dos humanos, é
impressa também em algumas pessoas, que mesmo falando e se expressando de muitas outras
maneiras, não conseguem que sua perspectiva sobre suas próprias experiências de sofrimento
sejam ouvidas.
Meu quarto argumento se relaciona com esse ponto. Considero que, muitas vezes, as
políticas de enfrentamento a “crimes sexuais” tentam “dar voz” a sofrimentos que não são
reconhecidos, se não superficialmente, como um eco distante das vozes das pessoas colocadas
no lugar das “vítimas”, enquanto o conteúdo de sua comunicação passa despercebido, quase
como uma mudez produzida pelo lugar habitado, o lugar da falta.
Esse argumento está ancorado em diálogo com as formulações de Abdias do
Nascimento (1978) sobre o genocídio “físico” e “espiritual” de pessoas negras no Brasil e de
Lélia Gonzales (1984) sobre a oposição entre a consciência, pensada como lugar do
desconhecimento, e a memória, onde se situa o “não saber que conhece”. Articulo as linhas
teóricas desenvolvidas no Brasil ao debate sobre a violência epistêmica feito por Gayatri
Spivak (2010) e à produção de outra epistemologia a partir de experiências e conhecimentos
de mulheres negras, analisada por Patricia Hill Collins (2000).
Nesta tese estou interessada em perceber como a mudez das “vítimas” é enfrentada
pelas pessoas que supostamente ocupam esse lugar através da construção de subjetividades
éticas. Quais são as estratégias acionadas para escapar ao lugar da falta? A etnografia permitiu
perceber que elas vão desde o reforço das dicotomias até a produção de novos saberes.
Minhas ferramentas para compreender essas estratégias se fundam na proposta
analítica dos feminismos interseccionais (COLLINS, 2000; BRAH, 2006; MCCLINTOCK,
2010; PISCITELLI, 2008; MOUTINHO, 2014). Através desse ponto de partida, procuro
entender como a articulação de categorias da diferença é acionada na produção de
desigualdades, mas também na emergência de outras epistemologias capazes de transformar
experiências nas margens em novos conhecimentos e novas dinâmicas de vida. A beleza da
pesquisa de campo está em mostrar novas formas de pensar e de viver.
1o de abril de 2010. Esse foi o primeiro dia em que fiz pesquisa de campo. Estava no
último ano da graduação em ciências sociais na Universidade Estadual do Ceará (UECE),
com 20 anos, morando na cidade em que nasci e resolvida a me tornar antropóloga. Movida
pela intuição, uma curiosidade formulada em termos não-racionais, escolhi o Passeio Público
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como campo. Fui de carro pela manhã com um caderninho amarelo e sentei-me em um dos
bancos. O que poderia dar errado?
O Passeio Público é uma das praças mais antigas de Fortaleza. Nos anos anteriores à
minha pesquisa ela passara por várias intervenções para expulsar do seu interior trabalhadoras
do sexo e outras categorias de sujeitos pobres e racializados através da “cor” negra ou parda
que ali circulavam. Em 2010, as representações de “imoralidade” e “perigo” sobre a praça
eram ainda relevantes.
Imagino que foi isso que o policial militar usou como justificativa ética para si quando
se sentou ao meu lado e não saiu mais durante todo o período que estive na praça naquela
manhã. Além de policial militar, ele era estudante do curso de letras na mesma universidade
que eu frequentava. Falou de Wittgenstein, quem eu mal conhecia, e comprou-me uma Coca-
Cola. Eu não bebo refrigerante e a última coisa que eu queria no meu primeiro dia de pesquisa
de campo era uma escolta policial galante.
O policial literato me deu seu número de telefone, caso eu precisasse, e insistiu para
que eu lhe desse o meu, o qual ele fez chamar na sua frente para se certificar de que estava
correto. Enquanto estava “me protegendo”, ele me falou um pouco sobre as trabalhadoras do
sexo que ainda circulavam pelos arredores da praça. Contou algumas histórias, disse alguns
nomes e mencionou o seu dia de folga, na esperança de um encontro.
Saí com uma sensação de extremo desconforto. Foi uma situação abusiva, mas era tão
“gentil” que eu achava difícil expressar meu sentimento para outras pessoas com palavras.
Nos dias seguintes, quando ele passou a me telefonar diversas vezes, sem que eu atendesse,
fiquei mais segura dos elementos a articular para exprimir o caráter não-consensual daquela
troca.
No dia da folga do policial, fui novamente à praça e decidi anotar os nomes dos
estabelecimentos ao redor, imaginando que, ao me movimentar, seria mais difícil ficar presa a
galanteios indesejados. Chegando a uma das esquinas, notei um grupo de mulheres reunido na
calçada e resolvi tentar a sorte.
Aproximei-me, disse meu nome e minha intenção de fazer uma pesquisa naquela área.
As mulheres olharam para mim com a benevolência de quem olha para uma criança
sonhadora. A sua abertura me deu mais coragem. Contei que eu havia conhecido um policial
naquela semana. Elas lembravam. Perceberam suas intenções de paquera. Chamaram o
policial de “bonitão”. Eu aproveitei a simpatia e disse que não tinha gostado. Elas sorriram e
disseram que entendiam.
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E foi isso. Nunca mais vi o policial na vida. Começou aí a minha educação feminista.
Um feminismo na prática. A minha primeira lição: juntas somos mais fortes (LUNA SALES,
2014). Fiz uma pesquisa de campo assídua e desajeitada naquele contexto, quando falamos
principalmente de sexo e trabalho (LUNA SALES, 2013). No final do ano, terminei a
pesquisa com o convite para participar da “amiga secreta”8 de natal que confraternizava
trabalhadoras do sexo. Ficamos amigas desde então.
Vira e mexe, a pesquisa que realizei no doutorado volta para o lugar, as relações e os
problemas que eu conheci nessa ocasião. Foi graças a essa experiência que consegui ter
acesso à complexa trama de enfrentamento a “crimes sexuais” e aos diferentes setores das
economias sexuais que me permitiram formular as perguntas com as quais desenvolvi a tese.
A singularidade da trama do enfrentamento elaborada durante a Copa, não se
sustentaria depois do evento, quando formas mais prosaicas de gestão dos “crimes sexuais”
foram acionadas e outros entrelaçamentos puderam ser observados. O fazer cotidiano dessas
políticas ficou a cargo, principalmente, de projetos missionários transnacionais. Eu os conheci
na sua forma espetacular durante a Copa, e desde que pude vislumbrá-los, conversei com as
trabalhadoras do sexo que conheci em 2010 sobre a sua pertinência para a pesquisa de
doutorado. Dandara, que realizava trocas de sexo por dinheiro desde a adolescência, teve
contato com as missões católicas no início dos anos 1990. Outras me deram notícias da
atuação evangélica no Moura Brasil. Seus conhecimentos foram cruciais para determinar o
contexto desta pesquisa.
Os contatos iniciais com a Missão Iris foram realizados sem obstáculos e já em 2014
acompanhei algumas atividades no contexto que missionárias/os chamavam da “zona
vermelha” da Praia de Iracema e que eu reconhecia como os bares e boates frequentados por
estrangeiros. Já as redes católicas foram mais difíceis de acessar. Depois de muitos contatos
infrutíferos, num desses acasos tão felizes que a gente gosta de chamar de destino, minha
relação com Graça, construída a partir de um encontro em um estabelecimento comercial num
bairro nobre de Fortaleza, aproximou-me das Irmãs da Redenção, no Pirambu, desde o
segundo semestre de 2015.
A partir desse período, desenvolvi uma pesquisa de campo sistemática, acompanhando
as ações missionárias católicas e evangélicas que buscavam prevenir “crimes sexuais” e uma
série de outras questões no Moura Brasil, no Pirambu e na Praia de Iracema. O fazer cotidiano
das missões foi acessado através da minha inserção como voluntária nesses projetos. Desse
8
Troca de presentes anônima cujo nome foi colocado no gênero feminino nesse contexto.
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governo, mas também nas experiências dos sujeitos. As similaridades entre as corporalidades
de pessoas que estavam em posições opostas nas dicotomias, contrastavam com as
desigualdades em relação à mobilidade.
Percebi essas desigualdades na circulação/fixação dos sujeitos nas dinâmicas das
economias sexuais transnacionais através das narrativas de amor romântico e suas “falhas”.
Dialogo com autoras que apontam as diferentes maneiras em que se articula o par intimidade
e humanidade em histórias de amor atravessadas por desigualdades, como Elizabeth Povinelli
(2006), Jennifer Cole (2009) Sealing Cheng (2013) e Adriana Piscitelli (2013).
Em face das particularidades das histórias de amor sem final feliz que são analisadas
nesta tese, articulo essa produção com aquela de autoras feministas e queer engajadas na
teoria dos afetos. Seguindo as formulações de Sara Ahmed (2010) e Lauren Berlant (2011)
percebo que esses finais felizes dependem de se encontrar a felicidade “no lugar certo”.
Esta pesquisa alarga esse debate teórico ao discutir as desigualdades das experiências
de amor entre sujeitos que articulam categorias da diferença de modo similar desde contextos
pobres, racializados e atravessados por hierarquias (pós)coloniais de gênero e sexualidade.
Mesmo partilhando corporalidades e territórios nas margens, esses sujeitos são situados em
lugares opostos das dicotomias que fundam o enfrentamento missionário a “crimes sexuais”,
nos quais a linguagem do amor constrói a mobilidade de uns sobre a fixação de outros.
Assim, esta análise desfez a solidez de políticas, dinâmicas, corporalidades e
subjetividades nas margens e chamou atenção para os mecanismos acionados para restaurá-
las. Todas as dinâmicas das economias sexuais são carregadas de políticas. Todas as políticas
aqui contempladas se desfazem em dinâmicas.
Mostro, ao longo dos capítulos, que o enfrentamento a “crimes sexuais” promovia
uma gestão das dinâmicas das economias sexuais transnacionais dentro do mercado. Nesse
contexto, atravessado por ambivalências, quais práticas enfrentavam os “crimes sexuais” e
quais os perpetravam? Qual sofrimento gerava agência reconhecível na política e qual gerava
o que, em termos missionários, era chamado de “escravidão”? Quando jogávamos a atenção
na potencial existência dos “crimes sexuais”, o que estava sendo encoberto?
A vida nas margens era atravessada por indeterminações e simultaneamente
organizada por dicotomias. As trabalhadoras do sexo, ao imergirem seu desejo de amor
romântico e suas práticas de trabalho no fluxo dos encontros com os “gringos” nos bares e
boates da Praia de Iracema, corporificariam o “errado” do sexo e do gênero. O agenciamento
de performances femininas passivas na “linha do amor”, simultâneo à assertividade e à crítica
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às desigualdades nas relações com estrangeiros, era percebido por outras mulheres como
materialização da duplicidade da feminilidade (HEMMINGS, 2018).
Conhecer a “verdade” do amor nesse contexto de indeterminação é o mais importante
argumento missionário. O amor é enfatizado como a melhor forma de “pacificar”
subjetividades e a loucura da vida (BERLANT, 2012). Nós fomos informadas de que as
missionárias conheciam o amor “verdadeiro” e poderiam nos ensinar. Mas quem eram as
missionárias e quem eram as “vítimas” dos “crimes sexuais”?
Não havia, empiricamente, nenhuma resposta absoluta para essas questões. Mas havia
muitas tentativas de resolvê-las, traçar, de uma vez por todas, a linha entre o “certo” e o
“errado”. A tese discorre sobre essas políticas de certezas diante da indeterminação das
margens.
E, por mais diferentes que sejam os sistemas morais que operam nessas margens, eles
coincidem ao encontrar a “verdade” moral na forma como as pessoas corporificam gênero e
sexualidade. Diante das cenas de violência que se multiplicaram em tempos de guerra, era
preciso escolher: vítima ou culpada? Nenhuma dessas categorias bastava nem cabia. Mas
quando minhas interlocutoras tentavam sair, escapar das dicotomias, elaborar uma outra
epistemologia, em que a vida pudesse ser preservada em sua plenitude de fluxos, encontravam
a impossibilidade de serem ouvidas e de suas experiências serem reconhecidas enquanto
geradoras de conhecimento.
Tim Ingold observou que “o mundo era uma conversa, não o objeto da nossa
conversa” (2018, p. 169), mas é preciso lembrar que, mesmo que estejamos engajadas na
mesma conversa, nem todas podem falar e serem ouvidas. Como Trihn T. Min-Ha (1983), não
quero falar sobre, somente falar ao lado. Ao lado desse conhecimento que não foi produzido,
dessa conversa interrompida, dessa linguagem que se inscreve nos corpos e nos territórios.
Fazendo o arquivo de todos os mecanismos acionados para interromper as conversas,
descartar as linguagens, subjugar os conhecimentos.
Produzi essa narrativa durante um ano vivendo das notas e reminiscências dos fluxos
da vida desde minha mesa vermelha de frente para o mar e de costas para o mundo. Nesse
sentido, essas palavras são o oposto da vida que comunica ao ser vivida. Mas estão ao lado
delas.
*
Eu dividi a tese em três partes que correspondem ao modo como organizei a pesquisa
de campo, mesmo sabendo que seu destino na análise é dissolver-se. A primeira parte se
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chama Fortaleza. Ela apresenta os fluxos, entre evento e história, nos quais se inscreve o
problema de pesquisa.
A Copa é o evento que dá início a essa pesquisa, onde tudo parece mais abundante do
que era logo antes e do que voltou a ser logo depois. Aproveitei esse momento para traçar um
mapa da trama do enfrentamento a “crimes sexuais”. As dinâmicas anotadas nesse momento,
em que as economias sexuais transnacionais se constituíram numa estratégia relevante de
mobilidade em Fortaleza, pareciam estar deslocadas no tempo-espaço. Os caminhos de
Dandara durante a Copa remeteram à história recente de circulação e fixação dos sujeitos
entre políticas e dinâmicas das economias sexuais.
Em Contexto, preocupei-me em buscar onde começava cada fio da trama do
enfrentamento a “crimes sexuais” em Fortaleza. Para isso, eu analisei a produção do Pirambu
e do Moura Brasil como territórios da desigualdade aos quais as categorias relacionadas aos
“crimes sexuais” foram coladas e ao mesmo tempo produzidas como um problema externo às
dinâmicas locais. A trajetória de Ir. Fiorenza acompanha a análise da produção de relações de
intimidade transnacionais moralizadas através da linguagem do amor e do parentesco com a
chegada das missões de enfrentamento a “crimes sexuais”.
A segunda parte da tese se chama Política. Através dela, analiso as instâncias de
governamentalidade relevantes nessa pesquisa: estado, missões, feminismos e facções, e
como elas se articularam e acionaram dicotomias morais para produzir conhecimento sobre
experiências que iam da violência ao amor.
Missões, o terceiro capítulo, é dedicado à análise das dicotomias entre público e
privado, secular e religioso, ritual e cotidiano, nas ações de enfrentamento a “crimes sexuais”.
Diferentes ações, ritualizadas e missionárias, são comparadas a um ritual estatal de
enfrentamento ao tráfico de pessoas. Isso permite perceber as fissuras entre as dicotomias, as
continuidades entre os conceitos e as hierarquias entre os sujeitos. A história de Emily, entre o
sofrimento marcado por gênero e a agência missionária, corporifica essas questões.
Bairro/Favela se concentra nas disputas sobre os significados da violência entre as
categorias políticas “exploração sexual” e “extermínio da juventude negra”. Analiso aqui os
fantasmas que conectam as experiências de mulheres que ocupam posições diferentes nas
hierarquias missionárias, entre as que salvam e as que precisariam ser salvas. Graça nos guia
para encontrar os limites epistemológicos ao reconhecimento do sofrimento fora das
dicotomias morais.
A Guerra foi um fluxo de vida e morte que se impôs à escrita contra a minha vontade
e além do meu controle. Nesse capítulo, discuto os efeitos da “pacificação” promovida pelas
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facções sobre bairros analisados nesta tese, observando sua ênfase em moralidades
dicotômicas e como estas se relacionavam com os sistemas morais missionários. Neném, em
sua narrativa masculina de redenção, delimita diferentes zonas de guerra e paz.
A terceira parte da tese chama-se Economias sexuais. Ela é dedicada à análise das
dinâmicas das economias sexuais transnacionais na Praia de Iracema em face das moralidades
dicotômicas. As narrativas de amor romântico ganharam relevância, como se fossem as únicas
histórias que valessem ser contadas, tanto entre trabalhadoras do sexo quanto entre
missionárias, constituindo-se num recurso importante para escapar às ambivalências.
Linha do amor é um capítulo dedicado a apresentar a perspectiva das trabalhadoras do
sexo que circulam pela Praia de Iracema sobre as moralidades dicotômicas e quais
mecanismos elas acionam para se inscrever no lado “certo”. É um capítulo que analisa os
efeitos da racialização-como-erotismo sobre corpos e territórios, gerando ou interrompendo a
possibilidade de comunicação. Juliana narra, a partir de sua história de amor-próprio, a falta
de suporte entre as mulheres, os desamores com os “gringos” e a relevância do sobrenatural
nesse contexto.
Amor radical é o capítulo final desta tese. Ele se dedica a analisar as histórias de
(des)amor missionárias e a produção de limites entre semelhantes. O amor aparece aqui como
um valor ético que se cola a certos corpos e exclui outros. Colibri, a partir de sua posição
ambivalente, entre vítima de “crimes sexuais” e agente do “resgate” missionário, permite-nos
aprofundar a análise sobre as relações entre revoluções éticas missionárias e feministas.
Nas considerações finais, ensaio alinhavar a discussão sobre a categoria “humano” que
atravessa todos os capítulos da tese. Concentro-me na dicotomia fundamental entre humano e
animal, à qual todas as outras dicotomias acionadas nessas margens estão articuladas. Aponto
os limites dos paradigmas se que fundam nas ideias de humanidade e implicitamente as
opõem à categoria “animais” nas situações empíricas analisadas.
E para terminar, apenas uma nota. Aprendi, durante a pesquisa, a considerar com
respeito os elementos que, mesmo estranhos ao meu pensamento, interpelaram-me e
inseriram-se na conversa desta tese: Deus, fantasmas, animais, paisagens. Minha postura geral
foi a de avaliar que, se eles foram nomeados, mereciam ser reconhecidos. Mas quem nomeou?
O “homem” da bíblia que no mesmo ato de nomeá-los reivindicava sua propriedade e
superioridade? (DERRIDA, 2002).
Muita gente nomeia e é nomeada nesta tese. Talvez o interessante seria guardar os
nomes e se desfazer do ato ritual da nomeação. Todas contribuem para fazer o mundo, ainda
que as diferentes tradições de pensamento prefiram enfatizar a agência de umas, mais que a de
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outras. Quando tento me desembaraçar do humano, não é para negá-lo em relação a esses
outros elementos, mas para abrir um espaço que possibilite imaginar outras vidas. Não acho
que o humanismo seja a “melhor esperança da antropologia” (RAPPORT, 2003, p. 19). Com
a antropologia, podemos imaginar caminhos mais criativos.
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Parte I: Fortaleza
Por que Fortaleza? Por que entre 2014 e 2018? Eu dedico a primeira parte desta tese à
análise dos pontos de partida espaço-temporais da pesquisa etnográfica realizada neste
doutorado. A Copa em Fortaleza é evento inaugural da pesquisa. Ela é percebida como um
momento de produção de uma complexa trama de enfrentamento a “crimes sexuais” que
articulou agências de governamentalidade diversas sob a aparente coordenação do estado,
catalisando uma longa história de gestão da sexualidade em meio a uma grande festa.
As diferenças entre formas de gestão de sexualidade consideradas “perigosas” entre
eixos de “repressão” e “prevenção” deixaram antever a produção de desigualdades marcadas
por gênero nessas técnicas de governo ao mesmo tempo em que o seu fazer cotidiano
apontava para a fluidez entre agências de governamentalidade, formas de governo e suas
atribuições “femininas” ou “masculinas”.
Através da produção de um tempo-espaço da festa, onde a preocupação central de
agências de governamentalidade consideradas “masculinas” e “femininas” era o perigo dos
“crimes sexuais”, a Copa também foi contexto da expansão de um setor das economias
sexuais transnacionais em Fortaleza. Políticas de enfrentamento a “crimes sexuais” e
dinâmicas das economias sexuais transnacionais foram expandidas durante a Copa e
produziram durante aproximadamente um mês um tempo-espaço de “festa” há muito
desaparecido em Fortaleza.
Evidentemente, o evento da Copa não é uma produção arbitrária. Ele se inseria em um
sistema de discursos e práticas em torno do par “gringo”-“vulnerável” construído desde os
anos 1980 no contexto fortalezense. Retomando as palavras de Marshall Sahlins “a cultura é
justamente a organização da situação atual em termos do passado”. (1990, p. 192)
É justamente sobre esse Contexto no qual se funda a produção do enfrentamento e das
dinâmicas percebidas na Copa que trata o segundo capítulo desta parte. Ele é dedicado à
genealogia dos discursos sobre “crimes sexuais” em Fortaleza. Assim, parto da análise da
produção na longa história de territórios das desigualdades, sua relação metonímica com
certas corporalidades e sua atualização nos discursos sobre “crimes sexuais”.
Os discursos sobre os “crimes sexuais” em Fortaleza surgem marcados por
ambivalências nas quais os sentidos de vitimização, culpabilização e erotização desses crimes
estão sobrepostos. Dedico-me, nesse capítulo, a chamar atenção para essas ambivalências e
em seguida perceber como foi possível às missionárias e missionários do norte global
caminharem por esse terreno escorregadio.
A violência difusa percebida na situação de crianças, adolescentes e jovens mulheres
nos territórios das desigualdades foi abordada nas missões através de uma pedagogia do amor.
46
A linguagem do amor articulada nas missões tinha como lugar privilegiado de articulação as
relações de parentesco. Foi assim que as missões de enfrentamento a “crimes sexuais” se
atualizaram nos bairros do Moura Brasil e do Pirambu, através das relações de parentesco
entre missionárias/os do norte global e pessoas “vulneráveis” do sul. As missões
transformaram violência íntima percebida no par “gringo”-“vulnerável” em relações de
parentesco fundadas no amor.
47
Capítulo 1: Copa
corporalidades enquanto mulheres negras, com mais de 30 anos e um pouco acima do peso,
não eram valorizadas nas economias sexuais transnacionais. Dandara e suas amigas
devolviam a falta de interesse dos estrangeiros comentando que preferiam homens “negros”,
opondo-se ao discurso hegemônico que associava a brancura dos “gringos” a características
positivas que iam além de traços fenotípicos (PISCITELLI, 2004).
Desde o primeiro dia de Fan Fest, porém, ficou claro que os limites territoriais,
corporais e morais das economias sexuais que conhecíamos estavam em disputa na Copa. A
intersecção entre as políticas de “segurança” e os investimentos no mercado transnacional de
trocas materiais e simbólicas estava produzindo uma alteração nas fronteiras através das quais
elas não sabiam ainda circular.
*
Neste capítulo, parto dos caminhos traçados por Dandara para compreender de que
modo as políticas de enfrentamento a “crimes sexuais” afetaram as economias sexuais de
Fortaleza durante a Copa. Através da articulação de noções de “segurança” e “perigo”, essas
políticas se materializaram no fechamento/esvaziamento de certos estabelecimentos voltados
para o sexo comercial, no laisser-faire de outros, ao mesmo tempo em que houve uma
expansão disciplinada das economias sexuais transnacionais.
Na tensão entre a produção de uma “imagem positiva” de Fortaleza, a ser “divulgada
em nível global em um megaevento” (VASCONCELOS, 2016, p. 5) e o “perigo” dos “crimes
sexuais” associados à presença de turistas estrangeiros em capitais do Nordeste desde o final
da década de 1980 (PISCITELLI, 1996), a realização de jogos da Copa na cidade mobilizou
redes locais, nacionais e transnacionais no enfrentamento a “crimes sexuais”.
A Copa em Fortaleza foi um evento pontuado por expectativas e ansiedades em torno
das economias sexuais pautadas pela memória da diversidade de encontros entre estrangeiros
e mulheres locais num ambiente considerado por alguns/mas como uma “festa transnacional”
e dos “crimes sexuais” percebidos como causa do seu desaparecimento. Para o sucesso da
nova e efêmera “festa transnacional” promovida pela Copa, foi produzida uma trama de
enfrentamento a “crimes sexuais” que enredava sujeitos, instituições e redes que tentavam de
diferentes lugares acioná-la e agenciá-la.
Inicio o capítulo apresentando as redes de governamentalidade que constituíram a
trama de enfrentamento a “crimes sexuais” em Fortaleza durante a Copa, separadas
discursivamente em eixos de “repressão” e “prevenção”, e reunidas através da articulação de
órgãos estatais. Em seguida, observo como a categoria “vulnerabilidade” foi mobilizada e
quais foram seus efeitos sobre a circulação de Dandara. Depois apresento a Fan Fest, contexto
49
principal de circulação de pessoas, bens e ideias durante a Copa, e de ação das políticas de
enfrentamento a “crimes sexuais”. Finalmente, eu retomo os passos de Dandara nos agitados
dias de Copa e também em outro tempo-espaço das economias sexuais, de modo a aprofundar
as considerações sobre a produção de margens e seus efeitos sobre a mobilidade dos sujeitos.
9
Em diversas campanhas de enfrentamento a “crimes sexuais”, as denúncias ao Disque 100 figuram
como formas de ação eficaz em caso de suspeita desses crimes. Glória Diógenes destaca que em uma
campanha de enfrentamento a “crimes sexuais”, articulada durante o carnaval, Fortaleza foi a cidade
“campeã de denúncias” para este canal (2008, p. 22).
10
Em tese sobre a imagem de Fortaleza na Copa, Leonardo Vasconcelos argumenta que esse evento
teve como principal “legado” a “construção da imagem da cidade voltada à internacionalização do
turismo no Ceará” (2016, p. 6).
52
uma das reações à notícia online da operação foi em tom de “queixa”, pois “fecharam a única
coisa que ‘tava’ pronta pra Copa”. Os risos tomaram conta da sala. Apesar da circunspecção
dos oradores ao microfone, o público não deixou de fazer piadas durante toda a apresentação,
sobretudo quando algum dos homens da plateia afirmava “conhecer” alguma das casas de
prostituição interceptadas. Terminada a conferência, ouvi um dos responsáveis pela operação
comentar, em tom de piada, que num dos bordeis não houve prisões “porque ‘tava’ no ‘padrão
FIFA’”11.
Os comentários sugeriam que, para as pessoas presentes naquela sala, a operação era,
sobretudo, uma performance de estado direcionada à imprensa e ao público estrangeiro.
Parecia haver um entendimento mútuo entre policiais e jornalistas locais sobre a necessidade
de uma operação “exemplar” e de efeitos efêmeros sobre as economias sexuais às vésperas da
Copa12.
As trabalhadoras do sexo, que foram convidadas a depor no mesmo horário da
conferência de imprensa, explicaram-me que a polícia não havia fechado as casas. Elas
mesmas decidiram fechá-las para sair da “mira” policial. Isso lhes gerava problemas, pois a
Copa estava “em cima” e elas precisavam trabalhar, mas não queriam “ir para a rua”. Antes
de começar o evento, algumas dessas mulheres foram para casas populares do Centro,
levando também seus clientes “de carrão”, afetando as dinâmicas locais. Durante a Copa, os
fluxos do desejo transnacional se territorializaram na Fan Fest, que será analisada afundo na
parte seguinte.
Retornemos à sala da conferência de imprensa. Um dos pontos mais importantes da
operação foi a prisão de Eline Maria Marques Dantas, à época coordenadora da ONG de
combate à exploração sexual de crianças e adolescentes “Guardiões do Futuro” e ex-
coordenadora do Escritório de Combate e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos do Ceará
(ETSH) – que após sua saída voluntária, em 2010, transformou-se no Núcleo de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
Diante da previsibilidade monótona das ações policiais sobre casas de prostituição,
essa reviravolta foi bastante explorada nas reportagens, que giraram em torno da figura de
11
Diário de campo, 5 de junho de 2014.
12
Essa impressão é análoga àquela presente na dissertação de Andréia da Silva Costa, em que foram
denunciadas algumas das casas interceptadas em 2014. Segundo a autora: “Os estabelecimentos
enumerados por Sheila em seu depoimento praticam diariamente e ‘a olhos nus’ o crime de tráfico
interno de mulheres, contudo possui uma clientela composta por autoridades públicas e empresários
locais que são coniventes com a referida prática ilícita e que contribuem, direta e indiretamente, para a
impunidade de seus responsáveis e dono. Atualmente, essa é a grande briga que o Escritório [ETSH]
enfrenta no estado”. (2008, p. 203)
53
13
Diário de campo, 29 de outubro de 2014.
54
companhia da polícia, apontam para as táticas acionadas pelas funcionárias do NEPT para dar
mais mobilidade às suas ações, observadas também em outros contextos (SHARMA, 2014).
Ambos movimentos estariam diretamente relacionados com a articulação nacional do
órgão na rede de Núcleos e Postos desde o decreto estadual Nº 30.682, de 22 de setembro de
201114. As mudanças nos modos de atuação do NETP em relação ao ETSH são perpassadas
por normativas transnacionais materializadas em articulações nacionais e estruturas locais que
refletem as “novas” diretrizes das políticas sobre “crimes sexuais”. A mudança no nome do
órgão é representativa: o Escritório de Combate e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos,
criado em 2004, passou a se chamar Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em
2011. O problema de associar o combate a esse órgão foi apontado por Andréia Costa:
14
Na minha primeira visita ao NETP, uma cópia desse decreto me foi entregue. Enquanto ele era
impresso, as funcionárias comentavam que “a data não tem como esquecer”, pois seria a data de
nascimento do núcleo.
15
Entrevista, 11 de novembro de 2015.
16
Organização Internacional de Polícia Criminal.
55
NETP
17
É importante notar que as alterações implementadas pela lei no 13.344, de 6 de outubro de 2016
(BRASIL, 2016), foram posteriores à realização da maior parte da pesquisa de campo.
18
Produzido pela rede evangélica Exodus Cry, esse documentário com elementos de ficção estabelece
uma relação entre tráfico de pessoas e a “escravidão imperial”, sendo que ambos devem ser
combatidos por “fanáticos incuráveis” como proferiu William Willberforce. Nessa obra, tráfico de
pessoas e prostituição são problemas semelhantes causados por situações de “vulnerabilidade”. Para a
resolução do problema seria necessária a restauração moral e espiritual de vítimas, traficantes e
clientes.
19
A trama do filme Anjos do Sol segue a trajetória de uma menina de 11 anos que é “vendida” por
seus pais a um agenciador, sendo posteriormente “leiloada”, passando pela prostituição em garimpos e
chegando à prostituição transnacional do Rio de Janeiro. O filme aborda o tráfico de pessoas, a
exploração sexual de crianças e adolescentes e o “turismo sexual”. Para uma análise aprofundada ver a
dissertação de Lauren Zeytounlian de Moraes (2014).
20
A obra ficcional tematizou o tráfico de pessoas com fins de exploração sexual no horário de maior
audiência do mais popular canal televisivo brasileiro.
21
A campanha é realizada anualmente pela Igreja Católica no Brasil e aborda problemas sociais
considerados relevantes.
22
Conferir o caderno de imagens.
58
Esse leque ampliado de situações passíveis de intervenção da rede formada por órgãos
públicos, organizações não-governamentais e movimentos sociais, somando 363 instituições
23
Decreto n° 30.682, de 22 de setembro de 2011(CEARÁ, 2011).
59
nas 12 cidades-sede da Copa, gerou efeitos específicos na circulação dos sujeitos na região da
Fan Fest, que serão discutidos mais a frente.
Por enquanto, gostaria de chamar atenção para o papel tanto do Comitê quanto da
Agenda de Convergência na produção da imagem de um “estado” univocamente preocupado
com a “segurança” das crianças e adolescentes no momento em que “o mundo olhava para o
Brasil” (2015, p. 8).
Seguindo os passos do NETP como articulador ou conselheiro nessas iniciativas, é
possível perceber que a reunião de diferentes instituições nessa trama de governamentalidade
reforça a imagem de um estado de segurança “maior do que as suas manifestações locais”
(GUPTA e SHARMA, 2006, p. 19).
Na prática, o NETP desenvolveu principalmente ações preventivas no período de
preparação para a Copa. Parte delas focava na “conscientização” pela distribuição do material
preventivo da campanha “Não desvie o olhar” em diferentes locais: Av. Beira-mar (bairro
Meireles), Aeroporto, Rodoviárias (Parreão e Messejana), Av. Francisco Sá (Barra do Ceará),
Av. Perimetral (Prefeito José Valter) e Castelão24. Com exceção do primeiro, todos estes
locais se situam em áreas pobres e periféricas da cidade.
Foram feitas também capacitações nos cursos profissionalizantes direcionados para o
evento. Esses cursos foram promovidos pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
(SENAC), onde foram capacitados professores e alunos e pelo programa Copa Mais
(articulado pela então Secretaria da Copa – hoje Secretaria Especial de Grandes Eventos
Esportivos – e a Universidade de Fortaleza), voltado para os alunos de cursos de coquetelaria,
hotelaria, línguas, recepção, cozinha25. Foram capacitados também os voluntários da Copa,
jovens e adultos do Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao
Emprego) e profissionais dos CRAS (Centro de Referência em Assistência Social) e CREAS
(Centro de Referência Especializada em Assistência Social). Segundo a coordenadora do
NETP, essas capacitações foram demandadas pelo Comitê e tiveram grande importância na
aproximação da rede.
Além das parcerias com instituições de ensino e órgãos do estado, a Campanha da
Fraternidade 2014 foi considerada fundamental pelo NETP do Ceará na “capilarização” da
categoria tráfico de pessoas. A coordenadora do NETP apontou finalmente a importância das
24
Ver caderno de imagens.
25
Esta lista foi fornecida pelas funcionárias do núcleo em outubro de 2014. Mais informações em:
http://www.sege.ce.gov.br/index.php/copamais (Acesso em 07 de janeiro de 2015).
60
ações preventivas do JOCUM nas escolas, que inaugurou a presença evangélica na trama
governamental de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Ceará.
Os investimentos estatais na produção de uma trama de enfrentamento ao tráfico de
pessoas tinham por objetivo coordenar ações implementadas por diferentes redes, partindo de
articulações já existentes para promover novas “capilarizações” da categoria.
Especificamente, os usos governamentais da noção de capilarização materializaram a
circulação do saber-poder nesse emaranhado.
Tal como elaborada por Foucault, essa categoria remete à proposta de “captar o poder
em suas extremidades, em suas últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar; captar o
poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais” (1979, p. 182). Analisando o
enfrentamento ao tráfico de pessoas, Adriana Piscitelli observou a capilarização da
problemática na criação de comitês, realização de capacitações e campanhas de sensibilização
(PISCITELLI, 2011).
Logo, porém, o termo capilarização foi assimilado pelas próprias agentes
governamentais, que usaram-no para representar os objetivos do “eixo prevenção”.
Explicitando os motivos de uso do termo, a coordenadora do NETP do Ceará reforçou as
noções de difusão e descentramento, ao mesmo tempo em que exprimiu a vitalidade da
capilarização do tráfico de pessoas para o corpo social, inspirada na importância dos vasos
capilares para o corpo humano26.
A capilarização do conceito de capilarização é suficiente para dar um nó na trama da
qual tento, com dificuldade, puxar alguns fios para essa discussão. Para evitar apertá-la ainda
mais, voltemos à proposta de Foucault ao utilizar o conceito. No curso Soberania e disciplina,
o autor discute o “triângulo” entre poder, direito e verdade. Para analisar como esses três
elementos se imbricam, Foucault propõe uma metodologia, na qual, em primeiro lugar, deve-
se captar o poder onde ele se torna capilar, ultrapassando as regras do direito e se prolongando
através de instituições e técnicas (FOUCAULT, 1979).
Isso indica que os regimes de verdade que produzem, transmitem e reproduzem o
poder, dele se diferenciam. O que se capilariza aqui, então, é o poder. Para compreender os
movimentos dos regimes de verdade através de seus objetos, enunciados, conceitos e
estratégias, que podem se modificar sem deixar de pertencer a um mesmo discurso, é preciso
analisar suas regras de formação, no limite, a única coisa que lhes dá unidade (FOUCAULT,
26
Entrevista, 29 de janeiro de 2015.
61
2008). Isto é, o poder circula e perpassa as regras de formação dos discursos, dando-lhes a
impressão de unidade a despeito das possíveis e frequentes incompatibilidades.
Essas incompatibilidades abundavam no debate sobre o tráfico de pessoas em 2014.
Para definir tráfico de pessoas, o NETP se baseava no Protocolo de Palermo, entendendo
como necessária a “coerção” na configuração do crime. As polícias, por sua vez, pautavam-se
no Código Penal (BRASIL, 1940). Como o núcleo atuava em parceria com as polícias,
quando havia ausência de violência, ameaça ou fraude, a categoria “vulnerabilidade” era
acionada. Assim, o NETP procurava fazer uma argumentação “muito bem fundada” da
“situação de vulnerabilidade” para seus próprios fins, pensando em uma possível
harmonização entre o Código Penal e Palermo27.
A distinção entre situações de tráfico de pessoas e de prostituição “voluntária” era
bastante enfatizada no NETP. Isto se exprimia tanto na contestação dos discursos que
criminalizavam a prostituição, confundindo-a com o tráfico de pessoas, quanto no
reconhecimento do “protagonismo das meninas”, prezando pela autonomia daquelas que
praticassem a prostituição de forma “voluntária”, diferenciando-as das que seriam “vítimas”
de redes criminosas.
A coordenadora explicou que muitos alunos de direito iam ao núcleo com a ideia de
que prostituição seria crime e que as prostitutas seriam “culpadas” pelas mazelas da cidade e
pelo tráfico de pessoas. Ela comentou também que certos estrangeiros confundiriam tráfico de
pessoas com prostituição em sua leitura do contexto de Fortaleza. Ela rebatia ambos
posicionamentos munida do Código Penal brasileiro.
A respeito da importância da exploração sexual de crianças e adolescentes nas ações
das redes missionárias engajadas na trama anti-tráfico, a coordenadora do NETP teceu várias
considerações. Ela explicou que a questão do tráfico teria sido “negada e renegada” pelas
igrejas no passado. Conseguir que o tema fosse abraçado pela Campanha da Fraternidade em
2014 foi um “vitória”, mas ainda assim, as portas só se abriram parcialmente.
O obstáculo ao reconhecimento deste tema por uma parcela dos membros da igreja
católica seria a visão de que as mulheres envolvidas no tráfico de pessoas seriam “culpadas”,
e não “vítimas”, acontecendo uma “caça às bruxas” através da criminalização da prostituição.
Mesmo em relação às adolescentes, os entendimentos de religiosos, principalmente os mais
velhos, seriam ambivalentes, nos quais elas poderiam figurar novamente como “culpadas”28.
27
Uma harmonização parcial foi alcançada com a promulgação da lei nº 13.344 (BRASIL, 2016).
28
Detalhes sobre os sistemas morais marcados por gênero e sexualidade são analisados principalmente
no capítulo 5.
62
29
Entrevista, 29 de janeiro de 2015.
63
Já nos anos 1990, o crescente interesse político e público [de países do norte]
sobre o tráfico de pessoas e oportunidade de financiamento a ele associadas
forneceu a muitas organizações internacionais e ONGs de direitos humanos
e de direitos das crianças um incentivo para renomear algumas ou todas das
suas atividades existentes como ações “anti-tráfico” (2015, p. 6).
A Rede Um Grito Pela Vida é uma rede católica intercongregacional formada por
mais de 150 religiosas/os. Ela atua no Brasil desde 2005 e no Ceará desde 2007 de forma
“descentralizada e articulada” com entidades eclesiásticas e civis. Em âmbito transnacional
faz parte da Talitha Kum – Rede Internacional da Vida Religiosa Consagrada – criada na
Itália em 2004 no seio da União Internacional das Superioras Gerais, em parceria com a
Organização Internacional para as Migrações (OIM) e com financiamento dos EUA. Ambas
64
30
Entrevista, 23 de junho de 2015.
31
Entrevista, 21 de julho de 2015.
65
JOCUM
32
Entrevista, 24 de novembro de 2014.
33
É interessante pontuar que, em capacitação na Associação Maria Mãe da Vida, no dia 31 de outubro
de 2014, as funcionárias do NETP do Ceará mencionaram todos estes fins, assim como o casamento
servil, excetuando a questão dos tecidos.
34
Entrevista, 24 de novembro de 2014.
66
35
Ver mais informações em http://www.ywamkickoff2014.com (Acesso em 08 de janeiro de 2015).
36
Através dos sites oficias, esta foi a única rede que não trouxe informações explícitas sobre a
importância moral da religião em suas ações.
67
encontrou dificuldades, uma vez que, apesar do que ele considerou uma má divulgação do
material preventivo da campanha “Não desvie o olhar”, este não foi disponibilizado para ser
distribuído pelos/as mais de 400 jovens voluntários/as do JOCUM na Copa. Para ele, as
políticas empreendidas pelo “estado” não teriam sucesso pois seria muito difícil combinar
boas intenções, dinheiro, poder e autoridade.37
A Missão Iris seria a especialista sobre a questão da prostituição dentre os grupos
missionários evangélicos em Fortaleza. Apesar das diferenças nas formas e categorias de
abordagens, durante a Copa, JOCUM, Missão Iris e os grupos mencionados acima realizaram
ações de prevenção ao sex trafficking em conjunto.38
Em uma escala muito menor que a do JOCUM, a Missão Iris realiza ações anti-tráfico
desde 2010, uma ou duas vezes por semana, das 22 às 2 horas da manhã, na área de bares e
boates da Praia de Iracema. Elas consistem em um momento de oração, que costuma
acontecer na sede da Missão e, em seguida, na abordagem das “meninas”. No discurso teórico
de missionárias/os, prostituição se confunde com exploração sexual e tráfico de pessoas.
Contudo, nas abordagens, são feitas diferenças entre prostitutas “voluntárias” e “vítimas”.
Abordando prostitutas “voluntárias”, as missionárias promovem um discurso fundado no
“amor”, evitando inicialmente processos de culpabilização ou vitimização. Já as “vítimas” são
imaginadas escravizadas por cafetões.
Em todos os casos as abordagens são feitas com o intuito de escutar e orar pelas
pessoas, acreditando que elas estão “quebradas”, em lugar “escuro”, e somente através de
Jesus terão sua salvação. Boa parte destes preceitos pode ser observada no documentário
Nefarious (2011), grande inspiração para as/os missionárias/os em suas ações na Praia de
Iracema. Boa parte da etnografia foi dedicada às ações da Missão Iris na Praia de Iracema e na
comunidade Oitão Preto, no Moura Brasil, que serão apresentadas nos capítulos seguintes.
37
Entrevista, 30 de outubro de 2014.
38
Entrevista, 30 de outubro de 2014.
68
tentar “salvá-la”. A associação não tinha à época mais de dez membros, contando com minha
participação, que durante junho e julho de 2014 fui voluntária na entrega quinzenal das
camisinhas, evento mantido enquanto eram buscados novos parceiros.
A presidenta interina buscou parcerias que viabilizassem a continuidade da associação
através da visibilização do público alvo da Aproce em relação aos “perigos” trazidos pelos
estrangeiros durante a Copa. Assim foi construída na esfera pública uma demanda que veio ao
encontro dos objetivos das redes acima mencionadas. Foram feitas denúncias de
“vulnerabilidade” a “crimes sexuais” a partir do Centro, principal campo de atuação da
Aproce39. As casas de prostituição objeto da ação do MPE e os bares e boates frequentadas
por turistas estrangeiros na Praia de Iracema eram considerados inacessíveis.
Apesar das posturas abolicionistas40, que consideram que todas as formas prostituição
são violações de direitos humanos, assumidas por alguns de seus interlocutores, a Aproce
atualmente não tem uma posição definida a esse respeito. Durante a Copa, a “exploração
sexual”, frequentemente situada por essa associação em qualquer forma de agenciamento da
prostituição alheia, em consonância com a legislação brasileira e as redes de enfrentamento
em estudo, foi expandida para prostituição autônoma com estrangeiros. Esses novos limites
foram delineados pela presidenta interina em conversa num bar do Centro:
Porque aqui é um diferencial. A grande maioria dos clientes delas são daqui,
são realmente pessoas daqui da terra, a grande maioria. Se tiver um ou outro
de fora, é mínimo. É que passou na frente e viu, ou que um amigo trouxe,
alguma coisa por aí. Mas as meninas que estão na Beira-mar. As meninas
que estão nas boates, nessas áreas aí que pertencem àqueles carteizinhos
criados. Com certeza eles têm um impacto, vai ter. E falar que vem muito
gringo, que vai ganhar grana e tal, não. O risco é muito grande, você tem...
muitas meninas inclusive dizem que quando saem com os gringos que eles
não pagam ou alguma assim, elas não têm nem como recorrer com ele. Elas
não podem recorrer à nada. Qual direito elas têm? Se vacilar elas ainda vão
ser presas por estarem coagindo o gringo. (…) Então... porque era diferente
vir pra cá, sentar com as meninas, conversar, “olha, a Copa vai chegar,
fiquem atentas, isso não é bom, a imprensa vai falar que é bom, mas não é”.
39
Ainda que a distribuição de camisinhas tenha se estendido também para a Barra do Ceará, o Posto
Carioca (Bom Jardim) e a área da Beira-Mar/Farol (Meireles e Cais do Porto) em outros períodos, o
Centro permaneceu manteve-se como principal área de atuação da Aproce.
40
Utilizo na tese a divisão mais difundida de modelos legais relativos à prostituição. O abolicionismo
se opõe a qualquer tentativa de regulamentar a prostituição e, em sua forma contemporânea, penaliza
agenciadores e clientes da prostituição, enquanto considera prostitutas como vítimas. O
regulamentarismo percebe na prostituição uma ameaça à saúde e ordem pública exigindo que ela seja
exercida sob o controle do estado. O proibicionismo seria o modelo mais repressivo, no qual todas as
partes envolvidas seriam criminalizadas. O modelo trabalhista reivindica o reconhecimento do
trabalho do sexo como profissão e sua regulação por leis civis e laborais (PISCITELLI, 2013, p. 35).
Outras tipologias estão disponíveis em Östergren (2017).
69
Tanto é que agora começam até a demarcar mais o campo, pra deixar claro o
que é da Copa e o que não é da Copa [Entrevista, 13 de junho de 2014].
Fortaleza, confundindo esse crime com a prática da prostituição. Em desacordo com esse tipo
de abordagem, ela lhes apresentou as ações preventivas do NETP no Cuca Mondubim41.
A Aproce foi procurada por equipes de documentaristas dos EUA com as mesmas
demandas. Essa associação apresentou-lhes espaços de prostituição aos quais tinha acesso e
articulou entrevistas em um desses locais com mulheres que teriam sido vítimas de
exploração sexual na infância e/ou adolescência, recebendo assistência da Aproce para sair da
situação de violação de direitos. Pontuo que a realização dessas entrevistas em uma casa de
prostituição onde não havia menores de idade trabalhando estabelecia uma continuidade
problemática entre o crime de exploração sexual de crianças e adolescentes e a prostituição
adulta lícita.
Através dos relatos da coordenadora do NETP e do acompanhamento de filmagens
com a Aproce percebi que, para tratar do tráfico de pessoas nas mídias, foram visibilizadas
áreas pobres e tidas como periféricas de Fortaleza, por um lado, e contextos pobres e
estigmatizados de prostituição, por outro. Nessa produção, diferentes imagens de corpos
“vulneráveis” foram sobrepostas num continuum que definia “vulnerabilidade” através da
articulação de determinadas categorias. Estas imagens refletiam a maneira geral como foi
construída no Brasil a “vulnerabilidade” ao tráfico de pessoas. Como explica Piscitelli,
As narrativas sobre o tráfico de pessoas que circularam nas mídias locais, nacionais e
transnacionais devem ser reconhecidas como parte importante nas mobilizações contra esse
crime, pois, ao veicularem discursos em que se propunham denúncias populares ou demandas
para o bem comum, elas fizeram com que as redes se articulassem e elaborassem novas
respostas.
Essas denúncias foram mobilizadas através de termos que apresentavam variações em
suas formas e sentidos. É interessante notar as diferenças entre as noções de tráfico de
pessoas, articuladas em ações governamentais brasileiras, “tráfico humano”, que predominava
41
Os Cuca’s são aparelhos da prefeitura de Fortaleza voltados para a juventude pobre que mora nas periferias:
“Localizados em territórios estratégicos, os equipamentos atendem jovens de 15 a 29 anos, residentes em áreas
de alta vulnerabilidade social.” Disponível em: http://www.fortaleza.ce.gov.br/redecuca/sobre (Acesso em 12 de
janeiro de 2015).
72
Já no primeiro dia de Fan Fest, Dandara fora pega de surpresa pelas novas fronteiras
produzidas na tentativa de maximizar os territórios de “segurança” para o mercado em torno
da Copa. Sua circulação e os limites que se impuseram a ela chamam atenção para a presença
de novos e ruidosos sujeitos nas economias sexuais de Fortaleza.
Na verdade, naquele dia, nós duas fomos interpeladas pela produção de territórios de
“segurança” relacionados à Copa, e ficamos restritas às suas margens. Para que eu aumentasse
minhas possibilidades de circulação, a solução parecia simples. Bastaria despojar-me das
minhas acompanhantes animais e a entrada estaria irrestrita. As condições práticas desse
despojamento, porém, não eram evidentes. Elas implicavam em avaliar e rearranjar relações
de amor, amizade e trabalho num tempo-espaço que eu não reconhecia.
Já para Dandara, vislumbrar esses novos limites, suas cercas e seus guardas, instalados
na areia da Praia de Iracema, acionava conhecimentos sobre os efeitos das fronteiras por eles
produzidas. Essas fronteiras se materializavam para ela de modo constante na sua circulação
pela cidade, funcionando como checkpoints por remeterem à:
produzia os limites entre o sexo transnacional considerado como “seguro” e aquele tido como
“perigoso”.
Neste tópico, abordo as categorias da diferença usadas para identificar a
“vulnerabilidade” de vítimas e possíveis vítimas nas ações anti-tráfico descritas ao longo
desse capítulo. Relaciono-as com as conceitualizações das/os funcionárias/os do Posto de
Atendimento Avançado Humanizado ao Migrante (PAAHM), no Aeroporto Internacional
Pinto Martins, em Fortaleza — que, segundo a coordenadora do NETP, configuram-se nos
“olhos do núcleo no aeroporto”.
A principal categoria acionada para a determinação da “vulnerabilidade” nos casos
estudados foi a menoridade (VIANNA, 1999). A presença de crianças e/ou adolescentes em
contextos de prostituição se configurou, tanto na Operação “Dignitatem” quanto nas
denúncias articuladas pelo “eixo prevenção”, como a maneira mais eficaz de acionar ações
repressivas relacionadas a “crimes sexuais”.
Em ambientes de encontros transnacionais difusos, como a Fan Fest, a menoridade era
acionada junto a categorias de gênero, sexualidade, classe e raça para representar o “perigo”
das relações intergeracionais envolvendo menores de idade que figuravam como modelo
privilegiado da violência sexual (LOWENKRON, 2015, p. 54).
Ao mesmo tempo, dado que para a configuração do tráfico de pessoas não havia
restrição etária, a menoridade não era determinante. Casos que envolviam pessoas adultas e
“indicadores macro-sociais” mais controversos como gênero, sexualidade, raça, classe e
nacionalidade (BLANCHETTE, SILVA e BENTO, 2013), foram articulados pelos membros
do emaranhado de prevenção para determinar “vulnerabilidades”.
Como explicou a coordenadora do núcleo, a ideia de “vulnerabilidade” seria
importante porque as coisas “não acontecem como nos filmes”, em que pessoas seriam
arrebatadas de sua realidade abrupta e violentamente por traficantes de pessoas. Haveria,
frequentemente, uma “proposta sedutora” que, associada a uma “situação de vulnerabilidade”,
seria capaz de atingir diferentes “perfis”.
Desenvolvendo esse tema, algumas definições de “vulnerabilidade” foram apontadas
no posto: “qualquer situação que deixa a pessoa exposta”; “vulnerabilidade financeira,
psicológica, social”; “não dá pra definir”; “todas as pessoas são vulneráveis, mas algumas
estão em situações mais vulneráveis que as outras” e “a pessoa só percebe a vulnerabilidade
retrospectivamente”.
Apesar dessa indeterminação e heterogeneidade, as/os profissionais do posto
acreditavam existir um “perfil majoritário” de vítimas, que seriam as “mulheres vulneráveis”:
74
negras, de baixa renda e também as travestis. Haveria outros perfis, nos quais se percebia o
perigo do tráfico, mas dado que o núcleo (e o posto) não poderia abordar todos eles, o perfil
acima descrito seria privilegiado42.
Independente da definição, concordava-se que uma “situação de vulnerabilidade” só
seria verificada pelo posto/núcleo através do contato e da construção de uma relação de
confiança com a possível vítima, impraticável sem um atendimento continuado: “ninguém
olha para a cara de um desconhecido e quer contar a sua vida”. Entre a identificação de
alguém com o “perfil majoritário” e o atendimento prolongado realizado pelo NETP eram
feitas algumas perguntas-chave: “quem pagou pela passagem?”; “como foi para tal lugar?”;
“pretendia voltar?”.
Dada a “natureza” do tráfico, no qual o traficante de pessoas é dificilmente
identificado e as vítimas não se reconhecem como tais, parece ser muito difícil colocar em
prática a diferença entre uma possível vítima e uma pessoa com o “perfil majoritário” que
circulava em espaços de encontros transnacionais. Essa confusão se tornou particularmente
problemática no período analisado, quando o “terrorismo pré-Copa” substituiu o
deslocamento, indispensável para a configuração do tráfico de pessoas no Brasil, pela
presença estrangeira, desencadeando ações de enfrentamento.
As diferenças elaboradas pelas redes em estudo, entre prostituição e tráfico de pessoas
e o reforço do caráter “voluntário” da prostituição para algumas mulheres, indicam que a
“vulnerabilidade” das prostitutas não é presumida. A respeito dos usos que o termo
“voluntário” assume nas políticas de enfrentamento a “crimes sexuais”, Jo Doezema, ativista
pelos direitos das trabalhadoras do sexo, apontou que as oposições entre prostituição
“voluntária” e forçada, atualizam ideias de que certas mulheres são culpadas pela violência
que eventualmente sofram e ameaçam toda a noção de direitos humanos das mulheres (1998).
No contexto de Fortaleza, a ideia de prostituição “voluntária” é articulada junto a moralidades
dicotômicas nas quais a prostituição materializa o caminho “errado” marcado por gênero.
A questão da “vulnerabilidade”, articulada na “gramática” dos direitos (VIANNA,
2013), apresenta outros problemas. Ela é amplamente utilizada nas normativas transnacionais,
políticas nacionais e movimentos sociais na luta por direitos (LOWENKRON, 2015), mas
seus efeitos são ambivalentes. Diante de seus usos empíricos no controle de determinados
42
Esse entendimento é problemático pois, como aponta Ela Wiecko de Castilho, “afirmar que a
mulher é um ser vulnerável ou estabelecer uma relação necessária entre prostituição à condição
análoga a do escravo revela a crença na subalternidade da mulher e não aposta no exercício do seu
direito à autonomia” (2008, p. 114).
75
corpos e territórios, é preciso perguntar: o que quer dizer “vulnerabilidade”? Diante dos
efeitos observados, seria possível utilizá-la analiticamente?
Entre as autoras que analisam os efeitos de estado em diferentes contextos, é comum
observar como certos dispositivos e as relações de poder que eles engendram “aumentam” ou
“diminuem” vulnerabilidades (BROWN, 2009; DAS, 2004; DAVIS, 2016). Judith Butler
argumenta que todos corpos são vulneráveis “por definição”, uma vez que são expostos aos
outros (2009, p. 33). Então, qual seria o ganho em usar o termo “vulnerabilidade” para
especificar determinados corpos e diferenciá-los de outros?
Nas circulações pelos territórios da Copa em Fortaleza, o que aumentava
“vulnerabilidades”? Agentes de governamentalidade sugeriram que seria a articulação das
categorias da diferença corporificadas por determinados sujeitos. Para Butler, os corpos que
estão expostos e em proximidade com outros têm sua vulnerabilidade inerente explorada
quando sofrem violência (2009, p. 61).
Andando com Dandara, percebi que o que lhe expunha à violência era, sobretudo, a
possibilidade de seu corpo ser associado à categoria “vulnerabilidade”. Para ela, garantia de
“segurança” naquele contexto era poder circular sem ser “marcada”. Por isso mesmo, ela não
queria trabalhar naquele contexto. Ainda que em todos os discursos tenha sido produzida a
oposição dicotômica entre prostitutas “voluntárias” e prostitutas “vítimas”, ela sabia que ser
associada a essa marca lhe colocaria do lado “errado” da moral e na mira de agentes da
repressão, prevenção, ou ambos.
Foi isso que aconteceu quando a Aproce levou a equipe de um importante jornal
brasileiro ao Centro de Fortaleza para fazer fotos que ilustrariam uma reportagem sobre uma
prostituição “dissimulada” que cresceria a despeito da repressão a “crimes sexuais” em
Fortaleza. Nos registros fotográficos veiculados nacionalmente, Dandara e outras
trabalhadoras do sexo, que figuraram com seus rostos embaçados por efeitos de edição,
sentiram-se reconhecíveis e, por isso, “marcadas”.
O “enquadramento interpretativo” (BUTLER, 2009) garantido pelo tom da
reportagem, que falava sobre o “boom do turismo sexual” com fotografias de uma região da
cidade que ficou esvaziada durante a Copa, clamava por “respostas morais” de proteção e
assistência aos corpos “vulneráveis” dessas mulheres, que estariam expostos à violência.
Contudo, acompanhando Dandara nesses dias de Copa, constatei que seu maior desconforto
foi causado pelo seu enquadramento como um corpo “vulnerável” através da associação
pública de sua imagem à prostituição.
76
43
Diário de campo, 20 de junho de 2014.
77
Na Fan Fest, conheci mulheres que faziam “programa” em espaços de “luxo”, como as
casas de prostituição afetadas pela ação do MPE, e também jovens que nunca haviam
frequentado espaços de prostituição, mas estavam buscando “ganhar alguma coisa” com os
“gringos”. Entre essas pessoas de diferentes classes sociais e proximidades com a
prostituição, as expectativas nas trocas com os “gringos” eram análogas.
Mulheres e homens gays buscavam sem pudor combinar desejo e ganhos materiais nos
encontros com os “gringos”. A transnacionalização dos encontros tornava possível explicitar
esses interesses sem cair no lado “errado” dos sistemas morais vigentes. Por um momento, a
festa da Copa carnavalizou as trocas e suspendeu algumas fronteiras corporais, territoriais e
morais em torno das economias sexuais em Fortaleza.
As narrativas do desejo versavam sobre ficar com “gringos” bonitos e, quem sabe,
ganhar um presente, um convite para jantar em um restaurante caro, ou outro bem simbólico
ou material embebido do status conferido pela sua nacionalidade, “nem que fosse uma
bandeira”. Uma “síntese interessada de libido e lucro” (SAHLINS, 1990, p. 175).
No dia 22 de junho, um domingo, EUA e Portugal disputavam uma vaga nas oitavas
de final. A Fan Fest estava lotada. Uma banda de brega jovem garantiu a animação.
Algumas/uns jovens de classe média alta escolheram torcer pelos EUA, tendo em mente as
possibilidades de paquera, pois havia muitos “gringos” americanos no local. Esse grupo
estava próximo a um vendedor ambulante de bebidas, o que facilitava a interação com os
estrangeiros. Uma das mulheres usava o inglês para começar conversas que, no entanto, não
se desenvolviam. Em paralelo, as pessoas desse grupo faziam críticas à aparência de Cristiano
Ronaldo, artilheiro do time de Portugal: comentava-se que ele era “cafuçu”44, que parecia um
traficante e que poderia vir da “favela” do Pirambu45. Essa reivindicação de “classe” (alta),
que estaria apartada de territórios, estéticas e moralidades marginais, surgiu num contexto de
“concorrência” com “nativas/os” de camadas mais baixas nesse setor expandido das
economias sexuais transnacionais.
Em outros momentos, observei jovens de classe média baixa puxando conversas com
“gringos”, tocando-os timidamente. Muitas queriam fotos com eles. Elas faziam poses que
indicavam intimidade e diversão. Mais tarde, essas fotos seriam publicadas no Facebook,
provas materiais do sucesso nos encontros com os estrangeiros. O interesse de “gringos” por
esse tipo de fotos foi percebido também em outras cidades-sede da Copa (MITCHELL, 2016).
44
Este termo é largamente utilizado no Ceará e designa alguém que deixa a desejar estética, moral e
economicamente. Uma análise aprofundada de seus usos será feita nos capítulos 5 e 6.
45
O bairro é emblemático nas referências à pobreza e criminalidade em Fortaleza. Mais detalhes sobre sua
história serão apresentados no capítulo 2 desta tese.
79
Na Fan Fest de Fortaleza, onde o caráter “misturado” da Praia de Iracema era recriado
como uma miragem de outro tempo-espaço (MADEIRO, 2018), as pessoas de classe média
alta que não faziam “programas”, buscavam formas de se distinguir daquelas que os faziam,
atualizando estratégias utilizadas nesse bairro no início dos anos 2000:
As modalidades de trocas sexuais que aconteciam na Fan Fest, não foram objeto de
repressão ou denúncia por parte das redes que empreendiam ações contra “crimes sexuais”. A
forte presença de agentes educativos e policiais dentro e fora desse espaço cumpria uma
função preventiva em relação a esses crimes.
A prevenção se materializava, sobretudo, através da distribuição do material das
campanhas “Não desvie o olhar” e “Jogue contra”. Além disso, os agentes buscavam
identificar, no entorno da Fan Fest, crianças ou adolescentes em “situação de
vulnerabilidade”. Na fala do líder da equipe de educadores, a “vulnerabilidade” era
identificada, neste caso, pela presença de menores de idade desacompanhados/as dos pais.
Esses jovens deveriam ser recolhidos pelos agentes e os pais contatados. Caso os pais não
fossem buscá-los, depois de receber um “lanche”, eles deveriam ser encaminhados para uma
escola municipal no Centro, onde ficariam “protegidos” das 7 às 23 horas durante o período
da Copa.
80
46
Disponível em http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/politica/higienizacao-projeto-abriga-
criancas-e-adultos-em-situacao-de-rua-durante-a-copa-do-mundo/ (Acesso em 14 de janeiro de 2015).
47
Nesse contexto algumas denúncias de “turismo sexual” foram veiculadas.
http://tribunadoceara.uol.com.br/esportes/copa-do-mundo-2014/com-chegada-de-estrangeiros-turismo-
sexual-ja-ocorre-claras-calcadao-da-av-beira-mar/ (Acesso em 31 de dezembro de 2015).
48
Mais detalhes sobre a história, territórios e dinâmicas da Praia de Iracema estão disponíveis no
capítulo 6.
81
times, e estavam bêbados e suados. Eles se concentraram tanto na rua Tabajaras quanto na
Tremembés, mas estavam separados por geração. Na primeira os jovens estrangeiros se
misturavam a muitas/os “nativas/os” da classe média “intelectual” e LGBTQ, ocupando a rua
inteira. Já na segunda, estrangeiros mais velhos preenchiam o interior dos bares, nos quais
havia muitas mulheres “nativas” jovens.
Chegando por volta de meia-noite a uma das boates mais frequentadas por
estrangeiros, onde as trocas geralmente têm o formato do “programa”, percebi muitos casais
saindo do local. Dentro havia homens estrangeiros e mulheres “nativas”, como de costume.
Porém, muito mais cheio e animado que nas noites antes da Copa.
Aos frequentadores habituais: italianos, ingleses, suíços, franceses e coreanos,
somavam-se os torcedores dos times que jogaram naquele dia. As mulheres estavam
especialmente arrumadas, algumas com as cores dos “ticos”, torcedores da Costa Rica, time
vencedor. Uma delas me explicou que, no geral, eram todos “lisos” (não tinham dinheiro),
mas que a moeda costarriquenha valia mais, pois o país estava mais próximo dos EUA. Havia
dificuldade em fazê-los aceitar os preços e serviços correspondentes: os “programas”, que
custavam em média R$ 100,00 antes da Copa, agora valiam R$ 200,00 em praticamente toda
a cidade. O tempo passado com o cliente, em torno de 1 hora, continuava o mesmo.
Mesmo diante das dificuldades, as muitas mulheres que estavam no local acreditavam
que poderiam lucrar com a Copa e se dirigiam para outra boate a partir das 2 horas da manhã,
maior que a primeira, onde terminava o circuito de lazer noturno estrangeiro na Praia de
Iracema. As mulheres que faziam “programas” e também as “novatas”, que queriam fazê-los
durante a Copa, concentravam-se somente nos locais próprios aos estrangeiros.
Na rua Tabajaras, jovens “ticos” e “celestes” comentavam que portar símbolos que
indicavam que eles eram estrangeiros ajudava na paquera, reeditando a valorização de
homens “de fora” que permeava as economias sexuais nos anos 2000 (PISCITELLI, 2005).
Esse ambiente observado numa noite de sábado no início da Copa, reproduziu-se em dias de
jogo em Fortaleza e nos finais de semana.
A presença de policiamento e de ações anti-tráfico nesta área da Praia de Iracema era
mínima. Mesmo a Missão Iris, durante este período, fez a maior parte de suas abordagens em
frente à Fan Fest, junto às outras redes anti-tráfico evangélicas49. Associado ao aumento
49
Pontuo, porém, a ação, no início de julho, das redes evangélicas na praça da igreja de São Pedro.
Nessa ocasião, além de exibir o documentário de enfrentamento ao tráfico de pessoas 1 real
(https://www.youtube.com/user/1realofilme), as/os missionárias/os ofereceram serviço de manicure
para as mulheres que circulavam na Praia de Iracema. Detalhes sobre esse tipo de abordagem estão
disponíveis nos capítulos 3 e 7.
82
foi mais que um caso limite. As trocas econômico-sexuais transnacionais foram geridas
através da produção de espaços de “segurança” e “perigo”, que permitiram simultaneamente
reprimir diferentes contextos de prostituição e expandir os mercados transnacionais que
operavam sob a sua lógica “sem nunca reprimir a circulação de valor” (FELTRAN, 2014, p.
508).
Não proponho, porém, que as políticas de enfrentamento tenham “criado” os setores
das economias sexuais acima descritos como um segundo objetivo. Entendo-os como parte da
produção contingente gerada na operação de diferentes dispositivos movidos por múltiplos
interesses (FOUCAULT, 2008).
A produção de uma atmosfera de festa transnacional na Praia de Iracema em razão da
Copa em 2014, recriou e revisou as dinâmicas das economias sexuais transnacionais que
operavam há uma década e que há anos deixaram de existir em Fortaleza. A Copa se
inscreveu na Praia de Iracema como se fosse uma viagem no tempo. Ela suspendeu por alguns
dias os conflitos violentos que marcavam o cotidiano da cidade, inclusive aqueles que foram
motivados pela Copa (ALBUQUERQUE, 2018).
Conversando com Vivi sobre “gringos” e “ganhos”, nós entramos no jogo de
manipulação do tempo-espaço (BUMACHAR, 2016) e obliteramos o presente das dinâmicas
de guerra geradas pelas políticas financiadas pela droga em Fortaleza que, dali a três anos,
matariam Xico Canuto naquele mesmo lugar. Assim, a Copa em Fortaleza foi um evento
extraordinário abarcado por categorias históricas que materializavam um outro tempo-espaço.
Parafraseando Marshall Sahlins, proponho que as narrativas sobre “crimes sexuais” tenham
sido a moldura que permitiu enquadrar o evento da festa transnacional da Copa (1990, p.
106).
Na festa da Copa em Fortaleza, por um lado, “gringos” e certas “nativas” – algumas
delas prostitutas afetadas por ações repressivas e de denúncia – ficaram concentradas/os em
áreas nas quais havia muito policiamento e a forte presença de agentes educativos, criando
entre a Fan Fest e a Beira-mar um território disciplinado e percebido como “seguro” para
essas trocas, impossível sem o desfalque da vigilância em outras regiões da cidade. Por outro
lado, os bares e boates, há muito regulados pelos próprios “gringos” na Praia de Iracema, nos
quais se dizia haver um pacto de não-agressão entre empreendedores e polícia, mantiveram-se
fora das ações repressivas e preventivas a “crimes sexuais”.
As delimitações do sexo “seguro” e do sexo “perigoso” em espaços disciplinados
foram operadas a partir da leitura da “vulnerabilidade” de corporalidades em sua articulação
de gênero, sexualidade, raça, classe, idade e nacionalidade. Essas leituras, contudo, não eram
84
50
Tanto a Missão Iris quanto a Associação Maria Mãe da Vida têm sedes neste local, que representa
no discurso destes e de outros grupos do emaranhado um dos contextos mais problemáticos de
Fortaleza em termos de abuso sexual, exploração sexual de crianças e adolescentes e tráfico de
pessoas. Detalhes sobre sua história serão apresentados no capítulo seguinte.
51
Diário de campo, 7 de junho de 2014.
85
estava incluída nesse “mundo”, mas ao longo da Copa aprendeu a inscrever sua corporalidade
num registro ao lado dele, transformando “vulnerabilidade” em exotismo.
Desviando-se das fronteiras, Dandara encontrou possibilidades de agenciar a
racialização no contexto de Fortaleza em seu próprio benefício. Algo que ela considerou
positivo. Despojando-se das marcas da “vulnerabilidade” que limitavam sua circulação, ela
experimentou uma racialização “exotizada” e desejada. Nesse sentido, Piscitelli observou que
“embora inferiorize o “Outro”, o exotismo destaca a sua singularidade” (2013, p. 216).
O par “vulnerabilidade”-singularidade era uma constante tensão no caminho de
Dandara. Voltemos um pouco no tempo para perceber como os processos de racialização
operaram sobre a sua mobilidade. Chegara a Fortaleza em 1987, aos 13 anos, vinda de um
pequeno distrito de um município do litoral cearense para trabalhar em “casa de família”. Isso
significava morar na casa de pessoas que ela não conhecia, trabalhando sem limites de horário
e com remuneração incerta. Uma prática muito comum no Brasil nesse período, marcada por
relações desiguais de gênero, raça e classe (CARNEIRO, 2011; FREITAS, 2017).
Dandara não conseguiu se acostumar com esse trabalho. Saiu da primeira casa e
voltou para seu distrito, que ficava numa região litorânea, mas não tinha praia. Até hoje são
necessários 20 minutos em estrada de terra num “pau-de-arara” para chegar à casa de seus
pais.
Tentou de novo, em outra casa, mas nada mudou. E, de novo, retornou à casa dos pais.
Nesse movimento, da casa da família para a “casa de família”, ela ia descobrindo a cidade,
seus jeitos de fazê-la “de escrava”, suas linhas de fuga. Aos 13 anos ela fez sexo pela primeira
vez com um homem de 32 anos. Dessa lembrança, ela guarda que doeu muito e que ela não
quis mais nada com ele. Ponderou que atualmente ele seria considerado um pedófilo.
Apesar das más experiências, ela ainda acreditava que em Fortaleza conseguiria
realizar seus sonhos de mobilidade. Pela terceira vez, foi para uma “casa de família”. E, pela
terceira vez, sentiu-se “escrava”. A dona da casa lhe cobrava até o shampoo que usava. Saiu,
mas sabia que ficar indo e vindo do distrito não era exatamente mobilidade. Dandara tinha
uma irmã em Fortaleza e decidiu ir morar com ela no Pirambu. Mas seu objetivo não era só
morar, ela queria também trabalhar, ganhar dinheiro. Mas trabalhar em quê?
Certo dia, vendo televisão, ela teve a ideia. Contou que passara no jornal do meio-dia
uma reportagem sobre prostituição na Praça da Estação. E, aos 14 anos, resolveu ir lá “ver”.
Na primeira vez que foi ao local, ao invés de conseguir um “programa”, ela arrumou um
paquera. E com esse paquera começou a namorar. Porém, ela o conheceu na Praça da Estação,
conhecida por todo mundo como um lugar de prostituição. Quando novamente foi encontrar
87
com ele, um “velho” a chamou para fazer “programa”, mandando beijo. Ela prontamente
respondeu: “não, que eu tô esperando meu namorado”.
Mas, depois, com 15 anos de idade, quando viu que o namoro não estava dando certo,
ela resolveu fazer “programa”. Cobrou 5 cruzeiros, que ela calculou que em 2010 valeriam
uns 20 ou 30 reais. Assim, Dandara era em 1990 o estereótipo da “menina explorada
sexualmente” encarnando uma “ferida social” e “estraga[ndo], na opinião de muitos, a bela e
dourada imagem dessa Fortaleza” (CÂMARA MUNICIPAL DE FORTALEZA, 1993).
Buscando mobilidade em uma cidade atravessada por fronteiras, ela, e muitas outras
pessoas cuja pobreza era racializada como a dela, passaram a compor o “campo relativo às
‘crianças e adolescentes em risco’ e às ‘mulheres marginalizadas’” (DIÓGENES, 1998, p.
68), tornando-se alvo de uma multiplicidade de políticas de enfrentamento a “crimes sexuais”.
Dandara aprendeu cedo que circular pela cidade significava também reconhecer nelas
os agentes de repressão, prevenção e assistência, suas múltiplas e, por vezes, paradoxais
práticas em relação às pessoas em “situação de vulnerabilidade”. Esquivando-se do controle e
da violência policial e usando “quando queria” os serviços de assistência, Dandara preferiu
evitar todo o circuito do chamado “turismo sexual”.
Os primeiros anos de Dandara no sexo comercial de Fortaleza foram anos de violentas
convulsões. Cerceada por limites corporais, territoriais e morais, ela buscou construir seus
espaços de agência fora das relações com os “gringos”, pensando, assim, em se esquivar da
repressão associada ao “turismo sexual” em tempos de “combate” (CÂMARA MUNICIPAL
DE FORTALEZA, 2002). Isso funcionou relativamente bem. Ao mesmo tempo, enquanto
adolescente, negra e pobre, ela utilizava os mecanismos de assistência gerados em torno da
imagem do par “gringo”-“vulnerável” (CÂMARA MUNICIPAL DE FORTALEZA, 1993),
mas que se expandia para muitos outros sujeitos.
Os paradigmas da infância e da sexualidade (VIANNA e LACERDA, 2004) que
informaram o contexto de Fortaleza nos anos 1990, expressos nas políticas referentes a
“crimes sexuais”, produziram as normas que constrangiam a circulação de Dandara, mas
também possibilitaram continuar sua busca por mobilidade, apoiando-se nos serviços de
saúde oferecidos na Igreja do Patrocínio por freiras e padres católicos.
Esses paradigmas, que emergiram de normativas transnacionais e se materializaram
em Fortaleza através de discursos locais que articulavam a gramática dos direitos às formas
tradicionais de se relacionar com a “miséria” na cidade diante da presença de estrangeiros,
foram marcados pela acentuação da racialização de classe na produção de diferenças e
desigualdades. Esse processo se reflete no apelido adotado por Dandara e até hoje utilizado
88
como forma de se tornar “ilegível” e mobilizar sua autonomia política na cidade (DAS, 2004;
SCOTT, 2006).
Dandara, ainda adolescente, sentiu na pele esse processo de acentuação da racialização
e o assumiu em seu codinome. Depois de 25 anos reconhecendo limites e desviando dos
controles de fronteiras urbanos impostos por policiais, missionárias/os e agentes educativos,
ela pôde circular pela Beira-mar durante a Copa, passando despercebida por agentes
governamentais e sentindo-se desejada pelos “gringos”.
Essa mudança na possibilidade de circulação de Dandara em Fortaleza durante a Copa
é efeito de diferentes linhas de força: se, por um lado, ela se tornou possível pela expansão
das economias sexuais transnacionais, por outro, ela reflete o sucesso de Dandara na produção
de uma subjetividade ética e corporalidade de mãe de família, proprietária e trabalhadora.
Ainda que essas conquistas tenham sido alcançadas através do trabalho do sexo, este
precisava ser apagado para que seu direito à mobilidade fosse concretizado.
*
A partir da circulação de Dandara pelos espaços de encontros transnacionais durante a
Copa em Fortaleza, pude perceber que as políticas de enfrentamento aos “crimes sexuais”
foram mobilizadas para gerir fluxos transnacionais de sexo e dinheiro, não proibi-los. Para
sua gestão, redes de enfrentamento a “crimes sexuais” veicularam uma noção de sexualidade
positiva, associada à “segurança”, em oposição ao sexo “perigoso”, em “situação de
vulnerabilidade”, potencialmente criminoso.
A construção da noção de que “qualquer pessoa pode ser vítima do tráfico de
pessoas”, que fomentou diversas ações preventivas, aumentou as possibilidades de ações
repressivas sobre determinados corpos, estereotipados através de um “perfil majoritário” de
“vulnerabilidades”.
Diante disto, as distinções entre prostituição e “crimes sexuais”, presentes nos
discursos das redes que compuseram a trama do enfrentamento ao tráfico de pessoas em
Fortaleza, durante a Copa, não impediram a criminalização de certos setores das economias
sexuais. Efetivamente, a confusão conceitual entre prostituição e tráfico de pessoas (enquanto
palavras que estão sempre juntas) gerou ações que, ao reprimirem a prostituição praticada em
casas “conhecidas” e em áreas pobres e visíveis do Centro, foram percebidas por
missionárias/os e jornalistas estrangeiros como formas de combate ao tráfico de pessoas.
Porém, como elaborado ao longo do texto, a repressão não se configurou no efeito
mais relevante das ações em estudo. Tampouco as denúncias de tráfico de pessoas tiveram
aumento significativo. Apesar da “espetacularização” da trama de enfrentamento, segundo a
89
Capítulo 2: Contexto
52
Vila do Mar é o nome de um projeto urbanístico de grande porte na costa oeste de Fortaleza que
visava desapropriar e reformar moradias, construindo uma avenida homônima. O projeto, aprovado
em 2005, foi dividido em três etapas que correspondem às zonas onde seriam implantado. A primeira
etapa do Vila do Mar foi entregue em dezembro de 2012. A terceira etapa foi inaugurada em junho
2016 e a segunda permanecia em obras ao final da pesquisa. O projeto afetou profundamente as
políticas nessa região da cidade. Mais detalhes serão discutidos nos capítulos 4 e 5.
91
fachada da casa onde, em 2012, um jovem do bairro fora assassinado. Para Graça, as
melhorias arquitetônicas ajudariam a dissipar essas lembranças traumáticas.
Por um momento, todas calamos. Sentimos o cheiro de ovo podre, inconfundível,
quando nos aproximamos do Pirambu, mas ninguém falou sobre ele. Os famosos ventos, que
sopram de leste a oeste, levam o fedor da estação de tratamento de esgoto na Praia da Leste
para as portas do bairro, infalíveis em anunciar que estamos chegando em uma das
“periferias” mais famosas de Fortaleza.
Quando chegamos ao nosso destino vimos que ainda faltava um pouco para a festa
começar. Guardamos os sucos que trouxemos para contribuir com os festejos e as flores que
Graça mais tarde ofereceria à Ir. Fiorenza. Ir. Ana já estava presente e organizava com outras
pessoas algumas fotografias que registravam a trajetória de Ir. Fiorenza no Pirambu.
Paralelamente, em uma das salas, acontecia uma reunião com representantes da ONG católica
Pequeno Nazareno, que estavam ali para gravar o programa Na’zária para a TV Ceará, e
buscavam conversar com algum/a morador/a antigo/a que pudesse contar a história do
Pirambu.
Aproveitamos nossos minutos adiantadas para irmos ao Boleiro comprar uma
sobremesa para festa acompanhadas de Germana Oliveira, jovem assistente social do Pirambu
engajada nas ações da Sociedade da Redenção, cujo conhecimento e amizade foram
indispensáveis para a realização desta pesquisa. Como já eram quase 19 horas, havia poucas
opções. A padaria tradicional do bairro fazia bolos deliciosos a um preço baixo, garantindo
que antes de fechar não restaria quase nada. Voltamos para a Casa Mãe Creuza com um
afogatto de chocolate. A festa já ia começar.
*
O amor e os caminhos que conectam as histórias de missionárias/os e moradoras/es
do Moura Brasil e do Pirambu são o tema desse capítulo. Partindo da trajetória de Irmã
Fiorenza, apresento aqui a complexa articulação entre a produção do Pirambu e do Moura
Brasil como territórios da desigualdade, as denúncias de “crimes sexuais” em Fortaleza desde
o final dos anos 1980 e as relações de parentesco estabelecidas através dos projetos
missionários.
Eu concentro a análise desse capítulo no Pirambu e no Moura Brasil porque esses
bairros apareceram nos discursos e práticas de gestão da sexualidade como alvo privilegiado
do enfrentamento a “crimes sexuais” em Fortaleza. Relaciono essa construção com a história
mais longa de sua produção como territórios das desigualdades. As missões se inseriram
nesses contextos com a proposta de combater a “miséria” através da linguagem do amor
92
é possível perceber que Moura Brasil e Pirambu são contextos dinâmicos onde o estado é
simultaneamente experimentado e desconstruído (DAS e POOLE, 2004).
Inserindo-se nessa longa história, em 1989, as Irmãs da Redenção chegaram a
Fortaleza e passaram a atuar nesses dois contextos. Em Historiando o Pirambu, a iniciativa
missionária está situada na “Fase IV” da história do bairro, em que tanto a Sociedade da
Redenção quanto a Associação Maria Mãe da Vida são descritas como projetos direcionados
às “adolescentes grávidas, prostitutas, drogadas e aidéticas visando sua reintegração na
sociedade” (COSTA, 1995, p. 45).
É interessante notar também, que os registros da Associação de Moradores do Moura
Brasil datam desse período, e que, segundo seu atual líder, ela foi fundada por Padre
Pereirinha, da Igreja do Patrocínio, onde as Irmãs da Redenção se reuniam com outros grupos
católicos para prestar assistência a meninos e meninas “de rua” e mulheres “vulneráveis”.
Entre elas, Dandara.
Logo depois, nos anos 1990, entraram em cena as missões transnacionais evangélicas.
O Moura Brasil e o Pirambu foram percebidos por missionárias/os católicas/os e
evangélicas/os do norte global como contextos “miseráveis” em continuidade com as
representações locais de “pobreza” e “perigo” construídas sobre eles desde finais do século
XIX. Assim, Moura Brasil e Pirambu se tornaram alvo de denúncias e intervenções sobre
“crimes sexuais” articuladas por diferentes agentes de governamentalidade.
Olhemos com cuidado, então, para as diferentes técnicas e dispositivos acionados na
produção desses bairros como territórios das desigualdades. O Moura Brasil é provavelmente
a favela mais antiga de Fortaleza (JUCÁ, 2003). As incertezas sobre o período de surgimento
do bairro, assim como a limitação da produção historiográfica sobre ele, são marcantes
quando o comparamos à vasta bibliografia existente sobre o Pirambu. Os dois bairros
coincidem, porém, ao terem sua origem associada à vinda de pessoas “famintas” de fora,
empurradas pelas secas que assolaram o Ceará entre 1877 e 1932.
Nas descrições sobre esses territórios veiculadas em meios jornalísticos, acadêmicos,
artísticos, ativistas e missionários, é sempre enfatizado o caráter de “retirantes”53 que marca
os habitantes da “região oeste” da cidade. Essa produção hegemônica de seus habitantes como
um “outro”, exterior e indesejável, contrasta com as representações da população rica da
53
“Que ou quem se retira de uma região, para ir para outra em busca de melhores condições”.
“Retirante”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013. Disponível
em: https://www.priberam.pt/dlpo/retirante (Acesso em 20 de outubro de 2017).
94
cidade que, no final do século XIX, era formada igualmente por pessoas vindas do interior do
estado às quais não foi adjudicado o caráter de migrantes.
A gênese do Moura Brasil e do Pirambu como territórios de uma alteridade
indesejável, é marcada, também, desde seu início, pela forte atuação do estado no sentido de
delimitar fronteiras ontológicas em relação à (legítima) cidade e simultaneamente acioná-la na
produção do progresso.
Esses limites têm sido em grande medida reproduzidos nos discursos sobre os bairros,
que são sempre representados como espaços “separados” numa Fortaleza marcada por uma
“arquitetura mental marcada pela distinção e segregação sócioespacial” (SANTIAGO, 2002,
p. 122). Uma das propostas deste capítulo é analisar os mecanismos de “separação” em
territórios conectados de Fortaleza.
A existência de rígidos limites “de classe” aparece tanto nos textos jornalísticos do
início do século XX54, que a exaltavam e demandavam seu aperfeiçoamento, quanto na
produção crítica posterior, que denunciava a vida apartada na cidade. Numa leitura transversal
desses textos é possível perceber, entretanto, que a “separação” territorial que marca o Moura
Brasil e o Pirambu em relação ao restante de Fortaleza, é fruto de uma produção constante,
reiterada nos discursos de denúncia que invisibilizam sua contestação prática.
Seguindo a proposta de Ferguson e Gupta (1992), eu me despojo da premissa de que
se tratam de espaços estritamente separados, para compreender as formas de conexão
hierarquizada estabelecidas entre eles e as regiões legitimadas da cidade. Desse modo, pode
ser percebida a produção de hierarquias através de conexões e de apagamentos que mantêm a
fixidez dessas disjunções espaciais.
Na análise da historiografia do Moura Brasil e do Pirambu, é possível observar,
também, que são acionadas diferentes categorias, de acordo com o contexto sócio-político,
mas que elas, frequentemente, reiteram a “alteridade radical” (WAGNER, 2012) dos seus
habitantes. As diferentes categorias mobilizadas ao longo da história evidenciam que a
produção da desigualdade nesses contextos é instável, pois emerge de encontros, mas é
construída como um continuum de corpos situados num limbo espaço-temporal (TSING,
2015).
Segundo Gisafran Jucá, até as últimas décadas do século XIX, Fortaleza crescia de
forma controlada, guiada pelo projeto de “embelezamento da cidade, a construção de praças
54
O acesso às fontes jornalísticas foi possível através das dissertações e teses históricas que tematizam
os dois bairros (SANTOS, 2006; SILVA, 2006; PINHO, 2012; RIOS, 2014; OLIVEIRA; 2014;
OLIVEIRA, 2015).
95
55
A concentração dos “flagelados” em 1932 não era algo novo. Após a experiência mal sucedida de
1915, quando “grande parte da população concentrada foi dizimada pela varíola” (RIOS, 2014, p. 81),
houve uma tentativa de menor vulto em 1919, também considerada fracassada. A singularidade da
experiência de 1932 se dá por conta das novas tecnologias empregadas nas concentrações. Constata-se
que “isolar não era mais suficiente; será preciso intervir no cotidiano destes ‘invasores’, disciplinar
seus corpos e suas mentes, estabelecer um critério de organização” (NEVES, 1995, p. 107). Aspectos
contigentes e estruturais influenciam na impossibilidade de repetir o “sucesso” de 1932.
96
bairro, torna-se incerta a ordem em que essas estratégias foram empregadas e a dimensão de
sua incidência.
De todo modo, registro que a literatura aponta que o Moura Brasil foi local de intensa
experimentação de técnicas de confinamento, destinadas aos “atingidos pela lepra” (COSTA,
1995, p. 16), à população vitimada pela seca (NEVES, 1995)56 e às prostitutas pobres que
circulavam pelas ruas do Centro (SOUSA, 1998; PINHO, 2012).
Nessas referências, é possível perceber a sobreposição entre o “perigo” sanitário,
estético e moral presente em representações sobre o bairro que se reiteram ao longo do tempo.
A respeito do confinamento das prostitutas, Érika Pinho explica que “o bairro conhecido
como Arraial Moura Brasil passou a ser chamado de ‘Curral das Éguas’57, embora a zona de
meretrício não tenha chegado a abranger a totalidade do bairro (...)” (2012, p. 32). Também
em sua dissertação, é possível encontrar uma das origens imputadas ao nome “Oitão Preto”,
que designa a área de atuação da Missão Iris dentro do bairro.
56
Não há referência precisa ao campo de concentração que teria funcionado no Moura Brasil. Há
relatos que o Campo do Urubu funcionaria do Pirambu até o Porto (da Praia de Iracema), mas a
extensão desse território torna improvável essa informação. Acredito ser mais acertado imaginar que o
Moura Brasil esteve entre as concentrações, e não dentro delas.
57
O termo “curral” foi a designação popular para os espaços segregados constituídos nas cidades para
receber os “famintos” durante as secas (RIOS, 2014).
58
Essa referência é interessante diante da perspectiva de muitos agentes do enfrentamento a “crimes
sexuais” em relação à abolição da escravatura no Ceará alguns anos antes do restante do Brasil (ver
capítulo 3).
59
Entrevista, 8 de setembro de 2017.
97
região e o papel dos missionários no seu enfrentamento. Para Neném, o nome Oitão Preto
deriva da sombra de um muro alto pintado de preto na entrada do bairro.
A produção de categorias de “invasores” a serem, nesse contexto, “encurralados” é
constante: “escravos”, “leprosos”, “retirantes”, “flagelados”, “prostitutas” e hoje “bandidos” e
“drogados”. Essas são categorias díspares que se acumulam umas sobre as outras numa
continuidade quase “natural”.
A produção do Pirambu como espaço de segregação e marginalidade seguiu
estratégias governamentais diversas. A região conhecida como Pirambu foi inicialmente
ocupada por famílias que viviam da pesca. Seu nome faz referência ao peixe que vivia com
elas naquelas praias e lhes servia de principal sustento (QUEIROZ, 2010).
As primeiras disputas sobre o território fazem referência à instalação de “casas de
veraneio” pertencentes a famílias ricas em meados do século XIX (SANTIAGO, 2002).
Contudo, com a construção de um lazareto na região em 1866 (MARTINS, 2013) e o
desenvolvimento das teorias sanitaristas que afirmavam que as doenças, assim como a areia
(JUCÁ, 2003) e o “fartum” (NEVES, 1995), seriam levados pelo vento, que sopra de leste a
oeste, a região foi consolidada como território indesejável (SILVA, 2006; JUCÁ, 2003).
Os contornos iniciais do bairro foram resultado de esforços “modernos” na produção
de limites entre a “miséria” e a “cidade”. O Campo do Urubu60 foi construído em 1932 no
Pirambu como expressão de uma gestão que conjugava políticas de urbanismo e saberes
sanitaristas “modernos”. Sua meta era promover um “confinamento são” que inspiraria na
população “flagelada” a “adoção de novos hábitos”, considerados fundamentais no combate
às epidemias provocadas por doenças contagiosas nas secas61. Isso justificava “todos os
gastos nessa área” e o meticuloso controle da higiene, dos horários e do trabalho ao qual eram
submetidos homens, mulheres e crianças (NEVES, 1995).
O trabalho era parte fundamental das políticas de disciplina e assistência dirigidas a
essa população. As “frentes de trabalho” buscavam, simultaneamente, fornecer meio de
subsistência no período de grave escassez da seca e realizar melhorias urbanas em Fortaleza.
A equação entre a sobrevivência desses “outros” e o embelezamento da cidade legítima tinha,
então, fundamentos humanitários (RIOS, 2014).
60
Além do Campo do Urubu, em 1932 foi instaurado também em Fortaleza o Campo do Matadouro.
Ambos, em conjunto com os cinco campos do interior, implementavam um novo modelo sanitário de
conter os “flagelados” (NEVES, 1995; RIOS, 2014).
61
Durante a seca de 1877-79, grande parte dos 100 mil retirantes que vieram para Fortaleza foi
dizimada por uma epidemia de varíola (COSTA, 1995). Na seca de 1915, mesmo com a instituição do
campo de concentração, a tragédia se repetiu. Retornarei ao tema nas considerações finais da tese
(NEVES, 1995).
98
62
Ver mais detalhes no capítulo 6.
63
O CPDOC teve apoio técnico-financeiro da Fundação da Ação Social, do Governo do Estado do
Ceará, consistindo em um projeto piloto que seria implantado posteriormente em outras comunidades
de Fortaleza (COSTA, 1995, p. 50).
100
64
As imagens da “praia de rara beleza” são difíceis de visualizar para quem conheceu o bairro já no
século XXI. Não há mais lagoas ou morros. Tento imaginar onde eles estariam, mas não há qualquer
referência nos atuais contornos do bairro.
65
O local seria ocupado no presente pelo Centro Cultural Chico da Silva.
66
Segundo Costa, Padre Hélio Campos “mandou que se colasse papel ofício nas portas, onde estava
escrito a palavra AMOR pois, segundo ele, esse sentimento estava dentro dele e deveria tomar conta
das casas dos moradores do Pirambu” (1995, p. 22).
101
com um hino em homenagem ao Pirambu67 e teve como resultado direto o Decreto Lei 1.058,
de 25 de maio de 1962, que determinava a desapropriação de áreas de terra situadas no
Pirambu (1995, p. 23).
Em 1964, Padre Hélio Campos, apoiado por “assistentes sociais” e universitárias,
concentrou as mobilizações sociais do bairro, “escamoteando relações conflituosas”, através
da criação do Centro Social Paroquial Lar de Todos, que surgia de “uma metodologia de
trabalho popular” (1995, p. 19).
Após o golpe militar de 1964, a luta dos moradores do Pirambu perdeu força, em
consonância com os outros movimentos sociais, sindicais e estudantis combatidos pelo
regime. Existe uma continuidade, porém, na realização de obras públicas no bairro. Dentre
elas, destaco a construção da Maternidade Nossa Senhora das Graças, inaugurada em março
de 1972, e a inauguração da Avenida Presidente Castelo Branco (Leste-Oeste), em 1973. As
obras para a construção da Leste resultaram no deslocamento de parte da população do Moura
Brasil para o Pirambu e também na desapropriação de casas nesse bairro.
Ainda nos anos 1960, o Pirambu foi marcado pela emergência de Chico da Silva como
pintor de renome internacional. Segundo Gerciane Oliveira (2015), a influência do artista
plástico no cotidiano do bairro se dava pelo modo de produção de suas telas, que envolvia
grande parte da população.
Nos anos 1970, um movimento de críticos, artistas e jornalistas defendia o
reconhecimento artístico e acadêmico da Escola do Pirambu, através do qual buscavam ao
mesmo tempo legitimar o modelo de “trabalho coletivo” de Chico da Silva e combater a
estigmatização do bairro, visto por eles como um “celeiro de tantos ‘chicos da silva’
talentosos” (2015, p. 154).
Segundo esse movimento, a Escola do Pirambu teria sido criada espontaneamente por
Chico da Silva, mantendo os requisitos de uma “escola de pintura de características originais”
(2015, p. 154). Em prol desse objetivo, foi realizado o simpósio “Chico da Silva – Favela do
Pirambu”, na 29a Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em
1977 (OLIVEIRA, 2015).
Em 1980, com a redemocratização, as associações de moradores voltaram a florescer.
Nesta década, foram instituídas políticas públicas destinadas à urbanização de favelas e
67
Vem ver oh! Fortaleza/ O Pirambu passar/ Somos pessoas humanas/ Temos direitos que ninguém
pode tirar./ Somos cristãos que não temem/ O Cristo é o nosso ideal/ Por Ele todos faremos/ A reforma
social./ Pirambu marchar/ Pirambu marchar/ Por um mundo melhor/ Vamos lutar.
102
Ir. Fiorenza percebe o início de sua trajetória missionária em experiências que viveu
ainda criança, no norte da Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Ela atestou: “vivi
período de guerra”68. Viu de perto os prisioneiros dos campos de concentração nazistas e
junto com outras crianças se arriscou para levar água, comida ou ferramentas que pudessem
salvar quaisquer pessoas que neles estivessem. Depois dessa experiência, que a forçou a
abandonar os estudos, ela se empregou em uma malharia e logo se engajou nos sindicatos e na
ação católica.
Aos 19 anos, reunindo seus conhecimentos como instrutora de malharia e suas
amizades com membros de grupos católicos, Ir. Fiorenza se engajou no trabalho de
assistência às “meninas infratoras” em reformatórios. Nesse mesmo período, em 1950, a
Sociedade da Redenção chegou à sua cidade com a proposta de “trabalhar com as jovens em
situação de risco, tipo meninas de rua, encaminhadas para a prostituição”.
Ir. Fiorenza circulava bastante nesse período. Viajava para realizar ações com jovens
presas em cidades próximas e também para passear nas montanhas, onde fazia escalada e
esqui com grupos cristãos. Por quase 10 anos, Ir. Fiorenza participou dessas atividades como
“religiosa secular”. Somente aos 27 anos ela decidiu se ordenar na Sociedade da Redenção. A
68
Nessa parte, os trechos entre aspas se referem às falas de Ir. Fiorenza em entrevista realizada em 16
de janeiro de 2017.
103
“obra” chamou sua atenção pelo “trabalho com as meninas” combinada à liberdade em
relação ao “estado”.
Paradoxalmente, com a promulgação da Lei Merlin69, que interditava os bordéis, o
estado italiano fez uma parceria com a Sociedade da Redenção, que ficou encarregada de
receber as mulheres que neles trabalhavam e haviam perdido o “traço familiar”. O primeiro
abrigo da Sociedade da Redenção para mulheres “resgatadas” em decorrência dessa lei foi
fundado em Roma em 1958. Ir. Fiorenza estava ainda em formação, mas passou um período
na casa para ajudar no seu estabelecimento. Em 1960, já ordenada, foi designada a ela.
Depois de trabalhar por 11 anos nessa casa, Ir. Fiorenza ajudou a fundar outras casas
na Itália, inclusive em sua cidade natal, onde ela não queria trabalhar. Além de contrariar seus
planos, a experiência na cidade natal foi considerada negativa porque este abrigo era de
internação compulsória, determinada pela polícia. Isso tornava as coisas mais difíceis, pois
segundo ela, nem todas gostavam.
Nos anos 1970, iniciaram-se as especulações sobre a fundação de uma casa na Índia.
Essa ideia interessou a Ir. Fiorenza pela possibilidade de mudança. Em 1975, ela foi
convidada a fundar uma casa em Querala, no sudoeste Índia, e em dezembro de 1976 partiu
acompanhada por missionárias italianas e também indianas que foram à Roma receber
formação teológica e profissional70. Ir. Fiorenza lembrava do trajeto em avião, que incluía
algumas horas em Bagdá, que estava em guerra, e depois do difícil trecho de carro em uma
estrada cheia de elefantes e vacas sagradas.
Ir. Fiorenza considerou sua experiência na Índia muito positiva, porque pôde conhecer
pessoas “totalmente diferentes de nós”. O trabalho das Irmãs da Redenção na Índia
combinava atendimento médico e apostolado. Depois de um ano, as freiras italianas da missão
foram “aconselhadas a ir embora” pelo governo indiano. Ir. Fiorenza avalia que isso
aconteceu porque elas estavam fazendo um forte trabalho de “sensibilização” e que eles não
gostavam que estivessem “virando a cabeça do povo”. Foi embora com muito pesar.
Em 1979, dois anos depois do seu retorno à Itália, ela veio para o Brasil com um
grupo novamente formado por italianas e indianas para trabalhar no litoral oeste do
Maranhão, já próximo ao estado do Pará, num lugar distante das duas capitais, onde não havia
luz elétrica ou água encanada. Neste contexto as irmãs trabalhavam “no campo da saúde”,
69
A lei de 1958 instaurava uma política proibicionista em relação à prostituição. Através delas bordéis
e “casas fechadas”, até então regidos pelo regulamentarismo, foram interditados e algumas das
mulheres que nelas trabalharam foram acolhidas pelas Irmãs da Redenção.
70
Em 1963, chegaram à Roma vinte missionárias indianas. Todas “pegaram uma profissão” em áreas
como medicina, enfermagem e educação.
104
72
Apesar das muitas tentativas, não consegui ter acesso ao relatório dessa CPI. De acordo com as
últimas informações que obtive de funcionários da Câmara Municipal de Fortaleza, não foi possível
localizar o documento.
108
73
A mais famosa zona de baixo meretrício da cidade desde os anos 1970.
109
A exploração sexual que transcorre nas ruas, que tem o espaço público e
seus equipamentos como lócus, e que condensa um maior nível de violação
de direitos de crianças e adolescentes tem os “moradores locais” (54,9%)
como principais clientes, vindo em segundo plano, e bem distante do
primeiro, os “turistas estrangeiros”, com 24,4% de indicações, ficando o
“turista brasileiro” com 12,5% e o “caminhoneiro” com 2,4% de ocorrências
(DIÓGENES, 2008, p. 240).
Por outro lado, Adriana Piscitelli (2004; 2007), cuja pesquisa enfoca as relações
estabelecidas entre mulheres “nativas” e “gringos” em Fortaleza durante os anos 2000, pontua
que, dentre as muitas fortalezenses que saíam com os turistas estrangeiros, as mais escuras e
mais pobres eram consideradas prostitutas, e passíveis de serem classificadas como “vítimas”
de “crimes sexuais”.
Ambas autoras são amplamente mencionadas na produção acadêmica local, contudo,
suas considerações sobre os problemas provocados pela imagem predominante dos “crimes
sexuais” enquanto relações íntimas violentas entre “gringos” e pessoas “nativas” consideradas
“vulneráveis”, não são assimiladas nas análises.
Grande parte dessas pesquisas insiste em mobilizar essa imagem para fazer referência
à prostituição adulta ou à exploração sexual de adolescentes em casas frequentadas pela
população local (COSTA, 2005; COLARES, 2006; COSTA, 2008; FEITOZA, 2010) e/ou
para reificar o trabalho do NETP (COSTA, 2008; FEITOZA, 2010; SOUSA, 2013). Outras
focam nos efeitos dessa imagem sobre as dinâmicas do turismo (CAVALCANTE, 2011;
RIBEIRO, 2013) ou nas políticas públicas voltadas para o setor (GONÇALVES, 2008).
Mesmo na pesquisa em que foi adotada uma postura crítica aos efeitos do
enfrentamento a “crimes sexuais” sobre as trabalhadoras do sexo, esses são vistos como
decorrentes das discrepâncias entre a legislação penal brasileira e o Protocolo de Palermo e,
ainda, do despreparo das funcionárias em relação ao tema (LIMA, 2013). As hierarquizações
e tensões nas quais se fundam esses discursos não são questionadas.
110
O resultado disso é que, na maior parte dos casos, a produção local reifica a imagem
de violação no par “gringo”-“vulnerável”, sem questionar o que esse jogo de luz e sombra
mostra e esconde. Nesta tese, proponho enfrentar esse problema analisando as práticas
discursivas que atravessam a denúncia dos “crimes sexuais” em diferentes momentos.
As denúncias dos “crimes sexuais” foram e continuam sendo marcadas por
ambiguidades. O vídeo da CPI de 1993 as justapõe de modo que, no olhar atual, resulta
chocante, mas elas não estão restritas a ele. Está claro que não é possível generalizar a
preocupação com os direitos das crianças e adolescentes a todos os sujeitos que se engajaram
na popularização do debate sobre a “prostituição infantil”.
Acredito que o ultraje ligado à denúncia da “prostituição infantil” deve ser
compreendido através da imagem que o popularizou e das relações de poder que estão nela
implícitas. O “horror” (CÂMARA MUNICIPAL DE FORTALEZA, 1993) provocado pelas
imagens de relações íntimas entre “gringos” e “vulneráveis” na “vitrine” da cidade deve ser
compreendido através dos temas que elas evocam.
Essas imagens, que oscilam entre a denúncia e o erótico, expõem os limites porosos
entre amor e violência nas relações de intimidade (DAS, 2008), a centralidade das hierarquias
de poder coloniais que as constituem (MCCLINTOCK, 2010; STOLER, 2013) e o que elas
dizem sobre as dinâmicas locais.
Uma leitura transversal da produção acadêmica local sobre “crimes sexuais” sugere
que a centralidade dessa imagem se dá porque a maneira mais abjeta da “ferida social”
provocada por “crimes sexuais” se configura quando os turistas “ricos” (brancos, civilizados),
a princípio avaliados positivamente, buscam parceiras/os sexuais entre as pessoas
consideradas “miseráveis”.
A miséria é representada sobretudo como uma marca de classe. Expandindo-se para
além da experiência do “flagelo” das secas, a miséria representa, na produção sobre “crimes
sexuais”, “pobreza, desigualdade, falta de oportunidade, desemprego, analfabetismo, descaso,
fome” (COSTA, 2008, p. 211). Nesse contexto, tais diferenças eram simultaneamente
consideradas transponíveis e radicais.
Apesar da heterogeneidade da produção local sobre “crimes sexuais”, as autoras são
recorrentes ao determinar a “vulnerabilidade” das pessoas em termos de classe: “baixa renda e
desestrutura familiar” (FEITOZA, 2010, p. 44); “meninas pobres são recrutadas por
criminosos para serem exploradas sexualmente” (COSTA, 2008, p. 187); “o entendimento
acerca do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual (...) deve ser pautado a partir dessa
dicotomia de classe” (SOUSA, 2013, p. 147).
111
74
Os movimentos de mulheres e feministas já eram bastante ativos nesse período. Contudo, os temas
levantados eram outros. Ver mais detalhes no capítulo 6.
112
75
Entrevista, 11 de novembro de 2015.
113
1932, do primeiro grande navio de cruzeiro com turistas do sul do Brasil, exemplificou essas
expectativas e tensões.
Os jornais da época noticiaram com entusiasmo a presença dos excursionistas e
notaram que, dentre os pontos de interesse a eles apresentados, figurava o campo de
concentração no Pirambu, onde seus habitantes eram exibidos “como ‘tipos exóticos’
devidamente enjaulados” (RIOS, 2014, p. 52). Rios aponta que a exibição dos flagelados no
contexto delimitado e asséptico dos campos era importante, pois a imagem dos flagelados
garantia a vinda abundante de recursos financeiros da federação.
Percebo, porém, que há nessa anedota outros elementos que ajudam a compreender a
produção de desigualdades através do tropo da “miséria”. Como propôs Gregori em sua
pesquisa sobre as experiências de meninos “de rua” em São Paulo nos anos 1990, há, entre as
classe média e miséria, uma “familiaridade desconcertante”. “São os ‘opostos de nós’, e, para
que nos certifiquemos de quem somos, precisamos conviver com eles, alimentando essa
perversidade, e mais: naturalizando essa diferença” (2000, p. 215).
Na visita dos turistas ao campo de concentração são construídas discursivamente duas
alteridades situadas em pontos opostos do tempo-espaço (MCCLINTOCK, 2010): em uma
ponta estão os miseráveis incivilizados e encurralados, na outra, os turistas, que em seu
trânsito luxuoso levam consigo o progresso. Entre esses dois pontos estariam os fortalezenses
“legítimos”, uma população miscigenada da periferia do Brasil, para a qual só havia uma
direção para alcançar a ascensão social.
Na parte que segue, analiso a prática e o discurso missionário transnacional na
moralização das relações de intimidade consideradas violentas atribuídas à miséria no
contexto de Fortaleza. Na política missionária cotidiana de enfrentamento a “crimes sexuais”,
a linguagem do amor e as relações de parentesco assumiram um papel central, inscrevendo-se
num duplo registro.
Por um lado, as missões do norte global promoveram um modelo de intimidade entre
“gringos” e “nativas”, fundado no amor e gerador de parentesco que se opunha à violência das
relações de intimidade sexual transnacionais desiguais, denunciadas no enfrentamento a
“crimes sexuais”.
Produzindo amor e parentesco transnacionais moralizados no cotidiano do Moura
Brasil e do Pirambu, missionárias/os “ensinavam” um novo modelo de relações familiares que
deveria ser uma ferramenta para transformar o clima de violência vinculado à miséria que elas
percebiam nesses bairros.
114
76
Ver capítulo 7.
116
Meu primeiro contato com as irmãs foi através de Graça, quem eu conhecia antes de
iniciar a pesquisa e cuja história retomarei no capítulo 4. Durante a etnografia, conheci muitas
pessoas que, assim como ela, tinham suas memórias e subjetividade entramadas na vida nessa
casa coletiva. Os laços de amor estabelecidos nesse espaço doméstico eram descritos por elas
como relações de parentesco. Crianças que nasceram na mesma época se consideravam
“irmãs” e cada freira tinha predileção por alguma delas, que eram consideradas verdadeiras
“filhas de vó”.
A representação cotidiana dessas relações através do parentesco não é incidental. O
parentesco emerge como linguagem possível para as relações de intimidade e domesticidade
entre estrangeiras e moradores do Pirambu num contexto de enfrentamento a “crimes sexuais”
e se expande aos outros espaços de atendimento da missão. A “restauração” das famílias no
contexto missionário transnacional não substituiu relações de parentesco existentes, ela as
expandiu, complexificou e hierarquizou77.
Havia, no projeto fundador da congregação das Irmãs da Redenção, a proposta de
acolher as mulheres “transviadas” como “filhas” em uma casa onde elas e as missionárias
partilhariam a vida (CONGREGAÇÃO DAS IRMÃS DA REDENÇÃO, 2000). Em
consonância com a proposta da primeira casa, a Casa Mãe do Salvador acolhia jovens
grávidas “em situação de vulnerabilidade ou abandono familiar” (SOCIEDADE DA
REDENÇÃO, 2015), presumidas vítimas de “crimes sexuais”, com o objetivo de fazer da
casa uma “nova família” que combinaria amor e disciplina. Segundo um documento da ONG,
a proposta da casa era oferecer:
O modelo de amor e parentesco produzido pelas irmãs, muitas vezes competia com as
formas de família “biológicas” das jovens acolhidas, com as quais muitas delas mantinham
laços. Houve casos em que as jovens fugiram do abrigo para voltar à casa da família. Nestes,
os dois modelos de família eram hierarquizados numa narrativa de progresso: a família que
estava mais próxima ao “biológico”, de onde as jovens vinham, opunha-se àquela estabelecida
77
Ver capítulo 3.
118
por normas de convivência ou pela lei78 desde sua entrada no abrigo das irmãs, que lhes
ensinava para onde elas deveriam ir.
As casas familiares “de origem” das jovens eram consideradas “inadequadas” para sua
“reintegração”. Cabia às irmãs fornecer um “novo” modelo de família na Casa Mãe do
Salvador, o qual seria incorporado pela mãe e posto em prática no nascimento da criança
numa “nova” família. A trama familiar constituída no abrigo produziria transformações nas
subjetividades que, uma vez estabelecidas, permitiriam às jovens retomar e transformar seus
laços familiares “de origem”.
O resultado dessa política missionária do amor era a multiplicação dos laços de
parentesco nesses bairros: aos parentes “biológicos” se somava o parentesco “feito” no abrigo
e o “novo” parentesco ensinado às jovens e depois reproduzido em relações de amor
romântico legitimadas pelo casamento. Nesse caso, a política do amor se confundia com as
relações de parentesco.
Talvez por isso, as irmãs investiam tanto puxar os fios dos relacionamentos passados
que “fizeram” as crianças. Elas foram enfáticas na necessidade do reconhecimento da
paternidade das crianças nascidas na casa e, em alguns casos, recorreram a exames de DNA
para a comprovação do relacionamento que gerou o parentesco. A paternidade figurava como
um elemento “necessário” à reintegração familiar (STRATHERN, 1995).
Na prática de multiplicação das relações de parentesco dessa política missionária,
esses testes serviam “não só para a identificação paterna, mas também para a inscrição social
e simbólica da criança em linhas de descendência e em parentelas” (FONSECA, 2014, p. 89).
As irmãs incentivavam a construção da linguagem do amor entre as crianças, seus pais e suas
famílias paternas “biológicas”, que incluía contribuição material para sua manutenção.
Caso a jovem começasse um novo relacionamento enquanto morava na casa, uma
nova oportunidade de produção da família se configurava. Nesses casos, as irmãs se faziam
vigilantes, orientando a jovem e buscando informações sobre o passado do rapaz79. Caso elas
aprovassem o romance, permitiam a aproximação com a esperança de que a jovem pudesse
“construir a sua própria família” através do casamento.
Finalmente, quando as jovens e seus filhos saíam da casa, muitas delas eram
auxiliadas financeiramente pelas irmãs na compra de uma “casinha” no bairro. As relações de
78
Quando as jovens acolhidas eram menores de 18 anos, as irmãs se tornavam detentoras do poder
familiar sobre elas.
79
Envolvimento com drogas ou gangues.
119
parentesco entre as irmãs e as jovens que moraram na casa com seus filhos perduravam no
tempo através de trocas de amor e da ajuda.
Folheando um verdadeiro “álbum de família” que continha fotos das freiras, mães e
crianças que passaram pela casa, uma das irmãs apontou orgulhosa as “meninas” que
visitavam ou telefonavam, as que casaram, aquelas cujas as crianças já estavam grandes,
aquelas cujos filhos já tinham filhos. Laços de parentesco que não cessavam de se expandir no
tempo-espaço. Essas fotografias, reunidas em uma pasta colecionadora cuidadosamente
manufaturada80, reuniam mais de 20 anos da história de amor familiar vivida naquela casa
(BUMACHAR, 2016).
Desde 2015, o acolhimento institucional da Casa Mãe do Salvador foi desativado. Isso
implicou em mudanças nas relações estabelecidas entre as gerações mais jovens de freiras e
jovens atendidos nos demais espaços da Sociedade da Redenção no Pirambu. Contudo, os
laços estabelecidos ao longo dos 23 anos de funcionamento do acolhimento são ainda muito
presentes no cotidiano do bairro.
Ainda hoje é possível ver nos becos do Pirambu uma freira italiana correndo atrás de
uma criança “danada”. Jovens casais que se conheceram através do projeto reforçaram os
laços afetivos com as irmãs através do apadrinhamento. Crianças do bairro são nomeadas em
homenagem às freiras.
Contudo, nem todas as relações íntimas estabelecidas na casa são pensadas em termos
de parentesco. Em contraste com a “consanguinidade” através da qual são representadas as
relações entre (algumas) freiras e (algumas) crianças, entre as próprias crianças (mas não
entre todas) e, por vezes, entre as mães e as freiras, eu não encontrei entre as jovens mães
acolhidas uma relação de proximidade equivalente.
Não há, entre a maior parte dessas mulheres, laços de parentesco ou mesmo de
amizade como aqueles descritos até aqui. A casa, que tinha capacidade para receber até cinco
jovens com suas crianças, era também espaço de muitos conflitos. Acusações de
favorecimento de algumas crianças em detrimento de outras, fugas e brigas, fazem parte das
memórias das mulheres que passaram pela casa. Essas tensões da vida comum na casa, por
vezes se atualizavam nas ruas do bairro quando alguma delas se tornava alvo de fofocas de
suas antigas companheiras.
Assim, quando coloco em relevo a linguagem do amor e as relações de parentesco que
dão sentido à vida comum na casa e, por vezes, são estendidas a todo o projeto missionário,
80
Ver caderno de imagens.
120
Foi através da etnografia junto à Missão Iris que eu percebi pela primeira vez a
importância da linguagem do parentesco na produção dos projetos missionários de
enfrentamento a “crimes sexuais” em Fortaleza. A Missão Iris está em Fortaleza desde 2011,
mas a inserção de alguns dos seus missionários na comunidade do Oitão Preto data de bem
antes.
Em 2001, Mathew, atual líder da Missão Iris em Fortaleza, migrou da Inglaterra para o
Brasil movido pelo interesse em trabalhar com as crianças “de rua”. Inicialmente inserido no
JOCUM, Mathew agia com o objetivo de “retirar as crianças da rua”, que eram recebidas para
cuidados de higiene, alimentação, atividades educativas, lúdicas e religiosas em uma casa
“aberta” no Centro de Fortaleza. Ele explicou que passou muitos anos fazendo isso. Contudo,
o sucesso das ações era considerado pequeno diante das fugas e “quedas” das crianças. Ele
considerava que isso era devido aos abusos sofridos por elas ao longo de suas vidas.
Após cinco anos em Fortaleza, Mathew começou a entrar mais na “comunidade”, pois
“percebeu que [se] você pega crianças antes delas entrarem na vida de drogas e prostituição é
muito mais fácil para direcionar a vida delas para melhor no futuro”81. A inserção missionária
de Mathew no Oitão Preto coincidiu com o estreitamento dos laços com Regina, uma
missionária nascida no bairro.
Mathew e Regina eram os responsáveis pelo ministério do JOCUM no Oitão Preto. A
parceria religiosa e política se transformou em amizade e, posteriormente, em amor,
legitimado pelo casamento. Após 10 anos de ministério em total dedicação “às crianças e aos
pobres”, segundo ele, Mathew se considerava apenas parcialmente bem sucedido em sua
prática missionária. Ele pensava que o ministério deveria ser composto por três elementos –
palavras, ações e milagres – contudo, nesses 10 anos, somente os dois primeiros tinham sido
alcançados por ele. Depois de um ano sabático orando para saber como agir para viver
plenamente a vida missionária, Mathew percebeu que era preciso dar mais ênfase ao amor
81
Entrevista, 16 de setembro de 2015.
121
divino. Nesse período, conheceu outro casal missionário, vindo dos EUA, que tinha a mesma
ideia de “amor radical” e objetivo de ir aos “lugares mais escuros”. Assim, o grupo
transacional formado por estrangeiros e jovens missionários do Moura Brasil82 constituiu a
base da Missão Iris em Fortaleza e abriu uma Casa de Oração no Oitão Preto, em 2011.
Em consonância com a proposta da missão de priorizar o relacionamento com Deus, a
conexão dos corações missionários em intimidade e amor era considerada uma consequência
natural. O cotidiano missionário do Iris se fundou desde o início nas relações de parentesco, e,
sobretudo, do casamento. A centralidade dos casais missionários na organização da família
missionária na “base” é afirmada por missionários em diferentes posições.
Quando iniciei a etnografia, a família de Mathew e Regina não morava na base, mas
ele visitava a casa diariamente. A liderança da base estava nas mãos do casal americano, que
era responsável pela convivência dos/as missionários/as que nela moravam. A base consistia
em uma grande casa com três andares e muitos cômodos, alguns de moradia e outros comuns.
Nestes eram realizados eventos públicos, como os Cultos de Missões. Havia, em média, 20
pessoas morando na base, mas esse número podia chegar até 40.
Muitas dessas pessoas vêm do norte global, principalmente EUA, Inglaterra e Canadá.
Há brasileiras/os de outros estados, sobretudo São Paulo, e também cearenses, em sua maior
parte vindas/os das periferias de Fortaleza83. Além das pessoas que moram na base, há um
grande número de visitantes estrangeiros e membros de igrejas evangélicas locais que a
frequentam. Em número menor, notei a presença esporádica de pessoas atendidas nos projetos
missionários. De acordo com o blog de uma visitante inglesa:
A vida na base costuma ser bem festiva, com a constante circulação de jovens de
diferentes países. Há, porém, uma estrita disciplina, que inclui reuniões de oração matinais às
82
Regina se retirou das atividades missionárias para cuidar dos filhos do casal. Apesar de muito
lembrada, ela raramente está presente nas ações do Iris.
83
Há dois missionários em atividade que vêm do Moura Brasil. A primeira é de uma família
profundamente relacionada às comunidades religiosas e ocupa uma posição de destaque no Iris. O
segundo é categorizado como “ex-traficante” e tem uma posição mais desconfortável na base, além de
enfrentar uma série de outras dificuldades na circulação por sua baixa escolaridade. Sua história será
apresentada no capítulo 5.
122
7:00, muito penosas para boa parte das/os missionárias/os, “pequenos grupos” divididos por
gênero, reuniões gerais e escala de atividades domésticas. Além dessas atividades,
missionária/os realizam ações semanais no Oitão Preto e na Praia de Iracema. A disciplina
também se materializa nos espaços: os cômodos de moradia são separados por “sexo”.
As relações na base são referidas como relações familiares. Há uma série de rituais
domésticos, além dos momentos religiosos, que fazem referência a isso. Mais de uma vez eu
fui convidada a participar de refeições coletivas na casa, momento em que todos os
missionários comiam reunidos à beira da piscina. Nas “noites da família”, que aconteciam
uma vez por semana, o grupo missionário se reunia para um momento lúdico, com jogos e
refeições especiais.
Dentro desse contexto, em que as referências às relações familiares eram constantes,
missionárias/os estabeleciam vínculos de parentesco mais “permanentes”. A partir das
relações de amor estabelecidas na base, surgiram muitos romances e, a partir deles, alguns
casamentos. É comum entre os casais, transnacionais ou não, morarem por um ano em uma
casa particular e depois retornarem à vida na base. Isso faz com que haja, também, crianças,
filhas de casais missionários, convivendo na casa, e que sejam estabelecidos entre adultos,
laços de compadrio que reforçam algumas relações que já são representadas na linguagem do
parentesco.
A base não está localizada no Moura Brasil, mas pode-se chegar ao bairro em 30
minutos de caminhada. Os/as missionários/as nascidos/as no Moura Brasil e as pessoas da
comunidade eventualmente hospedadas na casa, estabelecem uma continuidade entre o
cotidiano missionário doméstico e as atividades religiosas, artísticas e pedagógicas realizadas
na Casa de Oração e na Fábrica dos Sonhos, no Oitão Preto.
As crianças atendidas nesses espaços tinham no seu imaginário representações
positivas da vida missionária na base. Muitas vezes, elas pediam para visitar o local e,
algumas, chegavam lá sem aviso. O sonho de um dia se tornarem missionárias e viverem na
base era nutrido por muitas. As relações mais próximas tecidas entre missionárias/os e
algumas crianças reforçavam esse imaginário. Era frequente que tais crianças participassem
dos casamentos missionários como “damas de honra”, um papel tradicionalmente reservado
às crianças da família dos noivos.
A linguagem do amor é fundamental nas ações da Missão Iris no Oitão Preto. Ela
produz semelhanças entre missionários/as do norte global, missionários da periferia de
Fortaleza e as crianças “vulneráveis” do Oitão Preto. Essa produção de semelhanças, que é
uma propriedade das relações de parentesco, porém, não é apartada dos processos de
123
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Tudo é mistério
Nesse teu voar
Mas se eu corresse assim
Tantos céus assim
Muita história
Eu tinha pra contar
Pavão misterioso
Nessa cauda
Aberta em leque
Me guarda moleque
De eterno brincar
Me poupa do vexame
De morrer tão moço
Muita coisa ainda
Quero olhar
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Tudo é mistério
Nesse seu voar
Ai se eu corresse assim
Tantos céus assim
Muita história
Eu tinha pra contar
Pavão misterioso
Meu pássaro formoso
No escuro dessa noite
Me ajuda, cantar
Derrama essas faíscas
Despeja esse trovão
Desmancha isso tudo, oh!
Que não é certo não
Pavão misterioso
Pássaro formoso
Um conde raivoso
Não tarda a chegar
Não temas minha donzela
Nossa sorte nessa guerra
Eles são muitos
Mas não podem voar
(EDNARDO, 1974)
127
articuladas à política financiada pela droga, entre tempos de guerra e “pacificação”. Nessas
políticas, estar do lado “certo” ou “errado” nas relações de amor e parentesco pode custar a
vida.
129
Capítulo 3: Missões
13 de junho de 2014. Caminhei por 4 quarteirões ladeira abaixo da casa dos meus pais
até a Fan Fest acompanhada pelo meu irmão, à época com 12 anos. Era por volta das 16 horas
e o clima estava nublado e abafado. Quando chegamos à área da Fan Fest, ainda do lado de
fora, notei um grande número de jovens com camisetas verde-bandeira com dizeres contra a
“exploração sexual infantil”. O grupo estendia faixas com mensagens de conscientização
sobre o tema diante dos carros que esperavam o sinal verde para seguirem seu curso. As
faixas diziam: “Existem marcas que o tempo não pode apagar. Não permita a exploração
sexual infantil” e “Exploração sexual. Não curto”.
Do lado de dentro, as pessoas estavam concentradas na partida de futebol entre a
Espanha e a Holanda que era exibida no telão da Fan Fest. No segundo dia de Copa, alguns
estrangeiros circulavam por aquele ambiente: torcedores da Holanda, Alemanha, Uruguai e
Costa Rica se distribuíam em grupos pelas areias cercadas da Praia de Iracema. Em sua
maioria eram homens jovens, que corporificavam masculinidades valorizadas nas economias
sexuais de Fortaleza. Os costarriquenhos destoavam um pouco pelos traços “morenos”, o
avançado da idade e da barriga.
A ideia de assistir aos jogos naquele calor e naquela areia me pareceu descabida.
Imagino que coincida com a maior parte do público “nativo”, que naquele dia circulava
despreocupadamente pelo lado de fora84. Quando saímos, ainda durante o primeiro tempo da
partida, notei uma movimentação intensa entre os jovens contra a “exploração sexual
infantil”, que se reuniram em círculo, delimitando a cena do “drama”85 que aconteceria em
seguida. Paramos para assistir.
O drama foi acompanhado pelo som mecânico da música Set me free, da banda de
rock cristã Casting Crowns. Enquanto a letra da música dizia, em inglês: “Nem sempre foi
assim/ Eu lembro de dias melhores/ Antes da escuridão/ Que roubou minha mente/ Amarrou
minha alma com correntes” era representada uma cena em que uma jovem de camiseta
amarela estava de joelhos junto a outro jovem, de camiseta azul escuro, que parecia mais
velho, e fazia gestos expansivos, de pé, como se estivesse brigando com ela. Em certos
momentos, ambos representavam uma disputa desigual em que correntes imaginárias que a
84
Como mencionei no primeiro capítulo, o público “nativo” que circulava pela Fan Fest era motivado
pelas interações com pessoas estrangeiras e/ou atrações musicais exibidas ao vivo no palco daquele
espaço.
85
Termo empírico utilizado para descrever atividades missionárias em que “o corpo conta histórias”.
130
amarravam eram puxadas por ele. Enquanto isso cinco ou seis outros/as jovens estavam
deitados/as. Quanto mais os movimentos do jovem que segurava as correntes se tornavam
bruscos, mais a jovem que estava de joelhos demonstrava sofrimento, levando as mãos ao
rosto em gesto de desespero. Nesse momento as pessoas que estavam deitadas começaram a
se levantar.
A música continuou: “Agora eu vivo entre os mortos/ Lutando contra vozes na minha
cabeça/ Esperando alguém ouvir meu choro pela noite/ E me levar pra longe”. A cena ia se
tornando cada vez mais tensa. Ao mesmo tempo, a voz do locutor, que acompanhava de
maneira monótona os lances anteriores da partida, se tornou cada vez mais vibrante, com a
iminência de um novo gol da Holanda, que venceu por 5 a 1 o time da Espanha naquele dia.
Os gritos de gol irromperam na cena e o escasso público que a assistia se virou para
olhar o telão, situado em direção oposta aos missionários/as. Apesar disso, o grupo continuou
o drama, inabalado. Ainda em meio a euforia do gol, a música entrou no refrão acompanhado
por uma guitarra: “Me liberte das correntes que me seguram/ Tem alguém aí fora me
ouvindo?/ Me liberte”. Neste momento a jovem que estava de joelhos se agitou e as/os
coadjuvantes que começavam a despertar a envolveram, segurando-a enquanto ela fazia
menção de correr. O jovem de azul escuro passou a se mover rapidamente em torno dela,
gesticulando muito.
Ele puxou as correntes imaginarias, dessa vez de forma mais violenta, de modo que
ela se debateu no chão, olhando ao redor em desespero, enquanto a música dizia: “A manhã
traz um outro dia/ Me encontra chorando na chuva/ Estou sozinho com meus demônios/
Quem é este homem que vem no meu caminho?/ Os inimigos gritam/ Eles gritam Seu nome/
Este é Aquele que eles disseram que libertaria os cativos?/ Jesus, me salve”.
Apareceu um terceiro jovem na cena, vestido com uma camiseta branca por cima da
“farda” verde-bandeira. Ele tinha os cabelos longos e uma barba. A jovem de amarelo, ainda
de joelhos, gesticulou para ele, estendendo seus braços. Ele, por sua vez, de pé, a chamou,
também fazendo muitos gestos com os braços, mas mantendo certa distância.
A música continuou: “E quando o homem de Deus passou por mim/ Ele olhou
diretamente através de meus olhos/ E a escuridão não podia se esconder”. Ela tentou se
libertar novamente, mas novamente foi envolvida pelos coadjuvantes e o jovem de azul
escuro que ainda gesticulava muito. O jovem de branco fez ares de desespero, olhando ao
redor, parecendo também impotente naquele momento. Em seguida a jovem de amarelo ficou
de pé. Ela foi jogada de um lado para o outro pelos coadjuvantes. A música retornou ao seu
131
refrão, o cantor gritou “me liberte” acompanhado da guitarra. O jovem de branco fez muitos
gestos que indicavam desespero, chamando a jovem “escrava”.
Ela tentou correr mas foi segurada. A música: “Você quer ser livre? Quebre suas
correntes/ Eu tenho a chave/ Todo o poder dos Céus e da Terra pertencem a mim”.
Novamente o refrão. Ele estendeu o braço com veemência, ela se esticou, caiu. Atrás dela
muitos puxaram correntes imaginárias, na frente dela, o homem de branco estendeu o braço e
agora imaginou também uma corrente que ele mesmo começou a puxar em sua direção. Ela
ficou paralisada na tensão entre as duas forças. Finalmente, o homem de branco ganhou esse
cabo-de-guerra e abraçou a jovem. Nesse momento percebemos o quão mais alto e corpulento
que ela ele era. A música chegou ao fim: “Você está livre”.
Poucas pessoas bateram palmas. Um jovem brasileiro negro pegou um microfone e
explicou, em português, que essa “peça” tinha sido feita pra mostrar que “Jesus veio para nos
libertar”. Ele explicou que temos vários desejos, por várias coisas que esse mundo oferece,
mas que isso não traria a “verdadeira alegria” ou o “verdadeiro amor”. O único que poderia
trazer alegria seria Jesus, como teria sido visto na peça. “Estamos aqui para falar sobre o amor
de Jesus, sobre a libertação de Jesus, sobre o que Jesus pode fazer por nós”.86
Esse drama foi a primeira de muitas das ações que conheci cujo objetivo era tornar
públicas as narrativas sobre o enfrentamento a “crimes sexuais”. Nesse capítulo eu abordo
ações públicas missionárias e estatais em suas diversas formas: dramas teatrais, rituais
religiosos e seculares e formações.
Percebo que o enfrentamento a “crimes sexuais” é empiricamente organizado sobre
duas grandes bases: o parentesco e as ações públicas. As missões procuram, em suas ações
públicas, traduzir o cotidiano missionário em termos minimamente “seculares” que permitam
seu diálogo com o estado. Agentes do estado, por sua vez, acionam categorias missionárias no
mesmo movimento em que situam as missões na base da hierarquia desse enfrentamento. Em
meio a essas tensões, sujeitos situados em diferentes posições transitam entre os domínios
doméstico e público, ritual e cotidiano, religioso e secular, sublinhando certas relações e
obliterando outras para aumentar suas agência nesse contexto.
Para analisar essas tensões eu abordo inicialmente a delimitação do caráter “público”
das ações missionárias. Retomo, em seguida, as dicotomias entre o domínio do parentesco,
que sustenta a missão no seu cotidiano, e as ações “políticas”. Sigo analisando como as
formas “rituais” dessas ações produzem efeitos sobre as hierarquias missionárias e estatais.
86
Descrição a partir de vídeo gravado por mim.
132
de Fortaleza. Ocupando uma posição ambígua marcada por gênero, eu me esforcei para
compreender a posição de “público” que me fora designada naquela ocasião.
Na entrevista, John, um inglês de meia idade, explicou-me alguns detalhes sobre a
ação que eu presenciara do lado de fora da Fan Fest. Segundo ele, os dramas musicais são as
ações mais simples promovidas pelos missionários na abordagem de problemas sociais. Para
esses dramas seriam escolhidas músicas populares que ajudassem a desenvolver discursos
sobre esferas onde a sociedade estaria sendo “atacada”, nas quais haveria o perigo do “mal te
dominar”, tais como drogas, prostituição, quebra de vínculo familiar, divórcio, separação,
violência doméstica e abusos de todos os tipos.
A vida familiar é o foco atual das ações do JOCUM. Depois de muitos anos abordando
crianças e adolescentes “de rua” através do atendimento em abrigos e casas “abertas” em
Fortaleza87, John avaliava que os esforços missionários não estavam sendo investidos onde
eles poderiam ter um maior retorno. Ele explicou que a relação custo/benefício não é boa para
medir o “valor de uma vida”. Contudo sopesando o alcance das ações do JOCUM, ele
considerava que havia mais resultados positivos nas ações feitas em comunidade, com as
famílias, no sentido de “reforçar os vínculos familiares da criança com os próprios pais”.
Enquanto conversávamos, no alpendre de uma das casas no terreno arborizado às
margens da CE-040, o missionário pediu que o seu filho, um menino de uns 10 anos, fruto do
seu casamento com uma missionária brasileira, nos acompanhasse em todos os momentos,
sem explicitar a razão do pedido. Enquanto conversávamos, a família, que era tão enfatizada
em seu discurso, materializava-se no desassossego do menino, que queria se liberar daquela
tarefa. A criança tentava escapar, mas era logo chamada de volta pelo pai.
Enquanto mediadora involuntária daquela situação, eu me perguntava por quais
motivos a família tinha que se apresentar em toda a sua materialidade naquela entrevista. O
desconforto voltou minha atenção para outras tensões que povoavam o discurso do líder do
JOCUM.
Percebi nesse momento que a missão transitava sobre dicotomias no discurso e na
prática. Entre buscar atingir pessoas em “vários estágios de desgraça” e a dificuldade em
“mudar o seu coração”. Entre desenvolver o “lado social” da missão e manter um “DNA”
voltado para a “restauração” do coração das pessoas através do amor de Jesus Cristo. Entre a
impossibilidade de calcular o valor de uma vida e a necessidade de fazer uma relação entre
custo e benefício das ações. Entre retidão moral missionária e a limitação de situações em que
87
Ver capítulo 2.
134
ela poderia ser questionada. Essas tensões emergiam na publicização das ações missionárias
no enfrentamento a “crimes sexuais”. Mas, afinal, o que queria dizer “público” em cada
contexto? Eu era também a mediadora de um “público” obscuro?
Na Copa certamente havia um público. Nesse evento, o “lado social” da missão foi
acionado numa gramática “secular” para estabelecer o diálogo em esferas consideradas
“públicas”. Na fala do líder do JOCUM, a expressão “social” delimitava e designava uma
coisa no meio de outras. Processos de delimitação também foram acionados na escolha de
uma categoria específica de “problemas” dentre o amplo espectro da “família”, abordado pelo
JOCUM. Isso gerou a campanha “Jogue Contra”, voltada especificamente para o
enfrentamento ao abuso e à exploração sexual infantil.
Nesse processo, as reflexões de Luc Boltanski (1990, p. 353) sobre “denúncias
públicas” são interessantes. As ações do JOCUM durante a Copa, entre dramas, panfletagens
e exibição de cartazes, foram voltadas a um contingente ilimitado e diverso de pessoas que
poderia ser mobilizado em razão de uma “causa” caso fossem observadas as regras que
permitiam inscrever a reinvindicação daquelas vítimas como um “gesto político” (em
oposição ao “religioso”), porque destinado a revelar uma arbitrariedade até então ignorada.
Essa operação de tradução entre diferentes “gramáticas” permitiria que os interesses
das vítimas individuais encontrassem aqueles de um grupo já constituído, através de um
trabalho de homogeneização que produziria “interesses gerais” e promoveria novas relações
de equivalência.
Essa forma de tornar “públicas” as ações missionárias foram mobilizadas em outros
contextos. Em 2014 o JOCUM procurava fortalecer seus vínculos com prefeituras na região
metropolitana de Fortaleza, influenciando a elaboração de políticas estatais e ocupando
espaços de atuação reservados a “sociedade civil”. Nesse intuito foram realizadas campanhas
de prevenção ao tráfico de pessoas e “temas relacionados” nas escolas88 e, em casos de
violação de direitos, foram acionados serviços de assistência social estatais e órgãos
repressivos policiais.
Assim, os discursos “públicos” missionários se relacionavam com as arenas onde eles
eram “ditos e dramatizados” (MONTERO, 2015, p. 22): estado e espaços abertos a serem
ocupados. Essas arenas, apesar de serem imaginadas como “não-marcadas”, são atravessadas
pelas especificidades da inscrição de ações “religiosas” na política brasileira. A esse respeito
Paula Montero comenta que, diante da hegemonia da religião católica na construção das
88
Darei mais detalhes sobre essas ações ao final deste capítulo.
135
jaca que estava caída ao pé de uma das muitas árvores do terreno. Levei fruta pesada e de
cheiro forte no trajeto de 50 minutos de carro na volta para casa, materializando o
constrangimento e a generosidade que me acompanhariam na pesquisa com as missões.
Poucos dias depois, marquei uma entrevista com Emily, uma jovem missionária
americana, na base da Missão Iris em Fortaleza, que ficava bem próxima à casa de meus pais.
A missionária, mãe de dois filhos pequenos, explicou ao telefone que o melhor horário para
nossa conversa seria às 13 horas, quando as crianças estariam dormindo e ela poderia ficar
mais à vontade.
Ao chegar à base, fui recebida por duas jovens, uma americana e outra brasileira, que
esperavam um carro que as levaria ao Oitão Preto. Uma delas foi chamar Emily enquanto eu
esperava no alpendre, apenas entrevendo os complexos arranjos familiares e de moradia
daquela casa. Emily me recebeu de maneira calorosa. Quando subíamos para laje, que servia
de área comum, eu notei que Emily parecia com uma das personagem de Barrados no Baile89,
cuja pele branca combinada aos olhos verdes, longos cabelos pretos e um corpo longilíneo eu
admirava quando criança. Aqueles atributos estéticos “de TV” me pareceram incompatíveis
com a imagem que eu fazia da vida missionária e do cansaço da maternidade, que eu
pressupunha pela nossa breve conversa ao telefone. Esses elementos ressurgiram no momento
da escrita como pistas importantes para desenvolver a análise de gênero nas ações
missionárias “públicas” no enfrentamento a “crimes sexuais”.
Emily me explicou naquele dia que não conhecia órgãos governamentais ou
associações civis articuladas em torno do enfrentamento a “crimes sexuais” em Fortaleza. Ela
buscava articular as ações do Iris junto a outros grupos missionários evangélicos
transnacionais, como o JOCUM e o Exodus Cry. Quanto às relações com o estado, ela
preferia manter-se distante, cumprindo as exigências legais, mas sem firmar parcerias formais
uma vez que ela declarava que, no Iris, “não queremos estar presos aos pedidos de outras
pessoas porque a gente precisa fazer o que Deus tá falando”90.
Já nesse momento notei as diferenças entre as práticas discursivas de John e de Emily.
Em contraste com a entrevista concedida por John, onde ele delimitou um “lado social” da
89
Série de TV americana exibida no Brasil durante os anos 1990.
90
Entrevista, 5 de novembro de 2014.
137
missão que poderia ser acionado em suas relações com o estado, durante a Copa ou com uma
pesquisadora, Emily mobilizou em vários momentos durante nossa conversa o poder
“sobrenatural” que animava a vida missionária.
Acredito que essa diferença é consequência de dois elementos. Por um lado, há o
afastamento da Missão Iris das redes estatais de articulação e financiamento, tornando a
tradução das ações missionárias para uma gramática “secular” estranha à Emily. Por outro, a
relação mulher-mulher fazia com que eu me enquadrasse como objeto da ação missionária de
Emily. Assim, de mediadora de um “público” aberto, com John, eu passei a “alvo” do
evangelismo, com Emily.
Também o parentesco, fundamental na produção das redes missionárias nos dois
casos, apareceu na face “pública” das missões de forma diversa. Enquanto John demandava a
presença do filho como metonímia da família e garantia moral de suas ações diante de uma
estranha, Emily parecia organizar seus dias em função de suas tarefas maternas e, por isso,
escolheu um horário “livre” para a nossa conversa. O cansaço sentido por Emily pela
justaposição entre maternidade e vida missionária estiveram presentes mesmo quando as
crianças estavam ausentes. Ainda que o parentesco seja um elemento fundamental na
construção das atividades e subjetividades éticas missionárias em todos os casos que
acompanhei, suas formas de materialização são desiguais e profundamente atravessadas por
gênero.
No mesmo dia em que conheci Emily teria início o I Seminário Luz nas Ruas:
Alcançando Zonas de Prostituição, promovido pelo Iris e direcionado a fiéis de igrejas
evangélicas que desejavam construir suas próprias abordagens de evangelismo em contextos
de prostituição. Esse momento, que materializava uma conquista política de Emily, foi
também cena das tensões geradas pelo conteúdo familiar da missão e as desigualdades de
gênero nesse contexto.
Emily é a fundadora das ações do Iris na “zona vermelha” da Praia de Iracema. Ela
contou-me que, ao casar, orou muito com seu marido para saber onde deveriam “fazer
missões”. Eles “sentiram” que o local era Fortaleza, no Brasil. Emily aceitou seu destino,
acreditando que estava abrindo mão do seu “chamado” para trabalhar com os temas do
“tráfico humano” e das “pessoas abusadas sexualmente”, sobre os quais Deus já havia falado
muito com ela.
Qual não foi sua surpresa quando, ao chegar em Fortaleza, ela descobriu, através de
pesquisa em sites da internet, que esta cidade estava listada como o terceiro destino no mundo
138
para “turismo sexual”91. Com a ajuda de amigas missionárias do Exodus Cry ela iniciou o
evangelismo na Praia de Iracema em um final de semana e nunca mais parou. No início, o
evangelismo consistia somente em oração: louvor na praia e preces para que Deus a
direcionasse para as pessoas mais “desesperadas” para sair da prostituição. Emily perseverou
no evangelismo mesmo diante de condições adversas até que ela engravidou pela segunda
vez, há três anos da data em que conversávamos. O filho recém-nascido exigiu que ela
parasse por um tempo, mas ela logo “sentiu” que deveria voltar às ações na “zona vermelha”.
Ao acompanhar o I Seminário Luz nas Ruas, que aconteceu de 5 a 8 de novembro de
2014, percebi que Emily ainda experimentava as dificuldades de conciliar suas relações
familiares/domésticas e as ações missionárias “públicas”. Além das crianças, Emily e seu
marido eram, enquanto casal, líderes da base da Missão Iris em Fortaleza e das ações na “zona
vermelha”, que se constituíam em uma das suas principais atividades.
O primeiro dia de seminário teve programação de duas horas, das 19 às 21 horas, na
qual a primeira hora foi dedicada ao louvor. A forma como esse momento foi conduzido me
chamou atenção, pois ao invés de um culto marcado por gestos bem delimitados, esse ritual
tinha uma forma era aberta e fluida. Desde as 19 horas havia um jovem que tocava violão no
altar improvisado, onde havia um crucifixo construído a partir de material reciclado e luzes
“pisca-pisca”. As músicas que ele cantava pareciam improvisadas em alguns momentos e não
era sempre possível perceber quando acabava uma e começava outra. O público era
majoritariamente jovem e feminino. Contando com todas as presentes havia 16 pessoas, o que
parecia um bom número para a estrutura disponível.
As pessoas entraram em “estado de adoração” em momentos diferentes. Isso podia ser
percebido pelas orações proferidas, posturas corporais, dança, glossolalia, choro e gargalhada.
Sobretudo, era algo que se manifestava em “corpos ritualizados”, ou seja, investidos com um
“sentido ritual” (BELL, 1992, p. 98).
Por volta das 20 horas, encerrou-se o momento de adoração. Emily pediu a palavra
para fazer uma breve oração e em seguida apresentou o Seminário. O tema do primeiro dia
era intitulado “Visão Mundial de Jesus sobre o Tráfico Sexual”. Foi entregue um material
impresso em quatro folhas de papel ofício no qual estava contida a maior parte do conteúdo
abordado naquele dia.
Emily iniciou sua fala explicando que falava português, mas que para alguns assuntos
sentia-se mais a vontade ao falar em inglês. Em razão disso, pediu que Michelle traduzisse de
91
O site mencionado por Emily chamava-se Hawkeys e não estava mais disponível para consulta em
2014.
139
forma simultânea a sua fala. Michelle era jovem uma missionária americana casada há quatro
anos com Neto, um missionário brasileiro. Seu português com sotaque “cearense” era fluente.
Emily iniciou seu relato com a experiência “sobrenatural” que motivara o seu
engajamento no enfrentamento a “crimes sexuais”. Um “menino” teria profetizado sobre sua
vida, falando que a via em casas “cheias de diamantes”. Sem compreender o significado dessa
enigmática visão, Emily procurou saber como eram feitos os diamantes. Para a sua surpresa,
ela descobriu que eles eram “terra” sob determinadas condições de temperatura e pressão. Ela
entendeu que os diamantes eram uma metáfora perfeita para a condição das pessoas
envolvidas em “exploração e tráfico sexual”92.
“Quando Jesus olha pros [sic] travestis e mulheres prostituídas, Ele ver [sic]
diamantes” (IRIS FORTALEZA, 2014, p. 1). A fala de Emily e o material seguiram, tanto em
inglês quanto em português, acionando conhecimentos bíblicos (Oséias, Mateus: 22:37,
Marcos: 2:17, Êxodos 22:22, Tiago 1:27, Isaías 52:1-5 e 1:17) e dados de agências
transnacionais de governamentalidade, como a ONU e a OIT.
Não havia, porém, simetria no tratamento dessas diferentes fontes. Os conhecimentos
encontrados na bíblia eram fundamentais para a produção do discurso do Iris sobre o
enfrentamento a “crimes sexuais”. Segundo aquele material, o versículo que fundamenta o
ministério na “zona vermelha” estava em Isaías 52:1-5:
Desperta, desperta, veste-te da tua fortaleza, ó Sião; veste-te das tuas roupas
formosas, ó Jerusalém, cidade santa, porque nunca mais entrará em ti nem
incircunciso nem imundo.
Sacode-te do pó, levanta-te, e assenta-te, ó Jerusalém: solta-te das cadeias de
teu pescoço, ó cativa filha de Sião.
Porque assim diz o Senhor: Por nada fostes vendidos; também sem dinheiro
sereis resgatados.
Porque assim diz o Senhor Deus: O meu povo em tempos passados desceu
ao Egito, para peregrinar lá, e a Assíria sem razão o oprimiu.
E agora, que tenho eu que fazer aqui, diz o Senhor, pois o meu povo foi
tomado sem nenhuma razão? Os que dominam sobre ele dão uivos, diz o
Senhor; e o meu nome é blasfemado incessantemente o dia todo.
92
A metáfora dos diamantes também é articulada em palestras sobre sexualidade que visam a
“educação para o prazer” de um público feminino de classe média. Nesses contextos é promovida:
“uma ‘sacanagem do bem’, que articula estímulo a autoestima, temer e agradecer a Deus e cuidar do
casamento” (GREGORI, 2016, p. 91).
140
muitas vezes ou pela sua própria vontade, se entregou à [sic] muitos. Seu
amado está dizendo para ela que nunca mais será vendida por dinheiro, que
ela estará redimida e livre. Isso é o Espírito de Deus falando para sua esposa,
sua prometida, querido Sião – povo de Deus. (IRIS FORTALEZA, 2014, p.
1, grifo meu)
Emily. Ela estava visivelmente cansada e explicou que temia ter que voltar mais cedo, pois o
seu bebê tinha acordado. O pai conseguira fazê-lo voltar a dormir, mas ela estava incerta
sobre a resolução do problema, pois era ela quem cuidava das crianças durante a noite.
Apesar disso, conseguimos cumprir toda a programação para aquela atividade. Todas
as pessoas retornaram à base juntas para compartilhar suas experiências. Como era por volta
das 2 horas da manhã, esse foi um momento breve. Além das pessoas consideradas “vítimas
de prostituição”, os grupos abordaram donos de bares, seus frequentadores e moradores/as “de
rua” na Praia de Iracema.
O último dia de seminário foi dedicado ao tema “Chamado: qual é o meu?”.
Comandado por Matthew, líder da Missão Iris em Fortaleza, esse momento foi dedicado a
fornecer elementos para que as pessoas reconhecessem “o chamado cristão revelado na
bíblia” em suas vidas (IRIS FORTALEZA, 2014, p. 1). O material didático indicava diversos
versículos que estimulavam cumprir esse chamado e abordava diretamente as dúvidas que
poderiam se colocar entre o “chamado” e a vida em “missões”.
Talvez, durante esses dias, você tenha sentido um chamado para levar o
evangelho às zonas de prostituição, mas existem questões e dúvidas na sua
cabeça. Existem várias formas que o diabo usa para colocar medo em
relação a autoridade e capacidade. Mas essas são mentiras para que a
verdade não se espalhe e para que ele possa continuar seu [trabalho?] de
destruir famílias e a noiva de Cristo (IRIS FORTALEZA, 2014, p. 1).
Normalmente a gente fica lá de meia noite até duas horas, a gente entra nas
boates às vezes para orar... É mais difícil fazer abordagem lá porque a
música é muito alta e todos estão em uma zona muito focada lá. É bem mais
pesado dentro porque os homens lá tratam as meninas bem como uma coisa
para comprar, eles pegam elas, fazem elas fazer uma voltinha e falam não ou
sim, quero você ou não, é muito pesado. A gente está orando muito sobre
como fazer abordagem dentro porque tem tantas meninas dentro das boates
também93.
Na sua fala, Emily retoma alguns argumentos feministas radicais contra a prostituição.
Apesar de seu posicionamento político se opor ao feminismo, o domínio dessa linguagem
permite a produção da missionária como um sujeito “moderno e autônomo” no enfrentamento
a “crimes sexuais” e torna sua as ações aparentemente compatíveis com aquelas articuladas
por grupos “seculares”, dentre eles alguns movimentos feministas (BERNSTEIN, 2007).94
Pontuo, porém, que o discurso missionário no Seminário se afasta do feminismo ao
assimilar as desigualdades de gênero como parte do “sofrimento” que é necessário para a
redenção. Na prática isso colocava, muitas vezes, as ações de “resistência” em conflito com
os sistemas morais que sustentavam relações de gênero desiguais na vida familiar missionária.
Esses conflitos não eram considerados obstáculos que deveriam ser superados, mas parte dos
sacrifícios feitos por Jesus.
93
Entrevista, 5 de novembro de 2014.
94
Esse tema será abordado com mais profundidade no capítulo 7.
144
Pessoal: por causa do sacrifício de Jesus, nós temos autoridade sobre nossas
próprias vidas. Somos livres, não para viver em pecado, mas para viver em
santidade. (Colossenses 2:13-15)
Ministério (Evangelismo): Nós temos o maior presente que pode ser dado a
alguém – a verdade. Levando essa verdade para a zona vermelha, você estará
levando a liberdade, pureza, e esperança para cada mulher, homem, e criança
que se encontra na prisão da prostituição (João 8:31-32, Mateus 28:16-20)
(IRIS FORTALEZA, 2014, p. 2).
Missão Iris
95
Diz-se que o dono dessa boate é um suíço que não mora em Fortaleza e não teria conhecimento
desse evento.
147
96
Aqui o termo “menina” faz referência a “garota de programa”.
97
Diário de campo, 27 de maio de 2015.
98
Para uma análise da importância das transmissões em vídeo na produção de subjetividades
evangélicas, indico ver Carly Machado (2014).
148
Contudo, a delimitação de ações “rituais” e conteúdos “religiosos” não fazia parte das
práticas discursivas dos missionários do Iris. Em oposição a isso, na Missão Iris, havia uma
recusa à categoria “religião” como forma de se referir às suas ações e mesmo à “fé” para
nomear a força que os movia.
Certo dia, quando conversava com um jovem missionário cearense enquanto
olhávamos o mar desde o segundo andar da Casa de Oração, o rapaz pediu que eu fechasse os
olhos por 20 segundos e sentisse a “imensidão”. Depois desse breve momento em silêncio, ele
falou que ele não acreditava que “religião” mudasse a vida de ninguém.
Ele explicou que no Iris os missionários não seguiam religiões, pois não estavam na
igreja “seguindo regras”. Diante da minha confusão, ele continuou, dizendo que a Missão Iris
acreditava que era necessário ter um relacionamento com Deus marcado pelo “sobrenatural” e
pela entrega, algo que não aconteceria “nessas religiões”99.
Somente a partir dessa entrega seria possível que o Espírito Santo exercesse seu poder
através dos missionários, fazendo-os “personagens principais da aventura da vida real e da
guerra do bem contra o mal” (FANSTONE, 2016, p. 126). O poder “sobrenatural” é descrito
como algo inacreditável que cura pessoas de doenças terminais, faz cair diamantes e ouro em
pó do céu e ressuscita os mortos.
O posicionamento do jovem é confirmado por Matthew. O líder da Missão Iris recusa
falar das suas ações nos termos de religião, também por conta das regras que se imporiam a
elas. O termo fé tampouco é considerado adequado. As ações missionárias são compreendidas
através da linguagem do amor100.
Isso está em consonância com as observações de Emily acerca do primeiro “culto na
boate”, em que ela valorizou a união das pessoas fora das regras das igrejas, movidas somente
pelo amor de Deus. Esse tipo de discurso é mantido nas relações estabelecidas com as
moradoras das favelas e com as mulheres que circulavam pela Praia de Iracema. Por mais que
a inserção em igrejas evangélicas seja um ponto positivo, ela não seria garantia de salvação,
nem neste mundo, nem no outro. A “prostituição” das igrejas é sempre um risco. A
“verdadeira salvação” seria garantida apenas por uma vida dedicada a seguir os passos de
Jesus, sendo absolutamente obedientes ao Senhor.
Transitando entre o “ritual” e o “cotidiano”, a Missão Iris dá ao sobrenatural
importância absoluta. Esse poder, materializado em milagres, é considerado a forma mais
eficaz de intervenção missionária (FANSTONE, 2016). Em uma proposta bastante diversa, as
99
Diário de campo, 30 de setembro de 2015.
100
Diário de campo, 7 de outubro de 2015.
149
ações organizadas pela Rede Um Grito Pela Vida do Ceará no enfrentamento ao tráfico de
pessoas eram fortemente estruturadas entre o “religioso” e o “secular”.
101
Ver caderno de imagens.
150
casa. Quando entrardes numa cidade e fordes bem recebidos, comei do que
vos servirem, curai os doentes que nela houver e dizei ao povo: ‘O Reino de
Deus está próximo de vós’. Mas, quando entrardes numa cidade e não fordes
bem recebidos, saindo pelas ruas, dizei: ‘Até a poeira de vossa cidade que se
apegou aos nossos pés, sacudimos contra vós. No entanto, sabei que o Reino
de Deus está próximo!’ Eu vos digo que, naquele dia, Sodoma será tratada
com menos rigor do que essa cidade.
102
Ver detalhes sobre a atuação da CHAME em Blanchette, Silva e Bento (2013)
151
racial” da Rede, foi parabenizado também o “bom comportamento” das irmãs em relação a
isso. Enquanto falavam dos “babados”, comentários considerados “racistas” e críticas à
atuação de certas religiosas geraram momentos de tensão.
Finalmente, foram elencadas as diretrizes propostas para a atuação das Redes nos
estados. Elas eram: 1) “comunicação: aberta, franca e simples”; 2) “mística: que sustente o
próprio movimento”; 3) “articulação das bases”; 4) “formação de multiplicadores”. Ao fim da
reunião havia café, chá, sucos, biscoitos, pães, presunto e queijo nos esperando no andar
térreo. Esse momento serviu para dissipar algumas das tensões que restaram do debate. Outras
pareciam ter raízes mais profundas, mas permaneceram veladas.
As formas de articulação entre elementos “religiosos” e “seculares” nessa reunião
respondiam a códigos morais nos quais outras formas de agência foram mobilizadas e outras
subjetividades éticas foram produzidas. A “palavra” da bíblia ocupou também um lugar
central, contudo, o seu “sentido” estava aberto à interpretação pessoal de cada uma que, por
sua vez, era informada por conhecimentos “leigos”103.
A importância do conhecimento produzido em esferas “seculares” de saber-poder nas
interpretações da “palavra” e na autoridade, era marcante na Rede. Assimilar práticas
discursivas sobre gênero, raça e migrações às leituras da bíblia104 e à prática missionária era
fundamental nas relações de poder entre as religiosas da Rede.
A delimitação de esferas do conhecimento “secular” e científico, que poderiam ser
associadas ao discurso “religioso” através de práticas interpretativas subjetivas relacionava-se
ao processo mais geral através do qual as doutrinas cristãs delimitaram suas esferas de
atuação à crença individual nas sociedades pós-Iluministas (ASAD, 1993).
Se processo de abstração e universalização do conceito de “religião” a partir do
cristianismo foi percebido de maneira transversal em contextos coloniais, as especificidades
do caso brasileiro são marcadas pela hegemonia do catolicismo na fundação de estruturas
estatais (MONTERO, 2009) e na constituição da secularidade brasileira (DULLO, 2013).
Esses elementos são pertinentes para compreender as relações entre as religiosas na Rede e
também as ações “públicas” de missionárias católicas no Pirambu.
Sociedade da Redenção
103
Aciono aqui o termo empírico utilizado pelas religiosas.
104
Ver capítulo 7 para um exemplo de leitura feminista da bíblia.
152
Trago aqui algumas notas sobre a cerimônia de abertura dos cursos da Sociedade da
Redenção, em 2016. Ela aconteceu em um ginásio esportivo no bairro e contou com
apresentações das turmas do ano anterior. Apesar do evento ser direcionado a todo o bairro, a
plateia era formada, sobretudo, por “mães” de alunos e alunas que se apresentariam.
A jovem brasileira Ir. Ana foi responsável por conduzir o evento. Ela iniciou com duas
músicas: a primeira, de boas-vindas, foi cantada na primeira vez para ensinar a letra, depois
para ser acompanhada com palmas, depois para ser cantada no gênero masculino. A segunda
tinha um tema infantil. Depois desse momento, ao microfone no amplo ginásio, Ir. Ana
explicou que estavam ali graças ao projeto “Em defesa da vida” e apresentou a Sociedade da
Redenção como uma ONG. Explicou que a instituição não tinha fins lucrativos, mas precisava
de dinheiro para manter suas atividades. Para ajudar, as pessoas poderiam trazer cupons
fiscais com valor a partir de R$ 15,00.
Seguiu perguntando: “quem aqui é crente?” Teve poucas respostas, então reformulou:
“vocês acreditam no Deus que nos ama?”. “Sim”, as pessoas responderam com vigor. Ir. Ana
pontuou, então, que as pessoas acreditavam nesse Deus, mas que ele tinha várias
denominações, e explicou que isso seriam as “diferentes religiões”. Convidou o público para
rezar, de pé, o Pai Nosso, oração que ela emendou com a Ave-Maria. Em seguida, passou a
palavra às/aos professoras/es, que deveriam informar dia e horário de seus cursos. Ao final,
alunas/os dos cursos de ballet, capoeira e tae-kwon-do fizeram apresentações coletivas e
individuais.
Nesse evento, a linguagem “religiosa” foi utilizada em termos que ultrapassavam os
limites do catolicismo e se aproximavam mais de um ecumenismo onde a “espiritualidade”105
seria o substrato em comum que sustentava simbólica e materialmente o projeto. Esse
ecumenismo estava de par com a produção de hierarquias que determinavam o “lugar de cada
culto na geografia social e moral da cidade” (BIRMAN, 2004, p. 238).
A articulação da “religião” como outras categoria da diferença na produção de
desigualdades nas relações missionárias de enfrentamento a “crimes sexuais” se materializou
naquele dia no momento da oração. Boa parte das “mães” que assistiam à cerimônia eram
evangélicas, em conformidade com o crescimento pentecostal que acontece nesse bairro,
assim como em outras periferias brasileiras (ALMEIDA, 2004). Para a oração do Pai Nosso,
105
Não há espaço, contudo, para a ausência de religião.
153
106
“Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o
fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da
nossa morte. Amém”.
154
107
Essa informação foi fornecida pelo cerimonial do evento entre as imagens apresentadas no telão
sobre o palco nos momentos anteriores ao início do Simpósio. O filme tematiza as desventuras da
jovem e rica sulista branca em meio à Guerra de Secessão, nos EUA, onde estava em disputa a
abolição da escravidão sobre a qual se sustentava a produção de sua fazenda.
156
acompanhava mais duas mulheres no percurso até o 4o andar por elevador. Chegando lá, uma
quarta jovem nos acompanhou até o credenciamento.
Recebi uma pasta em um material que imitava couro com um conteúdo diverso, entre
a programação do Simpósio e panfletos turísticos, junto a um crachá que seria lido
eletronicamente no início de cada painel. Segui para o auditório, onde um homem tocava um
piano elétrico enquanto imagens e textos que enalteciam o Ceará eram exibidas no telão.
Após algum atraso, o mestre de cerimonias convidou todos para, “em posição de respeito”
ouvir o Hino Nacional, que foi cantado e acompanhado ao piano em toda a sua extensão. Em
seguida, sentamos para ouvir o Coral Sétima Voz (do TRT7) cantar as músicas Bandoleiro,
No Ceará é assim e Isso aqui o que é.
Antes de conhecer qualquer “conteúdo” apresentado no Simpósio, todos esses
elementos me moldaram para uma postura reverencial, de deslumbramento e reconhecimento
de uma hierarquia na qual eu, as alunas de cursos de graduação e missionárias, que conheci
naqueles dois dias, ocupávamos os lugares mais baixos.
O Simpósio contou com a presença de representantes do judiciário, executivo e
legislativo municipais e estaduais em sua solenidade de abertura. Os demais painéis foram
compostos majoritariamente por altos funcionários do judiciário federal e estadual. Seguindo
a proposta desse capítulo, eu não revisarei o conteúdo de cada painel. Concentrarei a análise
nas categorias mobilizadas durante o evento para fazer referência ao tráfico de pessoas e
outros “crimes sexuais”.
Na solenidade de abertura, o Secretário de Justiça do Ceará afirmou que o tráfico de
pessoas era uma “chaga” da sociedade, termo cristão amplamente mobilizado para fazer
referência aos “crimes sexuais” no Ceará. O Secretário falou também da capacidade inventiva
do “mal” e lembrou que o Ceará seria a “terra da luz” não por conta do sol, mas pela abolição
da escravatura que “seu povo, tão acolhedor, já não admitia”108.
O Secretário acionou tropos mobilizados desde os anos 1980 em referência a
exploração sexual de crianças e adolescentes para abrir esse evento contra o tráfico de
pessoas. Ele atualizou em sua fala a mesma narrativa hegemônica analisada no capítulo
anterior: “crimes sexuais” seriam um “problema” que vinha de fora, vitimava pessoas
inocentes e produzia estigmas em uma cidade explorada por ser tão acolhedora.
Nos painéis, apresentações consideradas “mais acadêmicas” e também “falas
políticas” enfatizaram as diferenças entre tráfico de pessoas e migração. Algumas delas
108
Para uma crítica a esse discurso, ver capítulo 6.
157
109
A ginástica laboral foi difundida no Brasil na década de 1980, enquanto “uma série de medidas
para o enfrentamento de distúrbios físicos e emocionais na saúde do trabalhador”, e se popularizou nos
anos 1990, em resposta à “epidemia” de lesões de esforço repetitivo. Realizada no meio do turno, ela
tem caráter sobretudo compensatório (SOARES, ASSUNÇÃO e LIMA, 2006, p. 152).
158
organizado” e este seria o momento do estado (marcado por gênero em seus órgãos
preventivos e assistenciais) também se organizar.
No último painel, dedicado à cooperação internacional, duas representantes do
governo dos Estados Unidos se pronunciaram. Ambas acionaram argumentos abolicionistas,
que divergiam abertamente com a fala dos outros panelistas do Simpósio, que mencionaram
os direitos das trabalhadoras do sexo. As americanas também trouxeram histórias detalhadas
de condenações por tráfico de pessoas e exibiram fotos de seus perpetradores, utilizando
discursos de um feminismo carcerário (BERNSTEIN, 2007) que também contrastavam com o
tom do Simpósio.
Apesar das diferenças entre as posturas dos panelistas em muitos temas, não houve
debate. A estilização de todos os momentos do Simpósio, garantida pela atuação do mestre de
cerimônias, inibia a participação do público110. O Simpósio foi encerrado com a afirmação de
que o enfrentamento ao tráfico de pessoas era “uma cruzada em que o Santo Graal era a
dignidade humana” e foi lida a Carta de Fortaleza111.
Durante o Simpósio, conheci duas missionárias do JOCUM. A primeira tinha
articulado a exibição do filme de combate ao tráfico de pessoas 1 real em diferentes cidades
brasileiras durante a Copa e organizado o material de prevenção ao tráfico de pessoas
apresentado nas escolas. Ela me ofereceu esse material e apresentou-me a Andressa, uma
jovem missionária vinda da periferia de uma grande cidade do sudeste que acompanhava as
reuniões do Comitê de seu estado.
Aproximei-me de Andressa e nós participamos juntas de momentos informais do
Simpósio. Em um desses momentos, pessoas em posições hierárquicas superiores a sua
falaram sobre a “burrice” de pessoas evangélicas que “dariam” seu dinheiro para as igrejas.
As ações missionárias de enfrentamento ao tráfico de pessoas são substancialmente
sustentadas por essas doações e Andressa só pôde participar daquele evento graças a elas.
Aquele tipo de comentário atingia não somente evangélicos “genéricos”, mas também a ela
pessoalmente. Vi seu rosto murchar enquanto ela ouvia esses comentários em silêncio.
110
A repetição de algumas frases a cada pausa traçava limites entre os panelistas e o público e inibia a
sua participação. As frases eram: “neste momento convidamos sua excelência Doutor (nome do/da
coordenador/a do painel) para entregar o certificado às panelistas do V Simpósio de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas” ou “tendo em vista a utilização de recursos audiovisuais pelas panelistas, pedimos
aos integrantes da mesa a ocuparem as cadeiras em frente ao palco. Por favor, a técnica”.
111
Não consegui ter acesso à carta após o evento. Anotei que suas demandas eram: 1) revisar e
atualizar a lei penal e de processo penal; 2) implementar a unificação da coleta de dados; 3)
desenvolver técnicas para investigação; 4) instituir a reparação civil; 5) ampliar a rede de núcleos e
postos aos municípios; 6) desenvolver mecanismos de combate pela internet, e; 7) fomentar a
cooperação jurídica.
159
Quando ficamos sozinhas, ela afirmou, bastante chateada, que sabia que “cristãos” não
eram valorizados nos contextos estatais de enfrentamento ao tráfico de pessoas, mas se
matinha firme pois “Deus não precisa de advogados, só testemunhas”. Ela experimentou
aquele momento como um caso de “preconceito” contra “cristãos”. Para mim, ele parecia
emaranhado também às diferenças de classe que se colocavam entre a missionária e seus
interlocutores.
As diferenças e desigualdades em momentos “rituais” ou “cotidianos” do Simpósio
foram produzidas através de um complexo edifício que relacionava os dispositivos de
soberania, disciplina e segurança (FOUCAULT, 2008) e se materializava nos detalhes que
iam desde as frases estilizadas do cerimonial até os cotonetes e absorventes com a logo do
evento no banheiro feminino.
Esses detalhes eram eficazes na produção das diferenças entre atores que constituíam a
trama de governamentalidade em torno dos “crimes sexuais” apesar (ou, justamente, por
conta) da coincidência entre categorias e técnicas mobilizadas no Simpósio e aquelas que dos
discursos “seculares” de missionárias católicas e evangélicas.
Na apresentação em formato Power Point exibida entre 2015 e 2016 em diferentes
escolas da rede pública da região metropolitana de Fortaleza pela Rede Um Grito Pela Vida, a
maior parte dos elementos debatidos no Simpósio foi contemplada. Baseada no Protocolo de
Palermo, a apresentação definia, inicialmente, tráfico de seres humanos como “uma grave
violação dos direitos humanos”, “a escravidão moderna do século XXI” e “a mercantilização
da vida humana”.
O tráfico de pessoas é abordado nesse material como um problema decorrente das
migrações, inerentes à globalização e ao capitalismo. Dentre as “migrações internacionais
preocupantes”, haveria o contrabando de migrantes e o tráfico de seres humanos. Este seria
determinado pelo “aliciamento e transporte sob correção e/ou engano”. Alguns números são
fornecidos, sem que as fontes sejam explicitadas. O material propõe que o “tráfico humano é
perverso e piora por causa de: relações de dominação (gênero, raça, etnia); turismo sexual e
exploração sexual; leis e políticas sobre migração e trabalho ineficientes e injustas”. É
exposto um “perfil” das vítimas e dos aliciadores e são listadas as possíveis “redes de
favorecimento”. Finaliza apresentando desafios e perspectivas para o combate ao tráfico
humano.
160
112
Cada formação levava aproximadamente 50 minutos. Geralmente, eram feitas várias formações em
cada escola.
113
Exceto pela apresentação feita em uma escola privada pertencente à congregação de uma delas,
quando foram rezados o Pai Nosso e a Ave-Maria.
161
114
“Abre a tua boca a favor do mudo, pela causa de todos que são designados à destruição”.
162
evento da Sociedade da Redenção, em que papéis de gênero eram atravessados por relações
coloniais, a disputa se dava através da religião. Finalmente, no Simpósio, gênero articulado à
religião e classe colocava missionárias e agentes de prevenção em uma posição inferior
enquanto o estado masculinista era performado em todo o seu poder e seu excesso.
Religião e secularismo são, nesse capítulo, categorias importantes para conceitualizar
outras diferenças fundamentais para a construção das políticas de enfrentamento a “crimes
sexuais”. Articulados a outras categorias da diferença, esses termos foram colocados em
pontos distintos das hierarquias em cada contexto. Em nenhum dos casos, inclusive no estado,
foi possível descrever as desigualdades sem levar em conta a religião.
Esse é um tema sem o qual torna-se difícil analisar as moralidades que sustentam as
políticas de enfrentamento a “crimes sexuais”. Muitas autoras interessadas no tema têm
puxado os fios desde tramas que reúnem grupos com interesses díspares nas quais a “religião”
é uma importante categoria da diferença. Eu me baseei nos argumentos de Elizabeth
Bernstein, Kamala Kempadoo e Julia O’Connell Davidson para construir a análise desse
capítulo.
Sobretudo, eu encontrei em suas pesquisas boas pistas para compreender as
continuidades e rupturas entre “religioso” e “secular” nessas esferas. Essa questão parece
fundamental para compreender o material empírico que apresentei aqui e os paradoxos
envolvendo a agência no enfrentamento a “crimes sexuais”.
Analisando os elementos que reúnem diferentes instituições no enfrentamento à
“escravidão moderna” nos EUA, Bernstein nota que há um “consenso historicamente
significativo em torno de ideais do capitalismo corporativo sobre liberdade e paradigmas
carcerários de justiça” (2007, p. 144).
Sobre as campanhas antitráfico no Canadá, Kempadoo aponta que os termos do debate
sobre a “escravidão moderna” e do “tráfico sexual” obliteram questões raciais importantes e
afirmam masculinidades e feminilidades “brancas que são, entre outras coisas, poderosas,
benevolentes e moralmente superiores (2016).
Julia O’Connel Davidson se concentra nos aspectos perversos da mobilização do
termo guarda-chuva “escravidão moderna”, que faz referência ao conteúdo moral da
escravidão transatlântica do século XIX, mas apaga os componentes estruturais de processos
de racialização ainda operantes.
Todas as autoras notam a ênfase na “liberdade” que atravessa esses discursos e que se
constitui como um pressuposto para a agência. Analisando as tensões que atravessam o
enfrentamento a “crimes sexuais” em diferentes esferas e, particularmente o caso de Emily, eu
164
chamo atenção para a ambiguidade da “liberdade” reivindicada por alguns desses agentes.
Levando em conta que a “liberdade” cristã é alcançada através do sofrimento, como ela se
diferencia, em esferas “seculares”, da “escravidão”?
A partir dessa pergunta, O’Connell Davidson retoma o contexto histórico que permitiu
a emergência da “escravidão moderna” como categoria guarda-chuva do discurso humanitário
contemporâneo e quais situações práticas puderam ser nele incluídas. A autora nota que, ainda
que a “escravidão moderna” seja colocada como um problema de “direitos humanos” e de
“liberdade”, interesses estatais contemporâneos na questão surgiram a partir de preocupações
com o crescimento do “crime organizado transnacional” nos anos 1990. Nesse sentido, o
“tráfico parecia ser um ataque simultâneo à pessoa e ao estado” (2015, p. 5).
Nesse contexto, emergiram ONGs transnacionais (muitas delas fundadas em
princípios religiosos) que passaram a promover ativamente a noção de tráfico de pessoas
como um problema crescente, o equivalente “moderno” do tráfico de escravos através do
Atlântico. De acordo com essa proposta, a “escravidão moderna” se inscreveria como uma
forma única e intolerável de “mal”.
Esse tipo de argumento moral, associado a movimentos religiosos e políticos
contestatórios, é facilmente assimilável pelos governos de estados liberais ricos (ou influentes
em contextos regionais, como o Brasil) e por corporações, uma vez que o “mal” a ser
combatido é compreendido algo como excepcional e incompatível com a ordem política e
econômica dominante.
Nas práticas discursivas de movimentos evangélicos como o Not For Sale, contar a
história da abolição da escravatura no século XIX tendo como foco a agência de determinados
ativistas, dando pouca ênfase às estruturas econômicas que a sustentavam115, garantiria a
continuidade entre os discursos religiosos sobre o “velho” e o “novo” abolicionismo e a
compatibilidade com discursos estatais (O'CONNELL DAVIDSON, 2015).
As múltiplas narrativas sobre a vida de Santa Bakhita, patrona do enfrentamento ao
tráfico de pessoas é ilustrativa nesse sentido. Elas representam Bakhita, a “garota escrava
africana” como uma personalidade política cambiante. Ela vai de “santa sofredora e mártir” a
115
Em Nefarious isso é particularmente visível.
165
(BERNSTEIN, 2007). É uma agência que se funda em ideais de amor em “liberdade”, que
assimilam o “sofrimento” desde que ele caiba no discurso cristão do “sacrifício”.
Dado que seu objetivo é a redenção humana, essa agência só se constitui mediante a
produção de outros mundos, “sombrios”, “em desenvolvimento”, “racializados”, onde impera
a “escravidão” e que precisam ser “libertados”. Nesses contextos, considerados moralmente
errados, o sofrimento por amor se torna “escravidão”.
No próximo capítulo, tratarei das múltiplas experiências de sofrimento desde bairros
periféricos de Fortaleza, explorando as suas relações com as políticas de enfrentamento a
“crimes sexuais” e também contra o genocídio negro. Transbordando essas categorias, o
sofrimento por amor nas margens parece ser assimilável ao cotidiano somente através de
outras linguagens que se inscrevem nos corpos e territórios.
167
Capítulo 4: Bairro/Favela
Graça me contou que sua rua estava muito diferente depois das obras. Antes, em frente
à sua casa havia outras casas e barracos onde estava “tudo o que não presta”. Essas casas
foram desapropriadas para a construção da avenida homônima ao projeto que deixou a sua
casa de frente para o mar. Mas a entrada de sua casa restava como um resquício do passado.
Ainda a caminho do Pirambu, Graça me contou com detalhes a história, como que
para me prevenir da “presença” fantasmática que eu iria dali a pouco encontrar. Daniel, um
jovem do bairro, fora assassinado nos degraus que dão acesso à casa de Graça. No dia de sua
morte, ela o viu pela manhã, quando saiu para ir à bodega em frente. Ele estava nos degraus
fumando maconha e tomando café. Tão novo, lembrou, mas não era bom para a sua mãe.
Em sua casa estavam sua filha, uma amiga e bebê dela. Nesse período de 2012, que
ela chamou de “época da bala”, sua síndrome do pânico estava pior. Assim que Graça pediu
“1 real de café”, ouviu os “papocos”116 de tiro. Seus degraus banhados de sangue, “massa
encefálica” espalhada pelo muro. “Graças a Deus” ela havia trancado o portão, algo que
nunca faz. Ela o viu tentando abrir, mas não acha que fosse possível ter escapado. O resultado
seria apenas ele morrer dentro de sua casa.
Não sabia que ele era marcado para morrer à época, e, quando me contava, ainda não
sabia porque tinha morrido, mas conhecia os dois jovens que o executaram. Quando a polícia
chegou, eles se mantiveram no local, olhando o movimento, sabendo que ninguém iria dizer
nada. Ainda “se tremendo”, Graça teve que pular o corpo para pegar sua filha dentro de casa.
Não conseguiu ficar lá. Ofereceu 10 reais para que uma colega limpasse os restos materiais de
Daniel. Mas, para Graça, Daniel continuava lá.
Ao chegarmos ao bairro, nós passamos pela casa das irmãs. Graça deixou o
pagamento do empréstimo, nós conversamos um pouco com as irmãs e seguimos a pé para a
sua casa. Caminhando por um beco escuro, percebi que Graça não enxergava bem e a segurei
pelo braço. Seguimos assim até sua casa, passando por uma rua de calçamento e chegando à
rua de areia que viria a se tornar a Avenida Vila do Mar.
Pelo caminho, cruzamos com várias pessoas conhecidas de Graça, a quem ela me
apresentou como sua cliente. Ao chegarmos a sua casa, fixo o olhar nos degraus de acesso e
ela me confirma que foi ali que morreu Daniel. Naquela ocasião, vi sua filha pela primeira
vez. A adolescente de pele escura e cabelos negros chamava atenção por sua beleza. Graça me
mostrou sua casa bem cuidada e de bom tamanho para ela e sua filha. Na parede havia a
116
Barulhos explosivos.
169
pintura de um peixe feita por um rapaz do bairro que “imitava” Chico da Silva117. Só faltava
resolver os degraus e fazer uma janela.118
Com bom humor, mostrou-me os dois colchões que, segundo ela, todos na favela
precisavam ter. Quando os tiros começavam, elas os colocavam na cozinha, um como cama e
o outro como escudo, para se proteger das balas. Na saída, quando elas me acompanharam até
a rua, Graça disse, em um tom de voz ao mesmo tempo nervoso e brincalhão, para sua filha
“sair de cima de Daniel”.
*
Neste capítulo, abordo as relações entre as políticas de enfrentamento a “crimes
sexuais” e as múltiplas experiências de “sofrimento” nos contextos dos bairros periféricos de
Fortaleza. Para isso, eu me concentro, por um lado, em narrativas como a de Graça, em que
“traumas”, “pedaços de corpos” e “fantasmas” são materializados na porta de casa, de modo a
tornar inteligível e doméstico o sofrimento. Por outro, procuro analisar como esses materiais e
imagens são mobilizados para articular “denúncias públicas”.
Nos contextos pesquisados, as categorias políticas “exploração sexual” e “extermínio
da juventude negra” foram utilizadas por movimentos sociais e missionários para reivindicar
direitos, enfatizando as desigualdades de gênero, sexualidade, idade, classe, raça e
nacionalidade, que atravessam formas específicas de violência e crime.
As narrativas exemplares de “exploração sexual” ou “extermínio da juventude negra”
são estruturadas segundo linhas descritivas que exigem a produção dicotômica de “vítimas” e
“agressores” (GREGORI, 1993). Contudo, essas posições dificilmente se enquadram nas
narrativas articuladas pelos sujeitos para transformar o evento traumático em conhecimento
cotidiano (ROSS, 2003; DAS, 2007).
Transitando entre a produção de “denúncias públicas” e o convívio cotidiano com o
“trauma”, é possível perceber que as desigualdades de gênero, sexualidade, raça, classe, idade
e nacionalidade podem ser reproduzidas mesmo em discursos nos quais seus efeitos violentos
são contestados. A ênfase na vitimização de pessoas como Graça, operada simultaneamente
em missões de enfrentamento a “crimes sexuais” e em ações feministas contra o genocídio
negro, deixam pouco espaço para que sua narrativa ganhe legitimidade como forma de
conhecimento.
117
Ver capítulo 2.
118
As casas tradicionais de Fortaleza são finas e compridas, construídas com paredes conjugadas, de
modo que normalmente não há janelas.
170
mais delimitar o permitido e o proibido, ou mesmo dizer a cada instante o que se devia fazer.
A proposta seria promover a circulação e, sobretudo, separar a boa circulação da má, num ir e
vir onde a “liberdade” seria elemento fundamental.
Poucos equipamentos significam isso de forma tão explícita quanto a avenida
homônima ao projeto, construída à beira-mar com calçadão e ciclofaixa, ocupando o lugar
onde outrora “só tinha becos”. Contudo, a ênfase nessa forma de governo não substitui as
outras. Ao contrário, provoca uma inflação nos códigos jurídicos-legais e nas intervenções
disciplinares.
Esses movimentos se inscreveram no material etnográfico. A pesquisa foi iniciada já
na fase final de execução da primeira etapa do projeto, quando a maior parte das remoções já
havia sido realizada e o clima do bairro era de satisfação com os resultados da obra. A maior
parte dos antigos moradores foi instalada em conjuntos habitacionais ou através de “aluguel
social”119 na mesma região. Isso fazia com que as redes de parentesco e vizinhança fossem
mantidas apesar das remoções.
Houve, contudo, um incidente que se tornou central na configuração das disputas entre
diferentes instâncias de governamentalidade e dos limites das categorias de denúncia pública
para representar situações de “sofrimento” na favela. Mais uma vez, foi Graça quem me
trouxe os detalhes da trama.
Com a esperteza e brincadeira que lhe eram características, em finais de maio de 2016,
ela começou, da seguinte forma, a sua narrativa: “sabe o Vila do Mar? Como é lindo?”. “Pois
veja só”: àquela altura, dois moradores dos barracos desapropriados não tinham recebido sua
indenização. Ravi, amigo de Graça, era um deles. Ele resolveu armar um barraco no “meio”
da obra como forma de protesto. Fez isso sozinho, mas seus antigos vizinhos concordaram
que ele era “cidadão” e estava “na razão”. Quando os operários da obra chegaram ao local, no
dia seguinte, quiseram botar seu barraco abaixo. Foi aí que os “meninos”, traficantes locais,
interviram e disseram que se mexessem no barraco eles iriam matá-los e jogar seus corpos na
praia. Isso foi suficiente para que os operários se amedrontassem e deixassem o barraco onde
estava. Um profissional da prefeitura foi ao acampamento de Ravi negociar, mas não teve
sucesso. Chamaram então a polícia então para resolver o problema. Ravi, seus vizinhos e os
“meninos”, todos juntos, foram alvo da repressão.
119
Segundo o site da prefeitura de Fortaleza: “O Programa Locação Social (PSL) consiste na garantia
de um auxílio financeiro mensal – aluguel social – às famílias que se enquadrem em situações
previstas na Lei Municipal 10.328 /2015 e não disponham de meios materiais para adquirir ou alugar
moradia. O valor atual do aluguel é de R$ 420,00” (PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA,
2016).
173
120
Soube depois que os próprios “meninos” prefeririam abafar o incidente.
174
“viviam se matando” naquele momento passaram a “andar juntos” e se reunir nos “bailes de
favela” que se multiplicaram no bairro121.
A “pacificação” afetou de diversas maneiras esta etnografia. Durante
aproximadamente seis meses de 2016 as restrições à mobilidade feitas a moradores/as de
áreas rivais foram suspensas. Eu, Graça e outras pessoas consideradas “cidadãs”
experimentamos um clima de segurança inédito. Desde o início porém, Graça ponderava que
não se podia acreditar muito nessa paz e que quando ela acabasse, seria pior. Dito e feito.
A Sociedade da Redenção se configurava também como uma instância importante das
políticas de gestão da vida no bairro. A família era a “máquina social” (ROSE, 1996) através
da qual esse governo era exercido. As prerrogativas de salvação das almas proposta nos
primeiros anos da missão no Pirambu foram aos poucos abandonadas. Como visto no capítulo
anterior, a religião configurou-se como uma categoria através das quais eram representadas
disputas sobre as intervenções missionárias nas relações de parentesco.
A Sociedade da Redenção, inserindo-se na longa história de gestão governamental do
bairro e no emaranhando de grupos e instituições que ali atuavam, estabeleceu-se sobretudo
como uma esfera de governamentalidade. Sua gestão sobre a população do Pirambu se dava
na tensão entre a necessidade de governar de acordo com a moralidade e a ordem e a
necessidade de restringir esse governo em prol da “liberdade” e da economia (ROSE, 1996, p.
39).
O Oitão Preto também foi “pacificado” no início de 2016. Contudo, essa forma de
governo, assim como o “estado”, não é homogênea. Seus efeitos no contexto “desordenado”
dessa comunidade no interior do bairro Moura Brasil foram bem mais sutis. A expressão
“zoológico de ratos”, representa de forma eloquente essas diferenças relacionadas à sua
“guetização”.
O Oitão Preto é representado atualmente sobretudo pelo uso, venda e conflito em
torno da droga. Sua área é toda composta por becos e caminhos sinuosos pelos quais a maior
parte dos demais moradores do bairro diz não circular. Há um conjunto de casas dedicadas
exclusivamente ao uso de drogas, conhecido como “cidade fantasma”, e uma das vias que lhes
dá acesso é chamada pelas crianças de “rua da morte”. É comum que seus becos sejam
utilizados para preparar as porções de drogas que serão vendidas ali ou em outros lugares.
121
Moradoras do bairro contaram, admiradas, que em ruas onde não havia esses eventos, eles se
tornaram comuns. Em comunicação pessoal, Leonardo Sá, professor e pesquisador do Laboratório de
Estudos da Violência da UFC, explicou que, em outra favela da cidade, moradores têm percebido que
a paz resulta em grandes lucros para os comerciantes de entorpecentes, que circulavam “livremente”
nos bailes cada vez mais frequentes.
175
é a família. Um segundo instrumento é o seu recorte, além de sua especificação em uma “série
de domínios de objetos para saber possíveis” (FOUCAULT, 2008, p. 103).
A “obra” das Irmãs da Redenção teve como “público alvo” inicial as prostitutas
acometidas por doenças venéreas internadas em um hospital da Sardenha, na Itália. Uma vez
consolidado o acolhimento a essa categoria de sujeitos em diversas casas na Itália, a espiral de
sujeitos atendidos ampliou-se através de uma especificidade crescente. A categoria “mulher”
foi central na conceptualização de novas iniciativas, porém ela não era imprescindível:
122
No documento está escrito “vítimas de...”.
178
por “abuso e exploração sexual, situação de rua e abandono familiar” passam a ser
condicionantes subordinados à categoria central da “idade” (SOCIEDADE DA REDENÇÃO,
2011).
Também nos projetos direcionados a “adolescentes e jovens em situação de risco” –
realizados na Casa Mãe Creuza e no Centro Cultural Chico da Silva – a categoria central de
articulação política é a “idade”. “Classe”, “escolaridade” e “inserção familiar” se tornam
qualificativos nesse caso (SOCIEDADE DA REDENÇÃO, 2013).
Somente no projeto voltado para “mulheres em situação de vulnerabilidade, vítimas de
violência” a categoria “mulher” reganha centralidade. Essas “mulheres” são qualificadas
como migrantes do interior do Ceará em um contexto de desenvolvimento econômico
desigual do Pirambu:
O povo desse bairro tem uma história de lutas pelo reconhecimento de seus
direitos fundamentais e, enquanto algumas família conseguiram alcançar um
certo bem estar, outras ainda sofrem com a falta de políticas adequadas e
com a violência institucional que permeia várias dimensões da sua vida,
inclusive a doméstica. A questão familiar é, sem dúvida, um dos problemas
gritantes do bairro, tendo as crianças, os adolescentes e as mulheres como as
maiores vítimas (SOCIEDADE DA REDENÇÃO, 2013, p. 1).
Considero que esse texto complexifica os elementos abordados nos outros projetos,
historicizando as desigualdades de gênero, idade e classe. Esse projeto também dialoga com a
metodologia de movimentos feministas do Ceará ao propor realizar um “processo de
conscientização” que combinaria o curso profissionalizante de corte e costura às oficinas
temáticas sobre direitos, cidadania, relações interpessoais e familiares, ecologia humana,
autobiografia, além de terapias comunitárias, vivências de cuidado consigo mesma e de
autoestima. No ano de 2016, algumas dessas oficinas foram promovidas por militantes
feministas do Fórum Cearense de Mulheres.
Além do projeto Em defesa da vida, no Pirambu, as Irmãs da Redenção se dedicam às
atividades da Pastoral Carcerária no Ceará. Elas atuam sobretudo junto às “mulheres presas”,
mas atendem também às companheiras de homens em privação de liberdade porque
consideram que elas seriam também “aprisionadas” pela situação do marido. Nesse contexto,
a categoria central de intervenção é também “mulher”. Como explicou uma das religiosas, na
sua luta “mulher tem que ter vez e ter voz, tanto na vida prática quanto espiritual” e por isso,
179
123
Diário de campo, 8 de março de 2016.
124
Diário de campo, 22 de julho de 2015.
180
Os missionários do Iris acreditam que as pessoas foram criadas para “muito mais” que
“seguir regras” em nas igrejas. “Cada um de nós foi criado com o potencial de fazer história e
transformar o mundo” (FANSTONE, 2016, p. 18). Todos poderíamos ser como Jesus e
participar de suas glórias, mas para isso teríamos também que participar de seus sofrimentos.
Nesse sentido, a Missão Iris não procura “restaurar” somente as pessoas que estariam
“presas” na “escravidão” do século XXI, que se materializaria na miséria, drogas e
prostituição (FANSTONE, 2016, p. 79). Sua proposta é receber Deus de volta em nosso meio:
trazer seus ensinamentos para as escolas, sua cura para os hospitais, sua verdade para a
política, sua justiça para os tribunais, seu amor incondicional para os filmes de Hollywood,
sua adoração para a música, seus princípios para os negócios, seus fundamentos para as
famílias e seu espírito de volta para a igreja (2016, p. 12).
Para a Missão Iris, o mundo inteiro precisa ser restaurado. Isso só vai acontecer
quando as pessoas passarem a caminhar com Jesus. O Oitão Preto e a Praia de Iracema foram
escolhidos para serem os primeiros lugares de “instauração” do Reino de Deus. Justamente
por sua “escuridão” eles permitiriam que a luz de Jesus brilhasse mais forte.
Assim, a circunscrição de territórios de abordagem delimitados faz mais sentido que a
delimitação de categorias de sujeitos. A presença de Deus deve tomar todas as instituições e
pessoas em um determinado contexto. As condições históricas de produção do Oitão Preto na
181
forma de “gueto” fazem dele um local ideal para a execução desse projeto de transformação.
Na “matemática de Deus” a instauração do reino no Oitão Preto, antes de qualquer outro
lugar, materializa a fórmula que diz que “os últimos serão os primeiros” (FANSTONE, 2016).
A Praia de Iracema, percebida como “enclave” da prostituição transnacional em
Fortaleza, é produzida discursivamente de maneira similar. Contudo, a circulação intensa
através dos bares e boates e a inexistência de limites fixos nesse contexto leva à produção de
diferentes estratégias125.
“Mulheres” e “homens” são categorias fundamentais para a prática do evangelismo. A
separação por “sexo” fundamenta a vida na base, as ações no Oitão Preto e na Praia de
Iracema, assim como a Escola de Missões promovida todos os anos pela Missão Iris em
Fortaleza.
Todas as pessoas devem ser salvas, mas o “sexo” indica as formas de “escravidão
moderna” às quais as pessoas estaríamos mais “vulneráveis”: meninas e mulheres se
tornariam prostitutas e/ou sejam vítimas de “crimes sexuais”, meninos e homens sucumbiriam
à relação com as drogas, seja pelo uso ou venda. Nessas divisões, o “sexo” de uma pessoa é
aquele que lhe teria sido denominado por Deus através da “natureza”.
125
Ver capítulo 7.
126
Esse coletivo feminista católico, posiciona-se a favor da descriminalização do aborto. No Ceará,
uma de suas principais representantes é também figura central no Grupo Agar. Entre as religiosas da
Rede, pelo menos uma se expressou em concordância com essa pauta.
182
Feminista Nazaré Flor sob liderança do Fórum Cearense de Mulheres (FCM), entidade que
tradicionalmente organizava os atos nesta data em Fortaleza.
No dia 25 de janeiro foi realizada a segunda reunião na Casa Feminista. Eu
acompanhei-a com duas mulheres “leigas”, brancas e de meia idade do Grupo Agar,
representando a parceria Agar-Rede. Esse foi um momento importante de negociação do meu
pertencimento a diferentes esferas de atuação feminista. Minha afiliação primeira era o
Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, do qual faço parte como doutoranda na Unicamp. A
atuação “ao lado” da Rede e da Sociedade da Redenção, e a forma como eu corporificava as
categorias da diferença naquele contexto, contudo, situou-me, muitas vezes, como
“representante” das irmãs.
Por mais que a minha intenção ao participar daquelas atividades fosse conhecer as
continuidade e rupturas na atuação de missões católicas e movimentos feministas, muitas
vezes, a minha atuação naquele contexto construiu as pontes mesmas que eu queria analisar.
Diante da impossibilidade de traçar limites claros entre a minha própria atuação feminista e a
das demais mulheres na construção do ato, eu escolhi participar o mais ativamente possível
dessas ações e esperar encontrar nelas elementos consistentes para a análise.
Pouco antes de chegar ao local da reunião, quando ainda estava procurando o número
da casa, li em uma pichação a frase “I love sovaco cabeludo”. Adivinhei que já estava bem
perto. Na casa de portões roxos havia muitos desenhos e inscrições nas paredes. Ao entrar, vi
que as mulheres do Agar já estavam presentes, mas a reunião ainda não havia começado.
Junto às ativistas negras e jovens do Fórum Cearense de Mulheres elas conversam sobre ações
nos presídios femininos, que era um tema de interesse em comum entre coletivos feministas
negros e os movimentos católicos.
Da reunião participam pelo menos 15 mulheres que faziam parte de diferentes grupos
jovens, periféricos e/ou negros, a maior parte delas com educação universitária. Eles eram o
Instituto Negra do Ceará (Inegra), Tambores de Safo, Rosas de Luta, Café com Feminismo e
Coletivo das Doulas. Além desses grupos, foram mencionadas ativistas da Marcha das
Mulheres Negras e da CUT que não estavam presentes naquele dia. Foi pontuado que a
Associação de Prostitutas do Ceará foi convidada à participar, mas não respondeu ao convite.
Para além da pluralidade buscada pelo FCM na construção do 8 de março daquele ano,
expressa nos convites a movimentos de mulheres e feministas marcados por diferenças de
raça, classe, sexualidade, idade e religião, as militantes enfatizaram sua oposição à presença
de órgãos governamentais e de membros de partidos. A participação de movimentos mistos,
183
tais como o Levante Popular e a Crítica Radical, foi aceita desde que seus membros
masculinos não fizessem falas durante o ato principal.
Como aquela era a segunda reunião de preparação para o 8 de março, alguns pontos já
tinham sido deliberados. O objetivo do ato daquele ano seria “falar para as mulheres negras e
das periferias”, desenvolvendo uma série de ações que culminariam num ato público em
alusão ao 8 de março, idealizado para acontecer um bairro periférico. As militantes elegeram
como tema daquele ano o “extermínio da juventude negra e como isso afeta as mulheres
negras”.
Esse tema me chamou atenção pelo modo como ele dialogava com as narrativas de
Graça sobre sofrimento, articulando categorias diferentes daquelas mobilizadas pelas Irmãs da
Redenção na análise da violência nas periferias e nos presídios. A partir das distinções entre
as categorias de intervenção, outros elementos de continuidade e ruptura puderam ser
analisados.
A líder da Sociedade da Redenção analisava que as diferenças entre ações católicas e
feministas nos presídios se situavam no uso da categoria “raça”. Segundo ela, o Inegra e o
FCM seriam muito ligados à questão da “raça”, que seria o elemento principal de articulação,
enquanto que a Pastoral Carcerária teria nas “mulheres presas” sua categoria de atuação
fundamental, notando que havia muitas mulheres brancas presas. Apesar dessas diferenças,
ela acreditava que era importante que houvesse um grupo que olhasse diretamente para a
questão da “raça”127.
Já para uma participante do FCM, a principal diferença na atuação desses coletivos
feministas em relação à Pastoral Carcerária, seria a centralidade da “religião” para estes. As
jovens feministas negras consideravam a líder da Sociedade da Redenção “legal”, mas, às
vezes, sentiam constrangimento ao “falar mal da igreja” para as mulheres nos presídios ao
lado das irmãs128.
Ambas categorias são importantes para conhecer das relações entre esses coletivos nas
prisões e em outros contextos. Contudo, acredito que as diferenças fundamentais entre eles
passam pelas formas de produção de narrativas marcadas por gênero a partir das margens em
torno das categorias políticas “exploração sexual” e “extermínio da juventude negra”.
Mobilizando através delas elementos como “experiência”, “vitimização” e “sofrimento”,
diferentes “vozes” emergem através de suas ações.
127
Diário de campo, 17 de fevereiro de 2016.
128
Diário de campo, 26 de janeiro de 2016.
184
“Exploração sexual” é uma categoria política que emergiu em Fortaleza no final dos
anos 1980 a partir da mobilização de múltiplas instituições movidas por interesses diversos.
Neste capítulo, gostaria de aprofundar a análise sobre a articulação da “exploração sexual”
entre movimentos de mulheres e feministas em Fortaleza.
No final dos anos 1980, as Irmãs da Redenção estavam inseridas numa extensa trama
de governamentalidade no combate à “prostituição infantil” das quais participavam coletivos
de mulheres com inclinações diversas. Dentre eles destaco a Associação de Prostitutas do
Ceará (Aproce) e do Conselho Cearense dos Direitos da Mulher (CCDM).
A Aproce era uma das principais entidades atuando no enfrentamento a “crimes
sexuais” nos anos 1990 (CÂMARA MUNICIPAL DE FORTALEZA, 1993; DIÓGENES,
1998). Segundo Adriana Piscitelli, em comunicação pessoal, durante sua pesquisa sobre as
economias sexuais de Fortaleza no início dos anos 2000, a Aproce era a entidade que mais se
movimentava pela Praia de Iracema e Beira Mar.
No complexo campo do enfrentamento às diferentes categorias que eu reúno sob o
termo de “crimes sexuais” – “prostituição infantil” depois reelaborada como “exploração
sexual (comercial) de crianças e adolescentes”, “turismo sexual”, “tráfico de mulheres”,
depois chamado “tráfico de pessoas” e “abuso sexual” – a relação da Aproce com grupos
católicos e seculares envolvia parcerias e tensões.
A organização das prostitutas do Ceará em uma associação no final de 1990 se deu em
meio a conflitos. Desde os anos 1980, a Pastoral da Mulher Marginalizada e a Associação do
Ninho realizavam a ações de assistência direcionadas às prostitutas, sobretudo na região do
Farol. Essas ações tiveram um papel ambíguo na organização das prostitutas pois, se por um
lado elas estimulavam a sua participação política, por outro elas buscavam a “superação” de
prostituição, percebida como necessariamente degradante (LEITE, 1992).
No final da década de 1980, com a atuação do Projeto de Educação e Prevenção às
DST/Aids, realizado em zonas de prostituição de Fortaleza com o financiamento da ONG
francesa Inter Aide, as prostitutas passaram a receber formações técnicas que as capacitaram
para a autogestão em uma associação. Contudo, também a parceria com essa ONG se tornou
problemática quando as prostitutas cansaram da “interferência” desses sujeitos exteriores nas
suas deliberações (CARLOS e SÁ, 2011).
O Ninho e as Irmãs da Redenção foram contra a criação da Aproce129. Mesmo diante
dessas divergências, a Sociedade da Redenção e Aproce atuaram em parceria no
129
Entrevista, 20 de janeiro de 2016.
185
130
Entrevista, 22 de julho de 2015.
186
das fundadoras do Centro Popular da Mulher (CPM), a ação desse grupo, formado por
mulheres de diferentes classes sociais, mobilizava ações sobretudo em torno de casos de
assassinatos de mulheres em contexto de violência doméstica. Em razão da grande
impunidade relacionada a esses crimes, as mulheres do CPM fizeram denúncias, participaram
de julgamentos e organizaram atos na demanda por aparelhos repressivos especializados na
“questão da mulher”, as muito conhecidas Delegacias Especializadas de Defesa da Mulher.
É interessante notar, nesses primeiros anos de mobilização, como são articuladas as
questões relacionadas aos “crimes sexuais”. As categorias a ela relacionadas são construídas
contemporaneamente em torno da sexualidade, que se tornou elemento central na violação de
direitos de mulheres, crianças e adolescentes. Esses sujeitos, por sua vez, são construídos em
um continuum de “vulnerabilidades” que geraria a vitimização.
Esse quadro interpretativo, porém, não é o único possível. Já em 1983 o Centro
Popular da Mulher mobilizou uma denúncia de “tráfico de mulheres” em Fortaleza, que
recebeu grande cobertura midiática. Chama atenção que, à época, esse caso foi compreendido
no guarda-chuva da “violência contra a mulher”131. Nesse enquadramento, a categoria central
de vitimização é a “mulher” e o contexto das agressões é a casa.
A produção dos “crimes sexuais” em Fortaleza é marcada pelas primeiras denúncias
de “prostituição infantil”, articuladas no final dos anos 1980. O Conselho Estadual de Direitos
da Mulher, criado em 1986132, reunindo diferentes lideranças dos movimentos de mulheres133,
é apontado por algumas ativistas como um dos principais articuladores dessa denúncia.
A importância dessa pauta dentro dos movimentos feministas, contudo, é percebida de
maneiras divergentes. Tais diferenças são determinadas, sobretudo, pelo quadro interpretativo
que informava a articulação política das mulheres nos anos 1980. Em algumas delas, os
“crimes sexuais” são percebidos como importante foco da mobilização “feminina e
feminista”:
131
Entrevista, 19 de junho de 2017.
132
Na lei estadual de 11.170 de 2 de abril de 1986, que sanciona a criação do Conselho Cearense de
Direitos de Mulher no Ceará, sua finalidade consta como “promover medidas e ações que possibilitem
o exercício dos direitos da mulher e a sua participação no desenvolvimento social, político, econômico
e cultural do País” (CEARÁ, 1986).
133
No documento de formação do CCDM, de 23 de maio de 1986, sua composição conta com
representantes da União das Mulheres Cearenses, Movimento Feminino Pela Anistia, Centro Popular
da Mulher, Movimento Feminino do MR-8, Federação dos Bairros e Favelas de Fortaleza, Grupo
Cultural SEARA e União Metropolitana dos Estudantes. Outras representantes são parlamentares e
professoras universitárias.
187
134
Entrevista, 11 de novembro de 2015.
135
Casa Feminista Nazaré Flor, 3 de julho de 2016.
188
juventude negra. O impasse foi solucionado quando ficou acordado que, nas turmas de ballet,
seriam oferecidas duas oficinas: uma sobre sexualidade e uma sobre o extermínio. Esse debate
indica a percepção sobre a descontinuidade entre as duas pautas.
Analisando o material de campo e bibliográfico sobre o extermínio da juventude
negra, compreendo que o debate proposto para aquele 8 de março por movimentos feministas
tinha como proposta construir ações políticas fundadas na articulação das categorias da
diferença. O extermínio da juventude negra era um tema que recusava leituras
“universalistas” sobre gênero, raça ou classe, ao mesmo tempo em que afetava de maneira
transversal as experiências dos sujeitos nas margens.
A depender da ocasião, a expressão “extermínio da juventude negra” podia ser
qualificada pelo adjetivo “favelada” ou pelo complemento “e como isso afeta a vida das
mulheres negras”, enfatizando a proposta interseccional daquele debate. Esses termos
remetem às análises sobre o tema produzidas ao longo de pelo menos meio século de
cruzamentos entre produção intelectual e ativista negra no Brasil.
Já na década de 1970, Abdias do Nascimento denunciava, ou melhor, pretendia
denunciar O genocídio do negro brasileiro (1978) no Colóquio do Segundo Festival Mundial
de Artes e Culturas Negras, realizado em Lagos, na Nigéria, em 1977. Seu texto, rejeitado
pelo “establishment” do evento, foi publicado em inglês e distribuído durante o Colóquio,
depois reeditado na mesma língua ainda em 1977 e, no ano seguinte, publicado em português.
Nesse texto, Nascimento analisa o genocídio do negro no Brasil no cruzamento entre
relações de intimidade/domésticas, conceitos acadêmicos e práticas de extermínio físico.
Desse modo, o genocídio se constitui como o ideal de “desaparecimento inapelável do
descendente africano, tanto física quanto espiritualmente, através do malicioso processo de
embranquecer a pele negra e a cultura do negro” (1978, p. 43)
Assim, o genocídio seria articulado no Brasil principalmente através do conceito de
democracia racial que promoveria a miscigenação física, através da “exploração sexual da
negra” (1978, p. 69), e espiritual, pelo embraquecimento da cultura:
(...) a história não oficial do Brasil registra o longo e antigo genocídio que se
vem perpetrando contra o afro-brasileiro. Monstruosa máquina ironicamente
designada “democracia racial” que só concede aos negros um único
“privilégio”: aquele de se tornarem brancos, por dentro e por fora. A
palavra-senha desse imperialismo da brancura, e do capitalismo que lhe é
inerente, responde a apelidos bastardos como assimilação, aculturação,
miscigenação; mas sabemos que embaixo da superfície teórica permanece
intocada a crença da inferioridade do africano e seus descendentes (1978, p.
93).
189
(...) seu homem, seus irmãos ou seus filhos são objeto de perseguição
policial sistemática (esquadrões da morte, “mãos brancas” estão aí matando
negros à vontade; observe-se que são negros jovens, com menos de trinta
anos. Por outro lado veja quem é a maioria da população carcerária deste
país) (1984, p. 231).
Nesses textos, que são importantes referências para os movimentos feministas negros,
as questões de exploração sexual e extermínio da juventude negra estão profundamente
imbricadas. Para Nascimento, é através da exploração sexual que se materializa o genocídio.
Já em Gonzales, as desigualdades raciais e seus apagamentos são produzidos em relações de
intimidade e domesticidade que podem incluir, além da violência, o desejo e o amor.
Ao longo dos anos 1990, as intelectuais negras brasileiras avançaram na análise das
intersecções entre gênero, raça e classe, apontando para outras expressões da “perversa lógica
machista e racista presente nas relações afetivas interetnicas” (CARNEIRO, 1995, p. 547) e
para os desafios à produção de conhecimento a partir do “conjunto de experiências e ideias
190
compartilhadas por mulheres afro-americanas” posicionadas de modo diverso, mas que, por
sua marginalidade peculiar, teriam uma “visão distinta das contradições nas ações e
ideologias no grupo dominante” (BAIRROS, 1995, p. 463).
Os temas que ficaram conhecidos como “estupro colonial” e “extermínio da juventude
negra” ganharam autonomia dentro do debate racial feminista brasileiro. Em um livro que
reúne artigos publicados durante sete anos no jornal Correio Braziliense, Sueli Carneiro
discute esses temas da seguinte forma:
Nesses artigos, publicados ao longo dos anos 2000, quando a autora “clama contra o
genocídio” ela se refere diretamente aos assassinatos de pessoas negras, sobretudo àqueles
perpetrados por policiais. Ela distingue esse processo de extermínio físico do “epistemicídio”,
que se refere aos processos de desvalorização do conhecimento de pessoas negras e de sua
capacidade cognitiva concomitante à imposição de um “embranquecimento cultural” (2011, p.
93).
É a partir dessas formulações recentes que o tema do “extermínio da juventude negra”
ganha centralidade entre os movimentos negros. No documento elaborado no I Encontro
Nacional de Juventude Negra, realizado em Lauro de Freiras, na Bahia, em 2007, a pauta do
extermínio (físico) da juventude negra ganhou centralidade:
Aos 21 anos de idade, quando há o pico das chances de uma pessoa sofrer
homicídio no Brasil, pretos e pardos possuem 147% a mais de chances de ser
vitimados por homicídios, em relação a indivíduos brancos, amarelos e
indígenas (IPEA; FBSP, 2016, p. 22).
O fio da vida interrompida de forma violenta costuma deixar marcas que materializam
a ausência. Como linhas pontilhadas, indicando espaços que deveriam estar preenchidos, elas
conectam o Pirambu ao Oitão Preto e ambos à Praia de Iracema. Conectam também as
feministas negras às missionárias e ambas às pessoas atendidas pelas missões. Como uma
linha transversal, ela perpassa todos esses contextos, mas o faz de formas específicas. Essas
especificidades se relacionam com as categorias da diferença corporificadas por aqueles/as
que morrem e aqueles/as que choram suas mortes e também com as formas de governo
acionadas em cada contexto.
Em uma outra esfera, estão os “crimes sexuais”. Essa categoria, de qualidades também
fantasmáticas, materializou-se raras vezes durante a pesquisa de campo. Contudo, justamente
por seu caráter etéreo e descolado das situações materiais, ela permaneceu a “assombrar” as
representações marcadas por gênero no contexto estudado. De maneiras diferentes, esses
fantasmas exercem uma “agência espectral” (CHO, 2008) sobre o mundo dos vivos, seus
territórios, seus corpos e suas narrativas (DAS, 1996).
Desde a primeira vez que fui ao Oitão Preto pude perceber o lugar fundamental
ocupado pela morte nas relações entre missionárias/os e as pessoas que moravam na favela.
192
Naquele dia, acompanhei Larissa, uma missionária de pele clara nascida em uma periferia do
Centro-Oeste do Brasil. Ela me guiou pelos becos, onde a sujeira, o mau cheiro e a
precariedade das construções me causaram muito desconforto e quase me paralisaram. Sua
confiança me ajudou a ir em frente e, ao entrar nas casas, perceber as táticas acionadas pelas
moradoras do Oitão para proteger seu lar daqueles elementos desagradáveis. O incenso na
porta de uma das casas que visitamos, disfarçando o fedor que vinha da rua, me deu um novo
ânimo.
Assim seguimos, por cima de tábuas e pulando poças de lama e lixo, até uma casa de
um cômodo e um banheiro onde moravam um casal e suas três crianças. No meio da conversa
sobre conflitos familiares, piolhos, vacinas e drogas, que afligiam o cotidiano de Odete, a
dona da casa, esta tomou um tom delicado e perguntou como Larissa estava enfrentando o
assassinato do seu pai. Fazia apenas dois meses e Larissa ainda estava abalada com a notícia e
também com a falta de suspeitos no caso. Odete, por sua vez, pediu orações para a sua irmã,
que estava “na droga”, pesando apenas 40 quilos. A experiência das duas mulheres no
sofrimento as aproximou e suspendeu momentaneamente o disciplinamento e a hierarquia que
marcavam as visitas missionárias.
Esse tipo de aproximação aconteceu com frequência durante a pesquisa de campo.
Contudo, essas cenas de devastação experimentadas em primeira pessoa não eram algo que
atingia a todos as/os missionárias/os. Elas restringiam-se às/aos brasileiras/os pobres e eram
mais acentuadas entre as pessoas de pele mais escura. Tios, irmãos, cunhados e amigos de
missionários/as foram assassinados em circunstâncias relacionadas ao crime e/ou droga que
revestiam de inevitabilidade essas mortes.
Essas tragédias pessoais tão comuns ganhavam cores diferentes em cada contexto. No
Pirambu, dizer que um grupo armado (policiais ou traficantes) tinha levado alguém para a
“beira da praia” era um indicativo das torturas e/ou assassinatos que aconteciam com
frequência naquelas margens. Já no Oitão Preto as histórias de assassinatos não eram tão
frequentes, uma vez que, por seu aspecto confinado, as leis de “não derramar sangue” na
favela eram mais facilmente aplicadas. Quando havia mortes no bairro, eu as conhecia pelas
crianças, que costumavam correr para ver os corpos e depois relatavam os detalhes do caso
num misto de espanto e interesse.
Na Praia de Iracema, espancamentos, torturas e mortes eram acontecimentos pontuais
que se tornaram mais frequentes com a “pacificação”, sob a forma de “punições
193
exemplares”.136 O assassinato de Xico Canuto, dono do Bicho Papão, o “bar do reggae”, que
há mais de 20 anos era ponto de apoio para garotas de programa, “gringos” e pesquisadoras
que circulavam pela noite do bairro, foi um evento traumático e um divisor de águas. Sua
morte também foi representada através do signo da “droga”.
Em Fortaleza e em outras cidades do Brasil, colar à vida o signo do “perigo” ligado ao
crime e/ou à droga tinha o efeito narrativo de esvair o seu direito de existir sem ser violada
(MISSE, 2010; SÁ, 2011; FARIAS e VIANNA, 2011). Mas não é à qualquer vida que o
“perigo” se cola (AHMED, 2004). A produção de corporalidades “perigosas” passa pelas
articulações de gênero, sexualidade, classe, raça, idade e nacionalidade. Os corpos inscritos
pelo sofrimento provocado por essas mortes, também.
Mortos e vivos partilhavam experiências de sofrimento e o conhecimento particular
que delas emergem (HOOKS, 1991). Reconhecer a dor do outro no próprio corpo era uma das
poucas maneiras de dar-lhe legitimidade (DAS, 1996) em um contexto em que as perdas não
eram consideradas como tais (BUTLER, 1997; 2009).
A construção dessas experiências como um tema comum nas favelas era a proposta
dos coletivos feministas negros no 8 de março de 2016 ao trazer a categoria política
extermínio da juventude negra. Analisando os “traumas” particulares de forma sistêmica,
esses movimentos propuseram uma política para além dos universalismos. Contudo, a
generalização da figura da vítima do extermínio traz outros limites à mobilização popular.
Voltarei a esse ponto no tópico seguinte.
As ações missionárias diante dessas mortes, que aconteciam em todos os lados, eram
importantes ao prover conforto à família, mas ambivalentes em relação à garantia da vida
eterna. Se a pessoa assassinada “vivia no crime”, só no céu poderíamos saber se ela se
arrependeu à tempo de se tornar filha de Deus (FANSTONE, 2016, p. 84). Adicionando a
figura do diabo àquela do crime e/ou da droga na produção de corpos “perigosos” e “errados”,
a Missão Iris contribuía para a estigmatização daquelas mortes e a produção de
descontinuidades com aqueles que a testemunharam.
Por outro lado, as ações missionárias direcionadas para mulheres e meninas que
viviam nas favelas reconheciam sobre elas o espectro permanente dos “crimes sexuais”,
colando a elas o signo da vitimização. Desse modo, exploração sexual era a categoria política
mais utilizada pelas missões nas denúncias e intervenções realizadas nesses contextos.
136
Analisarei esse tema no capítulo 5.
194
violão. Deixou tudo para trás por conta de sua mãe. Não se queixava, porém. Dizia não fazer
questão.
Ela sempre resistira à violência materna. Certa vez, preferiu quebrar o celular que sua
madrinha havia lhe dado a entregá-lo para sua mãe, que queria vende-lo. Diante dessa
narrativa de rebeldia, as missionárias ponderaram sobre o motivo de sua mãe querer vendê-lo.
Graziela disse que não sabia. Mais tarde, eu soube que sua mãe era “drogueira”. Devia ser por
isso, mas Graziela preferiu calar.
Na sorveteria conversamos sobre a profissão que Graziela iria exercer e também sobre
a vida missionária. Ela se divertiu no passeio, adorou o sorvete de leite ninho com nutella e
fez várias selfies conosco. No caminho de volta, porém, uma tristeza a abateu. Ela falou sobre
as frustrações provocadas pela nova vida na casa da avó.
Até os 6 anos de idade, Graziela morara naquela mesma casa. Mudou-se depois que
seu pai fora assassinado “na porta de casa”. No dia do seu aniversário de 13 anos, ela se
lembrava com clareza dos momentos que antecederam a morte do pai. Tinha passado a noite
acordada com ele. Às 5 horas da manhã ele a mandou ir dormir e saiu. Pouco tempo depois,
ela acordou com um barulho que arrombou a porta. Quando saiu já viu “todo mundo”
chorando. Seu tio o levou de carro para o hospital, mas ele não resistiu. Mais tarde, ela foi
com todos para a Igreja Universal, onde aconteceu o velório, sem entender o que estava
acontecendo. Sua avó lhe disse para beijar seu pai, o que ela fez, mas enfatiza que não
entendeu e, por isso, não chorou. Ela não gostava de passar pelo local onde seu pai foi morto.
Só o fazia para ir até a Fábrica de Sonhos porque era inevitável.
Poucos dias depois do passeio, soubemos pela avó que Graziela estava internada em
um hospital infantil com dores de cabeça e no braço. Imediatamente fomos visitá-la.
Chegando lá, ela estava numa área externa do hospital, nos esperando. Explicou que fez
muitos exames, de sangue, raio x e tomografia, mas que todos os médicos achavam que era
“trauma” de sua mãe.
Ela não estava nada bem em casa, mas tampouco gostava do hospital. Ela não
conseguia dormir ali, tinha medo. Exatamente naquele dia completavam três meses que não
via sua mãe. Pensava muito em seu irmão mais novo, filho de sua mãe com o padrasto. Ela
sentia saudades porque o amava muito, explicou.
Logo as missionárias especularam sobre “o que esse padrasto fazia”. A simples
menção a essa figura acionou nas jovens uma série de conhecimentos acerca dos “crimes
sexuais” que as direcionaram a ponderar sobre uma violência que não estava presente na
narrativa de Graziela, a despeito de todas as outras situações violentas que ela relatou.
196
Naquele dia, as missionárias oraram pela cura de sua dor no braço, sua dor de cabeça e para
que ela encontrasse a capacidade de perdoar e assim curar a sua dor espiritual.
Na visita seguinte, Graziela já estava em casa, tinha passado um total de 9 noites no
hospital. Voltou para casa com a prescrição de fluoxetina, um antidepressivo, e a indicação de
procurar um pastor que orasse por ela. Sua avó seguiu as recomendações médicas e Graziela
já estava melhor.
O contato com as missionárias, e também comigo, diminuiu bastante depois do seu
período de convalescença. As narrativas sobre Graziela, seus “traumas”, seu corpo paralisado
e suas alucinações, foram, a todo momento, enquadrados em chaves interpretativas diferentes
daquelas fornecidas por ela. Todas concordavam que ela estava com depressão. Os médicos
atribuíram essa doença ao “trauma” de sua mãe. As missionárias ponderavam que poderia
haver um “trauma” do padrasto. Contudo, o “trauma” que ela identificava, a linha que
pontilhava a ausência da vida de seu pai, violentamente interrompida a poucos passos de sua
casa, parecia não fazer sentido para as pessoas “de fora” que a escutavam.
Elas faziam muito sentido, porém, entre moradoras de favelas de Fortaleza, para quem
o lugar exato de uma morte violenta permanece assombrado por aquelas lembranças. Fazia
especial sentido entre moradoras do Oitão Preto, que lembravam com nitidez a morte do pai
de Graziela, “traumática” para toda a comunidade. Todo mundo conhecia a sua história. “Foi
maldade de traficante ruim”. Mataram-no a pauladas em frente da casa da mãe.
O pai de Graziela era traficante. Sua morte não foi investigada. A violência percebida
por ela e suas vizinhas não bastava para que sua morte fosse reconhecida numa relação entre
agressor-vítima. A narrativa de sofrimento feita por Graziela não gerou efeitos diretos de
“cura” (ROSS, 2003). No seu caso, colocar em palavras o “trauma” fez escalar os seus efeitos
corporais. Simultaneamente, a classificação e o tratamento de seu sofrimento físico e psíquico
como uma “doença” obliterou a tragédia que o havia provocado (KLEINMAN, 2006).
A epistemologia colonial moderna utilizada pelas missionárias e pelos médicos é
construída sobre estruturas binárias e universalizantes através das quais a narrativa de
Graziela só pode ser assimilada se retirada de sua complexidade: o sofrimento pela morte do
pai relacionada às drogas, a materialidade dos fantasmas na porta de casa, a violência ao
mesmo tempo feminina, cruel e inexplicável de sua mãe e a insignificância masculina do seu
padrasto nessa situação.
A narrativa de Graziela, assim como a de Graça, reinsere a pessoa morta em suas
relações, restitui seu “lugar” usurpado entre os vivos. Não é preciso para isso negar o
“envolvimento” com crime ou drogas. Há em suas falas o esforço de resgatar o direito ceifado
197
à vida através do reforço das relações através das quais a pessoa morta se inseria no mundo.
Com a droga, a despeito dos crimes. Porque a linguagem nem sempre é suficiente para
expressar esse “não-saber que conhece”, os mortos se inscrevem em seus corpos sintomáticos
de “trauma” (DAS, 1996). Acredito que esse “conhecimento subjugado” de Graça, Graziela e
muitas outras moradoras das favelas de Fortaleza consiste em uma forma de “violência
epistêmica” (SPIVAK, 2014).
Perceber que há formas de conhecimento que se inscrevem nos corpos e territórios,
mas que raramente são articuladas em categorias políticas e assim permanecem “ao lado” das
narrativas é o primeiro passo para opor-se a essa violência. Sem esse ponto de partida básico,
onde reconhecemos que a voz que fala no texto é a da pesquisadora, pode-se chegar a certas
conclusões aberrantes, como aquelas argumentadas por Nancy Scheper-Hughes (1992) sobre
amor e morte numa favela do Nordeste brasileiro.
A autora concluiu que as mães que viam a morte de seus bebês sem chorar eram
atravessadas por uma “cultura” e uma “ética” radicalmente diferente que normalizava a
prática da “negligência mortal” das crianças. Não nego diferenças culturais ou éticas entre os
sujeitos da pesquisa, mas acredito que o maior limite, nesse caso, estava em reconhecer os
outros tipos de linguagem articuladas pelas mães sobre essas mortes desde um lugar
subalterno. Linguagens que não podiam ser elaboradas em categorias políticas, mas que se
inscreviam nos corpos.
Por acreditar que “fome, morte, abandono e perda” tinham consequências em
maneiras de “pensar, sentir, agir e estar no mundo” (1992, p. 26), mas não notar nos limites
que se impunham à expressão do conhecimento, Scheper-Hughes pensou “dar voz” a esses
sujeitos e, ao fazê-lo, reproduziu o mesmo tipo de argumento civilizatório que sustentava a
gestão das populações numa política da fome.
Aos seis anos, Graziela viu a morte de seu pai sem chorar. Porque não a entendeu. Aos
treze anos, ela expressou a injustiça daquela morte não chorada através de seu corpo e suas
memórias, mas tampouco foi ouvida. Violência epistêmica é justamente ignorar o saber
afetivo e corporal produzido desde as margens que permanece inacessível à pesquisadora.
Essa violência epistêmica se verifica inclusive nas interpretações missionárias. Mesmo
havendo casos em que missionárias e pessoas atendidas pelos projetos nasceram no mesmo
contexto, corporificaram as categorias da diferença de forma similar e viveram dramas
similares, as desigualdades entre esses sujeitos foram delimitadas quando missionárias
acionam uma episteme hegemônica, fundada em moralidades dicotômicas, para “dar” sentido
às narrativas.
198
137
Uma espécie de picolé servido em um saco plástico de formato cilíndrico.
138
A expressão deriva de “maloca” e faz referência, nessa fala, ao ato de se esconder.
200
E como Graça tem história para contar. Ela conheceu as irmãs com 18 anos, prestes a
ter a sua filha. Segundo ela, não era vítima de nada. Ao mesmo tempo, explicou que ninguém
vai para o abrigo só porque quer, tem que ser encaminhada pelo Conselho Tutelar. No seu
caso, o que a motivou a buscar esse órgão foi o medo de ser presa. Em confidência, Graça me
contou que estava vivendo com um homem cuja irmã era traficante. Depois que uma segunda
irmã do seu companheiro foi presa, Graça teve certeza que ela seria a próxima e decidiu que
precisava sair daquele local.
Depois de ter a filha, ela começou a trabalhar numa cooperativa de beneficiamento de
castanha de caju. Ir. Fiorenza havia comentado comigo que era um ambiente muito perigoso e
pediu que Graça não fosse mais. Garantiu que a ajudaria até encontrar uma nova ocupação. Só
então Graça se mudou definitivamente para a Casa Mãe do Salvador, onde morou por cinco
anos, tempo que “precisou” para se estruturar.
Quando ouvi sobre a cooperativa de castanha, imaginei que a irmã considerasse aquele
trabalho muito desgastante física e mentalmente, como apontado na bibliografia especializada
(DRUMOND, 2007). Graça depois me explicou, porém, que o perigo existia porque, no
serviço que fazia, as mulheres trabalhavam com facas pequenas e muito afiadas e que havia
muitas brigas. Certa vez ela mesma brigou de faca com outra castanheira. Foi aí que Ir.
Fiorenza interveio.
Como alternativa profissional, Ir. Fiorenza sugeriu que Graça fizesse um dos cursos
oferecidos pela Sociedade da Redenção. Graça lembrava que inicialmente não queria fazer o
curso, pois achava que só sabia mexer com castanha. Logo, porém, aprendeu o novo ofício e
fez foi ensinar as outras.
A história de Graça nunca é contada no contexto missionário. São feitos comentários
evasivos sobre como ela teve uma juventude “complicada” e como sua sexualidade era
“desregrada”. Isso me levou a crer, no início, que ela poderia ser uma das vítimas de “crimes
sexuais” atendidas elas irmãs.
Aprendi, porém, que as coisas eram bem mais complexas. Graça teve seu primeiro
filho aos 14 anos. Ele foi criado por sua mãe e até hoje mora com avó. Graça gostava de andar
nos forrós, beber e namorar, mas não considera que foi vítima de violência sexual. Sua
primeira gravidez, nova como era, foi fruto da desinformação. Na segunda, o que a levou para
a casa das irmãs foi o medo da violência policial. Os “crimes sexuais”, tais como eles são
imaginados pelas missionárias, não fizeram parte de suas experiências.
Houve casos de jovens atendidas que eram exploradas sexualmente. Uma delas foi
iniciada no sexo comercial por uma madrinha aos 11 anos. Usava o dinheiro que ganhava para
201
quando foi usar o trocador de fraldas depois de Graça, passou kiboa139 no móvel. Graça, ao
ver aquilo, “voou” em cima dela e as suas se engalfinharam numa briga feroz que a deixou
dormindo junto com a irmã por um tempo. Além disso, nada mais podia ser feito, elas não
tinham para onde ir.
Essa racialização difusa, fundada na cor e seus matizes, tem na sua indefinição alguma
margem para negociação contextual da “raça”, ao mesmo tempo em que não falha em
imprimir desigualdades. Independente da ascendência, que no caso da filha de Graça era
majoritariamente indígena, no trocador de fraldas a menina fora racializada como negra. Essa
forma de viver a raça seria um sintoma das relações raciais profundamente desiguais
brasileiras (NASCIMENTO, 1978). Segundo Carneiro, em seu artigo A dor da cor:
139
Metonímia de marca para o produto água sanitária.
203
ocasião para exibir um cartaz que o definia como “o pastor do Povão”. Outros candidatos do
bairro também penduraram faixas.
O “mestre de cerimônias” anunciava de vez em quando que o prefeito “estava
chegando”. As 20 horas ele apareceu. Caminhou entre as pessoas que lotavam a Vila do Mar
posando para fotos, beijando crianças e até dançando forró ao som da banda que já estava no
palco. Tudo devidamente registrado em câmera. Seguiu para falar com os candidatos à
vereador, dando apertos de mão e posando para fotos. Em seu discurso ele enfatizou sua
competência na entrega dessa etapa da obra sem dívidas e com poucos “contratempos”.
A população compareceu em massa ao evento. Algumas pessoas trabalhavam, outras
passeavam, conversavam e dançavam. Nessa época, a “pacificação” ainda estava vigente. Não
presenciei nenhuma situação que lembrasse a praça de guerra das semanas anteriores e fui
embora caminhando sozinha, por volta das 21 horas, sentindo-me segura com os avisos que
proibiam roubo de “cidadão” na favela.
Naquele dia eu deveria ter ido à Casa Feminista para uma reunião, mas diante do
avançado da hora eu preferi ir direto para casa. Na noite seguinte haveria o encerramento do
curso de corte e costura da Sociedade da Redenção. Algumas ativistas que participaram das
formações com as mulheres do corte e costura disseram que compareceriam à festa e eu
esperava vê-las lá.
Quando cheguei à Mãe Creuza as mulheres estavam alvoroçadas pelos acontecimentos
da noite anterior. A festa da prefeitura acabou as 22:15 e logo “ligaram” uma música num
“paredão” de som140. A polícia mandou circular, mas já tinha juntado muita gente em torno do
carro e as pessoas não se dispersaram na mesma hora. Diante disto, a polícia “veio pra cima”
e todo mundo correu. Ficou somente um taxista, que disse que não devia nada e por isso não
ia correr.
A polícia pegou esse taxista e bateu até não poder mais. Já iam matar, mas uma
mulher “pulou em cima” do policial, conseguindo evitar o pior. O taxista não era do Pirambu,
mas todo mundo conhecia. Os “meninos” achavam que ele era “gente boa”, as mulheres
notavam que ele era um “coroa bonito”. Sua “cara” ficou “toda preta”, não abria nem os
olhos.
Revoltados, os “meninos” pegaram lixo, pneu e botaram fogo em tudo. A polícia
começou a atirar. Mas os meninos não têm medo. Atiraram de volta e não recuaram nem
quando a polícia chamou reforços. Através da nuvem de fumaça os dois lados atiraram até a
140
Caixas de som potentes instaladas em carros ou reboques utilizadas para animar os “bailes de
favela”.
205
hora em que alguém gritou que “pegou” um tiro numa mulher. Nesse momento, a população
foi toda “para cima” dos policiais e, dessa vez, foram eles que saíram correndo.
A confusão só acabou às 2 horas da manhã. Diante daquilo, as moradoras do bairro
decidiram fazer um protesto. Prepararam cartazes e arrumaram pneus que dali a pouco iriam
queimar na rua principal do bairro. Eu e as mulheres do corte e costura decidimos participar.
Mas enquanto ainda estávamos preparando a festa de encerramento começamos a ouvir as
sirenes da polícia. Todas ficaram apreensivas e ligaram para outras mulheres, avisando que a
polícia chegava. Lamentamos que a festa iria acabar antes mesmo de começar.
Nem as mulheres da Casa Feminista nem as Irmãs da Redenção estavam presentes.
Por telefone, uma das irmãs me disse que estava vendo de casa a “confusão”. As mulheres do
corte e costura comentavam que “os meninos dessa vez acertaram”, “eles são do crime, mas
agiram bem”, “fizeram o que tinha que ser feito”.
Quando as irmãs chegaram, porém, vimos que elas não tinham entendido que aquilo
era um protesto e não tinham intenção de participar. As mulheres da Casa Feminista não
apareceram, eu não sei dizer por qual motivo. Aos poucos nossos ânimos exaltados foram
minguando. Vendo os policiais que carregavam armas enormes montados em motos nós não
tivemos coragem de ir. Algumas mulheres foram para casa assim que comeram, outras ainda
ficaram pela Mãe Creuza, conversando ou esperando alguém que as acompanhasse.
Houve um momento em que cada uma falou algo sobre o curso e as coisas que
levavam dele. A maioria queria comprar máquinas de costura para trabalhar em casa e
enfatizava as amizades que fizeram naquele grupo. Muitas comentaram que gostaram muito
das formações dadas pelas mulheres da Casa Feminista e comentaram que sentiram a sua
falta.
No dia seguinte eu ouvi os comentários sobre a guerra do dia anterior. A troca de tiros
na principal avenida do bairro foi noticiada nos jornais policiais que a descreveram como uma
“briga entre facções”. Em um dos vídeos sobre a ação era possível ver mulheres correndo com
cartazes na mão, mas não foi feita nenhuma referência a eles. Um deles dizia: “A ditadura
acabou, mas a polícia não sabe”.
É muito difícil separar nessa narrativa os limites entre a ação das mulheres, que
promoviam o protesto com seus cartazes, e a dos “meninos”, que o faziam com suas armas.
Diante da violência policial, essas categorias de sujeitos agiram em conjunto, motivadas por
um interesse em comum. Mais que isso, os laços de amor, parentesco e vizinhança que as
ligam evidenciam o caráter contextual e poroso dessas fronteiras. Em momentos de embate
são todos “população”, que corre ou bota para correr a polícia.
206
Contudo, “acertando” ou “errando”, para os que viam desde fora, os “meninos” eram
compreendidos sempre como “bandidos”. As dimensões políticas de suas ações, que naquele
contexto coincidiam com os interesses das mulheres do bairro, foram completamente
invisibilizadas.
Nem as Irmãs da Redenção nem as mulheres da Casa Feminista se juntariam àquele
protesto que, pela “complexidade” dos sujeitos que o compunham, não permitia o
acionamento da categoria política extermínio da juventude negra. E é aí que reconheço os
seus limites.
A mobilização contra o extermínio da juventude negra se constrói sobre a dicotomia
entre agressor e vítima, sendo esta marcada pelas desigualdades raciais. A imagem mobilizada
nas denúncias é aquela da polícia agressora contra a vítima inocente. Em torno dessa imagem,
que tem uma recorrência significante, são construídas ações e políticas públicas importantes.
Contudo, ela não oferece recursos analíticos para assimilar os atos de sujeitos vivos que
resistem à vitimização de modo ativo e violento.
A ação dos “meninos” no protesto acima descrito é outro tipo de resposta ao genocídio
praticado com a conivência do estado contra a população negra. Contudo, ela não é só isso.
Os “meninos” não gostam de polícia nem de político. No dia da inauguração, depois de
terminada a festa, quando viram que a polícia estava “embaçando” para ir embora, eles
procuraram logo um jeito de botá-los para fora.
Suas ações vão de encontro com o aprisionamento de sua imagem como vítimas ou
agressores, algo que a mobilização do extermínio da juventude negra não permite
compreender. Denunciando as mortes e calando sobre os vivos são reproduzidas outras
formas de opressão, pois “uma das características do racismo é a maneira pela qual ele
aprisiona o outro em imagens fixas e estereotipadas” (CARNEIRO, 2011, p. 70).
*
Em suas diferenças, as categorias políticas exploração sexual e extermínio da
juventude negra têm em comum a reprodução da lógica dual entre agressor-vítima. Isso
implica que seu acionamento reforça processos de vitimização ou criminalização que não dão
espaço para perguntar “o que significa isso?” e a partir daí traçar uma história (SPIVAK,
2014).
A ênfase da exploração sexual na violência que estaria implícita em relações em que
os sujeitos são atravessados por desigualdades extremas, fixadas na imagem da intimidade
entre “gringo” e “vulnerável”, opera na invisibilização de situações corriqueiras e bem mais
comuns que são os abusos sexuais perpetrados por pessoas “conhecidas”.
207
Capítulo 5: Guerra
Ainda na Leste, nos deparamos com um uma confusão de polícia na rua. Não
entendíamos o que estava acontecendo, até que avistei o ônibus carbonizado do outro lado da
pista, na altura do Oitão Preto. Havia muitas viaturas e também um caminhão do corpo de
bombeiros. A situação parecia controlada. Ainda assim, fiquei aliviada por minha tia não estar
conosco no carro. Ela certamente ficaria muito preocupada com a minha presença ali e talvez
insistisse para que eu voltasse para casa.
Seguimos até o Pirambu. Deixei Graça em uma esquina, de onde ela “desceu” para sua
casa e fui ao Boleiro fazer minhas compras. Na saída, quando caminhava para o carro, cruzei
com um grupo de policiais em motocicletas. Eles estavam encapuzados e vestidos com uma
farda toda preta. Por um momento, fiquei paralisada, senti um frio na espinha. Tentei dissipar
aquela sensação, pensando que aquela estética de horror, de cabeças sem face, “não era para
mim”.
Segui para o Chico da Silva, onde as meninas do ballet fariam apresentações para
arrecadar dinheiro. Lá, encontrei várias pessoas conhecidas. Nenhuma sabia nada sobre o
ônibus. Ao final da apresentação, fui com Germana à casa da costureira, que era também sua
parente. Soubemos que ônibus também foram queimados em outras partes da cidade.
Apesar disso, nós tentávamos continuar com nossas atividades cotidianas, lutando para
preservar o ordinário da vida. O horror vinha em ondas, provocado pela sobreposição de
imagens dos corpos sem forma: as jovens decapitadas, os homens armados sem rosto e os
veículos coletivos transformado em carcaças carbonizadas.
Havia alguns meses, essa atividade de preservar o ordinário e restringir o horror
paralisante era praticada diariamente por moradoras das periferias e, eventualmente, por mim.
Pessoas que viviam no Pirambu, Moura Brasil e Praia de Iracema buscavam expressões
produzidas em outros contextos para analisar os eventos recentes: “horror”, “terrorismo”,
“guerra civil” e “refúgio” eram palavras que pareciam fazer sentido, em oposição àquelas
tradicionalmente acionadas para falar sobre crime.
*
Neste capítulo, falarei sobre a articulação entre a política financiada pela droga e a
política missionária de enfrentamento a “crimes sexuais” nos bairros de periferia de Fortaleza
em tempos de guerra. Essas instancias de governamentalidade marcadas por gênero, apesar de
fundadas em moralidades diferentes, têm efeitos convergentes ao moldar corpos, marcar
territórios e cercear ou potencializar mobilidades.
São corpos que emergem em esferas públicas constituídas pela sua exclusão
(BUTLER, 2015) e, por isso, raramente ocupam as instituições estatais de representação. Sua
210
política se faz pela colonização do estado em suas margens, desfazendo a sua materialidade e
produzindo formas criativas de ação (DAS e POOLE, 2004).
Analiso nesse capítulo as continuidades e diferenças entre as políticas nas margens,
situadas nos limites do “teatro da legitimidade e do espaço público” (BUTLER, 2015, p. 85),
com as políticas de enfrentamento a “crimes sexuais” missionárias. Estas emergem de
processos de “desestatização das formas de governo” (ROSE, 1996) como especialistas que
conseguem resolver as aparentes contradições entre a necessidade de governar em favor da
moral e da ordem e restringir o governo em nome da economia e da liberdade.
Eu deliberadamente evito a categoria crime na descrição dos sujeitos políticos
financiados pela droga. A escolha por política como categoria analítica central se funda nos
limites que a aparição e ação desses corpos nas margens colocam à delimitação do que é
político e do que é estado (BUTLER, 2015).
Após revisar parte da bibliografia referente ao crime no Brasil, percebo a constante
necessidade de distanciamento e ressalvas desses textos em relação às moralidades criminais,
provocada por “possibilidades de criminalização destas etnografias” (AQUINO e HIRATA,
no prelo) ou desmoralização de quem as escreve. Como se houvessem lados que precisassem
ser escolhidos. Esse é um capítulo que aborda os problemas das dicotomias. Não posso
começar por elas.
Não proponho que a emergência de sujeitos políticos financiados pela droga nessas
margens é a única opção de ação pública em territórios da desigualdade, tais como o Pirambu
e o Moura Brasil, ou são a eles exclusivos. Nos capítulos 2 e 4 desta tese uma multiplicidade
de estratégias políticas a partir dessas margens foram descritas. O seu caráter político, ainda
que negado em alguns momentos históricos141, é majoritariamente reconhecido atualmente.
Há uma relevante tradição do pensamento social, inaugurada por Hannah Arendt
(1970), que percebe na violência um “caráter antipolítco” inerente. A autora utiliza violência
como uma categoria analítica, definida pelo seu caráter instrumental. A violência como uma
ferramenta, ao ser implementada, multiplicaria o vigor natural dos indivíduos ao ponto de
substituí-lo (p. 87). Para Arendt, no seu limite, a violência prescindiria da coletividade,
enquanto que o poder se fundaria na ação coletiva.
Em seu ensaio sobre a violência, Arendt está particularmente preocupada com a
“glorificação” da violência que ela percebe em Os condenados da terra, de Franz Fanon.
Segundo ela, o autor considera que é “através da fúria louca que os condenados da terra
141
Como a ação do Partido Comunista durante boa parte do século XX, por exemplo.
211
podem ser transformar em homens” (p. 28). Ela percebe a atualização desse pensamento nos
movimentos Black Power nos campus das universidades dos Estados Unidos, que seriam os
responsáveis por fazer aparecer uma “violência séria” nas rebeliões estudantis (p. 38). Usando
argumentos de “racismo reverso” (p. 124) e de “reação da polícia” (p. 151) autora ontologiza
a violência como uma prática racializada.
Essa oposição entre política e violência foi mobilizada para analisar a violência
criminal que se inscreve em territórios urbanos marcados por categorias raça e classe
desvalorizadas no Brasil. Na sua forma arquetípica da favela, esses territórios são analisados
através de dicotomias ontologizantes entre “trabalhadores” e “bandidos” (ZALUAR, 1994),
conceitualizações de formas de sociabilidade violenta delimitadas aos “bandidos”
(MACHADO DA SILVA, 2008) e subjetividades criminais que lhes seriam próprias (MISSE,
2010).
Esse pressuposto ético sobre a violência e seus efeitos sobre a análise (mesmo que
“positiva”) do crime, é contraposto no Brasil por pesquisadoras/es que, seguindo os passos de
Vera Telles (2010), buscam perceber a porosidade das fronteiras entre o legal e o ilegal nas
margens da cidade, questionando o imaginário dicotômico que funda ontologias distintas. As
continuidades e limites entre a mobilização política e aquela classificada como criminal foram
tema das teses de Gabriel Feltran (2008), Daniel Hirata (2010) e Karina Biondi (2009; 2014).
Nesta tese, analiso as formas cotidianas através das quais corpos nas margens se
inscrevem na esfera pública, entendendo-as como “políticas no sentido simples de que elas
estão questionando formas convencionais de distinção entre o público e o privado”
(BUTLER, 2015, p. 90). Para isso, inspiro-me nas análises feitas a partir dos feminismos
interseccionais no Brasil de Maria Filomena Gregori (1993), Adriana Piscitelli (2006; 2013),
Natália Padovani (2015), Bruna Bumachar (2016), Roberto Efrem Lima Filho (2017), Larissa
Nadai (2018), entre outras.
Não se trata de negar a importância do crime como categoria analítica, mas
simplesmente de destituí-lo do status de categoria central nessa análise. O que me interessa
nesse capítulo é a produção de sujeitos políticos nas margens financiados pela droga
(criminalizada no contexto brasileiro) e a importância assumida pelo que eu chamei de
“política nas margens” na produção de governamentalidades nos contextos estudados.
O pensamento de Arendt é importante porque, em sua pressuposição analítica, ela
aponta para um problema empírico relevante: as relações mutuamente constitutivas entre
poder e violência. Apesar de discordar de sua análise sobre o movimento Black Power e sobre
Fanon, vale a pena aprofundar o seu argumento sobre o autor.
212
5.1. Paz
O período ao qual eu e muitas pessoas com quem eu conversei durante a pesquisa nos
referimos como “paz” foi resultado de uma impressionante política pública de gestão da vida
implementada por diferentes grupos financiados pela droga em escala local, regional e
nacional, os quais se convencionou chamar de “facções”. A política instituída pelas facções
em Fortaleza ficou conhecida popularmente como “pacificação”.
A “pacificação” representou nesta pesquisa um evento histórico singular a partir do
qual foi possível jogar uma nova luz sobre os temas em análise nesta tese. Ela instituiu em
Fortaleza uma forma de governo nas margens, ostensivamente fundada em elementos
políticos convencionais: cidadania e legitimidade. A violência percebida na atuação dos
grupos na esfera pública foi restringida e os “inimigos” internos ou externos foram
delimitados. Como nas “sociedades normalizadas” descritas por Foucault, esses inimigos não
eram pensados como adversários políticos, mas como perigos à população (2005, p. 306).
Concentro-me aqui nas formas públicas de sua instituição, discutindo como essas
políticas potencializaram ou dirimiram a circulação marcada por gênero de pessoas de
corporalidades diversas dentro do espectro da cidadania. Nesse discussão, ganham
importância as formas feminilizadas de alteridade à cidadania nas economias cotidianas e suas
relações com as políticas de guerra nas margens.
214
5.1.1. “Pacificação”
“paz que não é paz”, uma “paz superficial”. Quando acabasse seria pior. Essa era a mesma
opinião de Graça. Ela não “acreditava” na paz.
Mas, acreditando ou não, a paz era tornada pública como obra do PCC e do CV que
junto com a facção regional Família do Norte (FDN) e a facção local Guardiões do Estado
(GDE), desde as cadeias, pacificaram Fortaleza para que os “bandidos” parassem de “se
matar” e os lucros da droga aumentassem. Foi aí que o Pirambu se tornou “todo CV”. Isso se
manteve, até o momento em que escrevia, com algumas instabilidades.
Essas informações e os efeitos da “pacificação” apareceram na esfera pública e foram
reproduzidos nas mídias, tornando-se de conhecimento público nos contextos afetados. As
irmãs, através de seu trabalho na Pastoral Carcerária, traziam mais detalhes, explicando as
ordens que vinham dos presídios. Nas suas falas, a atuação do CV era enfatizada por sua
maioria numérica nas penitenciárias do Ceará.
Desde o primeiro mês e mesmo nos seus eventos iniciais, a relação de continuidade
entre a paz e guerra já era visível. Graça compareceu com sua filha ao evento que ficou
conhecido como Bolo da Paz. Nele foram distribuídas fatias de bolo do Boleiro à população.
Contudo “mal elas chegaram”, tiveram que se “emalocar” por conta dos tiros que foram
disparados.
O acionamento do Boleiro para legitimar a paz no Pirambu diz muito sobre esse
evento. O Boleiro tem uma história de ascensão social valorizada no bairro. Comenta-se que
ele começou só com uma barraca, vendendo fatia de bolo e suco na Rua Nossa Senhora das
Graças. Hoje tem dois prédios nessa rua que são dos mais “chiques” do bairro. Além disso, os
bolos do Boleiro são deliciosos. Resulta dessa combinação entre culinária, tradição e ascensão
social que o Boleiro é um dos comércios mais importantes e respeitados do Pirambu. Nunca
foi assaltado. Quando morre gente em frente, é fora do horário de funcionamento. A
precariedade desse respeito não deve ser confundida com a sua irrelevância.
Porém, o assassinato de um DJ após um baile de favela “na altura” do Boleiro
interrompeu a paz ainda em março. A crueldade no trato com o corpo foi comentada: foi
arrastado, tentaram escondê-lo, mas a família conseguiu recuperá-lo para enterrar. Os motivos
da morte não eram claros. Tinha-se notícia de que ele era muito “mulherengo” e, como
analisou uma moradora do bairro e parente da vítima, “mulher e objeto têm dono”. Ele
poderia ter mexido com quem não devia. O assassinato, em sua brutalidade e falta de
explicação, era prova da “mentira” da paz: “por isso que eu nunca acreditei na paz”.
Acreditar, ou “botar fé” na paz, era o principal tema de debate entre as pessoas que
moravam em territórios pacificados. Exprimindo a sua descrença na paz, muitas pessoas
216
buscavam descontruir discursivamente a sua legitimidade. Contudo, a fala é apenas uma das
linguagens que usamos no cotidiano. Foi pelas andanças, transpondo com nossos corpos as
antigas fronteiras territoriais que, legitimando nosso direito de ocupar espaços públicos,
legitimamos também a paz.
E aqui eu quero, como Tim Ingold (2011), ressaltar o ato de andar. Andando através
do encontro dos meus pés com diferentes superfícies – asfalto, calçamento, entulho, areia,
tábua – e levando em conta a minha especial tendência a tropeçar neles, pude perceber os
outros suportes que eram necessários para ocupar os espaços públicos. Todas as vezes que
tropecei, e não foram poucas segundo meus diários de campo, mãos de desconhecidos/as se
estenderam para que eu não caísse e continuasse andando. Que nós andássemos em terrenos
desconhecidos, perigássemos cair e encontrássemos uma mão para nos segurar era a
materialização de uma coabitação com o desconhecido há muito desejada pela população
desses bairros (BUTLER, 2015).
Mas a política da “pacificação” era outra. Era uma política instituída sobre a escolha
daqueles com quem se queria coabitar e, portanto, nos termos de Arendt (1999) lida por
Butler (2015), uma política genocida. Não diferente do resultado do atrelamento dos direitos
humanos à soberania de um estado.
A “pacificação” se materializou enquanto política pública para a população dos
territórios afetados sobretudo com a potencialização da circulação de alguns sujeitos,
considerados cidadãos e cidadãs, simultânea à fixação e repressão de outros, que eram
marcados pela alteridade moral do “errado”.
Em parceria ou englobados pelas facções, os “meninos” dos bairros gozaram nesse
momento de uma legitimidade sem precedentes e aumentaram seus lucros. Eles passaram a
exercer um poder de polícia combinando proteção e repressão. A circulação de “cidadãos e
cidadãs” parecia aumentar na mesma medida das punições de quem estava “pelo errado” (SÁ,
ACCIOLY e RIOS, 2016).
Como pontuou em abril de 2016 um educador social que acompanhava os efeitos da
“pacificação” desde um bairro no extremo leste do litoral de Fortaleza: “o crime organizado
não tem uma lógica humanista tanto assim”. Humanismo não é um bom critério para avaliar
os efeitos das políticas de “pacificação”, assim como não o era para descrever as relações de
mercado estabelecidas durante a Copa em 2014. Mas talvez isso não seja resultado de uma
inadequação do evento esportivo de 2014 ou da política nas margens de 2016.
A noção secular de humanismo se constitui como um paradoxo no qual o cidadão-
soldado deve abrir mão de sua própria vida para que uma forma particular de vida
217
comunitária possa ser reproduzida. Ele deve fazer um sacrifício que, por sua vez, pode causar
“danos colaterais” (ASAD, 2007, p. 84). Muitas vidas entram nessa conta, considerada
humanista. Se analisada segundo esses critérios, a morte do “menino-soldado” na produção da
“pacificação”, que busca a continuidade da vida nas favelas em oposição às ações de um
“estado assassino” que, repetidas vezes, promove operações de guerra contra esses territórios
construídos como “outros” através do racismo (FOUCAULT, 2005), pode ser enquadrada
como um gesto estritamente humanista.
Não existe motivo, além das desigualdades raciais, para opor moralmente a política de
guerra desde as margens da política de guerra desde o estado. Ambas são formas
masculinistas de restrição da humanidade do outro (BUTLER, 2015). Concordo com Talal
Asad na conclusão de que:
Por mais que nós tentemos distinguir entre formas de matar moralmente
boas e moralmente más, nossas tentativas são atravessadas por contradições
e essas contradições constituem uma parte frágil da nossa subjetividade
moderna (2007, p. 2).
Trem: Bala: CDR142. Se roubar cidadão na favela #vai pro saco! (Escrita em
um muro do Pirambu).
142
A sigla CDR indica a área do Pirambu conhecida como Caldeirão.
143
Achocolatado em formato individual que, assim como outros produtos alimentícios eram doados à
Sociedade da Redenção e distribuídos na comunidade.
219
Enquanto conversávamos um quarto jovem, de pele morena, olhos claros, estatura alta
e sotaque “de fora” parou para nos cumprimentar. Ele se apresentou como primo de um dos
rapazes e como chefe do local. Ele andava pela Praia de Iracema como um político, solícito e
confiante, pronto para resolver qualquer problema.
Nós falamos sobre o conflito recente entre os “meninos” e a polícia na Nossa Senhora
das Graças, no Pirambu. Eu tinha estado no bairro mais cedo e, junto com uma moradora,
assustei-me com as fogueiras: seriam barricadas? Não, aquelas eram fogueiras em
homenagem a São João. Como distinguir? O comentário era que os confrontos continuariam.
Na Praia de Iracema, os rapazes diziam que estavam sabendo, mas não tinham medo.
Confiavam na aliança dos “meninos” contra a polícia.
Um dos jovens se apresentou como “vendedor de ervas”144 da região. Sua família
morava na Barra do Ceará e ele tinha participado de muitas atividades na ONG católica
Pequeno Nazareno. Ele me explicou que, como saíra da prisão havia algumas semanas, estava
sabendo “de tudo” da “pacificação”. Todos tinham que levar ordem para os bairros e ganhar
pela droga ou pela paz. PCC e CV, associados a FDN e GDE queriam que se fizesse “tudo
pela droga, sem assaltar cidadão”. Quem roubasse cidadão na Praia de Iracema perderia a
mão. Se fizesse de novo, morreria. A guerra agora era contra a polícia, garantia. A ordem
geral: “matar policial”.
É importante comparar a fala desses “meninos” sobre a “pacificação” com as
mensagens públicas reproduzidas acima. Elas coincidiam na ênfase da proteção aos cidadão e
cidadãs, assim como nas duras punições que seriam aplicadas àqueles/as que desafiassem as
novas regras.
Os “meninos” que eu acabava de conhecer expressavam o orgulho de quem está “pelo
certo”. Eram eles que traziam a ordem para os bairros e garantiam minha segurança enquanto
cidadã. A assimetria da nossa relação se dissipava e eu me tornava sua “cumade”. O jeito de
político do “primo” e chefe que nos cumprimentou corporificava essa nova “moral”.
A fala dos “meninos” diferia, porém, dos recados ao público ao enfatizar o “outro
lado” da “pacificação”: a guerra contra a polícia. As diferentes formas de guerra declarada,
aquelas “fratricidas”, anteriores à “pacificação”, a guerra contra a polícia durante a
“pacificação”, e as guerras entre as facções posteriores à “pacificação” serão tema da parte
seguinte deste capítulo. Nessa parte eu me concentrarei na análise do par proteção/controle
144
Eufemismo comum para maconha.
220
Guattari, “onde cada elemento não para de variar e modificar sua distância em relação aos
outros” (1995, p. 44).
A “pacificação”, ao centralizar comandos, unificar territórios e estabelecer uma lei que
definia direitos e deveres para cidadãos e punições para inimigos, encontrou um limite ao ter
que governar o desconhecido. Não era possível mais, nesse contexto expandido, acionar as
redes de fofoca da vizinhança para determinar a cidadania de uma pessoa. Tampouco, a
“pacificação” produziu papéis que tornassem legíveis os cidadãos e cidadãs aos agentes
responsáveis por esse governo (DAS, 2004).
Assim, o reconhecimento da cidadania através de corporalidades alinhadas a valores
estético-morais dominantes tornou-se fundamental na “pacificação”. Esse reconhecimento
não é uma novidade do governo pacificado. Na verdade, ele é articulado a outras formas de
produção de “perfis”, acionadas para o governo das populações nos bairros abordados.
Contudo, por dinâmicas que são próprias à “pacificação”, a corporificação de certas
categorias ganhou uma ênfase até então desconhecida, sobretudo sobre categorias de gênero e
sexualidade entre sujeitos que buscavam aumentar sua mobilidade dentro e fora dos bairros.
145
O termo é utilizado para falar de pessoas que foram expulsas de grupos ou territórios.
223
femininos são metáfora e metonímia dos territórios da paz a serem protegidos e expandidos
(SEGATO, 2014).
Feminilidades seguras na “pacificação” eram necessariamente feminilidades
controladas (BROWN, 2009). Assim como era controlado o território. Em continuidade com
“uma longa tradição de viagens masculinas como uma erótica do alumbramento”
(MCCLINTOCK, 2010, p. 43) corpos e territórios feminizados durante a paz tinham na
sexualidade sua segurança e seu perigo. Isso não é uma especificidade da “pacificação”.
O controle da sexualidade feminina é indispensável para a produção do estado em
diferentes contextos: Wendy Brown (2009) apontou-o como intrínseco ao controle
burocrático; Jacqui Alexander (1997) percebeu seus efeitos na “recolonização” das Bahamas
através do turismo; Anne McClintock (2010) notou sua centralidade em movimentos que vão
desde as expedições coloniais até os nacionalismos sul-africanos; e Veena Das (2007) viu na
sexualidade feminina objeto da violência que marcou a guerra entre Índia e Paquistão.
Seguindo a trilha dessas autoras, analiso o foco da “pacificação” nos cruzamentos
entre gênero e sexualidade ao lado de formas de governamentalidade religiosas, observando
seus pontos de convergência e divergência nos detalhes da vida cotidiana. Do material de
campo, a dança emergiu como uma prática corporal em torno da qual diferentes moralidades e
governamentalidades foram acionadas. Esmiuçando as pequenas (ou grandes) tensões geradas
em torno de corpos de/em baile, espero elucidar as formas difusas através das quais o controle
de territórios se materializa no controle de corpos femininos em tempos de paz.
A dança aparece como uma prática corporal central na produção de sujeitos éticos. Ela
problematiza a distinção da antropologia clássica entre comportamentos formais ou
convencionais e as atividades rotineiras, informais ou mundanas (MAHMOOD, 2005). A
performance da dança se sobrepõe à performance de valores hegemônicos, tornando-se
fundamental na produção marcada por gênero corpos de cidadãos e seus outros.
Os limites entre a dança cidadã e a dança “de marginal” são porosos e constantemente
atualizados. Contudo, é possível seguir o seu traçado através do material etnográfico que
trago a seguir. Estilos musicais, ritmos, letras e festas são elementos importantes na
146
Referência à música Olha a explosão, interpretada por MC Kevinho (GOMES, KHARBOUCH, et
al., 2016).
224
147
Entrevista, 21 de julho de 2015.
225
148
Collants, meias-calças e sapatilhas foram arrecadados através de doações.
226
Colibri pelos becos, encontramos dois jovens engajados na produção de um vídeo de rap.
Enquanto um deles filmava, o outro proferia as palavras em ritmo acelerado, característico do
estilo. Ela aproveitou para pedir que eles fizessem um “rap para Jesus”. O rapaz atendeu ao
seu pedido e inseriu a palavra Jesus em algumas de suas rimas, mas logo o seu cinegrafista
perdeu o interesse e desistiu da empreitada.
No Iris, as dicotomias eram pensadas de forma absoluta. Como me explicou uma
missionária queniana que visitou uma das aulas de inglês, era preciso “substituir” as
atividades corriqueiras dos jovens pelas atividades missionárias, ocupando todo o seu tempo.
Assim como o ballet substituiria o funk, o rap para Jesus substituiria o rap “do mundo”, o
bem substituiria o mal, e Deus substituiria o diabo.
O antagonismo desses elementos nas práticas discursivas missionárias do Iris, porém,
acabava dando um conteúdo fortemente transgressor ao menor sinal de indeterminação que
um elemento do cotidiano, tal como uma música, pudesse carregar consigo. Interpretei nesse
sentido a fala em tom de segredo de Aninha sobre “aquelas músicas” que ela havia ouvido no
meu carro. Aninha era uma menina de sete anos, aluna do curso de inglês oferecido pela
missão no Oitão Preto, que eu levei a passeio com outras crianças como prêmio por seu bom
desempenho nas aulas.
As músicas pop americanas feitas para um público infanto-juvenil que eu utilizava nas
aulas de inglês no Pirambu, que ouvimos no passeio, por não serem, gospel, eram revestidas
de uma ambiguidade potencialmente destrutora. Na perspectiva de Aninha, dançar ainda que
de modo limitado “aquelas músicas” numa curta viagem de carro comigo se tornou um
segredo entre nós duas e ganhou uma potência transgressora. Um elemento de entusiasmo e
medo.
Ainda que na Sociedade da Redenção fosse possível fazer combinações e
sobreposições entre a música gospel, que representa o “certo”, e estilos musicais
indeterminados, tais como o pop americano e coreano, as dicotomias entre o “certo” e o
“errado” acionadas pela dança eram essenciais para produção de subjetividades éticas. Em
diferentes situações, funk, forró e pop internacional foram percebidas como expressões de
“imoralidade”.
Em todos os contextos pesquisados, a maior carga negativa era atribuída ao funk, onde
o conteúdo “erótico” das letras e coreografias era associado à marginalidade e ao crime. Os
contextos desse produto cultural podem ser relacionados a precariedades racialmente
construídas (DAVIS, 2012). Contudo, para muitas pessoas, é plausível a ideia de que o
próprio diabo manipule os movimentos corporais no funk.
227
Em pesquisa com jovens dançarinas de funk da Barra do Ceará, Lidiane Souza pontua
que apesar de perceberem no funk uma oportunidade de expandir suas redes e ascender
socialmente, as jovens reconheciam que o funk era considerado “imoral” por familiares e
vizinhança (2014).
As alunas do curso de inglês do Pirambu costumavam comentar que não gostavam de
funk por conta de suas letras. Algumas admitiam que a batida era “legal” e até sabiam fazer o
“quadradinho”149, mas detestavam as letras e, sobretudo, as festas, que com a “pacificação”
tiveram sua frequência bastante aumentada no bairro.
Em uma formação com educadores/as do projeto, as religiosas também notaram o
aumento na frequência dessas festas. Da janela de casa, elas viam a participação meninas
“desse tamaninho”, de tão pequenas, indo “pra cima” (de maneira erótica) dos “meninos”. O
que caracterizava essas festas nas margens eram as músicas, que a irmã achava “tão loucas”,
mas alguém corrigiu: “tão baile de favela!”
Bastava parar um carro com um “paredão” de som e juntar jovens dançando para que
acontecesse um baile de favela. Bastava um baile de favela para a intervenção da polícia150.
Um educador comentava que, observando de perto os bailes de favela, podia se ver crianças
usando drogas. Na época das festas juninas, um baile de favela aconteceu ao lado da
tradicional quadrilha, que se apresentava ao som do forró. A polícia só interveio no baile, mas
a quadrilha também ficou prejudicada.
Na situação acima, a oposição entre “certo” e “errado” se atualizava na oposição entre
o forró e o funk. Porém, o forró é um estilo musical moralmente ambíguo. No dia da
inauguração do Vila do Mar no Pirambu, a banda de forró de Clementino Moura, um
tradicional sanfoneiro cearense, era uma das atrações. Sentada com as amigas de Germana
nos degraus de uma casa, eu brincava com o bebê de uma delas, vez por outra fazendo-o
dançar distraidamente ao som do forró instrumental. Fui alertada nesse momento que a
criança era evangélica e não podia dançar.
Intrigada, eu me lembrava que havia pouco tempo uma banda gospel tocara uma
música ao ritmo de forró que dizia que “festa boa é festa de crente”. Perguntei depois a uma
amiga, também evangélica, qual era a sua posição em relação ao forró. Ela me explicou que
era possível dançar forró em situações específicas, como em um culto de jovens.
149
Passo de dança que consiste em movimentar os quadris de forma “quebrada” de modo a formar um
“quadrado” no ar. Descrevo-o aqui, mas advirto que, por mais que tentasse, nunca consegui fazê-lo.
150
Ver capítulo 4.
228
Nesse caso, não eram a letras eróticas ou as tecnologias de gênero representadas pelas
feminilidades eróticas das dançarinas e das masculinidades viris dos “carros-pancadão”
(MARQUES, 2014) que caracterizavam a “imoralidade” do forró, mas sim o contexto no qual
ele era dançado. Dançar forró seria então uma prática potencialmente desmoralizante.
Finalmente, retorno às músicas pop americanas. Na minha experiência como
professora de inglês, músicas americanas eram importantes para a prática pedagógica. Na
maior parte dos casos, eu pedia que a turma me indicasse os nomes de artistas preferidas/os e,
entre suas músicas, elegia alguma para ser levada à sala de aula. Ao final do primeiro
semestre no Pirambu fizemos uma festinha na Mãe Creuza, quando assistimos a um filme,
levamos lanches e dançamos músicas como as que aprendíamos em sala de aula com a
coreografia ensinada pelo jogo de videogame Just Dance. A maior parte da turma se sentiu à
vontade para dançar e nós nos divertimos tanto que repetimos o evento meia dúzia de vezes.
Houve, porém, alguns conflitos. A tia de Keylane, uma jovem de 15 anos que fora
diagnosticada com depressão, explicou-me após uma das aulas que a sobrinha se cortara por
conta de uma obsessão pela cantora Demi Lovato151. Ela falava isso com a intenção de que eu
ficasse de olho nos interesses “errados” da sobrinha. A destruição do corpo era compreendida
como causa da destruição moral.
Por vezes, a ambiguidade moral dessas músicas se colocavam como obstáculo para as
próprias jovens. Uma adolescente, apesar de fazer parte do grupo de street dance da igreja
que frequentava, não se sentia à vontade para dançar “aquelas músicas”. Ela era enfática sobre
seu afastamento de danças, estéticas, pessoas e eventos “do mundo”. Para ela, não havia lugar
para ambiguidades entre o “certo” e o “errado”.
A maior parte das adolescentes, porém, parecia tentar encontrar maneiras seguras de
combinar o “certo”, o “errado” e tudo que estava entre eles. Elas faziam parte de grupos
religiosos em igrejas católicas ou evangélicas e tinham em bandas de rock cristão as suas
preferidas. Ao mesmo tempo, se interessavam por atividades culturais “do mundo”
consideradas ambíguas, trabalhando para imprimirem nelas o símbolo da moralidade. Num
trabalho de bricolagem, as jovens sobrepunham músicas como Swalla, de Jason Derulo com
Nicki Minaj e Ty Dolla $ign (FREDERIC, LEWIS, et al., 2017), com Ninguém explica Deus,
da banda Preto no Branco com Gabriela Rocha (ROCHA, 2016), e Como nossos pais,
interpretada por Elis Regina (BELCHIOR, 1976).
151
A jovem cantora e atriz iniciou sua carreira em programas infantis e tem hoje várias músicas de
sucesso. Sua trajetória é marcada pela luta contra o vício em drogas, sobre a qual ela fez canções. Em
2018 ela sofreu uma overdose de heroína comentada publicamente.
229
152
Segundo Vagner Gonçalves da Silva (2007), dentre o grupo mais abrangente de “evangélicos” os
neopentecostais se diferenciam dos protestantes históricos quando abrandam o ascetismo, valorizando
prazeres terrenos e o consumo de bens materiais.
153
Para Ronaldo Almeida (2004) o termo “carismático” é utilizado em referência a qualquer prática
mais emotiva, devocional ou efervescente no interior do catolicismo.
230
154
Diário de campo, 24 de junho de 2016.
155
Segundo Jacqueline Teixeira, obreiros/as prestam serviço de apoio aos frequentadores da igreja,
que seria como um “rito de passagem” para servir no altar. A ascensão de obreiro a pastor ou mesmo
bispo na IURD é marcada por gênero e, no caso das mulheres, só poderia acontecer mediante o
casamento com um homem que ocupasse tais posições no altar (2012).
156
A expressão se refere a produções constituídas por imagem e texto que circulam nas redes sociais
transmitindo rapidamente informações.
157
Detalhes sobre essa produção estão disponíveis em Teixeira (2012).
231
imagem da “mulher virtuosa”158 (TEIXEIRA, 2012). Em frases como “Não existe mulher
perfeita, mas as virtudes nos aperfeiçoam”159, percebe-se que a virtude não é um atributo
natural, mas o requisito/resultado da corporificação de subjetividades éticas específicas.
A moralidade é percebida na vida cotidiana através de relações dicotômicas que
precisam a todo momento ser negociadas (HORTELAN, 2016). Em uma conversa entre eu e
duas adolescentes do Pirambu, a moralidade relacionada a certas corporalidades era objeto de
disputa. Elas falavam sobre outra jovem, chamada Cinara. Uma delas explicava que não
gostava dela por ter piercing. A outra jovem pontuava que era possível ter piercing e
tatuagem e ser “uma pessoa boa”. Eu mesma tinha uma tatuagem visível, mas não falei nada.
Em outro momento, eu ouvira que Cinara estava indo pelo “caminho errado” porque
falava gírias, saía de casa na hora em que deveria estar voltando e ninguém sabia o que ela ia
fazer a esse horário. Era justamente essa indefinição que determinava o caráter “errado” de
suas ações.
Paula Togni notou que os trânsitos transnacionais de brasileiras pobres para Portugal
eram associados a “fazer coisa errada” (2014). A expressão, diretamente vinculada à
sexualidade, era acionada em razão do deslocamento das jovens e do afastamento “da vista”
da vizinhança.
Entre as funkeiras da Barra do Ceará estudadas por Lidiane Souza, a rede de fofocas
da vizinhança também tinha papel central na cristalização de corporalidades e classificação
das adolescentes. A autora notou que, nesse contexto, as “coisas erradas” incluíam desde os
“namoros com rapazes envolvidos com drogas, fugas das jovens para participar de festas” até
a “marcação do corpo com piercings e tatuagens” (2014, p. 78). Sobre os namoros com os
“meninos”, Souza atesta que as adolescentes tinham relacionamentos com vários parceiros,
alguns deles simultâneos, mas evitavam “ficar” com rapazes do bairro para “preservar sua
reputação”.
Camila Marinho, em pesquisa numa favela de Fortaleza nos anos 2000, observou que
“a mulher do chefe [de gangue] não se droga, não briga, tem que construir uma imagem de
honestidade e decência” (2004, p. 144). Apesar disso, elas são situadas pela vizinhança no
“caminho errado”.
É difícil delimitar os elementos do “errado” na produção moral de jovens “danadas”
que se tornam objeto da rede de fofocas da vizinhança. O perigo relacionado a estéticas e
158
Referente à passagem bíblica em Provérbios 31:10 “Mulher virtuosa quem a achará? O seu valor
excede muito ao de rubis.”
159
Publicação no Facebook.
232
moralidades femininas “erradas” pode estar na dança, roupas, marcas corporais e outros
elementos. Eles são acionados como “indícios” da “coisa errada” que estaria escondida “da
vista”, em outras vizinhanças, com “meninos” de outras gangues. Potenciais inimigos, que
fariam delas inimigas também.
Essas dinâmicas provocavam uma angústia profunda nas adolescentes que moravam
“lá embaixo”. Tornar-se objeto da rede de fofocas da vizinhança era algo quase incontrolável.
Podia acontecer mesmo com adolescentes que frequentavam as igrejas e acreditavam fazer
tudo “certo”. Isso lhes causava um sofrimento intenso, pois elas percebiam que sua
desmoralização no bairro poderia lhes custar caro.
Na sua dificuldade de circular com segurança moral pela vizinhança, os “bailes de
favela” representavam os maiores limites. Sobretudo com a “pacificação”, os bailes se
tornaram quase incontornáveis: eles passaram a acontecer toda semana e durante todo o final
de semana em diversas ruas do bairro. Era cada vez mais difícil circular pelo bairro sem
passar por bailes. Em face disso e sabendo-se sob o olhar vigilante da vizinhança, as
adolescentes tinham sua mobilidade cada vez mais restrita.
Por isso, elas falavam constantemente sobre o desejo de se mudar para as ruas “de
cima” ou para outros bairros. Elas não entendiam como os “barracos lá em baixo” passaram a
valer 80 mil reais, uma vez que, concomitante com a sua localização de frente para o mar em
uma bonita avenida, proporcionada pela construção do Vila do Mar, foi instituída a
“pacificação”. O aumento da circulação, promovido por essas duas políticas distintas, mas de
resultados convergentes, materializou-se nos bailes durante a paz e, quando ela acabou, nos
ataques da facção rival e nos confrontos com a polícia.
Elas diziam ter “nojo” dos meninos que ficavam na “porta de casa”. É importante
perceber que esse sentimento denota tanto sua repulsa pelos “meninos” quanto a capacidade
deles de capturar a sua atenção. Como observou Miller, o nojo “se impõe sobre nós” (1997, p.
x). Os “meninos” simultaneamente repeliam e atraiam as “novinhas”.
Atravessadas por inseguranças, elas preferiam não falar “com ninguém”. Apavoradas
com a ideia de que, mesmo fazendo tudo “certo”, alguém dissesse que faziam “coisa errada”,
não faziam nada. Num dia em que as marcas de tiro e objetos carbonizados ainda se faziam
visíveis no bairro depois dum confronto com a polícia, uma adolescente disse com amargura
que “nenhuma criança devia ter que morar ali”.
Essa frase me encheu de tristeza, pois ela expressava fragilidade de uma vida, que
mesmo de frente para a imensidão do mar, precisava ser enclausurada. Olhar para o mar é
algo que eu valorizo muito. Ajuda-me a pensar e a sonhar quando o trabalho na tese parece
233
não ter fim. Mas mesmo o mar, em sua beleza infinita, perde suas propriedades mágicas
quando ele significa a fixação.
E, aí, lembro-me de Carolina Maria de Jesus e seu desgosto por morar na favela: “a
única coisa que não existe na favela é solidariedade” (1960, p. 13). Faltam os suportes
necessários para a vida. Mesmo a arma da fofoca é ambígua. Caso seja percebida como
“cabuetagem” 160, ela se torna objeto de punição também marcada por gênero. Ninguém sabe
com certeza onde estão os limites entre caminho “certo” e “errado”. Aquelas que sentiam
horror pela ideia de cruzá-los, andavam pouco, assegurando como podiam o status de cidadã.
Para as que os cruzavam tentando alcançar outros suportes para a vida, as andanças também
eram limitadas. Em todos os casos, elas constatavam na “pacificação” a impossibilidade de
coabitação com o que não foi escolhido (BUTLER, 2015).
Entre educadoras e educadores dos projetos missionários em estudo, a preocupação
em tornar reconhecíveis as vidas das crianças, adolescentes e jovens do bairro era central.
Todas sabíamos que o reconhecimento estava profundamente relacionado com as moralidades
que permitiam interpretar certos corpos como cidadãos e outros como marginais. Nesse
contexto, todas/os (re)produzíamos na nossa prática pedagógica teorias morais (FASSIN,
2008). Elas poderiam ser críticas, ou não.
Muitas vezes, essas práticas resultavam no reforço de normas de gênero, sexualidade,
raça, classe e idade naquele contexto, que tornavam ainda mais rígidos os limites entre o
“certo” e o “errado”. Em outros momentos, posturas críticas em relação a essas normas foram
ensaiadas, mas os resultados na elaboração de suportes para a vida naquele contexto eram
incertos.
Professoras/es de ballet, violão, inglês, capoeira e teatro no Pirambu e no Moura
Brasil tentávamos promover a “defesa da vida”, em acordo com os projetos missionários que
buscavam não distinguir entre “cidadãos” e seus outros. Nós buscávamos na educação “uma
prática de liberdade” (HOOKS, 2017). O que entendíamos por liberdade, porém, variava
imensamente.
Danação
da·na·do
(latim damnatus, -a, -um, condenado)
160
A palavra deriva de “alcaguete” e tem o mesmo significado negativo de delação.
234
161
"danado", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-
2013, https://www.priberam.pt/dlpo/danado (Acesso em 29 de abril de 2018).
235
convite, em 2016. Ela dizia que não frequentava esses locais por “medo”. Assim como as
adolescentes, mesmo estando de frente para o mar, Juliana se trancava em casa. Para Juliana,
porém, a mobilidade desejada não consistia em “subir” de rua, mas de país.
As mulheres que faziam “programas” na Praia de Iracema corporificam vários indícios
do “errado”: piercings, tatuagens, roupas curtas, gírias e dança. As formas de combinar sexo e
dinheiro que geralmente acontecem nas boates são, porém, o principal objeto de condenação
moral.
Apesar disso, conhecendo os limites à sua circulação no bairro, percebi que elas
acionavam outras dicotomias entre o “certo” e o “errado” para a manutenção da vida nesse
contexto. Na Praia de Iracema, a produção de hierarquias de classe e raça em relação aos
“meninos” era fundamental.
O esforço das mulheres que saíam com “gringos” na Praia de Iracema se concentrava
em estabelecer uma distância moral em relação aos “meninos” e às políticas que se
articulavam em torno da droga no bairro. Era um distanciamento cuidadosamente produzido,
porque seus amigos/clientes às vezes eram traficantes, seus locais de moradia eram
avizinhados por pontos de venda de drogas e suas colegas vez por outra eram presas sob a
acusação de tráfico de drogas.
Em consonância com essas fronteiras morais acionadas por minhas interlocutoras, os
“meninos” me explicaram que, frequentemente, encontravam antigas colegas de colégio no
bairro, mas que não tinham uma relação próxima com elas. Os únicos contatos aconteciam
quando elas queriam comprar drogas. Distanciamento e desconfiança marcavam os encontros
entre sujeitos que, muitas vezes, partilhavam de um mesmo contexto social. Só ficar com
“gringo” acionava hierarquias entre masculinidades que as distanciavam das dinâmicas da
guerra entre “meninos”.
*
As dicotomias entre o caminho “certo” e o “errado” são uma atualização da lógica
humanista que se funda no ideal de que seres humanos deveriam estar “no controle de suas
vidas” (RAPPORT e OVERING, 2000, p. 176). Esse controle individual, que se
convencionou chamar de “liberdade” numa tradição iluminista produzida em países
“ocidentais” ou “desenvolvidos” (MAHMOOD, 2005) se opõe à escuridão das tradições nas
colônias (MBEMBE, 2001; POVINELLI, 2006).
Dado que o humanismo iluminista é pensado como um projeto universal, onde quer
que a liberdade em seus moldes não seja reconhecida, é possível e até desejável uma
intervenção violenta (ASAD, 2003; 2007). Desse modo, o colonialismo instituiu a violência
236
e pessoas que precisam ser salvas. Essa hierarquia moral fundada no poder de Deus se
sobrepunha aos critérios corporais.
Como “professora de inglês” nas missões, eu me beneficiei dessa superioridade moral.
As tatuagens, piercings, roupas e mesmo a dança perdiam importância diante da moral divina
missionária. O poder que vem diretamente de Jesus é reconhecido por trabalhadoras do sexo,
“meninos” e a população que habita os territórios pacificados. É um poder que muda vidas e
“nações” (FANSTONE, 2016, p. 92).
A publicação de um texto no Facebook feita por Léa, líder missionária do Iris que atua
na “zona vermelha” da Praia de Iracema, atesta o poder de Jesus na transformação moral de
pessoas, signos e ações:
Gostaria de encerrar essa parte sobre as dinâmicas da paz na política nas margens
financiada pela droga com algumas considerações sobre a produção do comércio da droga
162
Página do Facebook, 3 de abril de 2016.
163
Essa parte contrasta com as demais pelo caráter difuso dos dados de campo apresentados. Esse
recurso foi necessário para evitar qualquer forma de identificação de pessoas, lugares ou produtos.
238
Através dessa parte eu analiso como gênero pode ser mobilizado para o acionamento
ou não da violência nas dinâmicas da droga. É importante notar que sujeitos que
compartilham do mesmo contexto de classe, raça e território mobilizam gênero para criar
dinâmicas distintas onde a violência que atravessa a vida nas favelas pode ser maximizada ou
minimizada.
Para discorrer sobre essas diferentes dinâmicas eu falei inicialmente da política dos
“meninos”, onde a violência é acionada de diferentes maneiras para legitimar o poder durante
a paz. Economia é uma categoria interessante para pensar nas outras dinâmicas possíveis em
torno da droga. São dinâmicas que partem do mesmo contexto, fazem diferentes caminhos, às
vezes se encontram, mas nunca se confundem. O que garante essa distinção é o gênero.
239
esperavam em uma esquina. Um deles disparou várias vezes contra ela, que morreu na hora.
Sandra foi descrita nesses jornais como uma “velha traficante” do bairro.
No dia seguinte à sua morte, o Moura Brasil estava agitado. Várias famílias
compareceram ao seu enterro. Aninha também foi, “toda vestida de preto”. As outras crianças
“só” foram ver seu corpo no dia anterior. Naquele dia houve mais morte perto do bairro.
Novamente as crianças foram correndo ver. Dois homens em uma moto. Um deles morreu na
hora, o outro foi atingido e ficou preso debaixo da moto. As pessoas comentaram que devia
ser vingança pela morte de Sandra, mas o caso foi noticiado como uma tentativa de assalto
frustrada.
Uma moradora do bairro comentou os casos: “Sandra foi sair do bairro, deu nisso”.
Sandra gostava de mulher e de briga. Pegava briga com todo mundo, homem ou mulher.
Enquanto ainda morava no bairro, estava protegida de suas desavenças por seus vizinhos e
parceiros. A vizinhança se constituía, no caso de Sandra, em uma rede de cuidados que tinha
na droga uma forma de reprodução da vida. Quando Sandra foi presa, a rua quase toda foi
presa junto. Quando Sandra morreu, a rua quase toda foi ao seu enterro.
Quem conhecia Sandra não achava que os dois homens alvejados no dia seguinte
tivessem a ver com seu caso. Sua morte não seria vingada. Seu filho era muito novo e “não
ligava para nada”. À noite já estava tomando banho de chuva, como se nada tivesse
acontecido. A chance de Sandra estava nos vizinhos. Acabou quando ela se mudou.
O caso de Sandra, quem eu conheci “só de ouvir falar” depois de sua morte, é
importante porque ele materializa as ideias sobre cuidado e controle depositadas nas relações
de vizinhança entre pessoas que atuam na economia da droga. Mesmo sendo “briguenta”, suas
brigas não eram pela droga. Ninguém lhe mataria pela droga. Ninguém se vingaria por sua
morte.
A exceção de morte de Sandra parecia confirmar a regra. Enquanto fizessem tudo
“entre elas” estariam protegidas da violência que configurava as relações de guerra em torno
da política da droga. Caso saíssem dessas redes de confiança, seriam “cobradas” pelo
primeiro que aparecesse.
Nessa dinâmica, redes de mulheres se encarregavam de separar e pesar a droga,
preparar as quantidades para a venda e repassá-las a outras pessoas de confiança antes de que
chegasse ao público. O contato com o “patrão” era mínimo. Era interesse de todas que essas
dinâmicas corressem separadas.
A economia da droga era construída em oposição à política da droga em diversas
esferas: feminino e masculino, paz e guerra, amor e violência. Assim, é inverossímil imaginar,
242
que a economia da droga seja implementada pela violência da política da droga, como
propõem algumas autoras ao analisar o aumento do encarceramento feminino. Pelo contrário,
ela se configura em uma oportunidade de ganhar dinheiro com a droga prescindindo da
violência.
Isso foi notado também por Paulo Fraga e Joyce Silva em pesquisa no Vale do São
Francisco, onde as mulheres que se engajavam na produção da droga “não foram pressionadas
para traçar uma carreira criminal, o que lhes conferiu certa invisibilidade e proteção ante a
repressão policial” (2017, p. 152).
A “pacificação”, em sua proposta de centralizar o comando e unificar territórios
através de uma noção universalista de cidadania, foi recebida com apreensão pelas pessoas
engajadas na economia da droga. Sua proposta de estabelecer proteção e controle sobre
territórios e corpos feminilizados se opunha à autonomia necessária das dinâmicas da
economia da droga operada principalmente por mulheres. Elas sabiam que não podiam
“vacilar”. Suas redes de afeto envolviam, muitas vezes, policiais, amigos de longa data, que
garantiam a “tranquilidade” do negócio familiar. Os “meninos” declararam guerra contra a
polícia.
A ênfase do afeto na produção de ilegalidades não é exclusiva às periferias de
Fortaleza. Como propõe Padovani, “as trocas de cuidado e de dinheiro que são profundamente
calcadas no mercado transnacional de drogas” (2015, p. 231). Redes de afeto onde circulam
cuidado e dinheiro, traçáveis apenas a partir de relações pessoais específicas.
Os “meninos” da vizinhança reconheciam essas redes, que eram eficazes em manter os
lucros da droga mesmo em períodos de guerra. Elas não eram percebidas como suas
competidoras, pois atuavam em uma dimensão diversa, marcada por gênero, da reprodução
social da vida em contextos de crise. Mas e os “patrões” do PCC e do CV?
5.2. Guerra
Na literatura recente sobre crime no Brasil há duas importantes linhas teóricas que
situam o termo “pacificação” em dois projetos políticos que se constroem como opostos, mas
que fazem parte dos processos de produção do estado nas margens. A coincidência na forma
de nomear políticas de centralização em contextos de conflito não é ocasional.
Autores que pesquisam a atuação do PCC em São Paulo têm descrito a “pacificação”
como a atuação da facção “na mediação de conflitos e na manutenção da ordem, no sentido de
243
‘pacificar’ territórios antes dominados por várias quadrilhas ligadas ao tráfico de drogas”
(TELLES, 2010, p. 205). A nova forma de comando se expressava em meados dos anos 2000
nas periferias de São Paulo sobretudo na ordem de “não matar” e na “segurança” garantida à
circulação feminina.
A política de “pacificação” implementada pelo PCC em São Paulo dos anos 2000 têm
sido considerada por alguns pesquisadores como um evento fundamental na subsequente
diminuição da taxa de homicídios na cidade (FELTRAN, 2008; BIONDI, 2009; HIRATA,
2010; TELLES, 2010). Essa linha teórica foi chamada “hipótese do PCC”.
Por outro lado, João Pacheco de Oliveira pontuou as continuidades entre diferentes
formas de gestão de territórios na história do Brasil nomeadas “pacificação”:
O autor nota que o uso da categoria “pacificação” para designar a ação da polícia em
territórios comandados pelo tráfico no Rio de Janeiro indica que sua população passa a ser
percebida numa relação de alteridade “radical e acentuada”, o que justificaria a combinação
de “intenção humanitária” e “ocupação militar” na intervenção.
Contudo, Pacheco de Oliveira é cauteloso na comparação entre práticas coloniais
reservadas a indígenas e aquelas que aparecem no contexto contemporâneo do Rio de Janeiro.
O autor faz recurso às estratégias discursivas de pesquisadores/as da violência que têm nas
favelas seu campo empírico. Ele recupera a noção de “guerra” como uma metáfora do estado
para acionar a “pacificação”, também metafórica, como uma política de segurança. A análise
de Márcia Pereira Leite sustenta essa sua proposta:
Representar o conflito social nas grandes cidades como uma guerra implica
acionar um repertório simbólico em que lados/grupos em confronto são
inimigos e o extermínio, no limite, é uma das estratégias para a vitória, pois
com facilidade é admitido que situações excepcionais – de guerra – exigem
medidas também excepcionais e estranhas à normalidade institucional e
democrática (2012, p. 379).
Daniel Hirata e Carolina Grillo notaram que as diferenças nos usos do termo
“pacificação” nas políticas de segurança implementadas nas margens em São Paulo e no Rio
244
de Janeiro fazem sentido em relação às outras diferenças nas dinâmicas da droga dessas
cidades:
O arranjo entre “guerra e paz” nas relações (inter e intra) faccionais e com os
policiais assim como a articulação entre “circulação e bloqueios” das
mercadorias são efetivados de formas diferentes em cada uma das cidades
(2017, p. 92).
Neném não precisou pensar muito para lembrar: “teve uma guerra na favela, uma
guerra. (...) 2012 foi o ano em que mais morreu gente na favela”. É comum que as pessoas
reconheçam os tempos de guerra em oposição a períodos sem guerra, mas não de paz, na
história de um bairro ou favela. Na fala de Neném, e de outras pessoas que vivem nas
margens do estado, a guerra não é metáfora. Guerra é guerra: inimigos, baixas, danos
colaterais. Nesse sentido, é uma guerra como aquelas promovida por estados legítimos.
A guerra é um evento que se impõe à vida. Mas é também uma experiência que ganha
diferentes significados para pessoas que estão em posições diferentes na sua dinâmica
(TRAWICK, 2007). Nessa parte eu retomo a vida de Neném entre guerras, recuperando o
sentido que a ética guerreira adquire em sua atuação como missionário.
A família de Neném veio do interior do Ceará para Fortaleza. Numa estranha tradição,
a vinda do interior se repetiu a cada geração. Primeiro veio a avó de Neném, que trabalhou
como prostituta no Moura Brasil. Ali teve sua filha com um dos marinheiros que aportavam
na Praia de Iracema e iam “atrás de mulher” no Curral das Éguas. “Família estrangeira”, na
expressão de Neném.
A avó de Neném mandou a filha de volta ao interior, onde ela foi criada pela sua avó.
Já crescida, a mãe de Neném migrou para o Moura Brasil. Lá teve Neném, mas não cuidou
dele. Deu para a avó do menino criar em uma casa na região metropolitana de Fortaleza.
Apesar de recorrente, essa dinâmica não é percebida com naturalidade. Para Neném, sua mãe
e seu pai o abandonaram.
Morando à distância do Moura Brasil, Neném fez cursos de segurança e de garçom e
trabalhou de garçom e de operário numa fábrica. Aos finais de semana, ele ia visitar a mãe no
Oitão Preto e lá via “todo mundo traficando”. Ele não se sentia “aceito” dentro de casa. Ao
mesmo tempo, o que tinha dentro de casa não era suficiente para ele.
Neném queria as bermudas caras, da Pena e da Ciclone164, que faziam sucesso entre os
jovens da periferia de Fortaleza. Foi pela bermuda que o tráfico lhe ganhou. Seu cunhado era
164
Ver o caderno de imagens.
246
165
Nesse caso, “corres” são pequenos favores que sustentam o negócio da droga. Biondi notou que
“corres” podem ser atividades criminosas ou violentas por meios das quais se obtém recursos
financeiros (2009, p. 114).
166
Favela na Praia de Iracema.
167
Nesse contexto, “queda” indica o uso “descontrolado” de cocaína.
247
tráfico no Oitão, que pretendia ser hegemônico naquela região. Foi nesse período que a
“cultura” e os contatos do tráfico acumulados por eles foi transferida para outra favela, na
Praia de Iracema, onde passou a ser comandado por Carol, de quem falarei em seguida.
Segundo Neném, foi também nesse período em que o tráfico se “espalhou” para as
“famílias”. As pessoas começaram a guardar drogas em troca de algum dinheiro e depois
passaram a fazer negócio com o produto na dinâmica que eu chamei de economia da droga.
Segundo Neném, elas “traficavam sem ser traficantes”.
Vendo sua vida e a vida na favela seguirem por caminhos incertos, Neném percebeu
que o “verdadeiro” poder estava em Deus. Ainda em 2008 ele fez uma promessa para Deus:
passaria um ano sem usar drogas. Depois desse ano, em 2009, parou também de traficar. Em
2010, tomou a decisão de tornar-se missionário. Para isso, Neném largou tudo: “entreguei
chave de moto, entreguei moto, entreguei carro, entreguei as pistolas e eu fui pro Iris”.
Neném foi isolado pelos antigos parceiros. Ficou à pão e água. Ao mesmo tempo,
precisava esperar pelo “tempo de Deus” para ascender na vida missionária. Ele esperou para
morar na base, esperou para fazer a Escola de Missões, esperou para ir para o sertão e agora
espera para ir para as nações168. Seu coração já foi “tocado”, ele “queima” pelas nações.
Conversando comigo, Neném dizia que se sentia realizado com a vida missionária. Ele
considerava que estava podendo reverter os “maus exemplos” que deu no passado através de
seu testemunho: sua vida, seu corpo. As maldades que ele fizera eram exemplo para os outros
jovens, que aprenderam com ele e muito cedo encontraram a morte. Como missionário,
Neném se reconhecia como uma “nova criatura”. Seu exemplo agora é de vida.
Se antes ele ia para o sertão com a “galera” do tráfico para abrir “bocadas”, hoje ele
vai para o sertão resgatar vidas para Jesus. Ele se lembra de uma ocasião em que deu o seu
testemunho para traficantes do sertão e os homens “largaram suas armas no chão e
começaram a chorar”. Neném tentava transformar sua subjetividade “guerreira” dos tempos
do tráfico em disposição para a guerra moral missionária.
Porém, Neném percebeu que no seu cotidiano missionário importava também a
economia. Ele fazia cálculos: as vidas que ele levou para o “mal”, seja pelo exemplo ou pela
dor que ele infligiu, deviam ser recompensadas por vidas que ele resgatou para o “bem”, para
Jesus. É um cálculo em que ele reconhece sua responsabilidade individual por cada vida.
Mais do que um interesse pessoal de Neném, esse cálculo parece ser fundamental na
sua vida missionária. O tempo de Deus parece ser mais lento para ele do que para os demais.
168
Missões no exterior.
248
O seu engajamento missionário não bastaria para atestar a sua moral. Um cálculo moral se
impõe a Neném.
Contudo, como notou Boltanski (1990), a ideia de cálculo se opõe ao amor divino,
caracterizado por ser um dom, do qual se exclui o desejo, em que pouco importa o objeto e
que se manifesta em presença de qualquer pessoa. Esse amor “sem limites” descrito por
Boltanski parece muito com o “amor radical” missionário169. Deus estaria interessado numa
matemática criativa onde a soma de Deus + 1 = a maioria (FANSTONE, 2016). Por que, na
prática, Deus + Neném ≠ a maioria?
Quando era “traficante”, Neném experimentou um poder que antes lhe era inacessível.
Esse poder se materializava em objetos que eram incorporados à sua subjetividade (GELL,
1986): bermudas, carros e lanchas. Mas sua expressão mais relevante, na perspectiva de
Neném, foi sua articulação política com redes “do crime” de diferentes cidades. Neném se
tornou conhecido: tinha moral.
Quando ele “largou tudo” e foi para o Iris, ele saiu em busca de outro tipo de poder. O
poder que vem de Jesus. A proposta do Iris não deixa dúvidas sobre a existência desse poder:
“se nós acreditarmos que temos o Seu absoluto poder trabalhando dentro de nós, então não há
limites para o que nós podemos fazer” (FANSTONE, 2016, p. 19).
Para ser missionário, Neném abriu mão do seu poder “do mundo” e passou a viver na
pobreza. Segundo Matthew, líder do Iris, Neném é um missionário em tempo integral e um
dos melhores evangelistas do Iris. O que faz então com que o tempo de Deus seja tão lento
para ele? Por que ele e Deus não são o bastante?
Na parte anterior, vimos que participar das missões confere às mulheres uma
qualidade moral capaz de ressignificar diversos índices do “errado” operantes nos contextos
estudados. Mas, de algum modo, a figura masculina de Neném parece menos porosa. Isso me
faz olhar diretamente para as guerras, na política da droga e na missão, sobre as quais Neném
constrói a sua subjetividade.
Tanto em sua versão colonizada (FANON, 1968) quando missionária (HALL, 1994)
essas guerras coincidem ao elaborar fantasias de um “poder muscular” que faria dos
guerreiros algo mais que humano. A missão promete claramente um poder divino. E a política
da droga?
No ensaio Violence, non violence. Sartre on Fanon, Butler (2015) notou que Jean-Paul
Sartre, na sua introdução ao livro de Fanon, pensa a violência como condição para a produção
169
Voltarei ao tema no capítulo 7.
249
170
Retornarei a essas categorias em seguida.
250
tiros, e que ela tinha que abordar as pessoas que eram do perfil dos
marginais171 .
Elas [as gangues] matam e morrem por um tênis, uma sandália “kener” [sic],
um boné de marca, um relógio, uma bicicleta; elas buscam mercadorias
globalizadas do consumo que as leva a exibir-se como pertencentes à esfera
social mais ampla (1998, p. 278, grifo da autora).
171
Diário de campo, 8 de março de 2016.
251
Ainda que o próprio autor pondere mais à frente no seu texto que os binarismos entre
colonos e colonizados, em sua força homogeneizante, são pouco úteis à luta pela
descolonização, ele reconhece que a mestiçagem não muda esse estado de perpétua violência,
explícita ou latente (1968).
Retenho de Fanon aqui a ênfase nos objetos que permeiam as hierarquias entre
masculinidades coloniais, fundamentais para a análise desse capítulo. As roupas são desde
252
172
Confusão ou conflito construído coletivamente no modo de um “enxame de abelhas”.
173
“Pode-se afirmar que toda gangue é uma galera mas nem toda galera é gangue” (DIÓGENES,
1998, p. 161).
254
uma cadeia de violência que parecia não ter fim, as gangues se engajavam num processo de
“autodestruição coletiva” (FANON, 1968). Novamente, honra e fama eram os bens
disputados nessa guerra de meninos. Seu financiamento nos anos 1990, porém, não se dava
pelo tráfico de drogas, mas pelos furtos e roubos (DIÓGENES, 1998).
A territorialização do poder de jovens racializados nas periferias de Fortaleza, onde
violência era meio e fim, foi percebida como uma afronta à ordem e ao poder do estado. O
GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais), da Polícia Militar do Ceará, foi criado em 1994
para combater esses “meninos” (1998, p. 160).
Na pesquisa de Leonardo Sá, publicada doze anos depois, outra guerra é descrita.
Ainda estão presentes as gangues ligadas a pequenos territórios delimitados em uma mesma
favela. Esta, por sua vez, era “confinada entre o mar e o sertão”. A mobilidade imaginada
pelos jovens se dava “no sentido leste-oeste” (2010). Ainda que materializada em torno da
droga, a guerra descrita também se travava em torno da honra e da fama e pressupunha um
poder mais que humano.
Em 2008, elas eram também guerras fraternas. Honra lavada com sangue, mesmo que
seja o sangue do “irmão”. Mas já havia nesse período a ideia de que o caso específico que
desencadeava a guerra nas favelas era uma resposta desproporcional a um “inimigo
substituto” (2010). Para quê disputar a favela se pode-se disputar a cidade? Era a ideia das
facções, que chegava aos poucos em Fortaleza.
Uma “cultura” do tráfico que os “meninos” estavam afim de aprender, na perspectiva
de Neném. Os “meninos” se sentiam humilhados pela polícia, com suas torturas e seus
subornos desaforados, querendo mandar até “nas áreas” deles. A “população”, vendo isso,
podia até ter pena dos “meninos” – jovens nas oficinas falaram que eles eram “vítimas” –,
mas eles não queriam pena. Queriam ter moral e botar moral.
Fica muito claro na pesquisa com assaltantes à banco realizada por Jânia Aquino que,
para “botar moral” e revestir-se de legitimidade, o dinheiro adquirido através de crimes contra
instituições financeiras precisava ser corporificado através produção de masculinidades
valorizadas (2009). Nos casos analisados pela autora, a performance de outras “identidades”
255
que incluíam novos nomes, história, profissão etc., permitiam a corporificação dessas
masculinidades.
É a coletividade das ações dos “meninos” que as situam de maneira mais clara como
um projeto político. Em suas guerras e territorializações de antes eles buscavam instituir
poder nas margens onde a moral seria deles. Contudo, tinham como obstáculo a falta de
legitimidade atribuída às suas ações. Eram considerados cafuçus, pirangueiros, marginais.
Essas categorias possuem diferenças entre si, mas todas coincidem em indicar
masculinidades desvalorizadas, marcadas por classe e raça. Cafuçu é uma categoria masculina
fundamental nas economias sexuais, mobilizada para designar parceiros desvalorizados nas
trocas de sexo por dinheiro, passíveis de exotização em alguns contextos. O cafuçu é marcado
pela falta de qualidades e pela rudeza do trabalho braçal. Enquanto categoria fluida, ele é
acionado para marcar entre si e o cafuçu diferenças de classe e raça (FRANÇA, 2013). Seu
conteúdo moral não é necessariamente negativo. Existem os “cafuçus do bem”. No capítulo
seguinte analisarei seu acionamento na Praia de Iracema.
Pirangueiro/a é uma categoria mobilizada desde fora para indicar adesão à estética e à
moral “de marginais”. Ela justapõe corporalidades marcadas por gênero, raça, classe e idade
aos objetos de desejo “ilegítimos”, às gírias, aos piercings e tatuagens, à possibilidade de “se
dar bem só na conversa” ou através se pequenos “crimes” (PAULA, 2010; SILVA, 2016).
Uma militante dos movimentos feministas negros explicou que não deixava sua filha
adolescente sair de casa quando havia intervenção da polícia no bairro de periferia onde
morava: “tem cara de pirangueira”. Glória Diógenes aponta que, entre os integrantes de
gangues, a categoria pirangueiro ganhava uma segunda conotação negativa:
Marginal é uma categoria mais fluída que as duas primeiras, acionada para opor
moralmente jovens que corporificam de maneira similar as categorias de raça, classe, idade e
local de residência. Em referência ao rap de Lobão, Diógenes nota que ao afirmar que “eu
moro na favela mas não sou um marginal” o autor simultaneamente subscreve às formas de
marginalização homogeneizantes impostas à favela, e nega a marginalidade de sua própria
subjetividade ética.
256
Ser classificado como cafuçu, pirangueiro ou marginal implica em ser colocado numa
posição desigual, onde o corpo combinado ou não à moral fundamenta o desprezo. No caso
das masculinidades aqui em análise, implica na negação do binômio fama-honra
historicamente constituído como “valor do homem”.
Essa forma de desvalorização do sujeito marcada por gênero é percebida em diferentes
dinâmicas. As relações com a polícia são as mais reconhecidas na literatura, mas na
convivência cotidiana nos bairros e, sobretudo, nas relações de amor e desejo elas também
pesam para os “meninos”. A letra da música Fui humilhado, da Academia da Berlinda (2011),
é eloquente sobre esse peso:
Você abusou,
Abusou de mim
Me chamou de feio,
Que eu não sou legal
Oh! Pena de mim
Sentir essa rejeição,
Você não tem coração
Em minha vida,
Desde pequeno
Fui humilhado
Quando eu chegava nas gatinhas,
Não era considerado
Só porque eu era magrinho,
Cara de marginal
Agora que eu estou na mídia, sou um cara legal
Eu sou um cara legal!
frequentava, falava dela. Carol era descrita como uma mulher nova, bonita e poderosa que
comandava o tráfico nessa região.
Em um inquérito policial no qual ela foi denunciada por tráfico de drogas, Carol foi
descrita como uma “scort girl”174. Na narrativa policial ela tem sua importância na política
financiada pela droga diminuída em relação à de seu companheiro e parceiro de negócios. Já
as narrativas desde as favelas colocam Carol sempre como “chefe”.
Diziam que ela andava armada: no seu carro, a arma ia debaixo do banco, ao alcance
da mão. Diziam também que se mexessem com os “meninos” da Carol ela mandava “cobrar”
com a vida. Diziam que seus advogados eram os melhores de Fortaleza, por isso ela não
ficava presa. Diziam que era ela quem tinha efetivado a lei de “não derramar sangue” na
favela.
Ao mesmo tempo em que a fama de Carol se construía sob sua coragem e sua honra,
que a aproximavam de representações valorizadas de masculinidades (PAULA, 2010), diziam
que era também Carol quem mandava sortear bicicletas entre as crianças da favela em datas
festivas. Carol conjugava em sua imagem aspectos positivos de masculinidades e
feminilidades para comandar o crime. Isso a aproxima da imagem dos fundadores de grandes
grupos empresariais analisados por Piscitelli (2006).
Carol era considerada uma pioneira, capaz de “transformar paisagens geográficas e
sociais” (2006, p. 86). Em 2018, uma moradora de uma dessas favelas constatava, com pesar:
“as pessoas falavam que era violento no tempo da Carol, mas agora ela morreu e a violência
só aumentou”. Antes da “pacificação”, Carol conseguiu implementar uma política nas
margens dotada de certa legitimidade. Sua morte não se deu em contexto de violência. O que
é fundamental na fama de Carol é o desejo por uma política de paz nas margens que ela
materializou. Uma política corporal com moral.
Os relatos sobre a época do comando de Carol em Fortaleza se aproximam das
análises sobre as práticas dos “donos de morro” do Rio de Janeiro em diversos aspectos:
proteção de um território, monopólio do uso legítimo da violência e funcionamento do tráfico
sob hierarquias e laços de reciprocidade entre os sujeitos (GRILLO, 2013). As guerras de
2012 entre várias comunidades no litoral oeste instituíram esse poder centralizado. Não houve
guerras subsequentes contra outros chefes porque, à época, as únicas favelas articuladas
naquela “cultura” seriam as “suas”.
174
Garota de programa.
258
podiam incluir policiais. A imposição das trocas de “mercadorias políticas” (MISSE, 2007)
nas margens borrava os limites entre o legal e o ilegal, legítimo e ilegítimo.
Nesse contexto, a instituição de um comando central e moralizado para proteger
cidadãs e cidadãos e fazer guerra contra a polícia era atrativa para muitos jovens da periferia
que não tinham envolvimento com a venda ou uso de drogas. Tratava-se de uma nova
proposta política cujas práticas eram consideradas legítimas pela população.
Crianças e adolescentes passaram a utilizar a sigla Pjl (Paz, justiça e liberade), lema
atribuído às facções175, em seus nomes nas redes sociais. Muitas delas passaram a associar
imagens heroicas da cultura pop contemporânea aos “meninos”. Personagens como o par
romântico de vilões Coringa e Arlequina, que no filme Esquadrão suicida (2016) são
recrutados nas prisões para salvar o mundo de um jeito “desmantelado”, serviam de
inspiração para fantasias e tatuagens.
Honra e fama, ainda que “desmanteladas”, estavam mais acessíveis do que nunca.
Mesmo que a paz fosse considerada por muitos uma “falsa ilusão”, ela era também afirmada
pela circulação de cidadãs/aos e pela aplicação da “justiça” para aqueles que “perturbavam” a
paz dos bairros. “Botar moral” e “fazer justiça” no bairro através de linchamentos, mutilações,
ferimentos à bala e mesmo morte eram ações consideradas legítimas por boa parte da
população. Essas punições foram amplamente publicizadas através de vídeos que circularam
nas redes sociais.
Essa profusão material da paz, gerava outras materializações. Pessoas que não tinham
nenhuma relação com as facções tinham seus corpos associados aos seus símbolos.
Afirmando a paz, a população produzia a paz para além dos “meninos”. A “justiça” através
dos linchamentos estava disponível para cidadãos. As fronteiras se tornavam mais tênues. A
moral do “meninos” encontrava a dicotomia moral hegemônica operante naqueles contextos.
Como explicita Padovani, há uma justaposição entre ordenamentos morais “criminais”
e religiosos. Ela pode ser percebida em diferentes aspectos das experiências nas prisões e
também no vocabulário do PCC, que é hibridizado com as palavras da igreja, conferindo-lhe
“toda carga que este léxico traz acerca do “bem” e do “mal”, do “justo” e do “perverso”.”
(2015, p. 281) Acrescento a essa lista o “certo” e o “errado”.
Nessa hibridização puderam ser vislumbradas as coincidências e limites entre os
processos de estatização empreendidos por igrejas e crime nos corpos e territórios em estudo.
Gênero e sexualidade se constituíram em categorias fundamentais dessa política. A
175
Segundo Biondi, Pjl coincidia como ideais do PCC e CV até a adição da “igualdade” aos valores do
primeiro (2009).
260
O período que corresponde ao fim da paz aconteceu primeiro “fora” (do estado),
depois “dentro” dos presídios e, finalmente, transbordou para os bairros. A maior parte deles
aconteceu quando eu não estava mais fazendo etnografia. Assim como a “pacificação”,
porém, a guerra se impõe sobre todas/os que moramos em seus territórios.
Eu busco neste tópico tecer algumas considerações sobre a guerra que acontece
enquanto escrevo. Elas estão em continuidade com as análises tecidas por mim e pelas
pessoas que conversaram comigo nesse período. Dou algum tipo de “fim” à análise,
esperando que alguma mágica faça isso dar “fim” também à guerra.
*
Parte da desconfiança entre pesquisadores/as em relação à “pacificação” em Fortaleza
foi provocada pela associação entre PCC e CV nessa cidade enquanto que essas facções eram
consideradas inimigas em outros contextos. Essa desconfiança provou-se pertinente. Outro
ponto importante foi a homogeneização que a “pacificação” provocou entre PCC e CV,
facções que guardam entre si importantes diferenças, resumidas no artigo de Daniel Hirata e
Carolina Grillo (2017), e também FDN e GDE, sobre as quais não foram desenvolvidas até o
momento pesquisas acadêmicas aprofundadas.
Seguindo o material etnográfico, é possível traçar uma linha de continuidade entre os
contatos estabelecidos pelos “meninos” do Oitão Preto com o Rio de Janeiro desde 2008, o
tipo de comando estabelecido por Carol em Fortaleza depois das guerras de 2012 e o
261
estabelecimento do Comando Vermelho nessa área. A sigla “Pjl” foi utilizada desde o início
por jovens de todos bairros onde desenvolvi pesquisa de campo: Praia de Iracema, Moura
Brasil e Pirambu. Todos Carol. Todos CV.
Ainda que esse caminho possa ser traçado, existem desvios. Há relatos de que, no
começo da “pacificação”, o Oitão Preto era PCC. Vieram pessoas do Rio de Janeiro para a
favela fazer a “transição” pacífica para o CV. Por outro lado, o CV oscila entre aparecer como
um comando “de fora” e um comando local. Recentemente, inscrições assinadas CVCE,
reforçam o caráter “nativo” do comando.
Durante a “pacificação”, por mais que as divisões territoriais entre CV e PCC fossem
claras, a ideia era de que esses comandos, junto a seus parceiros FDN e GDE,
respectivamente, agiam em concerto, articulados desde a prisão. As regas eram virtualmente
as mesmas.
A guerra entre o PCC e o CV veio da fronteira amazônica devido ao rompimento de
acordos para compras de armas e drogas (RODRIGUES e LOPES, 2017). A guerra, assim
como a “pacificação”, foi anunciada publicamente em setembro de 2016 através de
mensagens nas redes sociais. Desde outubro foram registradas rebeliões em presídios do
Ceará. Nesse mesmo período, tiroteios e mortes foram registrados na região do litoral leste
(PCC), onde vivia o irmão de Marcola.
Desde então, eu e minhas amigas assistimos horrorizadas aos vídeos e fotografias
veiculados de maneira “viral” nas redes sociais cuja intenção era paralisar tanto os “meninos”
rivais quanto a população: futebol com cabeça, coração arrancado e outras maneiras de
representar não somente a morte, mas a confusão dos contornos do que é um corpo e do que é
uma forma de vida humana (ASAD, 2007).
Apesar dessas imagens, até meados de 2017, o Pirambu “em si” ainda estava
pacificado. Não podia roubar ou bater em mulher. As brigas entre as gangues não voltaram,
estavam ainda todas juntas, todas CV. O problema era que tinha acabado a paz entre os
bairros. O Pirambu era “dois” (CV) e seu vizinho, a Barra do Ceará, era “três” (PCC). Dentro
da Barra, havia um enclave do CV, o Morro do Santiago.
Por conta das disputas em torno desde território, “os meninos só viviam se matando”.
Como na guerra de antes. Mas muito havia mudado. A ênfase dada durante a “pacificação” à
proteção dos corpos cidadãos em seus territórios os transformou em alvo das ações inimigas
durante a guerra. As disputas não se limitavam mais a quem era “envolvido”, ou mesmo a
quem corporificava o “caminho errado”.
262
Não bastava mais andar pelo caminho “certo”. Corpos inscritos em um território
inimigo também se tornavam inimigos. As chacinas de 2018 foram apreendidas nessa lógica.
No dia 27 de janeiro, 14 pessoas foram mortas numa festa nas Cajazeiras, na periferia de
Fortaleza. O ataque foi atribuído à GDE (em parceira com o PCC) e tinha como alvo
quaisquer frequentadores ou passantes, pois aquele era um reduto do CV.
De modo similar, a chacina que aconteceu em um bar no Benfica, bairro universitário,
no dia 10 de março de 2018 tinha como “alvo” apenas uma pessoa, mas vitimou sete e deixou
muitas mais feridas. Ela também foi atribuída à GDE. Junto às chacinas, mensagens
circulavam nas redes sociais com promessas de ataques a festas carnavalescas e boates na
Praia de Iracema: “porque é CV”. Um jovem que vivia numa das favelas da região afirmava
que eram ações terroristas. Para ele, não havia mais moral ou política reconhecível. Só
violência.
Entre pesquisadoras que conhecíamos algo da produção acadêmica sobre o PCC, as
ações da GDE, pareciam ininteligíveis. Conversando com Jânia Aquino sobre a “pacificação”,
ela indicou que a parceria entre PCC e GDE poderia ser apenas econômica, no fornecimento
de drogas e armas. A política de cada uma se manteria independente.
Para encontrar um caminho analítico possível, retorno rapidamente aos textos de
Karina Biondi (2009; 2014) e Adalton Marques (2010) sobre o PCC em sua ênfase na
introdução do princípio da “igualdade” ao lema do PCC (paz, justiça, liberdade e igualdade).
263
Aciono também a crítica feita por Natália Padovani (2015) à aplicação da “ideia” de
igualdade na prática do PCC nas prisões paulistas.
Paz, justiça e liberdade são os princípios originais do PCC. Paz “entre os ladrões”
combinada à guerra: justiça e liberdade se referem à “guerra aos policiais” e às fugas das
prisões (“quebrar cadeia”), respectivamente. O PCC se mobilizou “em reação às injustiças do
Estado, mas também uma reação ao estado de coisas que vigorava entre os prisioneiros”
(MARQUES, 2010, p. 321).
Esse lema possibilitou a articulação política do PCC nas prisões paulistas, mas não
acabou com a prática da extorsão exercida através da hierarquia no comando. Após a
“destituição da cúpula” do PCC, Marcola instaurou o princípio da “igualdade”, distribuindo a
liderança, que se fundaria no consenso (MARQUES, 2010). Decisões isoladas não era mais
permitidas (BIONDI, 2009). A impessoalidade do comando, porém, não excluía
arbitrariedades. Padovani, pesquisando em penitenciárias femininas em São Paulo, notou que:
Essas considerações sobre os valores e práticas do PCC são importantes para o caso
em análise. Em Fortaleza, o PCC parece agir como parceiro econômico da GDE, financiando
suas ações através do fornecimento de armas e drogas, mas eximindo-se de responsabilidade
por elas. O PCC manteria assim seus valores de igualdade, “fortalecendo” o GDE em
Fortaleza e respeitando seus “corres” (BIONDI, 2009).
Isso era possível enquanto lógica, mas dificilmente seria bem sucedido da prática. A
população passou a odiar a GDE: chamavam os “meninos” de terroristas e imaginavam
parcerias entre o CV e a polícia para exterminá-los. Não se esqueceria tão fácil que GDE
“era” PCC: “tudo 3”. Outra parceria, mais obscura, entre polícia e GDE, era vislumbrada pelo
costume dos policiais de levar membros do CV até territórios rivais onde eram deixados para
serem torturados e/ou mortos.
Os limites do sofrimento propositalmente imposto numa guerra não estão claramente
delimitados. Asad (2003) apontou que a “quantificação” do sofrimento através de cálculos
utilitários de prazer e dor operados em diferentes contextos não têm no sofrimento do sujeito
264
colonizado sua principal preocupação. Na verdade, essa delimitação faz parte de uma
tentativa de impor “valores considerados civilizados de justiça e humanidade a uma
população assujeitada” (p. 110).
*
Quando eu estava terminando de escrever esse capítulo, fui com Angélica Ribeiro e
Germana Oliveira assistir a uma apresentação de dança da Cia Jovem do projeto Em defesa da
vida, na Barra do Ceará. Quando nos aproximamos do nosso destino, Angélica lembrou.
“Gente, aqui é três, viu?” Certo! Germana completou: “Se alguém perguntar, a gente diz que é
do Carlito [Pamplona]176, que o Carlito é neutro.” De objeto de proteção nós, que éramos
consideradas cidadãs, nos transformamos em alvo potencial. As imagem das jovens
decapitadas ainda estavam presentes na nossa memória. Nós estávamos constrangidas pelo
medo, mas não paralisadas. Não íamos deixar de circular. Fomos à Barra e vimos as meninas
se classificarem para a final do Festival de Dança da Juventude promovido pela prefeitura de
Fortaleza na Rede Cuca com a coreografia Nego drama, na qual elas dançavam sobre gênero,
raça, classe e idade na produção da precariedade da vida no Pirambu. Com Nego drama Cia
Jovem do projeto Em defesa da vida venceu a competição.
Neném foi um dos missionários com quem eu mais me identifiquei. Talvez porque ele
não tivesse o olhar peculiar de quem está salvo, como observou Adriana Piscitelli sobre
outros missionários. O processo de salvação de Neném estava em curso, havia espaço para o
erro, para a falha, para a humanidade. Neném não era um santo.
Eu me sentia à vontade conversando com ele apesar das diferenças de gênero, classe,
raça e religião que existiam entre nós. Essas categorias da diferença, combinadas às
corporalidades “da favela”, imprimiam em Neném uma “cara de marginal”: magreza, falta de
alguns dentes na boca, jeito de caminhar e tatuagens.
Sobre estas ele me falou com detalhes. Tinha um escorpião, que representava a
vingança; depois ele descobriu que podia ser também signo do “cabueta”, mas aí já estava
feita. A carpa, peixe japonês, fez porque era “ladrão”. Tinha também um tubarão e um
Wolverine177, sem significados especiais. Seu plano era cobrir tudo com imagens do fundo do
176
Carlito Pamplona é um bairro próximo ao Pirambu.
177
Herói das histórias em quadrinhos e filmes homônimos produzidos pela Marvel.
265
mar. Aos missionários era permitido ter tatuagens, mas aquelas de Neném carregavam
consigo a marca da marginalidade, tanto pelas técnicas usadas no desenho quanto pelos
significados (DIÓGENES, 1998; SOUZA, 2014).
A moral missionária, tão evidente em algumas jovens, não era corporalizada por
Neném. Ele notou que os elementos que o valorizavam no contexto da política financiada pela
droga estavam em simultânea continuidade e ruptura com aqueles que o fariam ter moral
como missionário. Era um trabalho minucioso de produção estético-moral onde corporalidade
e moralidade coincidiam (HALL, 1994).
Neném era um homem de muitas mulheres antes de “largar tudo”. Não dormia uma
noite só. Em certa ocasião, meteu-se em um triângulo amoroso perigoso que envolvia uma
pistoleira e sua filha. Ambas apaixonadas por ele. Como tinha juízo, não quis nada com
nenhuma. Ele sabia que a pistoleira matava todos os genros, mas brincou com fogo enquanto
pôde.
Nas diferentes fases da vida de Neném, o prédio onde ficava a Casa de Oração era
uma constante. E ele admirava muito a arquitetura daquela casa. Ela foi construída com
“visão de 360o” para a favela por um traficante local. Dava vista para o mar e todos os becos.
Depois que o traficante foi preso, a casa foi alugada pela pistoleira apaixonada. Finalmente, se
transformou na Casa de Oração. Neném passou pela casa nesses diferentes momentos, mas
em cada um deles, masculinidades diferentes precisaram ser mobilizadas.
Quando o conheci, Neném já era missionário. No Oitão Preto, onde ele estava entre
missionários e traficantes, eu observa as pequenas torsões nas masculinidades que
possibilitavam que ele fosse enquadrado na primeira categoria. Era preciso ter coragem sem
nenhuma violência. Sentir um amor radical e ao mesmo tempo servil. Ser viril sem ser
conquistador.
Enquanto ensaiava essas novas masculinidades, ele experimentava a desvalorização
nas relações com mulheres. Em muitas situações, Neném não era “considerado”. Entre as
missionárias, vi que uma dela descartou uma informação dada por Neném sobre as dinâmicas
do tráfico na favela. Não sabia se era verdadeira e preferiu perguntar a outra missionária.
Certa vez, uma menina do Oitão que brincava de dizer o nome das missionárias e
missionários chamou Neném de “homem”, mas depois corrigiu por “tio”, categoria na qual se
enquadram os missionários na favela.
Por outro lado, nas ações de evangelismo na “zona vermelha”, Neném se sentia
bastante assediado. Ele me explicou que não era fácil para um homem que não era casado
estar no meio daquelas “mulheres seminuas”. Em um evangelismo, uma das mulheres “deu
266
em cima” dele. Num “Banquete do amor”178, outra teve a mesma atitude. Ele considerava
muito difícil enfrentar essas situações, então preferiu se abster das ações.
As ações missionárias na Praia de Iracema eram onde as masculinidades valorizadas
no Iris se exprimiam. Como me disse uma jovem estrangeira que visitou o Iris em Fortaleza,
um dos pontos que mais chamava a sua atenção no enfrentamento missionário a “crimes
sexuais” era dedicação de homens “muito apaixonados pelo combate à exploração sexual”.
As masculinidades missionárias no enfrentamento a “crimes sexuais” são construídas
sobre um modelo de “guerreiros sensíveis” que usariam sua honra e sua fama para fazer
justiça e salvar as “vítimas” de “crimes sexuais” (BERNSTEIN, 2007). Como heróis
românticos de contos de fadas (GARDNER, 2011).
Segundo discursos missionários, as masculinidades contemporâneas estariam em
“crise” diante da dicotomia entre lugares escuros, estrangeiros e perigosos, onde homens
seriam tentados, e a domesticidade branca e segura do casamento à qual pertenceriam os
homens “de verdade” (PENDLETON, 2017).
Missionários nesses “lugares escuros” tinham que demonstrar a sua força moral ou
submeter-se ao comando de outrem. Em abril de 2016, eu e Adriana Piscitelli encontramos
numa boate na Praia de Iracema uma equipe de missionários que realizava uma visita de
campo para aprender o evangelismo na “zona vermelha”. A equipe era formada por Léa,
missionária experiente, e três alunos da Escola de Missões daquele ano, duas mulheres e um
homem, todos muito jovens. Apenas uma delas falava português.
Com a intenção de que as alunas praticassem o evangelismo, Léa decidiu levar as duas
jovens ao banheiro feminino, principal lugar onde as missionárias faziam contatos bem
sucedidos com as mulheres que circulavam por aquelas boates. Constatando que o jovem que
as acompanhava não poderia entrar, a líder pediu que uma funcionária da boate “cuidasse”
dele, como se fosse uma criança. A funcionária não entendeu a proposta e recusou a
responsabilidade. A líder explicou melhor a necessidade de proteção do jovem e a funcionária
finalmente concordou.
O barista, australiano, de 20 anos, cabelos cacheados e pele morena guardava certa
distância da líder, esperando pacientemente o resultado da conversa. Eu me aproximei dele e
perguntei em inglês se ele sabia que a líder estava pedindo que a funcionária cuidasse dele.
Ele respondeu que sim. Perguntei então se ele achava aquilo necessário. Muito calmo, ele
respondeu que a missionária era a chefe (“the boss”) e que ele faria o que ela mandasse.
178
Conferir capítulo 7.
267
Completou que não conhecia nada ali e que antes de sua visita as pessoas disseram que as
mulheres poderiam “atacá-lo”, ficar em cima dele, e ele não sabia se estava preparado para
isso.
O jovem percebeu na sua infantilização uma etapa necessária para a sua produção
como sujeito ético do enfrentamento missionário a “crimes sexuais”. Ele queria fazer a obra
de Deus (“do God’s works”) e seu maior interesse era o tráfico de pessoas. Ele reconhecia que
as qualidades morais necessárias para a produção de masculinidades missionárias na “zona
vermelha” eram específicas e percebia naquela situação parte de seu aprendizado.
Neném entregou “tudo” quando foi para o Iris, mas não entregou sua masculinidade.
Ele preferia agenciar outros elementos para sua construção com sujeito ético na missão. Não
se furtava a realizar serviços pesados, de pedreiro, eletricista e encanador, necessários para
manutenção da Casa de Oração. Estava sempre disposto a contar sua história e, mesmo tendo
baixa escolaridade e dificuldades na escrita, começou a escrever um livro onde contará a
história do Oitão.
Neném constrói seu argumento tecendo fios entre a história do Oitão, que ele ouvira
de sua avó e de outras mulheres “antigas” no bairro, e a sua própria história. O marco inicial
da vida do Oitão e da vida Neném é o mesmo: o tráfico de escravos africanos para o Ceará.
Segundo Neném, os africanos escravizados que vinham para o Ceará ficavam “acorrentados
na entrada do Oitão” e ali eram “leiloados, comprados, negociados” e levados para as serras
onde trabalhariam nos engenhos.
Dos “escravos acorrentados” na entrada da favela nasceram seus descendentes. Neném
hesita, porém, em classificá-los racialmente: “conheci uma família que eles todos são... Né...
De...”. Talvez Neném não soubesse a maneira correta para se referir a pessoas negras, e
titubeasse por conta do gravador, mas ele sabia que ele e seus vizinhos no Oitão eram negros.
Descendentes de escravos. Acorrentados na entrada da favela. Acocorados numa cela do
quartel.
Ele pontuou que no mesmo porto por onde chegavam os escravos, chegavam também
os marinheiros. E eles vinham “atrás de mulher”. Muitas mulheres pobres que migravam do
interior para “tentar a vida” em Fortaleza “acabavam se prostituindo” com esses marinheiros.
Para Neném, o Oitão, à época chamado de Curral das Éguas, também se configurava em uma
prisão para elas. Neném as percebia reduzidas a algo menos que humano, tratadas “como
vacas”. Os filhos das relações estabelecidas no curral faziam “famílias de estrangeiros” na
favela.
268
A família de Neném não era diferente. Sua cor, sua pobreza, sua moralidade foram
herdadas. A vida com a droga foi a “prisão” que ele conheceu em primeira pessoa. Vivida por
ele junto com muitos jovens da sua geração, numa história marcada por diferentes formas de
prisão.
A produção de Neném como sujeito ético missionário passava pela reconstrução de
sua masculinidade em um contexto que era dicotômico no discurso, mas na prática
atravessado por ambiguidades. O acionamento de sua masculinidade “de marginal” era
fundamental para a narrativa do poder de Deus na transformação de vidas (TEIXEIRA, 2009;
CÔRTES, 2012; MACHADO, 2014). No fio da história, a sua transformação em uma “nova
criatura”, representava também a transformação do Oitão. Esse é o projeto missionário do Iris
e o projeto pessoal de Neném.
Ao mesmo tempo, a corporalidade de Neném nas margens, contida no seu estilo de
masculinidade, estabeleciam limites para ele dentro do projeto missionário. Neném “largou
tudo” e foi para o Iris, mas precisou levar consigo seu corpo. Ele não deixaria de ser “um
homem” para se tornar uma “nova criatura”. Então, agenciava como podia sua vida, seus
conhecimentos e sua história, esperando que isso se materializasse no seu reconhecimento, no
sentido que Judith Butler (2009) dá a essa palavra: reconhecimento afetivo de si no outro.
Neném queria amor. Neném queria casar.
Eu não duvido que Neném tenha sucesso em reconstruir-se de acordo com as
masculinidades missionárias. Contudo, são as dificuldades nesse processo que permitem
discutir as transformações contemporâneas nas performances de gênero e possibilidades de
agência. As guerras e cálculos de Neném para adequar sua performance de masculinidade
num novo contexto, iluminam também as transformações nas masculinidades provocadas pela
guerra que acontece agora em torno da política financiada pela droga.
A centralização dos comandos e a unificação dos territórios teve o resultado que,
segundo Arendt, ela sempre tem: “a monopolização do poder causa o ressecamento ou
desaparecimento de todas as fontes autenticas de poder do lugar” (1970, p. 168). E ela
completa que toda queda do poder é um convite aberto à violência.
Em 2018, comentava-se que o GDE queria retomar o poder que teria sido “roubado”
por essa galera “de fora”. Era a história da colonização toda de novo. Colonização dessa vez
empreendida pelos comandos “de fora” que faziam desencadear novas e mais sangrentas
guerras fratricidas. Mais uma vez “emasculados” (MBEMBE, 2001) numa proposta de
estatização, os “meninos” da GDE resolveram “tocar o terror” na cidade. Outras
269
masculinidades foram produzidas. A fama não tinha mais relação com a proteção, mas com o
perigo.
Os “meninos” da GDE pegaram três jovens do Pirambu na Leste. Dizem que uma
delas era envolvida, as outras duas só “andavam” com ela. Levaram todas para o mangue, no
encontro do Rio Ceará com o mar. Filmaram uma delas dizendo que “rasgava a camisa do
CV” e que agora era GDE. Torturaram, mataram e decapitaram as três. Seus corpos só foram
achados com a ajuda dos assassinos. Os vídeos com as cenas de tortura, porém, foram vistos e
revistos.
*
A cena que culmina com as jovens no mangue sintetiza os temas que eu abordei nessa
capítulo. É uma cena de guerra na qual territórios e corpos marcados por raça e classe se
confundem. Essa confusão é exacerbada na circulação marcada por gênero, que se tornou
objeto em disputa nas políticas nas margens. Junto à tudo isto, há o cenário que transborda.
O cenário do mangue é parte fundamental da construção do horror dessa cena. O
processo de através do qual é desfeito o aspecto humano da vida das jovens – tortura,
assassinato, decapitação e ocultação dos corpos – sangra ao ser enquadrado nesse limite
geográfico entre terra, rio e mar. Nesse espaço liminar, os limites da vida se tornam porosos e
finalmente se perdem, mergulhados em uma espessa lama negra.
O mangue e também a praia são lugares privilegiados da tortura. A forma humana de
quem morre e de quem mata se mistura, se desfaz e se perde nessas margens (ASAD, 2007;
DAS, 2007). Mas, mesmo perdidas, elas resistem na narrativa de quem reivindica o seu
reconhecimento e narra margens povoadas por fantasmas.
Eu não estou falando de mangues e praias metafóricos, ou mangues e praias típico-
ideais. As margens dessa tese têm histórias muito específicas, nas quais eu me inscrevo de
maneira diversa. O mangue do Rio Ceará me aterrorizava desde a minha posição de moradora
de um território rival. Mas desde a Praia de Iracema e corporificando categorias de classe e
raça privilegiadas, eu demorei muito a conceitualizar a praia também como lugar da tortura.
Muitas vezes, ouvi comentários sobre situações em que a polícia ou os “meninos”
levaram pessoas para praia. Às vezes o relato terminava aí. Outras, vinha acompanhado de
270
mais detalhes, ainda dentro do quadro semântico da praia: “enterrar”, “fazer comer terra até
morrer”, “encher a boca de areia”. Tortura e praia se “misturavam” nessas narrativas.
Só conheci a praia do Pirambu quando Germana me levou a passeio com Natália
Padovani e Douglas Gonçalves no bairro. É uma praia linda, digna de turismo, mas quase
deserta de gente. Para chegar à beira do mar foi preciso descer uma íngreme escada de pedras
feita pela população e, em seguida, equilibrar-nos em pedras pontiagudas. Isso a tornava
pouco acessível, mas acho que esse não era o principal motivo do seu vazio. A imagem da
praia como um lugar de violência se impunha sobre os usos de lazer.
Na Praia de Iracema, sobre a qual eu falarei no capítulo seguinte, também há relatos
sobre torturas e assassinatos. Durante meus quase quatro anos vivendo no bairro, a praia não
se limitou nunca à cena de lazer e de amor que o apelido de Praia dos Crush179, dado pelas
pessoas que a frequentam atualmente, quer ressaltar.
A cena da praia como lugar da desumanização se impõe a sujeitos que corporificam
categorias de classe racializadas. A percepção da praia como cena do amor ou da violência
aponta para os limites das desigualdades. A tortura pressupõe a desumanização e a exacerba.
No mangue e na praia, essas vidas são levadas “além do limite do vale profundo que sempre
começa na beira do mar”:
Nesse capítulo mostrei como, paralelamente à expansão das ações voltadas para
enfrentar “crimes sexuais”, as jovens das periferias fazem inúmeros esforços para adequar
seus trânsitos e corporalidades a critérios que lhes permitam manter a vida. Na próxima parte
da tese eu exploro como nas economias sexuais transnacionais da Praia de Iracema jovens da
periferia encontram limites à circulação provocados pelo enquadramento no lado “errado” das
moralidades dominantes. Mas, nesse contexto de uma praia romântica, esses limites não
179
O termo inglês crush foi popularizado em português com o sentido de paquera e hoje é o nome
popular de parte da faixa de areia da Praia de Iracema.
271
incidem sobre sua possibilidade de preservar a vida, mas nas suas possibilidades de encontrar
o amor.
272
180
Expressão de sentimentalismo exagerado.
274
sexo da Praia de Iracema. Fazer a linha do amor funciona como uma metalinguagem do amor:
reconhece o ideal do amor romântico, desconstrói seu caráter “natural”, mas não deixa de
identificar no amor os suportes para a vida. O amor romântico é então reificado em sua
“falha”.
O sétimo e último capítulo desta tese desenvolve o conceito missionário de Amor
radical. Esse amor, fundado em Deus e experimentado nas relações românticas, é
materializado nas economias sexuais transnacionais através de romances missionários.
Contudo, quando o amor missionário também falha, quer dizer que não houve amor? Analiso
nesse capítulo a distribuição desigual do amor como valor ético entre missionárias e
trabalhadoras do sexo nas economias sexuais transnacionais.
275
A gramática dos direitos foi vastamente utilizada nessa disputa moral: os direitos do
condomínio de seguir sendo residencial, os direitos das pessoas que viviam naqueles
apartamentos de receberem tratamento igual aos demais condôminos e condôminas. Como
desfecho da disputa, um dos apartamentos, que recebia mais visitantes, foi desocupado. Os
demais, aos poucos, deixaram de ser objeto dos rumores e retornaram à invisibilidade
desejada por ambas as partes.
O que me chamou atenção foi, sobretudo, a fragilidade da noção “direito” para mediar
a convivência na vizinhança numa situação de crise. “Ter direito” ou “estar no seu direito” era
um argumento utilizado como forma de evitar o diálogo e acionar, na medida das forças de
cada um/a, a justiça “privada”. Estranhamente, e em oposição às minhas sugestões desde o
início do “problema”, não houve conversa.
Os encontros incidentais foram entrepostos por gravadores, câmeras fotográficas,
perseguições e outras maneiras de produzir provas para uma eventual resolução do conflito na
“justiça”. Em nenhum momento, porém, foi considerado razoável acionar uma linguagem
comum para estabelecer uma comunicação direta. Não havia comunidade na vizinhança.
“Não dá para conversar com essas pessoas”.
*
Nesse capítulo, analiso as dinâmicas das economias sexuais transnacionais a partir da
perspectiva de trabalhadoras do sexo e estrangeiros que procuram na Praia de Iracema
relações de intimidade mediadas pelo dinheiro. Eu discuto a noção de ética cotidiana diante
dos limites à comunicação que atravessam os encontros no bairro. Os textos recentes de
Judith Butler (2015) e Veena Das (2015) são importantes inspirações na análise do cotidiano
tensionado entre encontros que fazem e destroem mundos.
Onde, como e quando acontecem esses encontros? Essas questões não se referem
simplesmente ao contexto, mas também à produção de um suporte material para a
convivência. A praia é analisada nas continuidades e rupturas entre representações de amor e
violência. Ao final, uma terceira alternativa, em que os suportes à vida são emaranhados ao
“conhecimento venenoso” (DAS, 2007), pode ser vislumbrada.
As experiências de amor e violência estão articuladas à produção de diferenças que
operam local e transnacionalmente. As categorias “raça”, “cor” e “cultura” ganham relevância
nas economias sexuais transnacionais através da exotização das desigualdades raciais.
Simultaneamente, as categorias de classe racializadas são mobilizadas em relações locais
como indício da inferioridade generalizada dos sujeitos cujos corpos são produzidos numa
alteridade considerada radical.
277
A praia foi cenário de muitas situações descritas nesta tese. Foram festas, passeios,
protestos e torturas que aconteceram na praia. No capítulo anterior eu notei que era necessário
analisar mais de perto os diferentes sentidos que a praia poderia ter para pessoas que
ocupavam posições diferentes.
Pensando nisso, eu escrevi que a proximidade com o mar, que me inspirava liberdade
quando eu o via desde a minha mesa de trabalho, representava uma prisão para adolescentes
no Pirambu e trabalhadoras do sexo na Praia de Iracema. Mais que isso, descrevi praia e
mangue como cenário de processos de desumanização articulados a gênero, sexualidade,
classe e raça.
278
Nesse capítulo eu analiso as narrativas que produzem a Praia de Iracema como uma
mercadoria de lazer colada ao amor romântico. Nesse contexto, a racialização se traduz na
exotização de corpos e territórios inseridos nas dinâmicas das economias sexuais
transnacionais. Prestando atenção às ambiguidades na produção de alguns signos “culturais”
que singularizam a Praia de Iracema, eu chamo atenção para as governamentalidades que
escrevem o romance da Praia de Iracema em oposição ao perigo associado ao Moura Brasil e
ao Pirambu.
A produção acadêmica local que tem a Praia de Iracema como objeto é vasta. A maior
parte dos textos se dedica a analisar o bairro a partir dos seus prédios e das políticas públicas
que os afetaram. Uma exceção absoluta nesse sentido é a pesquisa realizada por Adriana
Piscitelli nos anos 2000. Justamente por estar interessada nas dinâmicas entre as pessoas que
viviam no bairro mais do que nos seus equipamentos, a pesquisa a levou para muitos outros
lugares. Entre políticas e dinâmicas, eu analiso a produção da Praia de Iracema como um
território do desejo.
Aleytusia Benevides (2003) propõe que desde os anos 1980 a Praia de Iracema foi
alvo de intervenções governamentais que buscavam adequar o território às exigências do
“mercado mundial” através da “elaboração estética da cultura” e de intervenções urbanísticas.
Nesse período, o estado do Ceará era percebido como um contexto livre de “tradições”, e por
isso, era também livre para inventá-las. Busco nesse texto reunir saberes descontínuos sobre
os elementos que foram acionados nessa invenção “cultural” da Praia de Iracema para
reinseri-los nas dinâmicas de desigualdades que marcam a história longa do bairro.
Comecemos por Dragão do Mar, que dá nome ao centro de arte e cultura que é um dos
principais “vetores” da invenção cultural do Ceará (2003). O epíteto Dragão do Mar foi
conferido pela Sociedade Cearense Libertadora a Francisco José do Nascimento, mais
conhecido como Chico da Matilde, por sua atuação no movimento dos jangadeiros contra o
embarque de cativos no porto de Fortaleza em 1881 (FERREIRA SOBRINHO, 2011).
José Hilário Ferreira Sobrinho nota que a produção da figura do Dragão do Mar como
“representante dos abolicionistas na praia” apaga a atuação da “rede de solidariedade
envolvendo negros livres e libertos (...) sob a liderança de dois homens de cor e do mar”
(2011, p. 314) que visibilizou o abolicionismo no Ceará.
O autor escreve contra o relato oficial sobre a abolição no Ceará, que mobiliza a
homogeneidade de um “povo acolhedor” que “não mais a admitia”181, e nota as diferenças de
181
Ver capítulo 3.
279
raça e classe entre a Sociedade Cearense Libertadora e o movimento dos jangadeiros na Praia
de Iracema. Enquanto que essa Sociedade era formada por homens ricos e brancos, os
jangadeiros eram afrodescendentes livres ou libertos cujas experiências os aproximavam das
pessoas vitimadas pelo tráfico interprovincial desde o Ceará que eram, em sua maioria,
“nativas” da região.
Numa população geral de pessoas “de cor”, segundo os censos analisados pelo autor, a
violência instituída pelo tráfico interprovincial vitimava além de cativas/os, pessoas
afrodescendentes pobres libertas e livres. Era também a confusão dos limites entre essas
categorias que permitia que, nos períodos das secas, cativas/os escapassem da venda e do
cativeiro como “retirantes”.
A produção de novos limites foi nesse período um dos principais objetivos das elites
locais. A ambivalência da “cor”, que abria espaço para violações, mas também
agenciamentos, afetava os direitos de “propriedade”. A solução encontradas por muitos
“senhores” foi, então, desfazer-se do contingente cativo através da venda (2011, p. 182).
Assim, eles afirmavam a “liberdade” como uma produção territorial limitada pela ausência da
“escravidão”, não um valor moral “universal”.
A figura quase mítica do Dragão do Mar apaga as diferenças entre as ações de
jangadeiros, Sociedade Cearense Libertadora e “senhores” de escravos que, por motivos
diversos, levaram a abolição da escravatura no Ceará em 1884. O povo homogêneo “bravo” e
“acolhedor” simbolizado por Dragão do Mar foi reificado através do centro de arte e cultura.
Na produção de um cenário “bucólico” original na Praia de Iracema, a bibliografia
esquece das disputas em torno do embarque de cativas/os. Nesses relatos, a cronologia do
bairro costuma ser iniciada nos anos 1920, quando a pacata vila de pescadores, chamada então
Praia do Peixe, seria retirada do “ritmo lento do pescador quando está fora do mar” para
entrar no circuito das elites da cidade (BENEVIDES, 2003; BEZERRA, 2008).
Nesse período, quando foram construídos alguns “palacetes” que subscreviam a
“beleza do lugar” e suas possibilidades para o “progresso” (BENEVIDES, 2003), surgiu a
necessidade de dar à praia um nome mais “elegante”. Assim, a praia foi chamada de Iracema
e “descrita com características do padrões estéticos românticos, semelhantes da índia
idealizada pelo romancista [José de Alencar] em 1865” (BEZERRA, 2008, p. 19).
A beleza “apaixonante” da praia feminina, sexualizada e racializada, era já nessa
época relacionada com a ideia do “progresso” masculino e branco que viria “de fora” através
dos navios que atracavam naquele porto (BENEVIDES, 2003, p. 21). O bairro que se
280
“desnudava para receber e encantar” (BEZERRA, 2008, p. 19) ganhou, então, o apelido de
Praia dos Amores (BARREIRA, 2007).
À poética do progresso correspondiam também necessidades práticas para recebê-lo.
A Ponte dos Ingleses, cujas obras foram iniciadas nos anos 1920 mas nunca terminadas,
materializou uma das tentativas frustradas desse encontro (BEZERRA, 2008). No meio do
caminho, a ideia de um porto na praia “chique” passou a ser considerada inconveniente. Um
novo porto, na enseada do Mucuripe, tornou-se prioridade. Em 1932, parte da população
concentrada foi empregada nessa obra, financiada pelas verbas de alívio para a seca182 (RIOS,
2014).
Seguindo as datas apontadas por Rios, a obra do Porto do Mucuripe demorou quase
uma década para ser finalizada. Nesse meio tempo, a Segunda Guerra Mundial eclodiu e
Fortaleza foi estabelecida como uma das bases dos oficiais estadunidenses. O prédio hoje
conhecido como Estoril, na Praia de Iracema, foi transformado no “clube dos americanos”,
onde aconteciam festas e encontros transnacionais. Durante o período da guerra, os produtos e
progresso desejados finalmente chegaram através dos jipes militares: “eram chicletes, cigarros
de maço, whisky, enlatados e, principalmente, Coca-Cola” (BENEVIDES, 2003, p. 21).
Segundo Benevides, “os americanos trataram de aproveitar bastante o seu paraíso
tropical”, onde sua atenção era disputada entre as “moçoilas” de famílias “do lugar” e as
“imaculadas filhas das famílias cearenses” (2003, p. 22). As relações entre as jovens
“nativas”, ricas e pobres, e os oficiais americanos eram objeto de tensões. Se, por um lado, a
proximidade com os americanos, sua “cultura” e suas “mercadorias” sinalizavam a realização
do “sonho do progresso”, por outro ela gerava ansiedades pela transgressão de normas de
gênero e sexualidade. O nome de “coca-colas” foi atribuído a essas jovens, transformando-as
de consumidoras do progresso a “produto” da “degeneração”. Ainda nos anos 2000, as “coca-
colas” eram sinônimo de prostitutas (BEZERRA, 2008).
O fim da guerra coincidiu com a inauguração do novo porto, que provocou um
significativo avanço da maré, destruindo “palacetes” e casas “miseráveis” na Praia de Iracema
e no Moura Brasil. Ainda que a imagem do “fim” da Praia de Iracema efetivamente circulasse
entre grande parte das pessoas que ali moravam e passeavam, é importante fazer alguns
questionamentos às narrativas de “destruição”. Como nota Anna Tsing: “o progresso nos
controla mesmo em narrativas sobre ruínas” (2015, p. 21).
182
Em contradição com Rios (2014), Morais (1972) aponta 1939 como data do início da construção do
Porto do Mucuripe.
281
Mas é preciso lembrar que o estado age também ao não agir. Ao não realizar o
tombamento do bairro demandado desde 1981, ao liberar alvarás “sem nenhuma restrição”
para bares e restaurantes durante a década de 1980 e ao aprovar três projetos de construção de
edifícios altos dentro da área que deveria ser preservada foram desencadeadas mudanças que,
muitas vezes, foram lidas como o “estado”, mas que envolveram uma intricada trama de
sujeitos e instituições.
Entre agentes da “especulação imobiliária” e “donos de bares” destaca-se a atuação do
português Júlio Trindade que, através da casa de shows Pirata, fundada em 1986, contribuiu
para as transformações do bairro (BEZERRA, 2008, p. 83). As disputas acerca dos sentidos
dessa mudança estavam associadas à ideia de “progresso” ou “decadência”. Seguindo a sua
atuação “pioneira”, novos bares e restaurantes pontuaram a Praia de Iracema, recebendo as
classes médias locais, turistas nacionais e, em menor número, turistas internacionais. Essa
configuração já causava problemas em 1995, quando foi apontado o conflito gerado pela
“falta de harmonia entre bares e residências” (2008, p. 89).
Os novos visitantes teriam dado fim ao caráter “bucólico” do bairro e “calado a poesia
e a arte” (BENEVIDES, 2003, p. 51). Essa denúncia fazia referência aos próprios
fortalezenses de classe média e “gostos duvidosos” que passaram a frequentar o bairro. Já em
1989 foi lançada a Campanha S.O.S Iracema:
Em pesquisa de campo realizada em 2005, Bezerra notou que, nas disputas sobre os
usos do bairro, a presença “meninas nativas e turistas estrangeiros” nas boates das ruas
Potiguaras e Tremembés era percebida como causa da (mais nova) degradação da Praia de
Iracema. A representação dessas boates como “lugar de prostitutas e gringos” (2008, p. 107),
somada à presença de “hippies”, “meninos cheirando cola” e pessoas consideradas
“traficantes” no calçadão, promoveram a imagem da “mistura” que foi associada ao bairro.
A narrativa de romance que articulou racialização e sexualização sob o signo do
exotismo na Praia de Iracema nos anos 1920 e foi atualizada num cenário de turismo
globalizado nos anos 1980 entrou em crise. A racialização passou a ser percebida também
como uma forma de inferiorização generalizada. As observações de Bezerra sobre as
representações das classes médias acerca da circulação de “jovens pobres em espaços
públicos” acompanhadas de “gringos” indicam o deslizamento entre diferentes formas de
racialização articuladas à classe.
Vale ressaltar que, nesse contexto, a classe social está relacionada com a cor
da pele, pois alguns relatos classificam as acompanhantes dos estrangeiros
como “moreninhas”, “negrinhas” e até mesmo, “macacas”. Assim, a ligação
entre estas pessoas diferentes em termos raciais, culturais e econômicos
passou a ser associada à prostituição (2008, p. 192).
183
Entrevista, 6 de fevereiro de 2014.
285
relações assimétricas não podem ser considerados equivalentes. Nas experiências das pessoas,
eles vão do amor à violência.
No segundo capítulo propus que o debate sobre “crimes sexuais” ilumina certas
violências ao mesmo tempo em que deixa à sombra as dinâmica que as produzem. Através da
pesquisa etnográfica, eu percebi que os diferentes efeitos da racialização das desigualdades de
classe eram confundidos. Da violência marcada por raça e classe experimentada na política
nas margens ao desamor nas relações com os “gringos” havia uma longa distância que, nos
discursos sobre os “crimes sexuais”, parecia desaparecer.
Analisando os usos empíricos e analíticos dos conceitos de “raça”, “cor” e “cultura”
eu espero mostrar as especificidades dos efeitos da racialização como exotismo. Em oposição
ao contexto de guerra, onde elas limitam as possibilidades de manter a vida, nas dinâmicas
das economias sexuais transnacionais elas geram limites ao amor e à comunicação.
Racialização aparece em Franz Fanon tanto como um processo de produção de
desigualdades desumanizantes quanto como estratégia de reivindicação política. Na produção
do sujeito, ela constrói uma “negrura densa e indiscutível” (2008, p. 109) que aprisiona. Já na
reivindicação política ela é pensada como uma forma de unificação cultural “africana” ou
“nacional” que só poderia levar a um “beco sem saída” (1968, p. 178).
A racialização, porém, não é uma escolha, mas o resultado de uma história colonial
(QUIJANO, 2007; LUGONES, 2008) que tem sido “recriada no marco das discussões
contemporâneas sobre os contatos transnacionais e multiculturais associados à globalização”
(PISCITELLI, 2005, p. 18).
287
184
Conceição, a personagem principal do romance, é uma jovem professora de família rica do Sertão
de Quixeramobim que vive com primas em Fortaleza. Ela é descrita como morena, em oposição aos
demais parentes, de cor mais clara: “Mas você não é moreno como Conceição. Branco leva sol, fica
corado; preto fica cinzento...” ([1930]2017, p. 25). Conceição, sendo morena, não poderia “levar sol”
para não ficar “cinzenta” e revelar-se, por isso, como preta. Diante da possível relação afetiva entre o
primo de Conceição com uma jovem pobre, moradora dos arredores da fazenda de sua família, a
personagem enciumada, pensa nela como “uma cabra, uma cunhã à toa, de cabelo pixaim e dente
podre” (p. 68). Diante das queixas feitas em voz alta em tom menos vociferante, sua avó pondera:
“Homem branco, no sertão – sempre essas histórias... Além disso não é uma negra; é uma caboclinha
clara...” (p. 69).
185
III Diálogos Feministas, dedicado à história dos feminismos cearenses, realizado na Casa Feminista
Nazaré Flor no dia 15 de maio de 2016.
288
coletivos feministas186 organizaram um ato na Praia do Futuro para chamar atenção para
diversos temas, dentre eles a violência doméstica, o racismo, a exploração sexual, o “turismo
sexual” e o “tráfico de mulheres” (LOPES, 2009). No decorrer do ato, porém, trabalhadoras
do sexo questionaram alguns de seus argumentos contra o “turismo sexual” e, segundo Sena,
foram ouvidas.
Mas quais são as conceitualizações e diferenças entre “raça”, “cor” e “cultura” nesse
contexto onde política e sexualidade se articulam? Que sujeitos mobilizam quais categorias e
como essas elaborações iluminam ou enuviam as dinâmicas das economias sexuais
transnacionais? Não se trata aqui de pensar nesses conceitos como categorias analíticas e
tentar dar-lhes conteúdo definitivo. A proposta é reunir algumas das formas como os sujeitos
os utilizam e reconhecer alguns de seus limites no contexto de Fortaleza.
Para feministas negras cearenses, o termo “negra” é reivindicado como uma
identidade racial-política. Ele possibilita assimilar além de traços fenotípicos contextualmente
“apagáveis” em situações de “miscigenação” ou ascensão social, noções consideradas
transversais como ancestralidade e tradição (FREITAS, 2017; SENA, s.d).
Para essas feministas, falar somente de “cor” limita o debate à superfície da epiderme
e ao eufemismo de um elemento mutável, falsamente escamoteando a negritude (FREITAS,
2017, p. 71). Disso resulta que os coletivos feministas negros do Ceará enfatizam a categoria
“negra” e consideram problemático o uso de termos como “morena” ou “parda”.
No caso da Praia de Iracema, a crise provocada pela “mistura” dos anos 2000 é
elaborada em termos de “cor” e “cultura”. Até o presente, estas continuam sendo as principais
categorias acionadas nos processos de racialização que envolvem mulheres locais e
estrangeiros, não apenas europeus, mas também “coreanos”. Analiso, a seguir, o processo
empírico de racialização dos coreanos através da “cultura”.
186
Segundo o blog Amélia já era, participaram do ato daquele ano o Fórum Cearense de Mulheres, a
Marcha Mundial de Mulheres, Núcleo de Mulheres Rosa Luxemburgo – PSOL e outros coletivos de
mulheres (LOPES, 2009).
289
É uma sala, uma mesa mesmo, numa sala mesmo, sentada. Tipo uma área,
sentada. Aí mesmo, nessa mesa, elas comem, jantam primeiro, tá
entendendo? Aí depois, que eles já, os coreanos, já organizaram o horário
pra eles chegarem lá na sala, tá entendendo, o horário do karaokê, que eles
organizaram, é um espaço, assim, pequeno, não muito grande, que cabe
cinco pessoas. Aí como eles são coreanos, cada um tem a sua cultura, tá
entendendo? Coreano, quem paga a conta, quem organiza primeiro, é o mais
velho, não é o mais jovem. Uma coisa assim. Aí fica muita mulher, muita
mulher mesmo. Aí quando eles tão na sala, aí chamam o gerente, né? Aí, “tá
ok, pode mandar as meninas”. Quando as meninas chegam, eles todos
olham, observam, tá entendendo? Eles não falam nada. Eles só olham e
dizem: “você”. Depois que ele começa a se soltar, conversar. Você tem que
cantar com ele. Dançar com ele.
Quando você entrou na sala, e você conversou com ele, dançou com ele, que
ele gostou de você, você já ganhou 50 reais. Por 20 minutos que você tá com
ele, tá entendendo? E lá pras meninas “sair”, pra elas sair com eles, eles
pagam 300 reais. Entendeu? Só que as meninas ficam por 250. Aí daí vai.
Ela vai, fica com ele, depois volta de novo. Vai pra outra escolha. Eles tem
uma escolha. Não deu certo, não gostou de nenhuma, então vai pra outra
sala, tá entendendo? São várias salas.
Eles tomam uísque. Eles querem que você seja uma empregada deles, tá
entendendo? Você tem que dar tudo na boca deles, se você não servir eles, já
falam “troca, troca”. Se ele fala “troca”, se um fala “troca”, se trocar uma
mulher, que eles não gostaram, troca todas. Eles trocam todas. Outra troca de
novo. Outras mulheres de novo. Por causa de uma, todas pagam. Aí tem que
trocar todas de novo. Pode ser que ele diga “eu quero essa”, que ele gostou.
Aí fica. É mó putaria, mulher, nam! Tem que beber, tem que tomar uísque,
tem que beber muito. Porque eles gastam uísque muito caro. Uísque de
quase 500 reais que eles compram, muito caro. Só a sala para eles alugar
acho que é uns 500 reais. Acho que cada um paga, eu acho, entendeu? Para
ficar lá. Aí canta no karaokê. Às vezes as meninas se soltam, fazem strip-
tease na mesa, dançam com eles, botam dinheiro nos seus peitos, que eu já
dancei! Colocaram dinheiro no meu corpo, tá entendendo? Pois é, minha
filha, eu me lembro! Só, que como eu sou gordinha eles não gostam. Eles
gostam de mulher magra. Mas dá mulher de todos os tipos, tem isso não.
[...]
Lá não rola sexo, tá entendendo? A não ser que as meninas vá chupar eles lá
no banheiro. Ô, desculpa, modo de falar, sabe? A não ser que vá lá dentro do
banheiro fazer algumas coisas, algumas besteiras, tá entendendo? Tem
muitas que vai pra ganhar mais dinheiro. Mas tem outras que lá não rola
nada de sexo. Lá eles conhecem a menina e levam pra pousada ou pro motel.
Aí dai vai. Aí depois elas volta, pega o taxi delas e vem embora pra ficar de
novo nos karaokê. E é assim direto. E bebe igual o cão. As meninas não
bebem mais, elas derramam o uísque. Finge que tão bebendo e derramam o
uísque no banheiro. E a cerveja derrama no coisa do gelo.
Esse longo áudio foi enviado para mim por Juliana no final de agosto de 2016. Na
ocasião, eu e Adriana Piscitelli íamos novamente ao Cumbuco para passar dois dias fazendo
pesquisa de campo. Juliana, apesar de não frequentar os karaokês havia um par de anos, foi
muito generosa ao nos explicar o seu funcionamento e nos indicar locais menos exclusivos
290
que poderíamos visitar para conhecer os efeitos que a presença coreana imprimia nas
economias sexuais transnacionais.
Através das narrativas sobre “coreanos”, elaboradas por mulheres que circulavam na
Praia de Iracema, eu analiso o processo de racialização do qual alguns homens são objeto. No
material de campo é possível perceber que a produção de limites “culturais” acionados por
traços fenotípicos podem gerar novas linguagens ou encerrar as possibilidades de
comunicação.
Na presença dos “coreanos”, imaginados como portadores de uma alteridade estrema,
a categoria “gringo” é reservada aos homens brancos de países ricos. Estes, por sua vez, ao se
tornarem residentes, familiarizar-se-iam tanto com a “cultura” local que perderiam alguns dos
atributos positivos da branquitude.
“Cultura” é a categoria privilegiada por essas mulheres para conceitualizar as
diferenças dos “coreanos”. Através de considerações sobre a “cultura” deles, sempre
masculina, é possível traçar “perfis” acionados nas interações que iam desde o espaço
rigidamente estruturado do karaokê até os encontros cotidianos na Praia de Iracema. Esse
conhecimento, apesar de ser em grande parte elaborado por trabalhadoras do sexo, não era
utilizado somente por elas.
No condomínio onde vivo, a vizinhança é composta por aproximadamente 10 famílias
de “coreanos”. Ou pelo menos é assim que moradoras e funcionárias se referem às/aos
habitantes de traços orientais que falam pouco ou nenhum português e vivem no prédio.
Marly é a vizinha “coreana” com a qual eu tenho mais contato. Após anos de convivência, eu
perguntei de que parte da Coréia ela vinha. Ela deu uma risada e disse que não era da Coréia,
não. Era da China, de Pequim.
Eu fiquei envergonhada pela confusão e percebi que acionava um processo de
racialização mais abrangente. Em outro momento, conversando com outro jovem vizinho
“coreano”, ele explicou-me que, na verdade, todos no prédio vinham de vilas no interior da
China. Deixar-se imaginar “coreano” na Praia de Iracema certamente era uma vantagem para
essas famílias trabalhadoras do comércio popular de roupas. Contudo, a sua homogeneização
não passa despercebida por todas. Certa vez, quando eu perguntei a Juliana se os “coreanos”
que iam às boates eram aqueles que moravam no meu prédio, ela foi direta: “é tudo chinês,
amiga”.
O imaginário contemporâneo sobre os coreanos é construído sobre a presença
relevante de homens dessa nacionalidade em Fortaleza por conta da instalação da Companhia
291
Apesar da empresa ter sido constituída na junta comercial em 2008, as obras só foram
iniciadas em janeiro de 2012. Para esse momento foram contratados funcionários coreanos
que ocupavam cargos diversos na hierarquia industrial. A maior parte deles permaneceu no
Ceará até o início da produção, em junho de 2016. Após esse período, restaram somente os
coreanos empregados em cargos de gerencia. A maior parte desses trabalhadores se
concentrou na região do Cumbuco.
O Cumbuco é a uma pequena cidade turística praiana situada no município de
Caucaia, na região metropolitana de Fortaleza, onde circulam muitos estrangeiros. Na visita
que fizemos no final de março de 2016, o garçom de uma churrascaria local explicou que os
“coreanos” vieram apenas para montar a usina. No pico da construção, ele considerava que
havia no Ceará 12 mil homens coreanos. Conversando com trabalhadores da zona portuária
em um bar local, o número lhes pareceu exagerado. Eles o corrigiram dizendo que deveriam
ser, no máximo, 2 mil coreanos.
O mesmo garçom nos explicou que no início eles vinham sozinhos, “reconhecer o
terreno”, e depois passaram a chegar as famílias. Em 2016, após terminada a montagem,
restariam segundo suas estimativas 800 coreanos “para manutenção”. O número baixava para
300, segundo os trabalhadores do porto. De acordo com o site da CSP, atualmente 70% das
pessoas empregadas são cearenses. A enorme variação nos números pode corresponder às
diferentes posições dos sujeitos em suas relações com “coreanos”. Foi impossível verificar
sua precisão uma vez que a CSP não fornece esse tipo de dados.
A presença coreana no Cumbuco era muito visível em março de 2016. As placas de
comércio em coreano chamavam atenção. Havia cabelereiros, agências de turismo,
restaurantes, mercadinhos, imobiliárias e uma escola infantil bilíngue disponíveis para as
292
famílias coreanas que migraram para o Ceará 187. Apesar da grande visibilidade de sua
presença, o garçom não falava dos migrantes em termos de “invasão”.
Ele lembrou a ocasião em que a Polícia Federal fechou algumas “casas de coreanos”.
Disse que eles tiveram problemas com a Polícia Federal por não estarem com seus
documentos “em dia” e explicou em seguida que os coreanos gostavam de frequentar
karaokês onde havia “muitas mulheres”. Retornarei ao caso em seguida.
A atitude de curiosidade e respeito do nosso garçom em relação aos coreanos da CSP
parecia ser algo corriqueiro entre as pessoas “nativas” que viviam e/ou trabalhavam no
Cumbuco. Juraci, camareira do hotel em que ficamos hospedadas, conversou animadamente
sobre o seu emprego anterior. Ela havia passado um ano trabalhando em um restaurante cujo
dono era um coreano “muito gaiato”188. Certa vez, seu chefe lhe ofereceu uma comida e, após
ela ter comido tudo, revelou que o prato era preparado com carne de jumento. Juraci ria muito
quando nos contava a “gaiatice” do seu chefe e concluía que devia ter passado o ano inteiro
comendo “aquilo” sem saber.
Atualmente ela trabalhava em uma pousada cuja dona era uma mulher europeia de
meia idade e o gerente era um jovem belga. A comida ali era muito boa, não tinha nada
esquisito, atestava. Juraci notava o exotismo do gosto culinário de seu chefe coreano, mas
limitava sua repercussão negativa. Quando perguntei se eram do Cumbuco os jumentos,
cachorros e gatos que supostamente faziam parte da culinária coreana, ela se apressou em
dizer que vinha tudo “de fora” e já temperado para que ninguém desconfiasse. A
nacionalidade dos jumentos, cachorros e gatos pareceu importar no julgamento moral feito
por Juraci sobre o seu consumo alimentar.
Já Tommy, o gerente belga loiro de olhos azuis, porte atlético e tatuagens nos braços,
não fez concessões aos supostos hábitos culinários coreanos. Sendo chef de cozinha ele
mesmo, afirmava não reconhecer a parte do frango que lhe fora servida num dos restaurantes
coreanos locais e imaginava que, cortando com “aqueles facões”, poderia ser um cachorro ou
um gato.
Tommy e a dona da pousada eram praticantes de kitesurf, assim como a maior parte
das pessoas europeias residentes e visitantes no Cumbuco. Os ventos poderosos que sopram
de agosto a dezembro impulsionam as velas coloridas sobre o mar, tornando mais interessante
uma praia sem atrativos, também afetada pelas obras nos portos e aterros. Até pouco tempo,
187
Ver caderno de imagens.
188
Engraçado, que gosta de fazer brincadeiras e contar piadas.
293
os europeus esportistas eram maioria e preferência inconteste entre as mulheres “nativas” nas
economias sexuais transnacionais, mas com a CSP apareceram novos concorrentes.
Os coreanos foram parcialmente acomodados ao sonho de um progresso que viria “de
fora” e seria acessado através de relações de intimidade. Segundo Tommy, as prostitutas
ganhavam muito dinheiro no Cumbuco, pois os coreanos pagariam até 800 reais pelo
programa, enquanto que os europeus só “poderiam” pagar 200 reais. Além disso, europeus só
pagavam se fossem “estrangeiros” mesmo. Os “gringos” residentes teriam sexo “de graça”.
Na perspectiva de Juliana, esses seriam “gringos-cafuçus”. Retornarei a eles mais à frente.
Apesar de não pagar por serviços sexuais, Tommy reconhecia que era preciso dar
alguma “ajuda” às “nativas” com as quais eles, os “gringos”, tinham relacionamentos
afetivos-sexuais. Ao mesmo tempo ele ponderava que as ajudas poderiam sair mais caro que
pagar. Ele contou que aprendeu isso de sua própria experiência.
Assim que chegou ao Ceará, um primo lhe “mandou uma menina”. Ele se explicava
antes mesmo de contar o desfecho da história: na Bélgica, todas as mulheres tomariam
comprimido para não engravidar. Essa “menina” não tomou. Tommy casou com ela e eles
viveram juntos com seu filho por um par de anos. Passado o tempo, ele achou que a esposa
estava “sugando” seu dinheiro e resolveu terminar a relação. Lamenta-se porém, de ter que
“dar” mil reais para ela todo mês. Adriana pergunta se é para ela o dinheiro e ele corrige,
dizendo que é para o filho.
Ao longo da conversa, Tommy acrescentou que vivia dificuldades no seu casamento
por conta dos ciúmes de sua esposa. Ele lamentava que “as brasileiras são muito ciumentas”.
Já os brasileiros gostariam muito de beber e usar drogas. Quando saíam com mulheres, eram
muitas de uma só vez, 5 ou 6. Por conta disso, ele não tinha amigos brasileiros.
Nas relações afetivas e sexuais, Tommy considerava que os estrangeiros levavam
vantagem em relação aos homens locais e, sobretudo, aos coreanos. Isso foi parcialmente
perceptível no passeio noturno que fizemos, Adriana e eu, pelos restaurantes e bares do
centrinho do Cumbuco.
Não havia muita gente e a presença coreana era marcante. Alguns faziam muito
barulho ao jogar sinuca, outros se vestiam de maneira chamativa, muitos usavam a farda da
CSP e, ao final, um deles saiu carregado por seus companheiros. As interações que vimos
entre brasileiras e coreanos não transpareciam intimidade ou desejo.
Numa mesa onde havia dois casais compostos por brasileiras e coreanos, a
comunicação transnacional era rara. Eu notei que, algumas vezes, as mulheres arremedavam
seus acompanhantes, sem lhes dedicar interesse ou respeito. Os homens não pareciam notar
294
ou se importar e faziam esforço para acertar algum gesto de carinho de quando em vez.
Outras mulheres, que estavam desacompanhadas, investiram na dupla coreana que jogava
sinuca. Contudo, a comunicação parecia intrincada. Quando uma delas passou rebolando num
macacão preto muito justo os coreanos riram, sem nenhuma vergonha.
Daquela breve incursão à um setor das economias sexuais transnacionais no qual o
desejo parecia ausente, saímos com mais perguntas do que quando chegamos. A narrativa do
amor romântico, que organizava as relações econômico-sexuais entre “nativas” e “gringos” na
Praia de Iracema, estaria presente no horizonte dos encontros com coreanos? Os limites da
linguagem entre “culturas” tão diferentes poderiam ser superados para que o amor “nascesse e
encontrasse uma casa” (DAS, 2010, p. 397) entre brasileiras e coreanos?
Os coreanos corporificavam uma categoria ambígua nas economias sexuais
transnacionais entre o Cumbuco e a Praia de Iracema. Se, por um lado, eles se afastavam dos
ideais de branquitude que povoavam o imaginário cearense sobre masculinidades desejáveis
(PISCITELLI, 2004), por outro lado, seu elevado poder aquisitivo era relevante em um
contexto de crise econômica europeia, diminuição do fluxo de turistas internacionais e
transformações nas dinâmicas transnacionais.
Segundo Chris, as respostas das mulheres aos coreanos mudaram bastante. Na sua
avaliação, quando chegaram os primeiros coreanos, em 2012, nenhuma mulher queria sair
com eles. Mas, depois que elas “descobriram” que eles pagavam “muito melhor” que os
europeus, “faziam até fila” para sair com eles189. Chris afirmava que “todas queriam sair com
eles”, pois ganhariam 600, 700 e até 1000 reais por noite com os coreanos.
Entre as mulheres que circulavam entre a Praia de Iracema e o Cumbuco as opiniões
sobre os “coreanos” variavam muito, mas cada ponto de vista era marcado por uma narrativa
homogeneizante, própria de processos de racialização. A avaliação dos coreanos costumava
ser positiva por diferentes motivos.
Conheci Ana em outubro de 2015 em uma ação de evangelismo do Iris na Praia de
Iracema. Ela era uma mulher negra e muito elegante que dizia ser satisfeita com trabalho do
sexo por poder combinar diversão e altos ganhos financeiros. Naquela ocasião, Ana se
preparava para ir, mais uma vez, à Europa. Daiane, a missionária que a evangelizava, também
viajaria ao continente em breve. Elas conversaram muito sobre roupas, clima e trajetos em
avião. Quando foram interrompidas pelos convites de coreanos a Ana, ela pediu licença para
189
Diário de campo, 1o de abril de 2016.
295
acompanhá-los, pois valorizava os “programas” com os coreanos por serem rápidos e terem o
“pau pequeno”190.
No final de 2015, os coreanos eram parte relevante do público das boates nos finais de
semana. Segundo, Ana, “sábado era o dia deles”, esvaziando a casa das demais
nacionalidades, pois eles não gostavam de se “misturar” (com homens de outras
nacionalidades). Isso não era um problema para ela.
Em uma noite de julho de 2016, notei que os coreanos que frequentavam as boates da
Praia de Iracema eram bastante disputados entre as mulheres. Juliana investia todo seu charme
numa dupla de coreanos que a olhava e terminou por convidá-la a sentar com eles. Outra
jovem, que tinha sucesso nos encontros com os “gringos”, afirmava naquele dia buscar
especificamente “coreanos” nas boates. Ela me disse que já havia saído com um naquela noite
e queria ver se “arranjava outro”. Lembrava que havia dois anos os coreanos eram muitos na
Praia de Iracema, mas em 2016 eles estavam escassos.
Em agosto de 2016, quando fomos ao Cumbuco pela segunda vez, visitamos a barraca
de Cleide seguindo a indicação de Juliana, que garantiu que ela era “gente boa”. Juliana nos
pediu, porém, para não comentar que a conhecíamos. Imaginamos que Cleide poderia se
sentir intimidada com a visibilidade das redes entre o Cumbuco e a Praia de Iracema em razão
da ação de combate ao tráfico de pessoas realizada pela Polícia Federal no Cumbuco em
março daquele ano.
A operação contou com 30 policiais que fizeram buscas nos estabelecimentos,
prenderam 4 pessoas acusadas dos crimes de tráfico interno de pessoas, rufianismo e
resistência, e “resgataram” 37 mulheres. Eu não sei se o estabelecimento de Cleide foi objeto
das buscas, mas entendo que, para ela, aquele tipo de exposição seria muito negativa.
Cleide era uma mulher muito simpática, casada há quase 30 com um coreano que
conhecera no comércio de roupas em São Paulo. Naquele dia, iniciamos a conversa graças aos
interesses em comum sobre tecidos e dicas para manter o corpo em forma. A partir daí, ela
nos contou sua história de altos e baixos, desde a infância pobre no Nordeste, passando pelo
trabalho doméstico em São Paulo até sua situação de proprietária no Cumbuco.
Depois de anos vivendo no Centro-Oeste do país, Cleide e seu marido foram
contratados por uma empresa coreana para fornecer serviços aos trabalhadores migrantes.
Porém, logo que o casal e seus quatro filhos chegaram ao Ceará, a empresa que os contratara
faliu. Ela avalia que eles só não passaram fome porque Deus não permitiu.
190
Diário de campo, 5 de outubro de 2015.
296
Além de Deus, as peças que ela trouxera consigo do antigo comércio ajudaram num
primeiro momento. Em seguida, foi a nacionalidade do seu marido que os “salvou”. Através
de contatos com outros coreanos, o casal montou uma “espécie” de pousada onde recebia,
cozinhava e servia bebidas aos coreanos. Cleide disse que só não aceitava que eles levassem
“meninas” ao local.
Ela observava desde sua pousada que os “peões” eram os que mais gastavam “com
mulher”. Ao chegarem no Ceará, ficavam “loucos”. Mesmo diante da dificuldade de se
comunicar, eles “mostravam” o que queriam e conseguiam. Segundo ela, os peões ganhavam
por volta de 30 mil reais mensais, juntando salário, benefícios e auxílios. Os chefes, por sua
vez, ganhariam até 72 mil reais mensais. Outras pessoas consideraram esse número
exorbitante e situaram o salário dos chefes na cifra dos 20 mil reais.
Atualmente, porém, quase tudo isso acabou. A maior parte dos homens foi embora e
não seria mais possível manter o negócio somente com a clientela coreana. Cleide e seu
marido decidiram fechar a pousada e dedicar-se à barraca de praia onde, naquele dia, nos
ofereceram uma feijoada “sem gordura” preparada pelo marido de Cleide. Ela trocou o idioma
na placa do estabelecimento, colocou música para que as pessoas dançassem e passou a
preparar “caipifrutas” para atrair “os jovens”. Queria consolidar uma clientela brasileira.
Cleide se orgulhava de sua capacidade em adaptar-se e encontrar soluções diante das
adversidades. A vida no Cumbuco foi e continuava sendo um grande teste à sua criatividade.
Porém, para além das dificuldades econômicas, a mudança da família para o Cumbuco trouxe
bons frutos. Com o maior contato com a “cultura” coreana naquele contexto, seu filho mais
velho se animou para fazer faculdade na Coréia do Sul. O curso era particular e a família se
esforçava para pagá-lo e manter o rapaz no país, mas, na opinião de Cleide, valia a pena, pois
a Coréia do Sul tinha uma qualidade de vida muito superior à do Brasil. Haveria saúde,
educação e limpeza.
A filha adulta do casal, por sua vez, estava de malas prontas para migrar para a Coréia
do Sul. Ela havia conhecido um coreano quando trabalhava no alojamento de uma empresa
terceirizada da CSP. Eles tinham se apaixonado e iam se casar. Cleide achou melhor que o
casamento fosse na Coréia, pois assim poderiam retomar os laços com os parentes do seu
marido, que ele não via desde que veio para o Brasil, e ter mais apoio financeiro. O genro
dedicava-se a financiar não somente o casamento, mas também as passagens da família para a
Coréia do Sul e uma cirurgia estética para Cleide.
Enquanto conversávamos animadamente em torno da feijoada-coreana-sem-gordura,
algumas jovens “nativas” com bebês “coreanos” apareceram na barraca. Cleide contou a
297
história bem-sucedida de uma delas, que havia se casado com o pai da criança e vivia com ele
no Cumbuco. Outras, porém, engravidaram de homens que foram embora.
Juliana teve um namorado coreano. Ela me contou que ele era um “chefe” e por isso
eles não podiam ser vistos juntos. Ficavam na quitinete de Juliana, na Praia de Iracema, ou na
casa dele, no Cumbuco. Ele tinha 40 anos, mas não aparentava, porque “coreano parece que
fica é mais novo com a idade”. Ficaram juntos por 8 meses e mantiveram o relacionamento
mesmo diante do furto à quitinete de Juliana, quando coisas suas e dele foram levadas. Uma
hérnia de disco que devia ser operada com urgência fez com que ele voltasse para a Coréia do
Sul às pressas. Ele retornou ao Brasil e para Juliana, mas uma recaída da doença fez com ele
fosse embora “de vez” e o casal nunca mais tivesse contato.
Juliana concluiu, a partir desse desfecho, que “eles” – os “coreanos” – ficavam com
elas e davam dinheiro enquanto estavam ali, mas não gostavam delas. Durante os 8 meses de
relacionamento, ela considerava seu namorado muito apegado a ela. Queria estar junto a ela o
tempo todo. Ela não fazia nada quando estava com ele. Contudo, quando foi embora, parecia
que todo aquele apego nunca existira. Perguntei se ela gostaria de ter casado com ele e Juliana
concluiu que não. Não estava apaixonada.
Juliana avalia o seu distanciamento de seu namorado coreano como consequência da
falta de paixão sentida por ela. Os limites da linguagem que existiam entre o casal tornaram-
se um obstáculo para o seu amor. Já o sentimento do seu ex-namorado ela classificou como
um “falso amor”: algo que parecia amor, mas devia ser excluído dessa categoria pela fraude
ou erro.
A leitura de Juliana sobre esse “falso amor” se fundamenta no desfecho da narrativa.
Romance sem “final feliz” não seria “de verdade”. Essa perspectiva sobre o amor é recorrente
entre as mulheres que conheci na Praia de Iracema. Exploro os paradigmas que a sustentam
neste capítulo e no próximo.
Antes disso, um contraponto. Um “supervisor de obras” coreano se suicidou em abril
de 2016 dentro da CSP. Segundo os rumores, o suicídio foi provocado por seu desespero
diante da situação em que sua família coreana ia ao Ceará visitá-lo e lá encontraria a nova
família que ele estabelecera. Esse caso indica que as relações entre brasileiras e coreanos se
inserem em uma complicada trama na qual o amor se intersecta ao parentesco e às
moralidades. Que ao final tudo seja resumido a um “falso amor” na história entre Juliana e
“seu” coreano aponta para os limites à comunicação.
A racialização dos “coreanos” nas economias sexuais transnacionais de Fortaleza tinha
nos karaokês a sua expressão máxima. As mulheres que frequentavam esses locais buscavam
298
reconhecer elementos “culturais” que lhes permitissem maximizar seus ganhos naquela nova
modalidade de trabalho do sexo.
Para Juliana, os karaokês eram convenientes porque dificilmente uma mulher sairia de
lá sem ganhar. O pagamento de 50 reais “apenas” pela companhia materializava nos karaokês
uma prática desejada por muitas trabalhadoras do sexo nas boates. Elas reclamavam perder
seu tempo com “gringos-cafuçus” e declaravam para os que reconheciam como tais: “minha
companhia é paga”.
Contudo, a companhia paga instituída nos karaokês demandava uma série de práticas
que resultavam “esquisitas” para Juliana. O consumo etílico era uma delas. Juliana gostava de
beber, e quando não podia fazê-lo em noites que ia às boates, ficava ansiosa. Ela não
costumava beber muito nem bebia em outros contextos, mas a cerveja Heineken à mão
tragada de canudo, para não borrar a maquiagem, parecia um acessório indispensável à
corporalidade sedutora que ela assumia na boate.
Os uísques caros que os “coreanos” queriam que as trabalhadoras do sexo bebessem
com eles pareciam impositivos. E depois de, algumas vezes, beberem “igual o cão”, Juliana e
suas colegas perceberam a oportunidade de jogar fora a bebida cara apreciada pelos coreanos.
Esse gesto não parecia destoar da atmosfera de consumo conspícuo percebida por elas nos
karaokês.
Juliana notou que o pagamento de somas elevadas de dinheiro por serviços
considerados comuns faziam parte da “cultura” dos “coreanos”. Nos karaokês, eles “jogavam
dinheiro fora” seguindo uma estrutura hierarquizada de masculinidades onde a idade era um
fator fundamental. Observada essa hierarquia entre as masculinidades e já na sala privada,
chegava o momento de “se soltar”: conversar, cantar, dançar e beber.
Além das práticas de sedução acionadas nas boates da Praia de Iracema, outras
corporalidades deviam ser mobilizadas para o sucesso das trabalhadoras do sexo nos
karaokês. Juliana percebeu a necessidade de agir como se fosse uma “empregada” dos
coreanos. “Dar tudo na boca deles, servir eles”. Caso contrário, eles demandariam que suas
acompanhantes fossem “trocadas”.
Apesar das coisas “esquisitas”, Juliana apreciava o trabalho nos karaokês e sempre
pontuava que não ia mais porque seu estilo corporal não agradaria os coreanos. Juliana se
dizia “gordinha” por ser uma mulher de curvas avantajadas. Segundo atestava a maior parte
das mulheres com quem conversei, “coreano gosta de mulher magra”.
No final de 2015, quando eu acompanhava a Missão Iris na Praia de Iracema, uma das
mulheres que estava na boate se aproximou de mim para dizer que um coreano estava me
299
chamando. A cena, que interrompeu o evangelismo com outras mulheres, provocou muitos
risos entre todas, que afirmaram que a confusão foi provocada por que eu era “magrinha” e
eles gostavam de mulheres assim. Elas me desculparam de qualquer responsabilidade pela
falha de comunicação corporal. Quando a cena se repetiu, momentos depois, uma das
trabalhadoras do sexo falou alto que eu estava ali para “levar a palavra” e que o coreano
estava “queimado (em nome de Jesus)”.
A aproximação masculina em um contexto de evangelismo apontava que os processos
de racialização das brasileiras acionados pelos coreanos eram também relevantes. Eles
homogeneizavam as mulheres a partir de traços corporais genéricos, tais como a magreza, de
modo que outras corporalidades importantes passavam despercebidas por eles e geravam esse
tipo de confusão, que parecia ridícula às mulheres que estavam nas boates. Como eles podiam
confundir uma “missionária” com uma mulher “de programa”?
Os limites da comunicação entre coreanos e brasileiras iam além da expressão
idiomática, estendendo-se às corporalidades em gestos e categorias da diferença. Dos dois
lados, categorias fundamentais nas dinâmicas das economias sexuais transnacionais, tais
como a “idade” dos coreanos, ou a “religião” das brasileiras, pareciam ilegíveis. Os processos
de racialização da “cultura” tornavam mais aguda essa falta de comunicação, afastando os
sujeitos do reconhecimento moral desejável entre aqueles que, por alguma circunstância,
habitavam os mesmos espaços (DAS, 2015).
Contudo, esses limites não eram intransponíveis. A descrição que Juliana nos deu do
karaokê coreano se aproxima bastante das dinâmicas reportadas em etnografias desse tipo de
ambiente em países asiáticos. Eu faço referência aqui aos livros de Anne Allisson (1994) e
Tiantian Zheng (2009).
Nas pesquisas realizadas em karaokês no Japão e na China, respectivamente, as
autoras coincidem ao notar a importância desses espaços de diversão noturna para a
performance de masculinidades emergentes nos contextos asiáticos. Para as autoras, esses são
lugares onde o consumo conspícuo de bebida e sexo se mistura com alianças políticas e
econômicas entre homens que ocupam altos cargos nas hierarquias estatais e empresariais.
Elas identificam os karaokês como palco de rituais masculinos de poder no qual o papel das
hostesses é fundamental.
Eu mantenho a palavra em inglês porque ela não parece ter um conceito equivalente
nos karaokês coreanos no Ceará. O papel de hostess combina uma companhia sedutora, que
conversa, canta e dança, e uma empregada, que serve tudo “na boca” dos homens. Essa
sobreposição de papéis de gênero parecia confundir Juliana.
300
Juliana tinha 30 anos, pele clara e longos cabelos ondulados de cor castanha com
mechas loiras. Seu corpo curvilíneo, que a colocava em desvantagem nas relações com
coreanos, era muito apreciado pelos europeus. Contudo, o que fazia com que ela tivesse mais
sucesso nos encontros com estrangeiros do que a maior parte das mulheres que frequentava a
Praia de Iracema era sua personalidade segura e comunicativa.
Por isso mesmo, eu fiquei surpresa ao saber que ela fora uma adolescente tímida.
Juliana começou sua narrativa explicando que cresceu no Bom Jardim, um bairro periférico
de Fortaleza reputado pela violência. Ela perguntou se eu o conhecia e ao ouvir minha
resposta negativa, replicou: “ainda bem, nunca vá lá”.
Juliana disse que tinha um “transtorno” de aprendizado e por isso era “atrasada” na
escola. Aos 19 anos cursava a 7a série do ensino fundamental. Nesse período, ela já estudava à
noite, pois estava “muito grande” para continuar nas turmas regulares. Sua mãe ficou
303
191
Luizianne Lins, do Partido dos Trabalhadores, foi prefeita de Fortaleza entre os anos de 2005 e
2012.
304
explicar que não era “aquele turismo ali da boate”. Ela nem sonhava em fazer aquilo. Era
turismo de hotelaria, cozinha e garçom.
Ela gostou também do curso de mecânica. Lembrava que no início não sabia sequer
que mulheres podiam fazê-lo. Mas foi no curso de telemática em que ela viu uma
oportunidade profissional ao seu alcance. Ela pontuou que as pessoas achavam que ela estava
falando errado, mas ressaltou que o nome era esse mesmo, estava escrito assim no livro. Era
sobre comunicação, help desk, “essas coisas”. Ela se esforçou muito, ao final do Projovem,
para ser contratada por uma empresa de telemarketing que prometia vagas às concludentes,
mas não teve sucesso.
Juliana se emocionava ao lembrar das muitas pessoas que tentaram lhe “botar para
baixo”, chamando-a de burra e jumenta. Mas, nessa época, já conhecendo as condições de seu
“transtorno” e recebendo o tratamento adequado, essas coisas “entravam por um ouvido e
saíam pelo outro”.
Contudo, terminado o Projovem, os limites da educação formal novamente se
impuseram à Juliana. Quando ela foi cursar o 1o ano do ensino médio em uma escola
convencional no Bom Jardim retornou à experiência das repetências e do mau relacionamento
com os professores. Foi, então, transferida para uma escola de Ensino de Jovens e Adultos, no
Conjunto Ceará.
Nesse período, ela teve vários trabalhos: empregada doméstica, vendedora em loja,
funcionária em uma confecção, caixa em um mercadinho. Ela teve experiências ruins em cada
um deles, desde o assédio sexual de seu patrão na loja até o assédio moral de sua patroa na
confecção.
Em 2011, ela resolveu trabalhar em casa de massagem. Começou em um “cabaré” no
Antônio Bezerra, bairro periférico de Fortaleza, mas achou ruim por conta do perigo dos
assaltos. Foi para os “cabarés” do Centro, mas não gostou da corporalidade dos homens que
os frequentavam. Para ela, eram todos “matadores de galinha”. Ela sentia vergonha e se
recusava a dançar. Chegou ao seu limite que quando viu um homem colocando uma nota de
50 reais na vagina de uma mulher. Ficou horrorizada e decidiu não ir mais.
“Bom é aqui na boate!”. Quer dizer, é bom, mas tem os seus problemas. O maior deles
não era causado pelos homens, mas pelas outras mulheres. Juliana considerava que não podia
confiar nelas, pois se diziam suas amigas, mas corriam para contar para o seu namorado no
exterior que a viram na boate. Bastava isso para pôr em risco um amor e/ou uma fonte de
renda. Foi assim com o seu namorado norueguês, um homem de 60 anos, pelo qual ela
realmente se apaixonou.
305
Ela começou a narrativa sobre sua decepção amorosa me dizendo que ainda tinha um
anel de prata com brilhante que “seu” norueguês lhe dera, mas que, para ele, aquilo “não
significou nada”. Ela passou alguns meses felizes na Noruega, mas diante de acontecimentos
que estavam fora de seu controle e sem o apoio da filha ou da nora de seu companheiro, foi
muito difícil para ela suportar.
Juliana considerava que levava uma vida boa na Noruega. Seu companheiro pediu a
uma vizinha que lhe desse aulas de norueguês, língua que ela ia aos poucos aprendendo.
Durante o período em que esteve lá, o casal visitou várias vezes o pai do namorado de Juliana.
Num sábado, o namorado quis desistir da visita, mas ela insistiu para que eles fossem.
Quando estavam a caminho, receberam a notícia da sua morte.
Juliana ficou muito triste, porque gostava de seu sogro. Sempre que o visitava
preparava algo para ele comer e arrumava suas “coisinhas”. Ele queria retribuir a ajuda com
dinheiro, mas ela recusava. Para ela, aquilo não era nada. A filha de seu companheiro a levou
para comprar uma roupa preta para o velório. Juliana ficou horrorizada: “o avô morre e ela
pensa em comprar roupa!” Ninguém chorou. Ela pontuou que eles eram muito frios, viviam
sozinhos.
Durante o velório, seu companheiro começou a bater no peito. Ela não entendeu o que
estava acontecendo até que ele caiu no chão: estava tendo um infarto. Juliana ficou
desesperada. Passou uma semana sozinha na casa. Ia visitá-lo no hospital e o via dormindo,
ligado em aparelhos, não conseguia acreditar. Aos poucos, ele foi melhorando. Ela mandava
fotos da comida e do lugar vazio à mesa que ele deixara. Um dia, chegou ao quarto e viu a
cama vazia. Quando deu fé, “seu” norueguês estava lá fora, fumando. “Como pode uma
pessoa ressuscitar desse jeito?”.
Depois desse incidente, ela voltou à Fortaleza. Já na cidade, a nora de seu
companheiro, também brasileira, disse para ele que ela estava na boate. Mesmo tendo passado
por tudo isso juntos, o relacionamento chegou ao fim. Para Juliana, aquilo indicava que ele
não sentia amor por ela. Contudo, ela não saía da relação de mãos vazias. Além do anel,
Juliana ganhou laptop, telefone celular, malas e roupas do namorado. De tudo o que ela viveu
nessa relação, porém, era a fluência em norueguês que lhe trazia mais benefícios nas
economias sexuais transnacionais. E pensar que há 10 anos ela não se sentia confortável para
falar...
306
Ela era colocada no lugar do “completamente outro que eles chamam ‘animal’, por
exemplo, ‘gato’” (DERRIDA, 2002, p. 34). Por exemplo, “jumenta”. Ao ser assim chamada,
Juliana não era apenas “classificada” desde sua “falta” – a falta da fala – mas produzida em
sua “falta”, situada para além do limite do humano e da ética.
Depois do programa, quando mais uma vez lhe chamaram “jumenta”, Juliana deixou o
nome de animal “entrar por um ouvido e sair pelo outro” e assim, desde outro lugar,
respondeu a quem lhe calava sem precisar de palavras, mesmo já as possuindo. O
reconhecimento de sua subjetividade – e de seu sofrimento – veio junto com o amor de seu
primeiro namorado. O amor de um namorado que reunia desejo, afeto e de aprendizado. O
amor se materializava como sua possibilidade de se conectar ao mundo (BERSANI, 2008).
Eu não sei se os profundos efeitos do Projovem na vida de Juliana foram assimilados
pelas pessoas que implementaram o programa. Sei, porém, que a proposta de desconstruir o
lugar da “falta” na vida dos sujeitos foi ativamente buscada em algumas propostas
pedagógicas.
Ressalto, nesse caso, a experiência dos Círculos de Cultura Sociopoéticos que
reuniram estudantes e professores/as do Projovem Urbano e do curso de Pedagogia da UFC.
A experiência analisada por Maria Kellynia Alves (2015) tinha como proposta inserir as
questões étnico-raciais no projeto pedagógico do programa.
Numa das atividades de construção da pretagogia (PETIT, 2016) no Projovem, foi
apresentada a obra audiovisual Me gritaron negra!, de Victória Santa Cruz (1960). A intenção
era que o tema da raça e do racismo fosse debatido desde um ponto de vista emocional,
relacionado às experiências das alunas e alunos (ALVES, 2015, p. 118). Colocar em palavras
o conhecimento que vem do sofrimento e se expressa através do corpo (HOOKS, 1991).
Vejo as relações entre a narrativa de Juliana e a proposta pedagógica analisada por
Alves. Os nomes de animais que foram impostos à Juliana operaram sobre ela como opera a
inferiorização de pessoas negras em um sistema racista. Porém, novamente, racismo não é
contingência. É história e familiaridade com a violência que não choca. Os efeitos radicais e
imediatos de superação dos limites individuais à Juliana seriam inatingíveis na abordagem de
desigualdades raciais no mesmo contexto.
Não há equivalência entre as experiências, mas elas se informam e apontam para os
pontos inovadores do Projovem. Ele inaugurava uma política nacional com um foco amplo,
rompendo com as políticas “superfocalizadas” até então direcionadas à juventude (SOUSA e
CARVALHO, 2008), e, ainda assim, surtia efeitos transformadores na experiência cotidiana
de pessoas atendidas.
308
arquivo feminista sobre Emma Goldman, eu enfrento a ambivalência que marca a dissidência
sexual relacionada ao trabalho do sexo associada ao desejo pela “moral” heterossexual do
casamento.
Esta ambivalência das trabalhadoras do sexo sobre as performances de feminilidade
ilumina, assim como a “maldade” de Goldman ao descrever a duplicidade ontológica das
mulheres, a profunda ambivalência dentro do feminismo sobre a feminilidade. Eu gostaria,
através desse capítulo e do próximo, de levar em conta o caráter transversal dessas
ambivalências e “expandir o alcance das maneiras de viver o feminismo” (2018, p. 71).
Vamos continuar, então, com Juliana, cuja história já conhecemos e admiramos. Como
ela aciona a linha do amor nas suas experiências? Como ela se protege dos comentários
negativos de outras mulheres? Durante a pesquisa de campo, dois homens foram eleitos por
ela para fazer a linha do amor.
O primeiro foi Alex, um jovem coreano empregado na CSP. Juliana e Alex se
conheceram na boate e, na primeira vez que saíram, ele lhe pagou 300 reais e a convidou para
dormir na sua casa. Ele adiantou que ela poderia ficar na cama e ele no sofá. Ela recusou o
convite, dizendo que precisava trabalhar, mas “gostou muito dele” e passou a frequentar o seu
apartamento na Praia de Iracema. Eles ficaram juntos por um mês, “tipo namorado mesmo”.
Quando Juliana chegava à casa de Alex, ele lhe pedia que ela vestisse suas roupas. Ela achava
graça e fazia seu gosto. Antes de ir embora, Juliana explicava, com ajuda do aplicativo de
tradução, “amor, tô precisando de dinheiro”. Ele lhe dava 150 reais e prometia mais quando
recebesse seu salário. Era uma intimidade produzida por ambos na qual as trocas econômicas
eram inseridas dentro de uma performance romântica.
Já por Damien, um engenheiro holandês de 35 anos, Juliana disse que se apaixonou.
Eles passaram uma semana juntos num luxuoso hotel na Praia do Futuro, tomando vinho e
comendo ostras. Juliana não me disse quanto nem como ele lhe pagou, mas indicou que
somente a estadia no hotel custou 800 reais.
Enquanto fazia planos para o relacionamento futuro, ela me preveniu que Damien já
sabia que ela era “esquentada”. Quando o casal foi mal servido em um jantar romântico,
Juliana não deixou barato. Ao longo da noite, aconteceram vários problemas. A entrada foi
servida junto com o prato principal, as luzes foram apagadas enquanto eles ainda estavam
sentados à mesa e a etiqueta da degustação do vinho não foi respeitada. Juliana explicou essa
parte com mais detalhe: Damien gostava de beber vinho, “cheirar para ver se está bom”, e não
pôde fazer nada disso.
311
Ele não se importou com a má qualidade do serviço, mas Juliana não aceitava ser mal
tratada. Ela sabia que o desrespeito era consequência do preconceito local dirigido à jovens
pobres que saíam com gringos. Por conta disso, chamou a gerência do restaurante para fazer a
sua reclamação. Ela ponderava, porém, que queria um relacionamento tranquilo, e se
questionava sobre ter transparecido “gostar de briga” para Damien.
Quando ele voltou para seu navio, em direção ao Panamá, o casal continuou em
contato e ele logo a convidou para ir visitá-lo, quando estivesse de volta à Holanda. Juliana
renovou seu passaporte e fez muitos planos para o dinheiro que ele mandaria em dezembro, a
viagem à lazer em janeiro e o casamento em julho. Ela se permitia sonhar, sempre
acrescentando “vai dar certo, se Deus quiser”.
Damien não tinha amigos ou família em Fortaleza que pudessem prejudicar o
relacionamento com fofocas. Seu filho era ainda criança e ela poderia cuidar dele. “Que os
anjos digam amém”. Contudo, conflitos com a ex-esposa sobre seu novo relacionamento
fizeram Damien desistir dos planos. “Deus não quis”.
Juliana não se arrependia de ter acreditado no potencial romântico e econômico dessas
relações. As duas foram compreendidas na linha do amor, apesar de que o seu investimento
afetivo em cada uma delas foi bastante diferente. Nos dois casos, ela revelou suas intenções
apenas para as amigas mais próximas, que moravam fora, e para mim. “O segredo do sucesso
é o silêncio”.
Na perspectiva de Juliana, um dos maiores obstáculos ao amor eram os comentários
críticos das outras mulheres “pra prejudicar”. A linha do amor, quando reconhecida por outras
mulheres, era acionada como índice da “falsidade” feminina. Elas ridicularizavam e
denunciavam aquelas que percebiam fazendo a linha do amor, inclusive para seus parceiros.
Juliana percebia isso como pura “maldade” e se protegia escolhendo com cuidado as
amizades.
Eu não tinha o mesmo conhecimento que Juliana e experimentei na pele as acusações.
Conheci Sunny na Beira Mar, numa situação que descrevo em seguida, e ficamos amigas no
Facebook no mesmo dia. Alguns meses depois, quando publiquei uma fotografia da minha
festa de casamento nas redes sociais, celebrando dois anos do casada, ela comentou queria “ir
no próximo”. Isso me causou desconforto e eu apaguei o comentário. Juliana avaliou que ela
fez isso porque acreditava que eu fazia programa.
Mas o que exatamente ela fez que tanto me incomodou? Ela ressaltou o caráter
contingente do amor na situação em que ele era afirmado em sua forma mais “legítima”. Ela
relacionou essa contingência à minha suposta duplicidade. E ela fez isso publicamente. Nós
312
mal nos conhecíamos. Que imperativo moral a impelia a denunciar um amor que ela
considerou falso porque supôs que eu fizesse programas? E, principalmente, por que essa
atitude era a regra?
Talvez, Sunny se sentisse injustiçada e quisesse protestar. Por que o sistema moral
dicotômico que se impunha a ela poderia ser transgredido impunemente por mim? Ao iniciar
um processo de acusação pública, ela buscava o apoio de outras pessoas para denunciar a
desonra daquele amor. Porém, no mesmo ato, ela se colocava sob escrutínio moral
(BOLTANSKI, 1990). Ela fazia parte do coletivo que queria denunciar. Como em Goldman,
a duplicidade ontológica feminina que ela desprezava seria também a sua (HEMMINGS,
2018).
A ambivalência em relação à duplicidade considerada feminina – ora performance útil,
ora marca ontológica de imoralidade – era vivida pela maior parte das mulheres que conheci
na Praia de Iracema. Ainda que nem todas tomassem atitudes destrutivas como as de Sunny,
era muito comum condenar a “falsidade”, considerada inescapável num contexto
transnacional em que o erotismo se articulava à mobilidade social (MOUTINHO, 2004).
De toda a etnografia, a Praia de Iracema pareceu ser onde os suportes comunitários
para vida eram mais precários. No centro das representações negativas das moralidades
dicotômicas que organizavam o direito à mobilidade e à vida na cidade, as mulheres
encontravam condições precárias tanto no trabalho quanto no amor. Contudo, desde sua
dissonância afetiva a respeito da opressão de gênero e sexualidade, elas continuavam, como
Goldman a ver o amor no coração de sua emancipação (HEMMINGS, 2018, p. 56).
6.4.1. “Gringos-cafuçus”
que o conhecera na praia e saíra com ele no passado. Foram para o seu hotel, onde ele fez
macarronada, foi ótimo. Agora, porém, ele teria virado “cafuçu”: não queria pagar, ficava
“botando boneco”193, escolhendo demais. Ela não queria nem falar com ele. Assim que ele
saiu, exclamou “água de sal!” para espantar a energia ruim que ele trouxe para perto da gente.
Juliana era mais ativa que a maior parte de suas colegas nas boates da Praia de
Iracema. Não tinha vergonha de puxar assunto com os estrangeiros. Porém, ela não fazia isso
com qualquer um. Vendo-a se movimentar, eu notava que ela só ia na boa, quando tinha
muitas chances de ser bem sucedida. Jamais iria falar com “gringo-cafuçu”. Contudo, o
conhecimento que ela adquirira de sua experiência na Praia de Iracema não era compartilhado
por todas as mulheres. Muitas faziam a linha do amor com os “gringos-cafuçus” e não
ganhavam nem dinheiro, nem amor.
Nos bares e boates da Praia de Iracema, as mulheres não formavam um coletivo.
Apesar da maior parte delas criticar as desigualdades de gênero e sexualidade que as
constrangiam, elas as reproduziam em relação as suas colegas. Isso não é algo excepcional
entre prostitutas, como notou Gabriela Leite (1992).
Então, não é de se espantar que, mesmo delimitando a forma contratual das trocas
econômico-sexuais desde o início dos anos 2010, elas tenham continuado distantes da
mobilização coletiva, algo que se soma à impopularidade da Aproce entre as trabalhadoras do
sexo, por um lado, e aos limites em relação aos movimentos feministas locais, por outro.
Desde 2012, a precariedade do trabalho do sexo no bairro não parou de aumentar. Em
2016, quando eu fiz a pesquisa de campo, nem mesmo a profissionalização resultava em
ganhos suficientes para que a maioria das mulheres mantivesse o padrão de vida desejado.
Elas buscavam também diversificar a sua fonte de renda, trabalhando como massagistas,
técnicas de enfermagem, cabelereiras, torneiras mecânicas, promotoras de vendas em
supermercados, designers de sobrancelhas, entre outras profissões. Mesmo mulheres que
mantinham casa, carro e práticas de consumo luxuosas graças aos ganhos nas boates da Praia
de Iracema vislumbravam outras atividades diante das incertezas do futuro.
Isso difere muito do cenário descrito por Piscitelli na primeira metade dos anos 2000,
quando as mulheres tinham acesso a importantes somas de dinheiro e vários casos de amor
num contexto de trocas econômico-sexuais fluídas com os gringos (PISCITELLI, no prelo).
Chris lembrava com saudosismo dessa época em que a Praia de Iracema era só “festa”.
193
Nesse contexto, “botar boneco” significa ser exigente, difícil de agradar.
314
Quando o dinheiro que circulava não se opunha ao amor, os “gringos” não eram “turistas
sexuais” e as mulheres não era “mentirosas”:
[Era] festa toda noite até 6, 8 horas da manhã na praia. Foi muito melhor que
Ibiza, foi festa direto. O que a galera encontrava na Ibiza, em Fortaleza
tinha. A galera que mora aqui nem sabia, nem pensava isso, aqui foi bacana,
mas depois a gente tinha 2 voos da Holanda toda semana, 4 da Itália,
Alemanha, Suíça, todo mundo vem aqui, e o público foi muito mais jovem, a
galera que vem aqui da faculdade, a galera que vem pra gastar dinheiro,
depois que a prefeitura doida disse que ia bater no turismo sexual dos
europeus… comércio sexual, Fortaleza, o que aconteceu? Quando você vai
num lugar que você vê muito turismo sexual normal você faz o que? Você
não vai mais! Qual o público que você chama? Os turistas sexuais que nem
sabia que existe. Depois dessa mundial [Copa] vai bater em turismo sexual a
maioria nem sabia que existe aqui. O público bom vai embora e os turistas
sexuais vem194.
194
Entrevista, 6 de fevereiro de 2014.
315
A coisa que eu acho daqui, eu acho isso uma merda, porque? Todo mundo tá
mentindo, a única coisa que uma puta quer é dinheiro. Ela não quer saber do
homem, ela quer saber da vida dela. E os homens aqui são burros, se
apaixonam tão rápido pela mulher e as mulheres aqui… imagina você ter 10
namorados longe daqui e cada final de mês você dizer “ei, amor, preciso de
dinheiro”, você manda pra 10. Com 5 você paga seu aluguel, sem fazer nada,
vida boa ou não? Aí toda noite você frequenta aqui na boate, quando você
quer ganhar mais ainda, tem mulheres que ganha tanto dinheiro…
É interessante perceber nessa fala que ele inverte seu raciocínio anterior: aqui não são
mais os “turistas sexuais” atraídos pelas denúncias de “crimes sexuais” que provocaram as
mudanças na Praia de Iracema. Ao contrário, as mulheres teriam assumido um
comportamento moralmente condenável. Elas teriam se tornado mentirosas, gananciosas e
desinteressadas do amor: enganavam homens apaixonados para ter vantagens financeiras. Ou
os 5% dos homens que sobravam no seu cálculo. Nas duas hipóteses, aparentemente
antagônicas, o que coincide é ênfase na mudança na moralidade do sujeitos.
Juliana considerava que, até 2011, “em todo canto tinha gringo” na Praia de Iracema.
Às vezes encontrava um “gringo” já quando saía para jantar com as amigas em uma pizzaria
ou ia a lan house usar o computador. Não precisava nem ir à boate. Contudo, a disposição
316
para o amor dos gringos não era percebida por ela como algo de que ela tiraria vantagem.
Juliana ganhou dinheiro e também se apaixonou. Havia espaço para os dois.
Em 2016 os turistas “praticamente sumiram” e a concorrência entre as mulheres
aumentou. Mais de uma vez aconteceu de mulheres “caírem em cima” de um homem com
quem ela estava conversando e estragarem a possibilidade do encontro para todas. Se fosse
“gringo bom” se assustava, se fosse “gringo-cafuçu” se aproveitava. De todo modo, elas
perdiam.
A maior parte dos “gringos” que frequentava as boates da Praia de Iracema
contemporânea residiam em Fortaleza e compartilhavam das moralidades dicotômicas locais.
A semelhança entre a perspectiva desses “gringos” com aquela hegemônica nos bairros
periféricos era tanta que sustentava a afirmação de que eles “viraram cafuçus”.
O “gringo-cafuçu” estraga a sua branquitude com comportamentos “nativos” que
remetem às desigualdades de gênero e sexualidade locais. Esses comportamentos incluem
“não querer pagar”, “enrolar” e ser “mulherengo”. Eles se tornavam iguais aos “nativos” em
sua relação com as mulheres. Mas continuavam brancos. As mulheres tinham raiva dos
“gringos-cafuçus” principalmente pelo seu potencial em enganá-las. E acontecia.
No início de julho de 2016, os noruegueses que Juliana conhecera através de seu ex-
namorado deram calotes em várias mulheres com quem saíram. Quando encontramos o grupo
em uma barraca na Beira Mar, Sunny, uma jovem com estilo “regueira”, de pele morena e
cabelos cacheados, sentou-se conosco e contou seu caso. Ela tinha passado dois dias com um
deles, mas, no final, “o filho da puta” não quis lhe pagar os 600 reais acertados. Ela estava
com “ódio” e garantia que não ia deixar barato. Já tinha ido ao seu flat uma vez para cobrar,
mas ele não estava. Iria novamente e aceitaria o pagamento de 500 reais para resolver a
questão.
Sua experiência negativa não impediu que Mônika saísse naquele dia com um
norueguês que, segundo Juliana, “parecia um príncipe”. No final do encontro, porém, o
“príncipe” tampouco quis pagar. Quando ouvi a história fiquei confusa e perguntei a Mônika
se ela tinha feito a “linha do amor”. Ela me garantiu que não. Isso para ela não existia!
Quando saiu com ele avisou que cobrava e cobrava caro. Acrescentou que trabalhava porque
suas contas eram muito altas. Quando ele se recusou a pagar, ela “quis quebrar a pica desse
filho da puta”.
Mônika era alta, de pele clara e cabelos lisos tingidos de ruivo na altura do ombro. Seu
corpo era todo malhado pois ela adorava ir à academia. Além disso, Mônika era muito
perfeccionista. Eu observava com admiração, quando estava na casa de Juliana, como ela
317
Ainda que a experiência apontasse que não havia amor na Praia de Iracema, “gringos”
e “nativas” não abandonaram a narrativa romântica transnacional entre o par “príncipe”-
“morena”. É verdade que esse amor não havia desaparecido, ele só fora deslocado 195 .
Mercadorias, viagens e aventuras ainda se combinavam ao amor romântico nas economias
sexuais transnacionais.
Para essas mulheres, não se tratava de “sonhos”, tais como os que foram descritos nas
políticas de enfrentamento a “crimes sexuais”, de “vítimas que procuram seus próprios
algozes, loiros, de olhos azuis” (PRETELLO e DIAS, 1996, p. 9). Blanchette, Silva e Bento
(2013) notam que essas histórias míticas sobre “garotas mestiças, pobres, inocentes, sem
educação”, que sustentam o enfrentamento a “crimes sexuais” no Brasil, guardam pouca
relação com as experiências das trabalhadoras do sexo.
As mulheres que circulavam na Praia de Iracema em 2016 reconheciam as
dificuldades de encontrar um amor entre os “gringos” que estavam nos bares e nas boates. Os
homens que “pagam mulher” estariam todos estragados para o amor. Havia ainda, porém, um
195
Ver capítulo 7.
319
imaginário sobre “outros” europeus que circulava entre elas: os “gringos de verdade” com os
quais elas poderiam viver uma história de amor e consumo transnacional. Os 5% calculados
por Chris.
Os “gringos”, por sua vez, seguiam fantasiando encontrar nas praias dos trópicos uma
“morena” sensual que lhes cuidasse e seduzisse sem exigir muito em troca. Tommy
considerava que, nesse caso, eles deveriam oferecer uma “ajuda”. Contudo, para isso, essa
“morena” tampouco poderia estar “estragada” pelo trabalho do sexo.
A pureza moral era o elemento que faltava nos bares e boates da Praia de Iracema. E
estar do lado “certo” da moral não dependia apenas da conduta ética dos sujeitos. A produção
das subjetividades éticas era informada por indícios que, muitas vezes, escapavam ao controle
das pessoas. Como escapou a mim no meu contato com Sunny.
A história de amor entre Karoline e Carlo ilumina essas questões. Em meados de
setembro de 2016, conheci Maria Karoline em uma barraca da Beira Mar. A jovem de 20 anos
veio do Sertão de Quixeramobim para Fortaleza em busca de oportunidades. Havia apenas 2
meses que começara a “fazer babado”, mas não achava que estava bom. Segundo ela, não
tinha “gringo” como antes. Só conseguia algo quando Juliana a ajudava.
Apesar da escassez de “gringos”, Karoline avaliava que teve boas experiências.
Conheceu um italiano “velho”, de 56 anos, com quem passou uma semana boa. Quando ele
voltou para a Itália, convidou-a a visitá-lo. Queria casar com ela. Karoline não aceitou a
proposta. Para ele, disse que queria primeiro “estudar” o país, conhecer a “cultura”. Para mim,
disse que o homem era muito velho, não dava.
Ela queria encontrar um “príncipe” e casar por amor. Encontrou Carlo, 30 anos, na
boate. Não tinha vergonha em dizer: “me apaixonei mesmo”. Havia poucos dias que ele tinha
partido. Karoline estava triste e lembrava com detalhes como tudo começou. Karoline sorriu
para ele, mas ele não sorriu de volta. Normalmente, isso bastaria para que ela nunca mais
olhasse para o homem.
Porém, no dia seguinte, ela foi tomar sol na mesma barraca onde conversávamos e lá o
encontrou novamente. Ela estava toda “chique”, com seu biquíni e sua canga. À distância de
uns 15 metros estava a mesa com italianos. Um deles, que estava de óculos, chamou sua
atenção e ela começou a paquerar.
Ficaram paquerando por um tempo até que um amigo de Karoline, vendedor
ambulante, apareceu e lhe perguntou se ela estava saindo com alguém. Ela disse que não. Ele
comentou, então, que os italianos daquela mesa estavam “só olhando” para ela, e se ofereceu
320
transnacionais elas queriam articular sua experiência de festas, dinheiro e sexo a relações
íntimas mais igualitárias, que lhes dessem acesso a consumo e mobilidade transnacional.
Desde essas “margens não-identitárias” (HEMMINGS, 2018, p. 131), elas colocavam em
prática, através de suas vidas, elementos das pautas feministas, muitas vezes, contraditórios.
Os efeitos negativos do afastamento dessas mulheres dos movimentos sociais na luta
por direitos e as identidades sexuais que eles pressupõem foram delineados nesse capítulo.
Elas ficaram com poucos recursos para enfrentar as desigualdades na esfera pública, seja
aquelas produzidas na guerra em torno da droga ou na relação contratual de trabalho sexual.
Contudo, é importante apreender também o caráter produtivo desse apego às margens.
Desde 2010, quando eu comecei a fazer pesquisa com trabalhadoras do sexo, eu tenho
elaborado desculpas para o não-engajamento político de minhas interlocutoras. Elas vão desde
os conflitos de interesse de trabalhadoras do sexo do Centro com a Aproce até o não-
reconhecimento coletivo das mulheres que como trabalhadoras do sexo na Praia de Iracema.
Mas porque focar nas pautas identitárias e por direitos em contextos nos quais elas estão
ausentes?
É preciso observar o caráter produtivo dessas formas de voar abaixo do radar do
estado, como fez Dandara por mais de 20 anos, e de desviar o estereótipo da mulher “errada”
que minava não somente as possibilidades de amor romântico, mas também de amizade e até
de amor-próprio.
Na Praia de Iracema contemporânea, a própria intimidade arriscava se desfazer. E isso
não era nada que a gramática dos direitos pudesse resolver. As mulheres com quem convivi se
apegavam, então, a algo cujo poder era simultaneamente universal e individual: deuses,
energias e espíritos. É nesse contexto que as missões ganharam relevância, ao prometerem na
espiritualidade uma “fonte de renovação dos elos sociais” (BIRMAN, 2004, p. 239) e,
sobretudo, de amor.
Eu conheci Juliana num evangelismo realizado pela Missão Iris na “zona vermelha”.
Ela foi muito receptiva às abordagens missionárias e nosso contato inicial se deu graças a
196
Refrão da música Paixão proibida (1993), da banda Passport, grande sucesso em Fortaleza nos
anos 1990.
323
energia, os quais ela manipulava com cuidado em cada situação. Não falava de coisas ruins de
porta fechada, para que a energia não ficasse represada. Também prestava atenção nos
homens com os quais saía, cuja energia ruim podia “contaminá-la”.
As missionárias do Iris eram reconhecidas como pessoas dotadas de um grande poder
sobrenatural na Praia de Iracema. Contudo, os efeitos da manipulação desse poder nas eram
percebidos com ambivalência por Juliana. Ao mesmo tempo em que as missionárias lhe
traziam proteção, algo que ela apreciava, Juliana reconhecia que elas não queriam que ela
fizesse “programas” e que a oração poderia prejudicá-la nos encontros com “gringos”197.
Os fluxos de energia deviam ser observados em várias situações cotidianas, contudo,
nas relações de amor e de dinheiro eles se tornavam ainda mais importantes. As economias
sexuais transnacionais reuniam esses dois elementos para os quais a sorte era, cada vez mais,
pensada como um fator determinante.
A barraca na Beira Mar que Juliana frequentava era o lugar ideal para falar das coisas
ruins sem que a energia delas permanecesse conosco. Naquele dia, estávamos acompanhadas
de Dulce. Juliana falou que era um pouco médium, sentia muito as coisas. Dulce disse que o
mesmo acontecia com ela. Ambas reconheceram o benefício do contato com as missionárias
do Iris para manipular as “coisas” que sentiam. Dulce valorizava especialmente que elas
fossem à boate e se “misturassem”. Sempre que as encontrava, recebia a oração como forma
de proteção.
Dulce teve várias experiências sobrenaturais com as missionárias. Daiane era a
missionária que mais a impressionava. Quando elas se conheceram na boate, Daiane dissera a
Dulce que teve a visão de um “sapato vermelho” quando fazia a intercessão198. Chegando lá, a
única pessoa de sapato vermelho era Dulce. Atestando aquele fato ao olhar em volta de si,
Dulce recebeu a oração com fervor.
Depois, Dulce participou de um “Banquete do amor”199, e, nessa ocasião, reparou na
imagem de uma menina em um lugar “bem escuro”, indo em direção ao que parecia uma
igreja. Certo dia, lembrou da imagem e resolveu mandar uma mensagem para Daiane. Ela não
falou nada sobre o assunto na mensagem, mas Daiane lhe perguntou se ela lembrava da
imagem. Quando ela respondeu que sim, Daiane lhe disse que aquela menina era ela.
Eu não consigo sequer imaginar o efeito que esse poder sobrenatural teve sobre Dulce.
A jovem de porte magro, pele clara, cabelos lisos tingidos de loiro na altura do ombro e várias
197
Diário de campo, 12 de julho de 2016.
198
Ver capítulo 3.
199
Ver capítulo 7.
325
tatuagens no corpo revelava aos poucos uma narrativa de sofrimento gerado pelas tensões em
torno de sua fé.
Dulce nasceu na região Norte, para onde sua mãe, ainda jovem, migrara desde o
Sertão de Inhamuns. Muitos anos depois, elas retornaram ao Ceará, mas Dulce não se adaptou
à vida sertaneja. Partiu então para Fortaleza, onde passou a sair com “gringos” na Praia de
Iracema. Esse foi um momento de grande conflito para ela, pois considerava que estava indo
contra a sua religião. Dulce e sua família eram Testemunhas de Jeová.
A incompatibilidade entre seu novo estilo de vida e a moralidade cristã fazia com que
Dulce se sentisse muito mal, “muito errada”. Sem ferramentas para resolver essas
contradições, Dulce ficou cada vez mais deprimida até que um dia entrou no carro de um
amigo e bebeu meio litro de óleo diesel. Não morreu porque seu amigo a encontrou e levou ao
hospital, onde ela passou 22 dias internada.
A narrativa de autodestruição de Dulce, infelizmente, não termina aí. Ela nos contou
em confidência que foi “viciada em crack” e, em razão disso, passou seis meses morando no
Oitão Preto. Ela não trazia no corpo as marcas da abjeção associada ao uso radical de crack,
mas se dizia ainda assombrada pelo vício que se materializa no fantasma de uma amiga.
Dulce acreditava que quando tinha recaídas estava sob a sua influência, sentia-a ao seu lado e
pedia que a amiga descansasse, que não quisesse mais usar drogas através de seu corpo.
Juliana era extremamente sensível aos espíritos dos vivos e dos mortos. Desde sua
sensibilidade ela respondeu de maneira positiva ao sofrimento de Dulce, oferecendo-lhe
relatos de resistência à morte e à influência de maus espíritos como companhia e
conhecimento para lidar com a dor.
Primeiro, contou-lhe que, certa vez, no banheiro da boate, um espírito quis entrar no
seu corpo. Ela o sentiu pressionando, mas não teve medo. Sabia que seu corpo era “fechado”
e ela não faria nada sob a sua influência. Fechando o corpo para o mau espírito, ela colocava
em prática o conhecimento adquirido para lidar com os vivos que queriam lhe “botar para
baixo”.
Depois, Juliana aprofundou as semelhanças com a narrativa de Dulce, revelando que
ela também já esteve à beira da morte. Aos quatro anos, Juliana ingeriu acidentalmente
veneno para rato. Os médicos fizeram curetagens, mas acharam que seu corpo, ainda muito
pequeno, não resistiria. Sua mãe, porém, nunca perdeu a fé e Juliana sobreviveu. Ela
acreditava que seu “transtorno” de aprendizado era consequência de sua quase-morte. Eu e ela
conhecíamos seu longo percurso para superá-lo.
326
Diante da fragilidade de suas vidas eu, que nem sou de reza, afirmei que foram dois
milagres. Juliana e Dulce aproveitaram o infinito de céu, mar e cumplicidade que se
estendiam à nossa frente para falar de dores que elas não queriam que as acompanhassem na
forma de energia ou de fofoca. Elas não eram amigas, mas contra as desconfianças que
marcam as relações naquele contexto, compartilharam sofrimentos e com eles construíram
suportes para suas vidas.
Que essas dores tenham se materializado na forma do veneno, acidental ou
propositalmente, ingerido, incorporado e depois extraído, é algo que transborda para além da
metáfora. As duas manipulavam com cuidado um “conhecimento venenoso” (DAS, 2007) de
abuso moral e negligência ao qual estiveram expostas nos contextos que lhes eram mais
importantes: a fé e a família.
Como nos casos analisados por Veena Das, tratava-se de situações que precisavam ser
tragadas e acomodadas à vida cotidiana sem que o poder letal de colocá-las em palavras se
abatesse mais uma vez sobre elas. “Existe uma duração ou existem várias? Essa é uma
questão assombradora” (2007, p. 98).
Que a praia apareça novamente como lugar de manipulação do “mal”, mas agora de
uma maneira “segura” me faz ter alguma esperança. É também essa possibilidade de
manipular o sobrenatural que atraia Juliana e Dulce para as ações missionárias. Não as ações
de enfrentamento a “crimes sexuais”, sobre as quais elas e outras trabalhadoras do sexo
consideravam as missionárias pouco informadas, quando não inocentes.
Energia, desejo e magia são elementos importantes para fazer o amor desde as
economias sexuais transnacionais. Apesar de saberem manipulá-los, sua localização no lado
“errado” das dicotomias morais infestavam o amor de uma desconfiança venenosa. As ações
missionárias simultaneamente oferecem alternativas e sustentam essas desconfianças
(GAMBETTA, 1988).
A “imoralidade” da prostituição, que passou a ser a principal categoria associada aos
encontros entra “nativas” e “gringos” nos bares e boates da Praia de Iracema, produzia uma
constante desconfiança sobre o amor nesse contexto, mas essas não eram suas únicas
consequências. A imoralidade se fazia também obstáculo ao estabelecimento de uma
linguagem em comum e desviava o debate do tema os direitos (HACKING, 2008).
*
Quando eu comentei com amigos e amigas sobre o dilema moral que eu estava
vivendo no condomínio onde vivo, entrei em detalhes sobre a quantidade de possíveis clientes
327
que estariam visitando os apartamentos e os preços anunciados na internet. Isso gerou muitas
piadas sobre seu interesse nesse negócio.
Para além das piadas, eu sei que algumas dessas pessoas poderiam se beneficiar
enormemente desse tipo de renda em sua vida cotidiana. Mais que isso, muitas delas tinham
na sua sexualidade um objeto de avaliação moral negativa, ainda que nenhuma exercesse o
trabalho do sexo.
Ao longo desse capítulo, descrevi situações de amor e violência desde a experiência de
trabalhadoras do sexo, mas eu quero conectá-las com as demais narrativas apresentadas nesta
tese. À medida em que eu o escrevia, senti um desconforto com alguns dos temas que eu
trouxe à tona, pois pensei que seriam facilmente utilizados para reproduzir uma imagem
vitimizante das trabalhadoras do sexo que não interessava a nenhuma delas. Por outro lado,
descrevendo desigualdades de gênero, sexualidade, raça, classe, idade e nacionalidade nas
economias sexuais transnacionais eu não estou me referindo somente a elas.
O amor é linguagem que todas utilizamos, mas nossas ferramentas não são as mesmas.
Num contexto de moralidades dicotômicas onde gênero e sexualidade são categorias
fundamentais, certas ideias de amor se impõem e informam ações e sentimentos que, ao não
se encaixarem nelas, são excluídos do amor.
Não quero, porém, subscrever a agência de umas em oposição à vitimização de outras.
A própria ideia de agência é, muitas vezes, articulada através das mesmas moralidades que
delimitam o amor. Cada uma das pessoas cujas histórias foram narradas nesta tese articula de
maneiras diferentes, mais ou menos exitosas, formas de transgredir os limites da desigualdade
e realizar seus desejos. Investindo nos projetos de vida de sua própria autoria, todas tiram de
suas narrativas alguma dignidade (RAPPORT, 2003) e, como pontuou Micinete Lima diante
de discordâncias em uma reunião na Casa Feminista, eu também estou “afim de estar com
todas”.
As narrativas das trabalhadoras do sexo são importantes porque elas mostram como
essas relações de poder operam em situações em que elas tentam produzir o amor nem dentro,
nem fora do sistema moral predominante. No capítulo seguinte, analiso os usos da linguagem
do amor nos trânsitos missionários através das economias sexuais transnacionais. Eu continuo
o debate sobre mobilização da linguagem do amor em oposição à gramática dos direitos na
Praia de Iracema contemporânea e como isso ilumina questões sobre a sexualidade que estão
além dos termos das identidades e dos direitos.
328
16 de outubro de 2015. Cheguei à base da Missão Iris em Fortaleza por volta das
22:30 para acompanhar o discipulado na “zona vermelha” que aconteceria naquela
madrugada. O Culto de Missões semanal estava se encerrando e a maior parte das pessoas
ainda estava na laje. Uma missionária aproveitava a ocasião para vender doces a um preço
módico. Outras comentavam seus planos de viagem. Daiane retornaria para sua cidade natal,
no Centro-Oeste, depois seguiria para uma base missionária em Recife e de lá iria encontrar
uma amiga missionária na Venezuela. Outra missionária narrava sua experiência no Oriente
Médio, onde ela experimentou a precariedade da vida em um campo de refugiados palestinos
e também os obstáculos ao trabalho missionário na região. O assassinato de um missionário
local convertido ao cristianismo materializava em sua fala o amor radical: “morrer por Jesus”.
À meia-noite, o grupo de onze pessoas seguiu em dois carros para a zona vermelha da
Praia de Iracema. Estacionei em casa e segui a pé para a pequena praça que fica em frente à
igreja de São Pedro. Michelle e Neto, líderes da ação, nos reuniram em um círculo e nos
convidaram a orar: chamar Deus, dizer os nomes das pessoas que esperávamos encontrar e
fazer nossas preces.
O momento de intercessão durou aproximadamente 1 hora e foi acompanhado por
músicas tocadas num violão. Durante esse tempo algumas pessoas se movimentaram,
choraram, oraram alto, sentaram-se, ajoelharam-se ou deitaram-se no chão. Outras, mais
estabelecidas na hierarquia missionária, mantiveram uma atitude mais discreta e aproveitaram
alguns momentos para verificar o telefone celular.
Depois desse momento, o casal-líder organizou as pessoas em grupos. Perguntaram-
me qual grupo eu gostaria de acompanhar. Eu escolhi aquele que seria liderado por Gabi, pois
faria abordagens nas boates. Além de mim e Gabi, faziam parte do grupo dois rapazes e uma
moça de aparência muito jovem, todos brasileiros. O outro grupo ficaria na rua e abordaria
travestis e moradoras de rua com as quais missionárias/os mantinham contato. Michelle
explicou que naquele dia não haveria grupo de intercessão, então, sempre que estivéssemos
livres, deveríamos orar.
Um dos rapazes que nos acompanhava ficou preocupado com a necessidade de pagar
pela entrada na boate, pois não trazia dinheiro consigo, mas Gabi explicou-lhe que fizera um
acordo com o gerente para que dois homens pudessem entrar acompanhando as missionárias.
329
Estas eram dispensadas do pagamento por serem mulheres, seguindo as normas de gênero da
casa.
Quando chegamos à maior boate do bairro, as escadas pelas quais normalmente
acessávamos a parte superior estavam bloqueadas por cadeiras, de modo que seguimos para o
salão térreo onde uma banda de forró se apresentava para umas 20 pessoas, entre mulheres e
funcionários/as. Gabi reconheceu uma jovem que estava acompanhada por Juliana sentada ao
bar e nós nos aproximamos delas e estabelecemos conversas paralelas.
Ao notar que eu era casada, Juliana comentou que seu sonho era encontrar alguém
com quem pudesse construir uma casa e uma família. Ela gostaria que fosse um homem
estrangeiro, mas sabia que Deus poderia ter outros planos para ela. Já nesse dia mencionou o
norueguês com o qual viveu o romance sem final feliz que narrei no capítulo anterior. Apesar
do desamor, ela ainda lembrava como dizer “eu te amo” na sua língua: jeg elsker deg.
Motivada pelo tema do casamento, Juliana me contou a história de amor de uma
amiga, que teria se casado com um “gringo” graças ao seu “empurrão”. Inicialmente a amiga
não se interessara pelo homem que a olhava. Considerou-o velho e barrigudo. Mas com a
ajuda de Juliana, eles estavam casados e tinham uma “casa linda” na Itália. Ela confirmou o
“final feliz” da história da amiga quando visitou o casal em companhia de um namorado
italiano. Juliana considerava seu “empurrão” fundamental no sucesso do romance da amiga e
queria que alguém a ajudasse da mesma forma. Adaptando essa ajuda às circunstâncias em
que estávamos, pediu-me uma oração. Sem saber o que fazer, chamei Gabi e nós duas
manipulamos as energias que conhecíamos em benefício do amor na vida de Juliana.
Aos poucos a boate foi ficando mais movimentada com a chegada de “gringos” e
outras mulheres. Nós encontramos outras conhecidas, mas as conversas e orações
interessavam menos naquele momento em que havia tantas oportunidades para encontrar
dinheiro, amor ou uma combinação dos dois.
Saímos da boate, já completamente lotada, as 2:30 da manhã. No caminho de volta
para a praça, eu conversei com Gabi sobre as abordagens que fizemos. Na minha perspectiva,
as pessoas com quem conversamos pareciam subscrever aos ideais missionários de amor e
casamento, por isso eram receptivas às abordagens missionárias.
Gabi concordava que as mulheres acreditavam que Deus lhes proveria um casamento e
que elas consideravam que estavam nas boates enquanto esperavam por isso. Contudo, desde
seu ponto de vista faltava-lhes conhecimento e responsabilidade para que elas se tornassem
merecedoras desse sacramento. Uma oração apenas não bastava.
330
Foi isso que ela falou para a amiga de Juliana quando ela expressou-lhe seus sonhos
de casamento. Gabi explicou que Deus dera o livre-arbítrio para que pudéssemos escolher
nosso caminho e perguntou se ela achava que estava fazendo a vontade de Deus estando ali.
Sua interlocutora respondeu que não. Gabi perguntou então se ela achava que Deus a
perdoaria. A mulher respondeu que não sabia. Gabi argumentou que Deus a perdoaria desde
que ela fizesse a Sua vontade. Só assim, ela alcançaria a graça do “bom” marido.
*
Nesse capítulo, dedico-me a analisar os cruzamentos entre desejo, sexo, amor e
casamento nas economias sexuais transnacionais de Fortaleza. O amor é a linguagem
fundamental em que se expressam essas relações onde as mulheres articulam discursos
feministas e cristãos na sua produção ética.
No contexto de crise econômica e política que marca a Praia de Iracema
contemporânea, o valor moral da linguagem do amor é enfatizado. Na narrativa romântica que
organiza as experiências, para que o amor seja reconhecido, ele precisa ser correspondido.
Considero aqui a distribuição desigual desse reconhecimento desde as economias sexuais
transnacionais entre diferentes categorias de “nativas” e “gringos”.
Falo de economias sexuais para me referir a um conjunto de encontros íntimos
abrangente que, de alguma maneira, envolvem sexualidade e dinheiro, e que vão desde a
prostituição até o casamento. A especificidade da Praia de Iracema contemporânea nessas
dinâmicas está na hegemonia da narrativa do romance acionada para representar o encontros
entre “gringos” e “nativas” como casos de amor, ainda que, muitas vezes, malsucedidos. “A
cena do desejo e dos obstáculos a ele se torna erotizada, mais que o amor que parece movê-la”
(BERLANT, 2012, p. 73).
Assim, eu sigo contando nesse capítulo histórias de amor em que as pessoas não se
casaram e não foram felizes para sempre. São histórias de amor transnacionais contadas em
primeira pessoa por jovens que buscam se reconstruir através de um romance heterossexual
legitimado pelo casamento e fundado no amor de Deus. São também histórias de desejo e
aventura, em que a transgressão e a imprevisibilidade são representadas através da linguagem
do amor. Ao final, porém, os limites da narrativa de amor normativa me compelem a olhar
para o lado e buscar o que está nas margens do amor.
O amor é pensado aqui como linguagem e categoria ética. Como linguagem, o amor é
mobilizado em situações diversas que vão desde a intimidade do casal até a ação política.
Como valor ético dos sujeitos, ele pode ser afirmado ou negado de acordo com sistemas
morais mais abrangentes. Em ambos os casos, a subjetividade ética fundada no amor não é
uma questão privada (KEANE, 2015).
A ética do amor atravessa as relações estabelecidas no enfrentamento a “crimes
sexuais” e também nas economias sexuais transnacionais. Ela é uma ficção moral que
materializa os imperativos éticos dos sujeitos que habitam um mesmo universo moral, ainda
que eles nem sempre cheguem a um acordo sobre as questões morais (DIAMOND, 1988).
Sua importância na articulação do enfrentamento em Fortaleza foi discutida no segundo
capítulo desta tese. Aqui, analiso as suas implicações sobre as dinâmicas das economias
sexuais contemporâneas.
Amor, e não sexo, é o conceito privilegiado para descrever as relações nas economias
sexuais transnacionais que vão desde a prostituição até o casamento num universo em que os
“programas” são escassos e muito difíceis de serem realizados com proveito. Nos discursos
missionários, os encontros sexuais entre “gringos” e “nativas” nas boates destroem o amor.
Nos discursos das trabalhadoras do sexo, sua motivação para circular pela Praia de Iracema é
a busca pelo amor. Em ambos, a sexualidade fica eclipsada (BUTLER, 2003). Isso não quer
dizer que esteja ausente.
Outra consequência da prevalência da linguagem do amor nesse contexto são seus
efeitos sobre a construção de maneiras de fazer, pensar e entender a vida específicas
(DIAMOND, 1988). Pensar as situações cotidianas em termos de amor e seus outros, sejam
eles o “falso amor” ou a violência, resulta no acionamento de normas específicas onde afetos
e moralidades normativas importam mais que os “direitos”.
Amor, e não direito, é a medida das coisas. Ou melhor, a gramática dos “direitos”, que
em outros contextos engloba dramas morais e sofrimentos pessoais (VIANNA, 2013), é no
contexto do enfrentamento a “crimes sexuais” missionário e do trabalho do sexo na Praia de
Iracema subsumida pela linguagem do amor. Se fala-se de direitos, é para chegar ao amor. O
amor não abole a justiça, como em Boltanski (1990), mas ele a torna acessória200.
Isso faz com que o debate sobre os direitos sexuais e as categorias de consentimento e
vulnerabilidade apareçam de maneira tangencial na prática missionária, dando lugar à
discussão do amor como valor moral no qual o debate fundamental se dá em torno das noções
200
Ver capítulo 3.
332
amor verdadeiro (COLE, 2009) que é apropriado por esferas seculares, como o mercado
(ILLOUZ, 1997; BERLANT, 2012) e algumas vertentes do feminismo (CHAPKIS, 1996).
Contudo, como vimos ao longo dessa tese, há muitos cristianismos e esse corpus de
conhecimento não é homogêneo. No contexto de mudanças experimentadas na Praia de
Iracema contemporânea, a justaposição entre as moralidades cristãs e alguns direitos sexuais
situa as missões de enfrentamento a “crimes sexuais” como instância fundamental ao avaliar
as “boas combinações” – morais e legais – entre atividades econômicas e intimidade.
Viviana Zelizer (2009) elenca três categorias importantes para identificar essas boas
combinações: a transação econômica da relação deve ser diferente de modelos moralmente
desvalorizados, o casal deve compartilhar da compreensão sobre a relação e a relação deve ser
moralmente reconhecível para outras pessoas. O casamento é uma das maneiras mais eficazes,
ainda que não seja infalível, para atestar que a relação combina economia e intimidade fora
das lógicas do mercado.
Em seus romances transnacionais iniciados como “programas”, Juliana e Karoline,
concluíram que não houve amor “verdadeiro” pois, ainda que elas estivessem apaixonadas e
sentissem reciprocidade de seus parceiros, a história não se consolidou na forma moralmente
valorizada do casamento. Já o casamento entre os missionários Matthew e Regina, apesar das
diferenças de raça, classe e nacionalidade que o atravessam, é (quase sempre) reconhecível
como uma relação de amor verdadeiro de acordo com os critérios de Zelizer.
O insight teórico da autora é interessante para debater essas relações, contudo fornece
poucas pistas para analisar por que relações podem, mesmo sem um final feliz, ser
classificadas como histórias de amor “verdadeiro”, enquanto que outras são avaliadas
retrospectivamente como um “falso amor”.
A produção da “verdade” ou “falsidade” do amor não se relaciona somente com as
combinações que os sujeitos fazem e como eles as apresentam ao mundo, mas também com a
própria subjetividade ética dos amantes. Num contexto onde moralidades dicotômicas se
fundam nas categorias de gênero e sexualidade, o cristianismo missionário é capaz de
ressignificar corporalidades desvalorizadas, revestindo-as do valor ético do amor. A
transparência no amor é associada com a emergência da “verdadeira” identidade dos sujeitos
(BERLANT, 2012).
As missionárias e missionários que desenvolviam ações de enfrentamento a “crimes
sexuais” não inventaram essas moralidades nem as subscreviam completamente. Contudo, o
seu lugar “ao lado” do sistema moral cristão hegemônico somado à sua ponte com formas de
gestão secular da sexualidade legitimavam suas abordagens tanto em esferas religiosas quanto
335
seculares. Então, quando se falava de amor nas missões, falava-se também da moral e dos
direitos que davam (ou minavam) os suportes para a vida.
Através da reflexividade dedicada às práticas cotidianas, missionárias/os atuavam na
transformação de sistemas morais. Essa reflexividade, construída sobre as noções de
consciência e agência do sujeito as aproximam de políticas feministas na teoria
(CRUIKSHANK, 1996; KEANE, 2015) e também na prática.
Ao mesmo tempo, a ênfase missionária em formas de agência sobrenaturais
relacionava-se bem com a ideia de que a ideia de agência não pode ser reduzida à eficácia das
ações opositivas de certos sujeitos, mas deve ser percebida como produto das relações que se
encontram e transbordam no fluxo das ações (MAHMOOD, 2005; LATOUR, 2005;
LAIDLAW, 2010; INGOLD, 2018).
Mais ainda, é importante notar, acompanhando o pensamento de Talal Asad (2003),
que a convergência entre o cristianismo missionário e as ideias contemporâneas seculares
sobre governamentalidade e agência, não são produto de uma simples continuidade com o
religioso, algo como sua “evolução”, tampouco resultado de uma quebra com essas tradições
de pensamento cristãs. São formas que se encontram e distanciam em um movimento
complexo.
Nikolas Rose (1996), chama atenção para a importância das moralidades no governo
considerado liberal e moderno. Os indivíduos devem ser governados através de sua liberdade
como parte de uma comunidade, diferente dos sujeitos autônomos do pensamento liberal
clássico e dos cidadãos em uma sociedade de bem estar social. É a ideia de comunidade que
permite administrar relações morais entre as pessoas livres.
A comunidade moral que sustenta a emergência do estado é a comunidade cristã
(ASAD, 2003). Com o projeto colonial, o conceito de amor cristão e a sua tensão entre as
formas de amor instrumentais e não-instrumentais são distribuídos espacialmente no mundo.
O reconhecimento ou não do amor se relaciona também com o reconhecimento ou não da
humanidade dos sujeitos num mundo (pós)colonial (COLE, 2009).
David Nirenberg retraça alguns argumentos sobre os significados do amor e as figuras
de exclusão que eles geraram desde as escrituras hebraicas e a filosofia grega, focando em sua
reunião no cristianismo, que teria produzido uma das formas mais sedutoras de amor.
Segundo o autor, a bíblia é permeada pela distinção entre o amor perfeito ensinado por Jesus e
o amor imperfeito que veio antes dele: “os evangelhos trabalham, cada um a sua maneira,
para identificar e condenar esse falso amor e sua política” (2008, p. 506).
336
Nirenberg alerta que esse conceito de amor, que povoa os ideais contemporâneos
sobre as formas mais perfeitas de comunidade e comunicação, precisa ser questionado: o
amor na política sempre produz seus “outros”, ou “inimigos” do amor. Assim, a análise dos
sistemas morais fundados no cristianismo é relevante porque elas não incidem somente sobre
o conhecimento de como agrupar coisas (sentimentos, relações, discursos) sob o conceito de
amor, mas também em ser capaz de participar na vida-com-amor (DIAMOND, 1988).
À normatividade da linguagem do amor cristão se justapõe o seu potencial para a
transformação das relações sociais. As missões de enfrentamento a “crimes sexuais” buscam,
de maneiras específicas, reunir esses dois elementos que fazem do amor a narrativa por
excelência de superação dos problemas cotidianos do mundo e da subjetividade (BERLANT,
2012).
Durante toda a tese, procurei apontar os discursos e práticas que, através da linguagem
do amor, produziram seus outros. Acredito, porém, que a sua produção mais complexa e, por
isso, mais instigante, está nas narrativas de amor romântico vividas desde as economias
sexuais transnacionais da Praia de Iracema.
E, mais uma vez, a América Latina se torna um contexto relevante desde onde analisar
as relações entre centro e margens de comunidades morais cristãs contemporâneas. As
dicotomias que emergem de sistemas morais cristãos e atravessam as relações de gênero e
sexualidade nas periferias da cidade não são pensadas como substrato suficiente para
constituir uma comunidade de sujeitos éticos cristãos. Fanstone escreve com assombro:
Perto de onde moro está uma das maiores favelas da América do Sul,
chamada Grande Pirambu. Quando se dirige pela rua principal que atravessa
a favela, é possível ver que ela está pontuada por muitas pequenas igrejas.
Em um espaço de quatro quarteirões, eu contei dezesseis igrejas. Parece
ótimo. Poderíamos dizer que o Brasil está em avivamento; mas infelizmente
não. Porque ainda que o número de igrejas e de evangélicos esteja crescendo
rapidamente, a prostituição, a violência, as drogas e os homicídios na cidade
crescem em números exponenciais semelhantes (2016, p. 42).
O amor é essencial e deve ser nosso maior objetivo. Essa vai ser a questão
definitiva sobre nossas vidas diante de Deus no paraíso: “como você amou?”
é a pergunta-chave que nós precisamos responder sobre nossas vidas aqui na
terra, porque ela vai determinar o resto de nossas vidas na eternidade. Amor
deve ser nosso critério de sucesso e nós sabemos que se nós vivermos pelo
amor, nós teremos sucesso, porque o amor nunca falha (FANSTONE, 2016,
p. 129).
Viver o amor radical é o principal objetivo dos grupos missionários com os quais eu
desenvolvi essa pesquisa. Nem sempre essa perfeição moral do amor – que é tida como divina
– é corporificada com sucesso. Em alguns casos, a transparência do coração pode ser
338
A proposta de Emily com o seu banquete do amor é ensinar o amor de Deus para
mulheres e travestis que ela considera vítimas. Nesse contexto, o amor é demonstrado por
339
201
Ver caderno de imagens.
340
O banquete do amor foi oferecido, então, a quatro pessoas “de fora”, já contando
comigo, que passei de missionária a objeto do evangelismo. A comida preparada para vinte
convidadas, porém, não se estragaria. Como a maior parte das ações públicas missionárias, o
banquete alimentava – nesse caso, literalmente – as relações missionárias. Ao mesmo tempo,
a proposta da Missão Iris de “parar por cada um” (stop for the one) confirmava a importância
da ação mesmo diante de um público restrito.
Nós tínhamos estilos corporais diversos e às vezes contrastantes. Eu, Gabi, Michelle e
Tammy usávamos vestidos longos e estampados. Sabrina vestia uma blusa com amarrações
nas costas. Quando nos encontramos no posto, ela me pediu ajuda para deixar a peça mais
“comportada”. Combinava-a com um mini-short de estampa animal e detalhes de renda
branca. A outra jovem usava uma blusa de mangas 3/4 com transparências e uma saia rodada
alaranjada. Neto vestia camiseta e bermuda, Roberto usava camisa social e calça comprida.
A laje da base foi transformada em um salão de festas onde havia um espaço de
convivência, com sofás e mesas baixas, e outro que cumpria a função de uma sala de jantar.
As convidadas ficaram separadas por grupos. Gabi acompanhava a jovem que viera a pé da
Praia de Iracema. Neto e Gustavo conversavam com Tammy. Eu estava com Michelle e
Sabrina.
Nós tomamos sucos variados (uva, cajá, maracujá) e conversamos desajeitadamente
no início. Algumas das velas artificiais estavam apagadas, então eu e Sabrina nos
empenhamos em tentar concertá-las. Quando conseguimos, ficamos satisfeitas e comentamos
como estava “chique” a vela adornada por um cachepot preto rendado. Depois desse sucesso,
os assuntos fluíram: maquiagem, penteados, químicas capilares, planos profissionais.
Sabrina estava fazendo um curso de manicure e pretendia trabalhar no salão de beleza
de sua tia, que ficava na Aldeota. Depois de “pegar experiência” como manicure, queria fazer
também um curso de cabelereira. Enquanto conversávamos, uma missionária se ofereceu para
fazer nossas unhas. Sabrina agradeceu, mas explicou que tinha acabado de fazê-las e mostrou
as longas unhas pintadas de preto.
Sabrina tinha 21 anos e morava em um bairro distante do centro de Fortaleza. Naquele
dia, ela fora à Praia de Iracema especialmente para o banquete do amor, mas suas amigas
preferiram ir para as boates. Ela as encontraria após o jantar para que voltassem juntas num
taxi conhecido. Notando a diferença entre sua roupa e a das missionárias, mostrou-nos através
do celular a foto de um vestido longo que gostaria de usar numa festa de 15 para a qual fora
convidada.
341
Depois de um tempo de conversas, Sabrina disse que estava com fome e nós nos
sentamos à mesa, onde estavam Neto, Roberto e Tammy. Logo que sentamos achamos uma
vela quebrada para concertarmos e, enquanto fazíamos isso, ouvíamos em silêncio a conversa
do outro grupo.
Tammy era travesti e por isso era evangelizada por homens. No Iris, o evangelismo
deve acontecer entre pessoas do mesmo sexo. Como me explicou um missionário, essa regra
não seria influenciada pela performance de gênero dos sujeitos, pois o sexo refletiria a
“verdade absoluta” de Deus. Nesse raciocínio, performances de gênero dissidentes seriam
expressão da vontade individual das pessoas influenciadas pelas mentiras “contadas pelo
inimigo de nossas almas”202.
Tammy não concordava com a perspectiva missionária. Ela explicava aos
missionários que a acompanhavam que pessoas religiosas se opunham à educação de gênero
nas escolas porque imaginavam que isso iria ensinar pessoas a serem homossexuais ou
heterossexuais. Segundo ela, porém, isso seria impossível, essas coisas não se ensinam, a
pessoa nasce assim, “é a sua identidade de gênero”.
Ela acreditava que a educação de gênero era importante para que as pessoas
entendessem que as identidades de gênero dissidentes não eram uma “coisa de outro mundo”,
ou do diabo. Assim as crianças se “acostumariam”, entenderiam que as pessoas poderiam ser
homossexuais ou heterossexuais e não teriam “preconceito”. Ela finalizou: as pessoas têm
preconceito com o que não conhecem.
Neto e Roberto ouviam tudo em silêncio. O momento do banquete do amor era
dedicado a fazer com que as pessoas se sentissem amadas por Deus através dos missionários.
Isso tornava improvável qualquer tipo de discussão. Neto se limitava a dizer que concordava
“em parte” com o que Tammy dizia, e completava que, para ele, também era importante
combater o “preconceito”.
Esse grupo peculiar que jantava no meio da madrugada buscava com esforço articular
uma linguagem em comum. Para os missionários e missionárias, essa linguagem era a do
amor. Nós ocupávamos a posição de objeto desse amor com a nossa presença. Contudo, para
que a narrativa do amor continuasse, nós precisávamos aceitar a fantasia missionária do amor
como nosso realismo (BERLANT, 2012). Os limites desse amor eram evidentes.
No discurso missionário, a corporalidade de Tammy era descartada com a rapidez com
que se descarta uma mentira evidente. A sua transformação moral almejada pelos
202
Diário de campo, 7 de novembro de 2014.
342
Nessa condição de crise econômica, as motivações para contribuir com o projeto são
sobretudo políticas. A maioria das educadoras e educadores foram beneficiadas por ele na
infância e adolescência. Atualmente tentam conciliar os cursos com outras atividades
remuneradas. Em face da diminuição das formações políticas com os alunos, o futuro do
projeto parece incerto.
Na perspectiva de uma moradora do bairro que participou de suas atividades nos anos
2000, o projeto morria por “falta de relações”, mais do que por falta de dinheiro. Relações
com a comunidade, relações com outras ONGs e com órgãos do estado. Eu adiciono à sua
análise outras relações que se tornaram raras nas atividades contemporâneas do projeto:
aquelas articuladas na linguagem do amor.
O amor foi um conceito fundamental na criação e instauração do projeto no Pirambu.
Em O amor falou, o amor respondeu... livro que conta a história de Anna Figus, fundadora da
Congregação das Irmãs da Redenção, a autora pontua que Figus iniciou a “obra” movida por
“um amor totalmente sobrenatural, uma predileção total e unicamente divina” (2000, p. 36)
pelas mulheres “transviadas” com as quais passou a “partilhar a vida” nos abrigos.
O amor foi o principal idioma das ações da Sociedade da Redenção no Pirambu. Um
amor materno que tecia o parentesco entre freiras italianas e pessoas pobres e racializadas de
Fortaleza que foram abrigadas na Casa Mãe do Salvador. Com a desativação da casa, tornou-
se limitado o espaço para a reprodução do amor. Junto a isso, o amor romântico e suas
expressões mercadológicas está virtualmente excluído das relações missionárias das irmãs no
Pirambu por conta do celibato compulsório.
Há algum tempo, essa regra foi transgredida pela relação entre uma noviça do bairro
com um homem estrangeiro, padre ou psicólogo, não se tinha certeza, em outro país. O caso
ficou conhecido quando gerou uma gravidez, mas não foi possível a partir disso, construir
uma história de amor que legitimasse o sexo e o desejo. A jovem deixou a congregação e o
homem. Hoje vive com sua filha numa das ruas “de baixo” do Pirambu. Não sei o que
aconteceu com o homem. O amor, inassimilável na sua forma romântica nesse contexto,
transformou-se no seu outro.
O celibato compulsório católico impossibilitou o reconhecimento da intimidade como
amor e valor ético dos sujeitos nessa relação. Livres dessa regra, missionárias/os
evangélicas/os compreendem que “o plano de Deus é a família”. Isso torna as histórias de
amor romântico possíveis nas suas missões. Contudo, para que o amor seja reconhecível para
missionárias/os e seus pares evangélicos que sustentam materialmente as missões, certas
regras devem ser observadas.
345
Léa compartilhou comigo algumas das estratégias que ela e Daniel acionaram para
viver uma história de amor missionária moralizada. Léa foi uma das missionárias com quem
eu mais tive contato durante a pesquisa. Ela parecia estar em todos os lugares: trabalhava com
as crianças no Oitão, com as mulheres na Praia de Iracema, ia para o sertão, tudo. Em meados
de 2016 ela liderou um grupo de oito pessoas, entre missionários/as e alunos da Escola de
Missões do Iris Fortaleza, em uma viagem de dois meses ao Camboja.
A aventura em Siem Reap foi pontuada por percalços financeiros. O grupo estava
orando e teve a visão de que essa viagem era o desejo de Deus, então, mesmo diante dos
limites na arrecadação de doações, partiram para a Ásia contando apenas com o dinheiro da
passagem e acreditando que alimentação e hospedagem seriam providas por Deus “no
caminho”.
O objetivo da viagem era ajudar um casal missionário brasileiro a construir uma casa
em uma vila onde moravam pessoas “não alcançadas”203, desprovida de água encanada ou
energia elétrica, nos arredores do templo milenar hindu-budista Angkor Wat. A casa seria
utilizada para oferecer cursos de inglês e corte e costura através dos quais seria feito o
evangelismo.
Os missionários pensaram em ficar nesse local, para evitar gastos, mas terminaram se
hospedando em uma casa luxuosa que alugaram do casal missionário brasileiro, como
previamente acertado. Com todo o dinheiro que tinham empenhado no aluguel da “casa
americana”, os missionários se alimentaram do cuscuz que trouxeram consigo e de macarrão
instantâneo.
Léa viveu esses meses de muito trabalho braçal e alimentação frugal com animação.
Aprendeu a falar algumas palavras em khmer, que utilizou para tentar conversar com as
crianças, como fazia no Brasil. Seu interesse na região aumentou quando ela soube que
Tailândia e Camboja seriam os dois países onde mais haveria exploração sexual. Contudo,
dadas as condições e objetivo da viagem, o grupo não teve acesso aos karaokês onde a
exploração aconteceria. Ela lamentava que tinha o “coração para o tráfico [sexual], mas a
gente não via”.
Os últimos cinco dias da viagem foram dedicados ao descanso e passados em
Bangkok, na Tailândia. Novamente sem dinheiro, os missionários tiveram que pedir ajuda a
familiares para se manter na cidade. A ajuda veio e, pela primeira vez com uma quantia de
dinheiro só para si, Léa pôde se divertir. Provou todas as comidas que conseguiu. Certo dia
203
São consideradas “não alcançadas” pessoas que não conhecem Jesus. Chegar a essas pessoas é uma
prioridade pois, segundo Léa, a bíblia diz que Jesus só voltará quando todos os povos O conhecerem.
346
andou mais de 15 quilômetros em busca de uma sobremesa chamada sticky rice, feita com
manga, arroz e leite de coco.
Ao sabor do sticky rice a história de amor de Léa e Daniel começou. Léa era
apaixonada por Daniel desde o ano anterior. Ela orou muito para que esse sentimento
desaparecesse, mas quando percebeu que isso não ia acontecer, resolveu abrir seu coração
para Daniel, que era seu amigo. Ele lhe disse que não correspondia ao seu amor. Léa aceitou.
Quando surgiu a viagem para o Camboja e ela soube que Daniel também iria quis desistir,
mas um evento sobrenatural a fez manter seus planos.
No meio da viagem, Daniel passou a gostar dela, mas fez segredo de seu sentimento.
Ela não sabia de nada até o dia em que eles compartilharam a aventura da busca e o prazer de
encontrar a sobremesa tradicional tailandesa. Léa sentiu o amor mesmo sem que Daniel lhe
dissesse nada. Quando retornaram a Fortaleza, Daniel procurou um dos líderes da base para
confessar seu amor por Léa e se aconselhar.
Sem saber de nada, Léa estava preocupada. Acontecera antes de uma missionária
apaixonar-se por Daniel e ele não corresponder ao sentimento. Resultou disso que os dois não
se falavam mais. Léa temia que o mesmo acontecesse com eles. Porém, no dia seguinte ao seu
retorno, Daniel acompanhou Léa até a praia e, ao pôr-do-sol, declarou-lhe o seu amor.
Quando conversamos, no final de setembro de 2016, havia um mês que eles
compartilhavam o amor, mas ainda não estavam namorando. Léa e Daniel decidiram primeiro
conversar com cada um dos quatro líderes da missão sobre seus sentimentos. Depois falaram
com seus líderes pastorais e finalmente, com o coletivo da base, que naquela época era de 40
pessoas.
Havia quatro casais na base. Por isso Léa se esforçava para seguir as regras que ela
mesma havia criado com a intenção de não “abusar da confiança” que lhes era depositada por
viverem na mesma casa enquanto deviam reservar o sexo para o casamento. Mesmo sem
namorar, sempre que saíam juntos, Léa e Daniel pediam que alguém os acompanhasse.
Quando começassem o namoro, não sabiam quais seriam os limites das demonstrações de
carinho: até dar as mãos seria tema de debate com sua líder pastoral.
Essas regras inventadas pelo casal, mais rígidas que aquelas comumente acionadas por
jovens casais evangélicos que fazem votos de virgindade até o casamento (GARDNER, 2011;
HORTELAN, 2016), encobriam o romance de obstáculos e transformava tensões em
“tensores libidinais” (PERLONGHER, 1986).
A relação de Léa e Daniel era observada com benevolência pelos demais missionários,
que pareciam estar confortáveis pois, consideravam que as missões eram o contexto ideal para
347
se encontrar o amor romântico e seguir sendo discípulo/a radical de Jesus. Léa justificava as
regras que estabelecera para seu namoro pela desconfiança com que as pessoas das igrejas
olhavam para a vida e o amor missionário. Ela explicou que pessoas com a “mente religiosa”
tinham preconceito com o seu estilo de vida. Acreditavam que as missionárias seriam
atingidas pela “seta do Satanás” por frequentarem a “zona vermelha” e se tornariam também
prostitutas. O namoro entre missionários seria mais um motivo para desconfiança.
As possíveis desconfianças se dissipam, porém, diante da transparência do amor
radical missionário. O trânsito das missionárias entre a moral das igrejas e a imoralidade das
boates não é avaliado como indício de duplicidade. A força moral do amor radical, sobretudo
quando legitimado pelo casamento missionário, permite que elas circulem sem ser
“contaminadas” (BERNSTEIN, 2010).
Léa e Daniel decidiram fazer um casamento rápido. Ambos tinham “convicção de
Deus” que o casamento era “certo” para suas vidas. Desde criança, Léa via em seus sonhos o
homem com quem iria casar tocando violão para uma multidão ao pôr-do-sol. Um dia, em
missão pelo sertão cearense, Daniel literalmente realizou seus os sonhos.
Em oito meses Léa e Daniel se casaram em uma bonita cerimônia à beira-mar no
estado do Rio de Janeiro, onde vivia a família do noivo. Poucos meses depois, o casal partiu
para fazer missões na Tailândia e daí não parou mais. Nas palavras de Léa, eles tiveram um
“final feliz”:
204
Postagem do Facebook, 8 de maio de 2018.
348
romance missionário. Este, apesar de ser constituído nos moldes conservadores do casamento
heterossexual cristão, é revestido da aura de transgressão produzida desde as ações de
enfrentamento a “crimes sexuais” em bares, boates e karaokês em Fortaleza ou Bangkok.
7.4. Colibri
cuidar delas, ela as adotava. Assim, Colibri cresceu num lar sem muitos recursos econômicos,
mas cheio de gente e de Jesus.
Quando eu perguntei como ela se tornou missionária, ela me respondeu com ênfase:
“ixi, foi sobrenatural, viu?”. Os caminhos de Deus são desconhecidos. Colibri enfrentou
momentos muito difíceis na sua juventude: depressão, distúrbios alimentares e ideias de
suicídio. Sua dor foi provocada por abusos que sofreu ainda na infância, quando era
acariciada por um pastor durante atividades da igreja. Não sabendo como lidar com aquela
situação, ela guardou segredo sobre seu sofrimento durante muito tempo. Olhando para trás,
Colibri ponderou: “eu era a pessoa para ter mais raiva, assim, mais ódio de igreja, de
cristianismo, sabe?”.
Essa situação de violência num ambiente que lhe era familiar fez com que ela
delimitasse sua ideia de Deus, retirando-a de seu cotidiano. Já na fase adulta, após o término
de um namoro, Colibri decidiu que daria fim a sua vida. Usando os mesmos mecanismos que
aprendera na infância, ela continuou a esconder sua tristeza. Ela notava que a maior parte das
pessoas pensava que ela era muito alegre. A ausência do reconhecimento aumentava a sua
dor.
Tudo mudou quando um jovem missionário “gringo” hospedou-se na casa de seus
pais. Ele lhe pareceu um rapaz muito estranho: falava sozinho e, às vezes, ficava “viajando”
no meio de uma conversa. Ao mesmo tempo, ele a tratava bem e cuidava dela. Colibri notou
que tinha algo de diferente nele – uma paz, uma sabedoria – e começou a se apaixonar.
O missionário falava de Jesus para Colibri, mas depois de tudo o que vivera, ela se
sentia distante de sua experiência, palavras não eram suficientes para acalmar seu coração.
Em resposta, o jovem se tornava cada vez mais “estranho”. Quando eles caminhavam juntos
pelo Centro, era comum que ele parasse uma pessoa desconhecida e, “do nada”, falasse
“tudo” sobre a vida dela. Essa manifestação do poder de Deus despertava o choro nos
desconhecidos e fazia com que Colibri considerasse que o missionário “não era normal”.
Um dia, o jovem resolveu comprar um livro para Colibri. Chamava-se Face à face
com Deus, de Bill Johnson. A dupla foi em várias lojas do Centro, mas não achou o livro. Já
cansados, pararam em frente à uma livraria qualquer, onde o jovem “gringo” falou: “Deus, eu
estou tão cansado, Pai, eu já andei com Colibri em vários lugares, meus pés estão doendo, por
favor, eu queria que tivesse esse livro aqui porque eu quero ir para casa”.
Colibri ficou espantada com a intimidade com a qual o missionário falou com Deus.
Para ela, Deus era uma figura distante, um rei glorioso de grande poder. Incomodada, ela
pediu para que ele parasse de falar daquela maneira, mas enquanto ela o fazia, um homem
350
saiu da loja e entregou o livro ao missionário. Ao ver a cena ela só conseguiu chorar,
impressionada com a resposta imediata de Deus a um pedido tão banal. Colibri contou que
desde então já viu vários milagres, entre curas de câncer e membros do corpo que cresceram,
mas ela guardava esse momento na memória como portador de um significado especial. Ele
demonstrava uma relação de intimidade com Deus, “tão perto, tão simples, ele só pediu um
livro, e Deus veio e deu a ele”.
Diante dessa resposta positiva de Deus, a dupla continuou caminhando, procurando
agora um ministério chamado Ihop (International House of Prayer) onde as pessoas orariam
sem interrupção por vários dias. Assim, chegaram à base da Missão Iris, cansados, sedentos e
famintos. O Ihop ainda não havia chegado, mas eles encontraram o grupo de missionárias/os
reunidos à mesa e foram convidados a sentar-se com eles. Colibri, em êxtase, falou pela
primeira vez tudo o que estava sentido para aquelas pessoas que acabara de conhecer.
Depois dessa experiência e com o conhecimento adquirido através do livro que chegou
a ela de forma profética, Colibri mudou a sua visão sobre o cristianismo. Passou a ver Deus
como um amigo, que estava perto dela. E assim, com Deus perto, ela começou a mudar:
“Deus começou a me transformar mais, eu já tinha esse amor por criança, por trabalho; eu
comecei a trabalhar com as meninas da prostituição, eu ainda trabalho com elas”.
Não há limites para os voos do coração de Colibri. Eu lhe dei esse apelido inspirada
pelo modo como ela se descreve: “eu gosto muito de voar, eu gosto de ser livre”. A liberdade
de Colibri está profundamente relacionada com sua atuação como missionária no Iris. O
evento sobrenatural que mudou sua vida acontecera em 2014, dois anos antes de nossa
conversa.
O amor romântico teve um papel importante nessa mudança. A paixão pelo jovem
missionário “gringo” fez com que Colibri o seguisse em seu caminho sobrenatural até que ela
mesma encontrasse sua proximidade com Deus. Junto a ele, Colibri orou para saber os planos
de Deus para esse amor. Contudo, o jovem foi embora para os Estados Unidos e a distância
levou ao fim algo que sequer começara.
205
Os subtítulos dessa parte fazem referência às músicas Noturno (GRACO e SILVIO, 1979) e Asa
partida (FAGNER e SILVA, 1976), interpretadas por Fagner.
351
Ela me explicou que, olhando para trás, ela percebia que se apaixonou mais pela sua
intimidade com Deus e seu poder sobrenatural, não por ele. O rapaz não fazia o seu estilo.
“Me apaixonei pelo que ele tinha e depois que eu percebi isso ficou tranquilo para mim, sabe?
Mas eu sonho em casar com alguém, sabe?”.
Na perspectiva de Colibri, é como se Deus tivesse usado o amor romântico de um
jovem “gringo” para se aproximar dela. Essa narrativa, que materializa as estratégias de
evangelismo do Iris, dá um significado completamente diferente à “falha” do romance, uma
vez que o amor que realmente importava nesse caso era o amor de Deus. Colibri “nasceu de
novo” através desse romance, mesmo que ele tenha chegado ao fim.
Na ocasião da entrevista, Colibri ainda se recuperava do fim de um relacionamento
com outro rapaz, também americano, no início daquele ano. Colibri ficou muito triste por
duas semanas, na época do término, e depois, quando ele rapidamente namorou, noivou e
casou com outra brasileira, na semana anterior à nossa conversa.
Nesse caso, parecia mais difícil identificar a expressão do amor de Deus em mais uma
narrativa de romance sem “final feliz”. Mas Colibri confiava em Deus e sabia que o que
mesmo aquele sofrimento seria em prol de sua “verdadeira” felicidade. Ela afirmava que,
quando estava com seu namorado, pensava em abrir mão de suas aventuras missionárias para
viver o casamento: “porque eu acho que o seu maior ministério, primeiro, deve ser o seu
casamento, né?” Mas Deus tinha outros planos para ela.
Seu namoro terminou de forma irrevogável, assim como ela rogara a Deus, caso
aquela fosse a Sua vontade, e assim ela seguiu sua vida missionária. O rapaz queria ser
“normal”, mas Colibri sabia que, para viver com ela “tem que ser uma pessoa muito doida”.
Como ele lidaria com sua viagem ao Oriente Médio em meio a tantos perigos? Foi melhor
assim.
Como o fim do romance era a vontade de Deus materializada na discordância do casal
sobre o desejo de ter filhos, Colibri considerava que sim, houve amor, e que seu namorado era
muito apaixonado por ela. Ela notava porém que, na época do relacionamento, não acreditava
nesse amor: “eu não acreditava que ele gostava de mim, mas eu achava que era por causa dos
abusos que eu tinha passado, então eu ficava me culpando”.
Ao final, Colibri percebeu que ele a amou, mas Deus a amava muito mais e queria que
ela vivesse tudo o que tinha para viver. Assim, ela foi protegida de um casamento infeliz e
reforçou a sua vocação missionária. Colibri não abandonou o sonho de casar, mas entendeu a
partir desse desamor que era preciso estar com alguém que fizesse algo parecido com o que
ela fazia, para que os sonhos também se casassem. Por isso, ela orava: “Deus, eu quero uma
352
pessoa que viva a mesma coisa que eu. Que seja mais louco que eu, mas que seja uma pessoa
calma, que vá me segurar um pouco porque às vezes eu voo muito...”.
E voa mesmo! Colibri transgrediu as regras estritas da Missão Iris sobre o
evangelismo entre pessoas de sexo oposto. Como ela me explicou, havia muitas restrições à
“mulher evangelizando homem, mulher criando relacionamento com traficante” além do
“medo” que os “meninos” despertavam nessas margens.
A narrativa de Colibri sobre sua transgressão articulava as categorias de gênero, classe
e escolaridade ao poder sobrenatural que poderia transformar sua corporalidade a serviço de
Deus: “eu comecei a acreditar que, mesmo eu sendo pequena, mesmo eu falando errado,
mesmo eu sendo nada, assim, Deus ia me usar, porque eu sei que ele estava dentro de mim.”
Com Deus dentro de si, Colibri decidiu ir sozinha, “escondida”, evangelizar os
traficantes do Oitão Preto. Simultaneamente movida por um poder sobrenatural e seguindo o
seu coração, ela se lançou num voo perigoso moral e fisicamente estabelecendo desde seu
lugar de “mulher”, “nativa” e “de periferia” um relacionamento sem precedentes no Iris. Os
traficantes passaram a frequentar a Casa de Oração. As pessoas sentiram medo no início, mas
ela continuou seu trabalho e encontrou a recompensa nas primeiras conversões.
Como exemplo, contou-me o caso de Toinho. O jovem traficante que matara várias
pessoas inspirava muito medo nas pessoas do bairro. Deus o mostrou para Colibri, ela
acreditou nele e ele devolveu sua fé entregando sua vida para Jesus. Esse caso de sucesso lhe
deu forças para continuar apesar das dificuldades:
Foi bem desafiador porque eu estava com eles num dia e no outro eles
chegavam e diziam “Colibri, eu matei hoje, eu não consegui, eu decapitei
uma pessoa aqui”, eles decapitavam e falavam para mim, aí eu tinha que
respirar fundo porque a minha vontade era só de chorar, mas naquela hora eu
tinha que ser mãe deles...
Como no célebre caso da briga de galos de Geertz (1989), que há anos tem inspirado
antropólogos e antropólogas, Colibri correu com os meninos. Isso é algo que a teoria –
antropológica ou missionária – não ensina. É uma força que vem de dentro, que em termos
acadêmicos nós chamamos de agência, mas que para Colibri é uma mistura entre sua dor, seu
amor e seu Deus.
Colibri reformulou a divisão sexual missionária e assim construiu para si novas
formas de vida dentro da missão. Combinar atributos considerados masculinos e femininos é
algo que todas as missionárias e missionários devem fazer em alguma medida. Contudo,
Colibri avançou sobre terreno desconhecido ao questionar alguns dos “tabus” sobre sexo e
gênero que fundam a evangelização.
Ao produzir novas maneiras moralmente valorizadas de articular sexo e gênero no
evangelismo, ela aumentou a sua mobilidade, materializada nas muitas viagens às diferentes
“nações” que ela faria nos meses seguintes. Contudo, a ambivalência dos atributos de gênero
em Colibri parecia ser melhor recebida na comunidade missionária do que seu ex-namorado.
Ao corporificar atributos de gênero e acionar performances que não eram esperadas,
Colibri ascende na hierarquia missionária, mas fica de fora dos padrões de desejabilidade do
romance heterossexual cristão. Ela domina a narrativa da aventura, transforma-se na sua
heroína, mas no mesmo ato perde o namorado.
O rapaz, que era cristão, mas não missionário, encontrou problemas para corporificar
masculinidades valorizadas diante de uma jovem tão heroica. A força heroica que a movia nas
aventuras mortais entre o Oitão Preto e o Oriente Médio era algo que ela considera que seu
ex-namorado não saberia acompanhar. Fora do território semântico da aventura, ele também
saiu do território do desejo.
Que Colibri encontre alguém ao mesmo tempo mais “louco” e mais “calmo” que ela, é
um desafio às masculinidades. É preciso ser alguém que, assim como ela, esteja disposto a
testar os limites de sexo/gênero do sistema moral missionário. Enquanto ela não encontra essa
354
pessoa, que deve ser príncipe e princesa ao mesmo tempo no seu conto de fadas, ela viverá
plena do amor de Deus. O conceito de amor radical lhe permitiu sobrepor suas experiências
de amor sobrenatural com aquelas de amor romântico mesmo sem o final feliz do casamento.
A história de abuso sofrida por Colibri me fez pausar a escrita e contemplar o mar.
Queria inspiração para poder escrever uma narrativa que contivesse o mesmo tom em que eu
a ouvi. Eu não queria fazer dela um caso exemplar. Na verdade, o que me interessa ao retomar
esse evento é mostrar o trabalho emocional de Colibri para se reconstruir como sujeito ético.
Desde o seu lugar como missionária no enfrentamento a “crimes sexuais”, Colibri
ocupa, mais uma vez, uma posição ambígua. Sua vida é o testemunho de alguém que foi
“quebrada” sexualmente e depois resgatada por Jesus. Ao mesmo tempo, os pressupostos
sobre os efeitos permanentes do trauma do abuso sexual (WHITTIER, 2001) pairam sobre
seus relacionamentos amorosos. Eu analiso as estratégias acionadas por Colibri para
manipular esse “conhecimento venenoso” (DAS, 2007) e relação com aquelas utilizadas pelas
trabalhadoras do sexo Juliana e Dulce diante de seus próprios traumas, apresentados no
capítulo anterior.
Narrando o seu sofrimento em forma de testemunho, Colibri experimenta os efeitos
ambivalentes de sua expressão pública. Dar voz ao sofrimento não é garantia de cura ou
encontro com uma verdade interior (ROSS, 2003). No caso de Colibri, ela experimenta tanto
um empoderamento, ao produzir uma narrativa sobre a transformação sobrenatural de sua
subjetividade, quanto os limites ao seu reconhecimento como sujeito ético em uma relação
amorosa.
Colibri é agente das políticas de enfrentamento a “crimes sexuais” e também vítima de
abuso sexual. Enquanto ativista, ela tem a possibilidade de expressar as “emoções do trauma”
como forma de “acabar com os segredos” que frequentemente envolvem abusos sexuais na
infância (WHITTIER, 2001) e que, no seu caso, quase lhe tiraram a vida.
Contudo, narrando sua história desde esse lugar, Colibri articula a sua experiência
através da especificidade dos discursos missionários. A “metáfora da visbilidade” (SCOTT,
1998), que confere à sua narrativa uma qualidade “transparente”, é perpassada pela linguagem
missionária do amor que situa a sexualidade como um elemento central de vitimização das
355
mulheres e cujos efeitos seriam permanentes em sua personalidade, superáveis somente pelo
poder sobrenatural de Jesus.
Todas as histórias missionárias são histórias de redenção. Os sujeitos da missão,
mesmo quando criados dentro de uma tradição cristã, sempre apontam um momento em sua
trajetória em que a sua vida mudou ao ser tocada pelo poder sobrenatural de Deus, que passa a
movê-los em suas ações missionárias pelo mundo. Missionários são sujeitos que “nasceram
de novo” (ROBBINS, 2004).
A maneira como se articulam as categorias da diferença é central na produção de
narrativas de redenção que podem limitar ou aumentar a mobilidade dos sujeitos. Ao mesmo
tempo em que a superação de um mal (seja violência, negligência ou ignorância) é valorizada
como um conhecimento único que surge da “paixão da experiência” (HOOKS, 1991), ela
pode fixar certos sujeitos no lugar da vitimização ou da maldade.
Colibri reconhecia que suas emoções eram políticas. Ela narrava a sua experiência de
modo a situar a violência que sofreu dentro de um quadro interpretativo dicotômico no qual
ela conseguia situar o bem e o mal e circunscrever ao passado a sua construção como vítima.
Para isso ela acionava códigos cristãos que sancionavam a forma com a qual ela manifestava
seu sofrimento (SARTI, 2011).
A “questão da mulher” na Missão Iris é necessariamente uma questão sexual. A
conformidade entre sexo/gênero/desejo no que Butler (1990) chamou de matriz da
heterossexualidade compulsória perpassa os discursos missionários. Eles pressupõem uma
coincidência entre o sexo, situado nos órgãos genitais, a performance de gênero e o desejo
sexual.
O discurso missionário se funda nessa matriz heterossexual naturalizada e a atualiza
acionando a vontade divina: os sujeitos que se conformariam a essas normas compósitas
corporificariam a sua “verdadeira identidade” aos olhos de Deus. Assim, importa na prática
missionária situar cada elemento material numa dicotomia moral marcada por gênero e
sexualidade.
Fazendo uma equivalência entre gênero e sexualidade nos mesmos moldes propostos
pelos feminismos radicais (DWORKIN, 1981; MACKINNON, 1987), as práticas sexuais
dissidentes são situadas como lócus primeiro de vitimização feminina. Os efeitos excludentes
gerados por essas teorias dentro dos movimentos feministas foram apontados por autoras
ligadas ao feminismo do sexo radical (VANCE, 1992; RUBIN, 2010). No caso missionário, a
dissidência sexual incluiria qualquer prática fora do casamento cristão heterossexual.
356
Radicalizando à sua maneira alguns dos temas propostos pelo feminismo radical,
missionárias no enfrentamento a “crimes sexuais” percebem em casos de dissidência sexual
feminina a sua vitimização, independente do consentimento às práticas sexuais. Trata-se de
determinar se elas são “certas” ou “erradas” e isso é articulado através da linguagem do amor.
Se o amor não for identificado na relação, seja pela sua percepção como uma forma de
violência, como o abuso sexual, ou simplesmente por sua incompatibilidade com o amor
normativo cristão heterossexual, como a prostituição, fica determinado o caráter “errado” do
sexo.
Nas missões, o sexo “errado” é considerado o evento traumático por excelência, a
violência primeira (ROSS, 2003) que distorce as performances de gênero e a ordenação do
desejo, determinando uma desmoralização do sujeito que se desdobraria na vida cotidiana
(DESJARLAIS e KLEINMAN, 1994). São produzidas assim mulheres “quebradas”.
Na cena que apresentei no início do capítulo, quando caminhávamos de volta à praça
depois do evangelismo na boate, Gabi comentou comigo que todas as trabalhadoras do sexo
vinham de “lares quebrados” e que “muitas sofriam abusos”. Isso contrastava com as
conversas que tivemos naquele dia, onde esses elementos não foram mencionados.
Porque Gabi encontrou nas boates trabalhadoras do sexo que viviam sua sexualidade
de uma forma que ela considerava “errada”, ela as situou na categoria de vítimas, logo
pressupôs outras formas de vitimização que as teriam levado aquele estado onde estariam
“quebradas”. Esse conhecimento era produzido a despeito do que as mulheres falavam sobre
suas experiências e desejos na boate.
Uma dessas mulheres era Juliana, que naquela ocasião não revelou nada sobre sua
experiência de envenenamento acidental. Juliana sabia que para ter voz enquanto trabalhadora
do sexo era preciso limitar sua fala (DAS, 2007). Já Colibri, para se construir como
missionária, precisava acionar o seu passado “quebrado”.
Para fazê-lo sem que seu cotidiano fosse infeccionado por suas palavras, Colibri
mobilizava seu conhecimento e seu autogoverno na produção de uma narrativa autocontida.
Ela é permeada por dicotomias. Dois cristianismos: o primeiro, representado pelas igrejas,
suas regras, hierarquias e atividades, seria falível; o segundo, fundado no encontro pessoal
com Deus, seria perfeito. Duas ideias de Deus: um glorioso e distante por sua “autoridade” e
um Deus “real”, “íntimo” e “perto” de si. E finalmente, duas ideias de sexo. A primeira que
conheceu foi a violência, quando ela foi “quebrada”. Depois, ela passou a imaginar um sexo
que seria igual ao amor, circunscrito no sacramento do casamento, onde Deus estaria presente.
Todas essas dicotomias funcionavam para que Colibri construísse uma narrativa dicotômica
357
para si. Ao conhecer o cristianismo verdadeiro, ela tornou-se íntima de Deus e capaz de
reconhecer o amor romântico. A vítima de asa “quebrada” se oporia à missionária de voos
altos.
Mas a narrativa de redenção de Colibri, mesmo bem sucedida, continua sendo
“venenosa”. No seu caso (e também no caso de Neném), os desvios que precedem a redenção
eram mais profundos e geravam limites para encontrar o amor mais difíceis de superar.
Haveria algo nas suas performances de gênero inesperadas que acionaria o desvio sexual.
A sexualidade “quebrada” parece retornar à materialidade do corpo e à moralidade das
ações. Algumas dessas ambivalências de sexo/gênero/desejo podem ser assimiladas pela
missão na forma de milagre, mas elas encontram limites mais espessos nas relações de amor
romântico, a última barreira na transformação moral dos sujeitos.
Tanto Colibri quanto Neném sabiam disso e esperam ansiosos que o amor chegasse
para eles. Casar-se com o seu verdadeiro amor é prova final da transformação subjetiva
missionária. O casamento por amor atesta a humanidade dos sujeitos de forma retroativa
contra as determinações sociais.
Dessa forma, o amor verdadeiro promovido pelas missões é, muitas vezes, um amor
transnacional que acontece a despeito de suas limitações e dos defeitos dos sujeitos
(POVINELLI, 2006), mas dentro de um contexto povoado por fantasias e fantasmas onde o
desejo é força motora (PERLONGHER, 1986; GREGORI, 2016).
Isso era assimilado também pelas trabalhadoras do sexo. Para Gabi, não fazia sentido
que o amor “certo” do casamento fosse buscado pelas mulheres no meio de amores “errados”
da prostituição. Mas, ao demandar um “empurrão” missionário para identificar o casamento
transnacional nas boates da Praia de Iracema, tudo o que elas faziam era adaptar a linguagem
do amor romântico articulada pela missão a suas próprias experiências.
O poder do amor missionário se materializava na produção de uma atmosfera de
encontros íntimos transnacionais a despeito de seu descolamento da empírica da Praia de
Iracema. Esses encontros eram percebidos como “crimes sexuais” nas missões e justificavam
o seu enfrentamento. Já as mulheres sustentavam essa atmosfera ao continuar a investir
profissional e afetivamente naquele contexto. As fantasias missionárias e as fantasias das
trabalhadoras do sexo se encontravam ao reiterar uma narrativa do passado em dinâmicas que
não existiam mais. Um misto de utopia e amnésia (BERLANT, 2012).
Talvez, sem a ênfase de missionárias e trabalhadoras do sexo no romance, os bares e
boates da Praia de Iracema já tivessem se transformado em ruínas. Mas os efeitos da fantasia
românticas não são iguais. Enquanto que imaginar a Praia de Iracema como um contexto de
358
206
Faço referência ao livro Sejamos todos feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie (2015).
359
bombeiro italiano que conhecera na boate. Caso fosse, deixaria avisado ao seu sponsor que
não faria serviços domésticos. “Só vou cozinhar, porque gosto”.
Meses depois, encontrei Emeline em outra casa noturna na qual eu tinha ido à passeio
e só então eu soube que elas estavam juntas na época em que as conheci. As referências à sua
relação, porém, foram indiretas. Mesmo naquele contexto, considerado “errado”, o amor
romântico era reservado por Sâmia às narrativas heterossexuais.
Fora da normatividade e institucionalidade inerentes à linguagem do amor, outras
formas de experimentar desejo e afeto podiam ser vislumbradas. Deixando de lado a narrativa
do amor romântico e suas falhas, outras formas de intimidade “ao lado” do amor ganharam
vida no material de campo.
Esse era o caso de Renata. Ela era uma mulher gorda, de baixa estatura, pele morena e
cabelos loiros para a qual o maior interesse de ir às boates da Praia de Iracema estava em
combinar o prazer ao dinheiro. Esse tesão pelo sexo comercial a deixava relaxada e
brincalhona em relação aos homens. Quando passavam por ela “gringos” que ela considerava
bonitos, ela exclamava “ai que calor!”. Ela me apontou na boate colombianos que fizeram
parte de uma aventura na qual ela transou com três homens ao mesmo tempo. Uma história
com muitos gozos e diversão. O único defeito era que eles não queriam pagar, mas isso
também não era aceitável. Altamente qualificada, Renata afirmava: “eu estudo, trabalho e
fodo”.
Mesmo aquelas que sonhavam com uma história de amor transnacional legitimada
pelo casamento, como Juliana, não deixam de aproveitar as relações de intimidade e desejo
enquanto o amor não vinha. Juliana preferia sair com homens negros e, graças à sua
circulação nas boates, tinha acesso a “gringos” que corporificavam seu padrão estético
preferido. Sempre que aparecia um homem do “tipo” de Juliana, as outras mulheres corriam
para lhe avisar. Ela se esbaldava: dançava, bebia e beijava a noite toda. E no final ainda
ganhava dinheiro.
Ela e Mônika davam muita importância ao prazer sexual feminino e através de suas
experiências na Praia de Iracema construíam um corpus de conhecimento erótico relevante:
técnicas que aumentavam o prazer, brinquedos sexuais e amantes eram elencados e
classificados.
A mudança na forma de narrar os encontros entre Mônika e “seu” espanhol me
mostrou como a história de amor podia obscurecer outros elementos que importavam
produção de intimidades e desejos. Mônika e o “seu” espanhol tinham um caso cheio de
obstáculos que eram erotizados.
363
Ele morava em Fortaleza há muitos anos, possuía vários estabelecimentos e era casado
com uma “filha de juiz”. Não havia perspectiva de romance. Por isso mesmo, Mônika e “seu”
espanhol se divertiam ao fazer uma paródia do amor desde seus encontros na boate. Sempre
que se encontrassem, deveriam sair juntos, como se fossem um casal. Mônika fazia cenas de
ciúmes quando percebia outras mulheres “dando em cima” de “seu” espanhol, as quais ele
apreciava. Ela se sentia vigiada pelos amigos de “seu” espanhol quando ele não estava e assim
fazia contatos furtivos com outros homens para acertar os programas.
A paródia do romance, através do exagero de alguns de seus elementos, era percebida
como objeto de uma ansiedade divertida por Mônika. Ela avaliava os “ciúmes” de “seu”
espanhol de modo completamente diferente daquele de outros homens com quem ela saía
regularmente. Com estes homens, ciúmes seriam forma de machismo, uma vez que ambos
seriam “livres”. Já com o “seu” espanhol, quando nem ela, nem ele prometeram fidelidade, os
ciúmes funcionavam como medida do desejo.
Mônika gostava do “seu” espanhol e por isso não pedia dinheiro sempre que saía com
ele. Mesmo sem pedir, ele costumava dar 200 ou 250 reais. A relação era construída nas
margens do amor, combinando performances de romance com o programa de um jeito que
“mexia” com Mônika.
Mônika nunca sonhou em casar com “seu” espanhol, mas valorizava a estabilidade do
desejo e da renda que ele lhe proporcionava. Talvez por isso ela ficou tão abalada quando ele
lhe deu um “fora” na véspera do seu 27o aniversário e sumiu da boate. Um amigo em comum
explicou à Mônika que “seu” espanhol estava com problemas no casamento e não deveria
retornar. Quando encontrei Mônika na boate ela me contou que ainda gostava dele e que
aquilo “acabara” com ela. Mostrou-me fotos da esposa e me disse que sabia que ele era infeliz
no casamento. Não entendia porque ele tinha aberto mão da felicidade do jogo que eles
faziam juntos.
Passadas algumas semanas, porém, ela já estava conformada. Não podia fazer nada
além esquecer. Para isso ela tinha os ventos à favor: seu namorado italiano, com quem já
estava na época do “fora”, deixou-lhe bastante dinheiro e no final do mês já estaria de volta.
Ela se orgulhava que ele era de Milano e trabalhava em banco, não era como os “cafuçus” de
Napoli. O namorado convidou Mônika a passear com ele em Lisboa no início do ano. Outros
homens também lhe fizeram convites para acompanhá-los em viagens de lazer à Lisboa e
Cancun. Ela estava triste, mas ainda assim organizava uma agitada agenda de férias.
Então, ainda que essa história possa ser lida como mais um caso de amor “falso” na
boate, e que Mônika estivesse inclinada a isso logo após o término da relação, essa não foi a
364
narrativa que predominou sobre o desejo e a intimidade com “seu” espanhol. Era justamente o
caráter ambivalente da relação que a estimulava e instigava.
A performance paródica do romance revelava a estrutura imitativa do próprio romance
(BUTLER, 1990). Ao fazer a linha do amor com alguém que mexia com ela, Mônika
encontrou um lugar para uma intimidade além do amor. Quando tudo acabou, ela reconstruiu
sua narrativa nos termos do romance, que relegavam essa relação ao “falso” amor, mas esse
foi somente o fim da história.
Talvez a minha atração pela narrativa do amor como forma de descomplicar as
relações seja parecida com aquela sentida por Mônika e por Scarlett. Mas a despeito dos
nossos desejos por coerência, a vida segue confusa e os sujeitos seguem ambivalentes. O
recurso ao valor subjetivo através da linguagem do amor num contexto de crise fala mais
sobre esse contexto do que sobre a intimidade, que continua a ser produzida nessas margens.
sínteses entre discursos missionários e feministas. Em outros, eram desfeitas por suas
incompatibilidades.
Mais do que radicalidades, esses discursos eram vividos através de uma política do
compromisso. A transgressão territorializada na Praia de Iracema erotizava o casamento tanto
para trabalhadoras do sexo quanto para missionárias. Contudo, nem sempre era possível
materializá-lo na fantasia do romance.
As mulheres que conheci nas boates queriam encontrar um amor que se provaria
verdadeiro pelo casamento, mas nenhuma delas queria um casamento sem amor, sexo, desejo
ou dinheiro. Por isso o romance, como uma narrativa que reunia todos essas elementos, era
articulado de maneira tão ampla: ele reunia todos os elementos do “final feliz”. A violência
dentro de um relacionamento era considerada inaceitável. O casamento com o qual elas
sonhavam devia ser reconstruído em termos simultaneamente mais igualitários e mais
eróticos.
Elas se percebiam agindo de maneira diferente de suas mães e das gerações anteriores
de mulheres que frequentavam a Praia de Iracema. “Não pode baixar a cabeça para homem de
jeito nenhum”. Saber que merecemos igualdade e prazer é o mais perto de ser feliz para
sempre que qualquer uma de nós pode alcançar. A ambivalência está em procurar esses
elementos na legitimidade do casamento.
Discursos religiosos e seculares sobre a felicidade continuam a associá-la ao
casamento. Reconhecer ética na busca pelo desejo além do casamento é uma proposta
especificamente feminista (FIRESTONE, 1976; AHMED, 2010; GREGORI, 2016). Como
propôs Sara Ahmed, “o feminismo desafia a própria ‘pressão’ da felicidade e a maneira como
ela restringe as possibilidades de encontrar entusiasmo ou ficar entusiasmada” (AHMED,
2010, p. 69).
Contudo, o feminismo não garantiria a felicidade, simplesmente ampliaria a gama de
lugares onde se pode procurá-la. Diante das pressões da crise e da guerra às quais as
trabalhadoras do sexo estavam expostas, elas investiram seus desejos em ideias convencionais
de felicidade relacionadas à segurança material e emocional reconhecidas no casamento
heterossexual transnacional e privilegiaram a linguagem do amor.
E as narrativas de amor romântico que sobejavam nas economias sexuais
transnacionais de Fortaleza em 2016 eram narrativas missionárias. Através de ações de
enfrentamento a “crimes sexuais”, jovens casais missionários que corporificavam categorias
de gênero, raça, classe e nacionalidade de maneira diversa se encontravam, se apaixonavam e
se casavam. Esses casais materializavam nesse contexto o amor “verdadeiro”. Os rapazes
366
Agora chegou a nós que Maria Madalena era prostituta. Vocês acham por
que, pessoal? Que uma mulher que era, como ela disse, muito amiga de
Jesus, que dava carão nos apóstolos, porque tem no evangelho de Maria
Madalena, tem que ela discutia com Pedro e brigava com ele. Que depois
que Jesus morreu ficou tudo com medo, quem era que estava ao pé da cruz
quando Jesus morreu? [...] Quando teve a ressurreição de Jesus, ela foi a
primeira a ser, a ter esse mérito de ter essa visão de Jesus, então como é que
uma mulher dessa tão importante vira prostituta na boca do povo?! Na boca
do povo, né, porque ela nunca foi! Na bíblia não tem nada, nada, nada que
bote Maria Madalena como prostituta, muito pelo contrário, toda vez que
Maria Madalena aparece é com sinal de destaque, então olha, vamos ficar
com a pulguinha atrás da orelha. Porque que uma mulher tão importante foi
tão rebaixada?! Com todo respeito às prostitutas, mas aqui é no sentido que
eles botam mesmo pra… pra desrespeitar.
Mas lhes dar “moral” é algo totalmente diferente. Seria reconhecer a legitimidade do
modo como a sexualidade é experimentada por essas mulheres na fissura entre o público e o
privado. Onde ela serve para fazer amor, parentesco e intimidade, mas também para fazer
dinheiro, política e publicidade. Idealmente, serviria para ambos. Esse tipo de
reconhecimento, colapsaria as dicotomias com as quais estamos acostumadas a organizar a
indeterminação da vida nas margens, onde a duplicidade é considerada uma característica
ontológica feminina e o “errado” é materializado na prostituição.
A gramática dos direitos é insuficiente para representar os limites que persistem ao
reconhecimento de sujeitos que articulam gênero e sexualidade de modo “errado”. São os
“limites da empatia” (PISCITELLI, 2016), em uma moral relacional, que se impõem sobre
esse reconhecimento. Limites ao amor íntimo e político que deixam “de fora” um conjunto de
afetos, curiosidades e intimidades heterogêneo.
Diante de tantas decepções românticas, voltei-me para o que estava “ao lado”. Olhei
para as margens do amor, que mesmo fora de seu lugar legítimo, estão distantes da violência.
Onde pessoas ensaiavam viver suas ambivalências sem respostas definitivas. Onde havia
espaço para inventar o amor, fazer dele uma paródia que coubesse na loucura da vida, ainda
que não coubesse nas epistemologias. Ainda que não pudéssemos lhe dar sequer um nome.
369
Considerações finais
21 de julho de 2016. Precisei terminar a aula de inglês no Oitão Preto mais cedo por
conta de um problema no banheiro que fazia exalar um cheiro insuportável na pequena sala
com ar-condicionado na Fábrica dos Sonhos. As crianças reclamavam muito e avisavam que
isso acontecia quando escorria esgoto lá fora. Nessa época, eu já estava acostumada com esses
episódios e aproveitei o tempo livre para conversar com uma missionária. Enquanto
falávamos, Giulia, uma das crianças que assistia a aula, permanecia encangada207 comigo.
Giulia tinha 6 anos, cabelos lisos, olhos puxados e era uma “bênção” de danada,
segundo as missionárias. Naquele dia, quando saíamos da Fábrica de Sonhos, ela quase pisou
num gatinho que estava à beira da porta. Percebendo o perigo sob o qual ele estava, Giulia o
tirou do chão. De início, sua ideia parecia ser levá-lo para onde estava o restante da ninhada,
mas quando o colocou nos braços iniciou-se uma troca de carinhos na qual ela ficou absorta.
Sentindo-se observada, subitamente Giulia levantou os olhos e advertiu: “o pessoal come
eles”.
Nossa expressão deve ter se transformado imediatamente. A missionária sorriu, um
pouco constrangida, e comentou que Giulia gostava de falar aquelas coisas para “chocar”.
Caminhamos juntas as três, o gatinho ia no braço, e antes de sairmos dos becos, Giulia
reconheceu uma pilha de comida jogada em cima de uma tábua, na qual depositou o bicho e
continuou sem olhar para trás.
Giulia e seu irmão viviam em uma casa em que, segundo missionárias, as mulheres
brigavam muito e colocavam as crianças “no meio”. Em uma situação que teria envolvido um
ataque com um ácido corrosivo, Maria, uma delas, resolveu sair de casa levando as crianças.
Durante o período em que dei aulas no Oitão Preto ouvi muito falar sobre o sofrimento de
Maria entre a depressão, a prostituição e a vida com sua companheira violenta. Ela teria
encontrado Jesus, mas sua “redenção” seria um processo lento por conta de seus muitos
“vícios”.
Essa parcela da vida de Giulia me fez olhar de outra maneira para a trama da violência
ao amor na qual ela reconhecia a vida daquele gatinho. Ele vivia num limite sobre o qual ela
também se equilibrava precariamente. No pensamento de Giulia existia, em um conjunto de
207
A expressão classificada como um regionalismo nordestino se refere a pessoas que estão tão juntas
que parecem amarradas por uma canga, instrumento que prende bois ao carro pelo pescoço.
370
linguagens que ia muito além das palavras, a crítica à arbitrariedade das dicotomias entre
humano e animal, que seriam capazes de suspender a avaliação ética dos encontros.
Já sem o gatinho, Giulia seguiu testando limites, agora com alguém maior do que ela.
Porque estava gostando muito de estar comigo naquele dia, ela me avisou que eu não iria
embora. Para garantir isso, ela me daria uma rasteira ou me trancaria num quarto. Eu ri dessas
ameaças, o que deve tê-la estimulado. Uma semana depois, ela não assistiu à aula de inglês,
mas passou na Fábrica dos Sonhos para, mais uma vez, avisar que eu não iria para casa. Como
forma de impedir que eu fosse embora, ela me abraçou muito forte e pediu às outras crianças
que também o fizessem. Numa cena divertida e cheia de afeto, nós bloqueamos a passagem
no beco.
Mas Giulia queria que eu soubesse da seriedade de sua intenção de me fazer ficar.
Depois do abraço, ela explicou que eu não poderia ir embora porque ela me amarraria em uma
cadeira num quarto escuro “cheio de babau”208. Se eu não me comportasse, ela iria chamar
um amigo, que soltava muito pum, para ficar soltando pum. Aliás, ela mesma ia soltar uns
puns bem fedorentos.
Giulia reconhecia a transitividade entre amor e violência na sua vida e na vida do
gatinho, projetando-a também sobre mim. Em suas fantasias infantis, o efeito do abraço era
similar ao efeito de me amarrar a uma cadeira, pois ambos me fariam ficar. O amor que ela
me dedicava poderia se transformar em violência e, de volta, em amor. O importante para ela
era fazer com que o nosso encontro se transformasse de contingência em permanência.
Naquele momento, porém, a crítica de Giulia contra os termos do resgate não era algo que eu
podia reconhecer conceitualmente. Tratava-se de um problema ético para o qual eu não
possuía palavras (DAS, 2015), então, como resposta, eu lhe dei apenas o meu sorriso e o meu
abraço.
*
Apresentei nesta tese uma pesquisa que foi iniciada pensando no enfrentamento a
“crimes sexuais”. Segui o cotidiano dessas ações e, assim, partilhei a vida nas políticas das
missões e, para além delas, nas dinâmicas que envolviam as pessoas atendidas. Em várias
situações, os limites entre a minha atividade como pesquisadora e as atividades das pessoas
que eu acompanhava na pesquisa não estavam claros.
Convivendo e aprendendo novas linguagens, percebi que os “crimes sexuais” que
motivavam as ações que eu acompanhava eram secundários, se não inexistentes naqueles
208
Sinônimo de “bicho-papão”, animal mitológico ao qual se faz referência nas histórias infantis.
371
antropologia que me inspiraram e forneceram ferramentas analíticas para seguir nesse projeto,
assemelham-se muito aos filosóficos. É compreensível que encontremos textos descarnados
em filosofia. Mas, em antropologia, não. Eu não conseguia deixar de me perguntar: onde
estavam as pessoas?
Numa edição de 2018 da revista HAU: Journal of Ethnographic Theory, a sessão
especial intitulada Towards a New Humanism (para um novo humanismo, em português)
reuniu alguns desses debates. Thomas Wentzer e Cheryl Mattingly, que introduzem a sessão,
advogam a reabilitação do conceito de humanismo porque “nós não poderíamos nos livrar da
categoria humano nas ciências sociais, em geral, e na antropologia, em particular” (2018, p.
145).
Wentzer e Mattingly acreditam que existem razões ontológicas, epistemológicas e
éticas para persistir numa ideia renovada de humanismo, sem as quais as ciências sociais e
humanas arriscariam perder a orientação em relação a seus próprios domínios de
conhecimento. Eu discordo que a categoria “humano” seja a mais adequada para falar de
gente e sua inserção no fluxo da vida com tudo mais que há, justamente por sua continuidade
com a proposta original das ciências humanas.
As “humanidades” teriam surgido da interpretação de textos “clássicos” com o
propósito de “captar o sentido da redenção” (COETZEE, 2004, p. 139). Assim, elas se
constituíram como uma ciência especializada no estudo dos limites espirituais entre
“humanos”, considerando o antes e o depois da Encarnação de Cristo. Contemporaneamente,
o conceito de humano utilizado na filosofia costuma se referir aos “membros de uma espécie
biológica particular, Homo sapiens” (DIAMOND, 1988, p. 263). O uso dessa gramática
secular não modificou a epistemologia dicotômica na qual o conceito de “humano” é inscrito,
estabelecendo limites, nesse caso, com as outras espécies viventes. Cora Diamond percebe
que Coetzee representa a porosidade das fronteiras entre humano e animal na forma como a
personagem Elizabeth Costello mostra, e não mostra, a ferida que ela cobre com suas roupas,
ao falar sobre a vida dos animais. “A vida desse animal falante e vestido é uma das ‘vidas de
animais’ sobre as quais versa a história” (2008, p. 47).
O foco desta tese nas vidas que se dissolvem nas fronteiras entre humano e animal faz
com que eu me distancie da suposta solidez do conceito de “humano”. Eu admito, porém, que,
sem categorias delimitadas, essa crítica pode parecer algo abstrato. Diante disso, as análises
antropológicas, fundadas em categorias empíricas, são um recurso precioso.
Mas, além da descrição empírica dos fluxos de vida onde tudo se encontra, conversa
(INGOLD, 2018) e contamina (TSING, 2015), é preciso “abrir-se para a dor do outro” (DAS,
373
2007, p. 211) e para a morte: onde esses fluxos se interrompem para umas e continuam para
outras. O texto de Saba Mahmood, publicado in memoriam nessa mesma edição, reproduz sua
fala na reunião da American Anthropological Association de 2017, três meses antes de sua
morte. A autora chamava atenção para os limites do humano.
Está claro que não se trata aqui de quaisquer corpos. A produção de corporalidades
“vulneráveis” através da articulação de categorias da diferença se coletiviza na classe
racializada através da “cor” de territórios inteiros. Territórios onde a morte é uma constante e
uma necessidade. Franz Fanon há muito constatou: “qualquer ontologia torna-se irrealizável
em uma sociedade colonizada e civilizada” (2008, p. 103).
375
209
Eufemismo para cemitério.
377
Ninguém mais pode negar seriamente e por muito tempo que os homens
fazem tudo o que podem para dissimular ou para se dissimular dessa
crueldade, para organizar em escala mundial o esquecimento ou o
desconhecimento dessa violência que alguns poderiam comparar aos piores
genocídios (DERRIDA, 2002, p. 52).
A questão para Derrida não é abolir os limites entre humano e animal, mas multiplicá-
los, fazendo desdobrar e crescer tais limites ao ponto em que não faça sentido que a palavra
“animal” acione o fim da ética em relação ao sofrimento do vivente. Ele argumenta sobre o
caráter absurdo de uma categoria homogeneizante como “animais” poder ser acionada de
modo a tornar moralmente irrelevantes práticas cruéis. Mas não precisamos ir até a França
para saber disso. A cena de Giulia com o gatinho trouxe à vida a crítica à ética humanista.
210
Nome usado pelo autor para se referir à infecção por salmonela.
378
Nesse sentido ele é “triste”, não só porque sua vida foi dura ou porque criou
personagens “tristes”. É “triste” seguindo-se a expressão popular que
incorporou a ambivalência. Triste é quem não desiste, é teimoso, não se
deixa vencer (2017, p. 37).
Em The promise of happiness, Sara Ahmed reconhece a tristeza como uma recusa às
formas convencionais da “boa vida” que anima o ímpeto revolucionário de movimentos
feministas, queer e antirracistas. Especificamente sobre os feminismos, Ahmed nota que a
“imaginação é o que faz com que mulheres olhem além do roteiro da felicidade, para um
destino diferente” (2010, p. 62).
379
violência. hooks acredita no amor divino, em suas expressões através das dimensões místicas
do cristianismo, e invoca uma “politização do amor” (2000, p. 76).
Esse é o problema dos conceitos quando analisados fora dos fluxos da vida cotidiana
nos quais eles emergem. Um conceito abstrato de amor poderia parecer uma boa ideia. Uma
política de amor, poderia ser ideal. Mas na conversa da vida, ainda que seja possível
reivindicar o amor a partir de diferentes lugares, a resposta, muitas vezes, é negativa, ou não
há nenhuma resposta. Acredito que o acionamento empírico de categorias que remetem a
valores universais, mesmo que feito desde lugares outros, serve a reificar o seu poder
convencional, pois não questiona os termos dicotômicos sobre os quais elas são construídas.
Nós poderíamos imaginar que, no início do século XXI, a dicotomia universal entre
humano e animal seria segura. Mas, quando novamente se instalou a crise em Fortaleza e as
margens se desfizeram em indeterminação, essa dicotomia foi acionada para restaurar as
diferenças entre pessoas que estariam do lado “certo” ou “errado” da linha de corte. O debate
ético sobre como eram tratados corpos ou territórios que estavam do lado “errado”, foi
encerrado, e a história pareceu se repetir.
Diante da crise, o amor foi acionado como um valor moral, um encontro e uma
política. No enfrentamento missionário a “crimes sexuais”, esse amor encontrou a vida de
Giulia nas margens. A missão ofereceu um suporte à sua vida, assim como Giulia ofereceu
um suporte à vida do gatinho. Ambos eram suportes imediatos e pontuais, que se sabiam
insuficientes para uma vida longa e plena. Eles multiplicaram as cenas de resgate, mas não
diziam nada sobre as condições que produzem o sofrimento.
As políticas de enfrentamento a “crimes sexuais”, constroem-se sobre dicotomias:
amor/violência, resgate/crime, vítima/culpada. Contudo, diante da indeterminação das
margens de Fortaleza, os limites entre essas categorias são constantemente desfeitos e os
efeitos dessas políticas se tornam ambivalentes.
Ao mesmo tempo em que são criados suportes a partir das relações missionárias
transnacionais, são minadas as redes de apoio locais. As dicotomias entre “vítimas” e
“culpadas” descolam essas políticas das experiências dos sujeitos nas margens e reproduzem a
violência epistêmica. Ainda que os limites entre agentes dessas políticas e seu público sejam
porosos e que alguns sujeitos possam transitar entre eles, as dicotomias são constantemente
recriadas a despeito e através das experiências.
Para que Giulia ou o gatinho não precisem ser resgatados, precisamos abolir os termos
do resgate. Recusar as dicotomias. Não somente aquelas que fundam diretamente as
categorias políticas em estudo, como as de “vítima” e “culpada”, mas, também, conceitos que
381
são considerados consensualmente “bons”, a despeito das disputas empíricas sobre seus
sentidos, tais como o amor e o humano. Esse vazio é produtivo, pois nos permite imaginar
outras possibilidades de vida. Encontrarmo-nos no meio dos fluxos da vida. Encontrarmos
outras epistemologias. Praticarmos uma ética do vivente. E reconhecermos o sofrimento e a
morte.
382
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Panfletos
Copa
Imagem 9: V Simpósio de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, promovido pelo CNJ em parceria com o TRT7 em
Fortaleza.
Imagem 10: Oficina “Racismo e suas consequências na vida das mulheres negras”, promovida pelo FCM em parceria
com a Sociedade da Redenção em Fortaleza.
415
Imagem 11: Mesa-redonda “Feminismo em debate: os atuais desafios para as lutas das mulheres”, promovida pelo
FCM no Centro de Pastoral Maria Mãe da Igreja, em Fortaleza.
Paisagens
Imagem 14: Avenida Vila do Mar no dia da inauguração de sua terceira etapa.
Imagem 15: Praia dos Pocinhos vista desde a Avenida Vila do Mar.
418
Imagem 16: Fachada do Centro Cultural Chico da Silva, da Sociedade da Redenção no Pirambu.
419
Imagem 18: Ponte dos Ingleses vista desde o calçadão da Praia de Iracema.
420
Imagem 20: Fachada de uma das boates frequentadas por estrangeiros na Praia de Iracema.
421
Objetos
Imagem 28: Altar montado em uma reunião da Rede Um Grito Pela Vida do Ceará.
427
Imagem 35: “Kit banheiro” com adesivos do V Simpósio Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
432
Banquete do amor
433
434
435
436
Retratos
Imagem 37: Turma de inglês na Fábrica dos Sonhos da Missão Iris no Oitão Preto.
Imagem 41: Evangelismo na “zona vermelha” da Praia de Iracema no I Seminário Luz nas Ruas.
Imagem 43: Oficina “Mulheres, direitos sexuais e reprodutivos” promovida pelo FCM no Centro Cultural Chico da
Silva.
Imagem 46: Espetáculo Nego drama da Cia Jovem de Ballet do projeto Em defesa da vida.
443
Imagem 47: Turma de inglês preparando cartazes na Casa Mãe Creuza, da Sociedade da Redenção no Pirambu.
Imagem 49: Turma de inglês dançando com o jogo Just Dance na Casa Mãe Creuza.
Imagem 52: Assistindo a apresentação da Cia Jovem de Ballet do projeto Em defesa da vida na Barra do Ceará.
446
Imagem 55: Mesa-redonda “Feminismos em debate: os atuais desafios para a luta das mulheres”, no Centro de
Pastoral Maria, Mãe da Igreja.
448
Imagem 56: Abraço coletivo com Giulia e outras crianças num beco do Oitão Preto.