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Construindo o (auto)exílio:
Trajetória de Abdias do Nascimento nos Estados
Unidos, 1968-1981.
2
Dedico essa dissertação a Regina e Antônio. Os dois
sabem o quanto de esforço e dedicação eles tiveram
para que os 3 Ts (Tulio, Talita e Tássia) chegassem
onde estão. O que tenho de melhor é graças a eles.
Espero um dia retribuir por tudo. Amo vocês..
3
Agradecimentos
"Eu acho que a gente começa a enfrentar a questão [do negro do Brasil]', quando
considerarmos a contribuição dos movimentos sociais dos negros para a
inteligência brasileira" (Octávio Ianni)
7
“Não é tão fácil começar em um lugar novo (…) O exílio não é para todo mundo.
Alguém tem que ficar para trás para receber as cartas e saudar os membros da
família quando eles voltam” (Edwidge Danticat)
"Sem crítica e autocrítica, aliás, não pode haver ciência. O espírito científico não
se coaduna com a intolerância, não se coloca jamais em posição de sistemática
irredutibilidade, mas ao contrário, está sempre aberto, sempre disposto a rever as
suas posturas, no sentido de corrigi-las ou superá-las, naquilo em que se
revelarem inadequadas à percepção exata dos fatos. (...) Impõem-se, assim, que
entre os que se dedicam ao assunto em pauta, se abra um debate leal e franco.
Precisam os sociólogos empreender esta descida aos infernos que consiste em
argüir, em por em dúvidas aquilo que parecia consagrado" (Guerreiro Ramos)
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Resumo 11
Introdução 12
Conclusão 139
ANEXO I - Lista Obras do Exílio (por texto, ano, local de publicação) 148
Bibliografia 160
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Mulata Cor-de-Rosa: Estudo para Oxum, 1970, Middletown
(Reprodução permitida por IPEAFRO - direitos autorais reservados à instituição. Proibida a cópia sem autorização)
10
RESUMO
Palavras-Chave:
Abstract
This dissertation deals with the trajectory of Abdias do Nascimento during his self-
exile period in the United States, from 1968 to 1981. In this research, we verify the
hypothesis that claims that this moment was decisive in changing the author’s self-image,
since he leaves Brazil as an artist and returns as a leader of black international activism.
We investigate the facts and experiences of the author during this period, which include
activities, personal networks and his participation in several international congresses and
seminars. The research is divided into two axes: discourse and image. Discourse involves
Nascimento’s approach regarding black culture and his criticism of racial democracy,
which would articulate an interlocution with transnational conceptual elements, present in
the black discourse in an international scope. Regarding image, we try to tackle how the
author, based on his ideological discourse and action, reconstructs his self-image,
projecting on his return the position of black leader of international activism and of “thinker
of the diaspora”. For such, we analyzed artistic and political pieces from the period, as well
as previous elements dealt with by sociological literature, to indicate how this
reconstruction took place.
Key words:
11
INTRODUÇÃO
1A imagem reproduzida na capa é de Abdias do Nascimento, em 1977, em um Seminário de Cultura Africa em Buffalo
(Cortesia Acervo Abdias do Nascimento).
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O interesse inicial da pesquisa era veri<icar de que naneira, nesse perı́odo, Nascimento
articulara um discurso pró prio com elementos transnacionais do pensamento internacional
negro, presentes nas ideias de pan-africanismo e afrocentrismo, para a construçã o do conceito
de quilombismo. Ou seja, havia claro interesse em demonstrar como, atravé s de seu discurso
ideoló gico, ele daria seguimento à ruptura iniciada em seu pensamento nos anos 1960, a
partir da inclusã o dos conceitos de “resistê ncia ”e de”revolta” (Guimarã es, 2005 e Macedo,
2005).
Veri<icando sua produçã o e sua atuaçã o no ativismo e no mundo das artes -
conformando a noçã o de que tudo faz parte de sua luta anti-racista - percebemos que a
evoluçã o de sua ideologia durante o autoexı́lio tinha relaçã o direta com a forma como fala de
si mesmo, se projeta e se constró i. Quando falamos em “evoluçã o”, já estamos utilizando um
pressuposto que envolve a pró pria noçã o do autor, cujo discurso tem o sentido de levar seu
pú blico e leitor a crer que o conceito de quilombismo era consagraçã o e criaçã o a<irmadas no
conjunto de sua “militâ ncia pan-africanista”.
De todo modo, em uma aná lise mais minuciosa dos momentos do autoexı́lio, percebe-se
que a noçã o de pan-africanismo como base de sua ideologia é incorporada, nã o está presente
desde seu perı́odo no TEN, nos anos de 1940 e 1950. Ainda que sua autoimagem como artista
e ativista nacionalista negro desse perı́odo nã o tivesse relaçã o com seu discurso acerca da
democracia racial no <inal dos anos setenta, nota-se que há mudanças nesse discurso.
Essas mudanças seriam relativamente “simples” se atingissem apenas a esfera do
discurso polı́tico, ou seja, se estivé ssemos tratando de um personagem que tinha uma visã o
sobre determinada realidade e depois a modi<icou, como há diversos exemplos na histó ria
polı́tica e intelectual do Brasil. Mas nã o era o caso. Nascimento saı́ra do Brasil como homem
das artes, do teatro, e retorna como pintor, poeta, (ainda) teatró logo, professor universitá rio
titular, lı́der polı́tico no ativismo negro internacional. Em suma, ocorreu uma mudança
profunda no seu per<il, ocasionada pela sua vivê ncia no estrangeiro. Desse modo, essa
pesquisa procurou veri<icar nã o apenas o discurso operado naquele momento, mas també m as
atividades e experiê ncias que denotariam aqueles atributos no retorno do autor.
A construçã o do par discurso e imagem emergiu de forma contundente durante a aná lise
dos materiais sobre esse perı́odo. A interaçã o que ocorre na ideologia de Nascimento entre
seu pensamento, suas pautas polı́ticas e a percepçã o de si, ou do que deseja projetar para seus
interlocutores, aparece como tributá ria dessa experiê ncia no contexto internacional.
Para ilustrar a importâ ncia desses dois pontos, discurso e imagem, cita-se o depoimento
de Nascimento para o livro Memórias do Exílio, de Pedro Uchô a Cavalcanti e Jovelino Ramos,
que coletaram depoimentos de exilados polı́ticos brasileiros na é poca da ditadura militar.
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Nascimento inicia seu depoimento apontando sua diferença em relaçã o aos outros
entrevistados. Em sua concepçã o, “sua situaçã o é diferente”, pois havia nascido exilado,
condiçã o de todos os descendentes de africanos trazidos à força para as Amé ricas
(Nascimento, 1976c: 25). Ao se denominar um “exilado” em seu pró prio territó rio, o autor
deseja mostrar para seu pú blico que sua luta era maior do que a que ocorria no Brasil: ela
fazia parte de um contexto amplo e transnacional que tinha o Brasil como um dos focos, dado
que o paı́s estaria inserido na diá spora por seu legado cultural.
Nascimento dedica boa parte de sua fala a reconstituir sua jornada, desde a infâ ncia até
as atividades do TEN. Em relaçã o à sua militâ ncia e de como ela surgiria naquela “situaçã o de
exı́lio permanente”, o autor nã o tarda em reelaborar sua auto-percepçã o de ser um
“desajustado social” e de ser “arredio”, no sentido de nã o ser conivente com as expectativas de
subserviê ncia e resignaçã o do negro. Ele narra os eventos de forma a ressaltar seu
protagonismo diante daquele sentimento pró prio que, no entanto, sabemos ter sido cunhado
apenas em 1967: revolta. A partir dessa revolta - somada , em 1976, ao fato de se reconhecer
“estrangeiro em sua pró pria terra” - Nascimento revê sua participaçã o nos movimentos,
reforça sua atuaçã o na Frente Negra Brasileira (mesmo caracterizando-a como “simbó lica e
espiritual”), coloca-se à frente do I Congresso Afro-Campineiro de 1938 e reavalia os atributos
e os objetivos que envolveriam o TEN e seus eventos.
Nã o obstante essa posiçã o de destaque na reconstituiçã o de sua trajetó ria, ele parece
utilizar aquele depoimento para “justi<icar” algumas escolhas feitas na juventude. Dentre elas
está sua presença no Integralismo, movimento que ele considera “verdadeiro interessado nas
questõ es de Brasil”2 e seio de vá rios intelectuais de prestı́gio do paı́s, os quais teria conhecido
e com eles se relacionado. Sua justi<icaçã o segue um argumento razoá vel do nã o vı́nculo pleno
por ter uma “vida complicada”. Em suas palavras:
“Fundamentalmente essas coisas aconteciam confusamente. (…) Re>letindo hoje, agora, é fácil dizer
que o caminho certo era o da esquerda. Mas aí é que é. A coisa é meio complicada. Todas as minhas coisas
foram e são complicadas. Andei por todo canto, e tive problemas tanto na direita quanto na esquerda.
Naquele momento de perplexidade, antes mesmo de sair do exército, já me alistara no movimento
Integralista!” (Nascimento, 1976c: 29).
No momento em que começa a tratar de sua ida aos EUA, Nascimento destaca a ideia
expressa no inı́cio de seu depoimento: de que sempre teria sido um “exilado” em seu pró prio
Trajetórias em foco
Para estruturar as bases dessa reconstituiçã o da trajetó ria de Nascimento, buscamos
fundamentaçã o teó rica na abordagem de Maria Lú cia Garcia Pallares-Burke em seu trabalho
Gilberto Freyre: Um Vitoriano dos Trópicos, em que a autora traça a trajetó ria de Gilberto
Freyre em seus anos de formaçã o no estrangeiro. Nosso estudo (embora menor e menos
elaborado) tem o intuito de tratar de um personagem que se encontra em processo constante
de mudança, em um contexto internacional, para fortalecer sua imagem no seu pró prio paı́s.
A aná lise de Pallares-Burke nos proporciona uma re<lexã o socioló gica de como percorrer
jornadas, considerando contextos, subjetividade e reelaboraçõ es pró prias do sujeito estudado,
inseridas nas memó rias criadas acerca dessa jornada e apontando o sentido da composiçã o de
uma biogra<ia intelectual:
“Um biogra>ia intelectual no sentido estrito pode ser de>inida como estudo do desenvolvimento das
principais ideias e interesses do protagonista, observando-se mais a jornada do que seu destino >inal, e
tentando-se explicar como um dado escritor, artista ou estudioso se tornou a pessoa que a posteridade
conhece” (Pallares-Burke, 2005: 19).
Segundo a autora, no resgate de uma trajetó ria seria necessá rio compreender o contexto
em que aquele personagem atuaria, pensando nas implicaçõ es deste para seu pensamento,
seja nas incorporaçõ es , seja na negaçã o das ideias ali presentes.
“Para se entender um intelectual no seu próprio tempo e discutir o modo como ele pode ter dado
continuidade e ao mesmo tempo transcendido o mundo cultural que herdou, é imperativo um esforço de
descrever o campo intelectual ao qual ele pertencia” (Pallares-Burke, 2005: 19).
Percebemos, em nosso estudo, os perigos decorrentes de uma reconstruçã o biográ <ica. O
primeiro é de tomar a autoimagem ou a autointerpretaçã o do biografado acriticamente e
interpretá -las literalmente, parafraseando-as ao invé s de re<leti-las criticamente como fonte
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de interpretaçã o histó rica do protagonista (Ibid.: 20). A base desse perigo está em o analista
sucumbir a essas interpretaçõ es que o tempo remonta. Em nosso caso nã o fora diferente.
O segundo perigo é seguir caminho teleoló gico de interpretaçã o da vida do investigado,
“sugerindo que este segue um percurso linear em direçã o a um objetivo particular, sem se
admitir a possibilidade de o olhar se desviar quer para esquerda quer para direita, e muito
menos o risco de a pessoa entrar num beco sem saı́da ou se envolver em projetos alternativos
que podem ser, eventualmente, descartados” (Pallares-Burke, 2005: 30). De acordo com a
historiadora, seria uma “tendê ncia muito humana” um personagem descrever os fatos de sua
vida para os outros (ou mesmo para si) como uma “sucessã o ordenada de eventos como se
tivesse sempre sido uma busca de objetivos claros e harmoniosos, sem con<litos e desordem”
(Ibid.: 21).
A reconstituiçã o de uma trajetó ria, portanto, passa pela depuraçã o entre o que é
discurso e o que é fato. Mesmo diante da quase impossibilidade de retratar acontecimentos
exatamente da forma como ocorreram, a autora chama atençã o para os discursos “sedutores”
de uma visã o parcial, que tendem a tomar conta da aná lise de um perı́odo. Supracitando
Robert Rosenstone ao tratar a di<iculdade de reconstituir a biogra<ia do escritor Lafcadio
Hearn, Pallares-Burke dá um ideia do que entendemos pelo material consultado:
“tão prolí>ico e convincente é Hearn que todo biógrafo tem de lutar para não ser seduzido pela sua
prosa e para evitar se tornar uma espécie de espelho, que nada mais faz do que re>letir o que ele queria
que todos os leitores vissem” (Rosenstone apud Pallares-Burke, 2005: 21).
Pallares-Burke destaca també m a importâ ncia , alé m da compreensã o do contexto e do
pensamento, de olhar para as autoimagens do indivı́duo estudado, que indicariam os
caminhos e descaminhos daquela trajetó ria e as possibilidades surgidas e elaboradas dentro
dela. Como a autora nos elucida:
“Gostaria de sugerir que a autoimagem, ou melhor, as múltiplas autoimagens sucessivas que um
indivíduo possa ter não devem ser simplesmente descartadas como se fossem dados nos quais não se pode
con>iar. A autoimagem de um escritor famoso ou de um estadista revela alguma coisa de sua natureza,
enquanto a imagem que um jovem tem de si mesmo, especialmente quando ainda não sabe o que se
tornará, é ainda mais importante. Essas auto-imagens devem ser usadas - ao lado das imagens que outras
pessoas têm desse indivíduo - como auxílio na construção de uma narrativa e na interpretação de uma
vida. Em suma, se é verdade que a auto-apresentação não deve ser tomada literalmente, ela deve ser, no
entanto considerada seriamente” (Pallares-Burke, 2005: 22).
Ainda, a veri<icaçã o dessas autoimagens pode passar pela observaçã o atenta da
produçã o do investigado, para detectar eventuais pequenas alteraçõ es em questõ es antes
trabalhadas que possam ter pesos diferenciados. Pallares-Burke assinala a importâ ncia dessa
atençã o sobre reconstituiçõ es de escritos, pois “quando republicam trabalhos antigos, alguns
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deles os reproduzem sem alteraçã o; outros fazem alteraçõ es silenciosas, e um terceiro grupo
assinala as mudanças que faz” (Pallares-Burke, 2005: 29). Estas alteraçõ es de texto, para a
autora, podem re<letir de modo geral uma “mudança de personalidade” (Pallares-Burke, 2005:
32).
A partir da aná lise de Pallares-Burke, voltamos o olhar para nosso objeto em questã o.
Como mencionamos, Nascimento vai para autoexı́lio como artista e retorna como lı́der. Seu
discurso ideoló gico no perı́odo passa pela incorporaçã o de elementos transnacionais, como
pan-africanismo e afrocentrismo, que lhe dã o novos sentidos para re<letir sobre cultura negra
e sobre a questã o racial no Brasil. Alé m dessa entonaçã o em sua ideologia, o autor reconstró i
sua pró pria trajetó ria, relendo suas experiê ncias do passado à luz de uma nova perspectiva de
identidade negra, sendo esta transnacional e diaspó rica.
Assim sendo, articularemos o par conteú do e imagem para perpassar toda a obra do
perı́odo produzida pelo nosso autor. Algumas questõ es adjacentes aparecem dessa
articulaçã o, como “o que signi<icou o exı́lio em sua trajetó ria?”, em que circunstâ ncias ele
de<inia sua situaçã o de autoexilado, entre outras. A compreensã o de como ele enxergava sua
pró pria experiê ncia atravé s de sua autoimagem e discurso ideoló gico (sendo que um nutria o
outro indistintamente) pode ajudar a resolver tais questõ es.
O autoexı́lio no momento e no contexto em que ocorre també m amplia a perspectiva de
interesse sobre o objeto. Primeiro em relaçã o ao Brasil. Nascimento sai em 1968, no auge da
Ditadura Militar. Apenas dois meses depois de sua ida aos Estados Unidos, o governo
declarava o Ato Institucional nú mero 5 (AI-5), que cerceara as liberdades polı́ticas e civis dos
cidadã os brasileiros. Em clima de repressã o e censura, dezenas e centenas de opositores
diretos e indiretos ao regime recorrem ao exı́lio, muitas vezes por decisã o pró pria, outras em
fuga de repressã o, prisõ es e até proteçã o à vida.
Nesse contexto, Nascimento entra na “conta dos exilados”: referê ncias a inqué ritos
policiais militares em seu nome e sua participaçã o no projeto Memórias do Exílio o incluem na
histó ria polı́tica dos exilados do paı́s. Esse perı́odo se torna especial, pois Nascimento
conjuga, com outros exilados, uma frente ampla que o historiador James Green denomina
“resistê ncia democrá tica”, ou seja, atuaçã o polı́tica e ideoló gica contra a repressã o e
autoritarismo instalados no governo militar brasileiro. As memó rias de amigos como Cló vis
Brigagã o reforçam isso e, nesse sentido, independentemente de ir por conta pró pria ou
forçado, Nascimento se insere na memó ria coletiva dos exilados.
Do outro lado, há o contexto internacional, que é no mı́nimo “explosivo” naquele perı́odo.
Para citar alguns fatos: Guerra do Vietnã , luta pelos direitos civis nos EUA, movimento de
contracultura, lutas de libertaçã o de paı́ses africanos e sem nú mero de protestos em paı́ses
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como EUA, França, Alemanha entre outros. Para focar o contexto norte-americano que
Nascimento encontra, aquele era o momento de emergê ncia e consolidaçã o do movimento
pelos direitos civis dos negros, que se iniciara na dé cada de 1950.
Em 1968, apó s o assassinato dos grandes lı́deres Malcolm X (em 1965) e Dr. Martin
Luther King (em 1968), o movimento tomava proporçõ es mais radicais, com a emergê ncia do
Partido dos Panteras Negras, dentro da esfera do Black Power Movement, e da expressã o
artı́stica do movimento Black Arts Movement na <igura de LeRoy Jones. Nascimento aterrissa
em um perı́odo de alta efervescê ncia polı́tica e social devido à queda do sistema de segregaçã o
racial (Jim Crow e Sit Law), que funcionara como um catalisador de oportunidades e
possibilidades naquele cená rio. Ei nesse sentido que o autor articula uma carreira como artista
plá stico, que nã o era a sua principal atividade no Brasil, e consegue se ingressar no meio
universitá rio como professor.
Desse modo, rever a histó ria do autoexı́lio de Nascimento nos permite percorrer
momentos histó ricos singulares do sé culo XX e compreender em que medida tais contextos
interferem na trajetó ria do autor. Seguindo, portanto, as orientaçõ es metodoló gicas de
Pallares-Burke, e compreendendo a importâ ncia de veri<icar a articulaçã o entre discurso e
imagem, estrutura-se este estudo da seguinte forma.
Primeiramente, investigamos a literatura socioló gica sobre o autor, cujos estudos,
muitos com foco no TEN, ajudaram a compreensã o de algumas questõ es sobre seu discurso
ideoló gico já consolidadas na crı́tica socioló gica, bem como entender como se constituı́a seu
posicionamento antes do autoexı́lio. As aná lises de Antô nio Sé rgio Guimarã es (2005)
fornecem uma base para categorizaçã o da produçã o de Nascimento, as de Má rcio Macedo
(2005) reconstroem a trajetó ria do autor até 1968 e as de Paulina Alberto (2011) analisam a
noçã o de protagonismo dos intelectuais negros em relaçã o à s principais ideias do debate
racial do sé culo XX. Todas serã o fundamentais para tratar os objetos dessa seçã o. Dois pontos
se sobressaı́ram em nossa veri<icaçã o e serã o analisados no capı́tulo primeiro: as evidê ncias
de um projeto de liderança negra e a questã o da negritude.
A ideia de um projeto de liderança negra presente no TEN , principalmente pela voz de
Guerreiro Ramos, dá sentido à proposiçã o acerca das imagens que Nascimento remontaria no
contexto internacional. Nossa sugestã o é que ele nã o elabora uma visã o completamente nova
no autoexı́lio a partir das novas experiê ncias, mas articula expectativas antigas dentro das
oportunidades vigentes naquele â mbito. A partir da aná lise da <igura de Guerreiro Ramos e do
Congresso de 1950, reconstituı́mos o momento em que os intelectuais negros do TEN rompem
politicamente com o pacto democrá tico. De acordo com a literatura, em especial a de Paulina
Alberto (2011), o rompimento, que tinha em sua base a ideia de negritude, de certo modo nã o
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seria a ú nica questã o em voga. Como a historiadora norte-americana demonstra, expectativas
daqueles intelectuais negros de intervir na agenda de estudos sobre a questã o racial, ou seja,
legitimar sua posiçã o de ativistas e “pensadores” do debate sobre o negro, també m conjugam
as incompatibilidades entre eles e os setores progressistas que compõ em o pacto. Esse insight
da autora pode ser mais bem percebido, como apresentaremos, na exposiçã o da tese de
Guerreiro Ramos no Congresso de 1950, em que o soció logo defende a participaçã o ativa do
TEN em um projeto internacional de pesquisa sobre o negro. O que se retira dessa experiê ncia
é que, apesar de secundá rios, existiam elementos presentes no TEN para construçã o de uma
“intelligentsia negra”, que, no limite, nã o sã o muito diferentes da imagem construı́da por
Nascimento em torno de seu papel como “pensador da diá spora”.
A questã o da negritude, no entanto, é a base central desse rompimento. Assim, veremos
como esse marcador da diferença, em um contexto no qual o discurso conservador de
democracia racial preconiza a nã o-diferenciaçã o (notem que é diferente de “igualdade”, pois
de certo modo, os intelectuais negros do TEN també m a buscavam), corrobora para que o
grupo rompa polı́tica e ideologicamente com a ideia de democracia racial. A noçã o de
negritude se projetaria para a ideia de cultura negra especialmente no discurso de Nascimento
e, por essa noçã o, ele conduz seu discurso de ruptura .Essa exposiçã o se torna importante
para compreender a base do discurso ideoló gico pela esfera da cultura que o autor mobilizaria
no autoexı́lio.
No capı́tulo dois, avaliaremos com a trajetó ria de Nascimento no autoexı́lio e os
contextos dos Estados Unidos e do Brasil na é poca, em conformidade com os acontecimentos,
as atividades, as redes pessoais, as possibilidades e oportunidades em torno daquela
experiê ncia. A importâ ncia de falar sobre o paı́s nesse perı́odo em que Nascimento esteve fora
é ponderar em que medida seu discurso em torno de cultura negra e Ai frica estava em
consonâ ncia ou nã o com a forma como era abordado aqui, seja pelo corpo diplomá tico
brasileiro que amplia sua relaçã o com paı́ses africanos nos anos 1960 e 1970, seja no discurso
da nova geraçã o do movimento negro que surge em meados dos anos 1970.
Trataremos també m nesse capı́tulo da “peregrinaçã o internacional” de Nascimento,
para participar de congressos e seminá rios em paı́ses do continente africano, europeu e
americano. Esses congressos, em especial os realizados em Ai frica, sã o importantes para
recon<iguraçã o do autor no ativismo internacional, pois in<luenciaram seu discurso e auto-
imagem.
Na sequê ncia, no capı́tulo trê s, será feita uma aná lise sucinta de toda a produçã o de
Nascimento no perı́odo , isto é , suas obras artı́sticas (pinturas, poesias e peças) e polı́ticas,
envolvendo escritos, artigos, livros. A aná lise dessa produçã o (e suas modi<icaçõ es e
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reelaboraçõ es) é essencial para se compreender o modo como, dentro de seu discurso
ideoló gico, Nascimento articula sua autoimagem e sua percepçã o polı́tica sobre cultura negra
e democracia racial. Dividimos as obras em trê s etapas, que re<letem discurso produzido e
experiê ncias pessoais em â mbito internacional. O deslocamento de alguns “marcos” de sua
trajetó ria intelectual bem como sua interpretaçã o linear e uni<icada poderã o també m ser
abordados a partir da aná lise dessas obras. Uma discussã o em torno do conceito de
quilombismo - sobre o qual alguns autores re<letiram – e suas implicaçõ es no discurso e
imagem de Nascimento serã o um dos itens de destaque.
Esta pesquisa nã o foi de fá cil realizaçã o. Alé m da di<iculdade do objeto e da sucessã o de
implicaçõ es subjetivas internas ao discurso de Nascimento, a aná lise da trajetó ria de um
personagem extremamente polı́tico nã o pode ser vista sem ganhos e perdas. Os ganhos talvez
se re<litam nos contextos que trataremos e em certa elucidaçã o dos fatos que envolvem esse
perı́odo, tã o pouco trabalhado na literatura e minimizado nos depoimentos e autobiogra<ias
do autor. Quanto à s perdas, pode-se dizer que toda aná lise se pretende menos emotiva ou
despida de construçõ es parciais, seja de defesa ou de ataque. Nesse sentido, o Abdias do
Nascimento que trazemos aqui é um Abdias em construçã o. E é desse modo que pretendemos
contribuir minimamente para o campo de estudos sobre intelectuais negros, revelando uma
histó ria de reconstruçã o de imagens, que podem ser entendidas como expectativas de
inserçã o e integraçã o social.
Materiais e Fontes
A pesquisa contou com uma numerosa e signi<icativa quantidade de fontes e materiais
para reconstituiçã o e investigaçã o da trajetó ria de Nascimento em seu autoexı́lio. Material
bibliográ <ico, entrevistas, documentos, cartas, fotogra<ias, vı́deos (e muitas viagens para
coletar tudo isso) foram utilizados .
Entrevistamos o pró prio Abdias do Nascimento em duas ocasiõ es (2006 e 2010). Nesses
depoimentos, a base de nosso roteiro fora reconstituir alguns detalhes do perı́odo em que
residiu nos Estados Unidos e de suas redes pessoais lá . Como veremos, as amizades e
proximidades foram fundamentais para sua vida nos primeiros anos naquele paı́s.
També m entrevistamos Elisa Larkin-Nascimento, esposa de Abdias. Elisa é personagem
fundamental para compreender alguns aspectos desse perı́odo, em especial a partir de 1976
quando se casam, pois ela seria parceira e co-autora de alguns trabalhos do marido, alé m de
tradutora de seus textos.
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Viajamos para os Estados Unidos, onde entrevistamos duas pessoas pró ximas de
Nascimento no perı́odo dos anos 1970: Mole<i Asante e Anani Dzidzienyo. Mole<i Keiti Asante
é professor de Temple University, responsá vel pela criaçã o do primeiro programa de
doutorado em Estudos Afro-Americanos nos EUA, e autor de certo impacto na discussã o de
relaçõ es raciais, especialmente por seu conceito de Afrocentricidade. No perı́odo de exı́lio e
atuaçã o de Nascimento na Universidade Estadual de New York em Buffalo, Asante també m era
professor naquela universidade. Anani Dzidzienyo, professor de Brown University, tinha
interesse nas questõ es raciais no Brasil3 e via a <igura de Nascimento como privilegiada para
falar sobre elas. Conhecera Nascimento em 1973, em um seminá rio realizado em Harvard
University.
Entrevistamos també m Cló vis Brigagã o, amigo de Nascimento desde meados dos anos
1960, e responsá vel por apresentá -lo a Leonel Brizola. Brigagã o també m vivera em exı́lio
durante o mesmo perı́odo em que Nascimento, primeiro nos Estados Unidos e depois em
Portugal. Foi uma das <iguras centrais na articulaçã o de exilados para projeto polı́tico do PDT
de Brizola, formado durante o exı́lio de ambos, em 1979.
Os encontros informais com James Green e Kabenguele Munanga també m trouxeram
contribuiçõ es importantes para nosso trabalho. Com o historiador Green, tratamos sobre a
ideia de “exı́lio”, para tentar compreender se havia de<iniçõ es precisas em torno do termo no
perı́odo em que Nascimento estivera nos EUA, e em contato com outros exilados. Green é
autor de uma das obras de referê ncia desta pesquisa, sobre a oposiçã o dos exilados brasileiros
nos EUA contra o regime militar aqui vigente. Com Munanga, analisamos o discurso de alguns
professores da USP do perı́odo dos anos 1970, para investigar uma contraposiçã o na imagem
do autor. Como veremos, parte do enfrentamento polı́tico de Nascimento com a repressã o do
governo militar passara por um atrito em 1977 com uma delegaçã o de pesquisadores e
professores que estudavam sobre Ai frica e cultura negra. Nossa ideia era entender se existia
alguma imagem pré -formalizada daqueles professores sobre Nascimento naquele momento,
dado que Munanga conviveu com parte deles, como o professor Fernando Mourã o.
Em adiçã o à s entrevistas e aos depoimentos, exploramos, em diversa visitas, o Acervo
Abdias do Nascimento, pertencente ao Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros
(IPEAFRO) localizado no Rio de Janeiro. Lá analisamos algumas correspondê ncias do autor
datadas do perı́odo, recortes de jornal, fotogra<ias, documentos e textos referentes à sua
atuaçã o no contexto internacional.
3Inclusive há uma passagem dele aqui, em 1971, onde morou por algum tempo em Salvador.
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Nos Estados Unidos, alé m de realizar entrevistas, coletamos informaçõ es e materiais
(catá logos de exposiçõ es, documentos em bibliotecas, publicaçõ es, entre outros) que nos
ajudaram a compreender o perı́odo em que Abdias do Nascimento viveu no paı́s.
Todos esses materiais e os trabalhos produzidos por ele constituı́ram nossa fonte
primá ria de resgate dos fatos desse perı́odo. Nã o foi tarefa fá cil, devido à quantidade de itens
que foram sendo incorporados em tempos diferentes - muitos até bem em cima do prazo para
<inalizaçã o desta pesquisa -, mas tentamos constituir aqui do melhor modo possı́vel o que foi
esse momento na trajetó ria do autor.
Espera-se, de todo modo, que esse trabalho seja uma pequena contribuiçã o para estudos
posteriores sobre Abdias e, em um aspecto mais amplo, sobre intelectuais negros brasileiros.
Como dissemos, este , no fundo, era o maior motivador de nossos esforços. Boa leitura.
23
CAPÍTULO 1 - ABDIAS E SUA TRAJETÓRIA
5 Os dois escritos estão anexados no trabalho de Gérard Police, em sua volumosa biografia sobre Abdias do
Nascimento entre 1914 e 1944 (Police, 2000). Macedo, em sua análise sociológica da trajetória de Nascimento também
faz uma análise contextual dessa obra (Macedo, 2005: cap. 1). Ademais, no acervo Abdias do Nascimento (IPEAFRO)
há cópias mimeografadas desses dois escritos, que ainda (infelizmente) nunca foram publicados.
regulamentada nos idos dos anos 1940, mas acaba se tornando o “ganha-pã o” de muitos
escritores, intelectuais e artistas, dentre eles, o pró prio Nascimento. Pela escolha em fazer
curso de teatro em Buenos Aires, pela formaçaõ do grupo teatral no Carandiru e pela
composiçã o dos primeiros escritos, podemos, sem prejuı́zo das aná lises apresentadas sobre a
biogra<ia do autor, apontar que o “caminho das artes” era o que estava mais certo em suas
decisõ es. A importâ ncia de ressaltar essa “escolha” (ou, oportunidade) é que essa atividade
artı́stica caminhará em paralelo com o ativismo até os anos do autoexı́lio nos EUA aonde
chega como artista e como tal inicia sua inserçã o no contexto internacional.
O ativismo vinculado à arte emerge em 1944 com a criaçã o do Teatro Experimental do
Negro. O grupo é criado a partir da adesã o de algumas pessoas como Aguinaldo de Oliveira
Camargo, Ironides Rodrigues, Wilson Tibé rio, Teodorico Santos e José Herbel. Logo se juntam
ao grupo Sebastiã o Rodrigues Alves, Arinda Sera<im, Ilena Teixeira, Marina Gonçalves,
Claudiano Filho, Oscar Araú jo, José da Silva, Antonio Barbosa, Natalino Dionı́sio e Ruth de
Souza, entre outros (Macedo, 2005; Nascimento, 2006; Almada, 2009). O TEN é fundado em
outubro daquele ano e inicia suas atividades colaborando com a peça Palmares, do Teatro do
Estudante. A primeira peça pró pria encenada pelo grupo é justamente Imperador Jones, do
dramaturgo norte-americano Eugene O’Neall, apresentada no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro em 1945, justamente a mesma a que Nascimento assistira anos antes em Lima.
A histó ria do TEN é marcada nã o somente por sua produçã o teatral, mas també m pelas
atividades paralelas que desenvolvia: a militâ ncia polı́tica de seus membros vai desde a
alfabetizaçã o de adultos e cursos de cultura geral, passando pela organizaçã o de conferê ncias
e congressos, concursos de beleza e artes plá sticas à publicaçã o de um jornal, “Quilombo”6, e
de livros. Como nos ensina Macedo (2005), baseado na aná lise de Guimarã es (2002), o TEN se
con<igurava como a “segunda fase dos movimentos negros brasileiros”, que tinha importâ ncia
fundamental devido a essas atividades do grupo.
Os eventos principais foram: Convençã o Nacional do Negro Brasileiro (Sã o Paulo, 1945, e
Rio de Janeiro, 1946); Conferê ncia Nacional do Negro (Rio de Janeiro, 1949); I Congresso do
Negro Brasileiro (Rio de Janeiro, 1950) e Semana de Estudos de Raça (Rio de Janeiro, 1955).
També m foram realizados os concursos de beleza:“Rainha das Mulatas”e “Boneca de Pixe”
(1947 a 1950) e de artes plá sticas : “Cristo Negro” (1955).
Em 1949 foi fundado o Instituto Nacional do Negro, cuja direçã o foi entregue a
Guerreiro Ramos, recé m integrante do grupo. O TEN contava també m com um Departamento
Feminino, que criou em 1950 um Conselho Nacional das Mulheres Negras, responsá vel pelos
8 Além de minha leitura do autor, agrego aqui as análises de Macedo, 2005; Maio, 1997 e Maués, 1997.
9 Por vezes, no limite, parece até que o autor está fazendo “troça” com o termo político designado ao movimento do
Harlem Renaissance nos anos 1920 e 1930 dos EUA, no sentido de atribuir o negro de classe média brasileiro como um
típico “imitador”. Seu conhecimento sobre trabalhos de sociólogos norte-americanos, como Donald Pierson e Franklyn
Frasier nos leva a essa sugestão. Para mais informações sobre o movimento norte-americano dos anos 1920 e 1930,
ver Guimarães, 2004b, Marable & Mullings, 2000 e Locke, 1997. Há também a sofisticada biografia de um dos
integrantes desse movimento, Langston Hughes, cf. Rampersad, 1986, 2 vols.
10 Costa Pinto atribui esse termo de empréstimo Max Schiller. Não deixa de ser interessante que tenha captado, no
modo como desenvolveu sua análise, que essa situação de “ansiosidade” – como um sentimento gerado a partir de uma
situação contingencial objetiva – marcasse justamente os indivíduos em situações de fronteira, como ele pontua no
momento que trata dos negros de classe média.
“de classe mé dia”. O autor atribui a esse termo valor especı́<ico de posiçã o de classe, mais do
que propriamente status ou projeto. Como salienta Macedo em sua aná lise, “Costa Pinto
entende a ideia de ‘elite’ como um projeto reacioná rio de uma pequena burguesia negra que
busca legitimar a sua situaçã o de classe” (Macedo, 2005: 232).
O importante dessa ideia, no entanto, é a construçã o dessa elite como grupo e nã o
apenas como atores isolados, cuja condiçã o, segundo Costa Pinto, seria a intervençã o social
feita em conjunto. Isto é , com a mudança da sociedade e a ascensã o de alguns poucos, esse
grupo se vê na tarefa de mobilizar contingentes e nã o apenas de buscar a ascensã o de modo
isolado como se daria nas relaçõ es tradicionais. Em uma nota, na qual comenta uma frase de
Abdias do Nascimento sobre os anseios do TEN em “adestrar” as camadas populares negras
em termos dos estilos de comportamento da classe mé dia11, o autor a<irma: “Escusado é dizer
que isto não representa apenas uma opinião ou aspiração pessoal do diretor do TEN, mas as
aspirações coletivas de todo um setor, de toda uma classe: o setor intelectual da pequena
burguesia negra” (Costa Pinto, 1998 [1953]: 267, Nota 16). Nesse sentido, a elite negra deveria
ser entendida como <igura de grupo, de “classe”. Essa posiçã o, apesar de crı́tica, justi<ica uma
abordagem sobre um projeto de grupo, e nã o somente de escala individual ou isolada, que
envolveria as ideias de Guerreiro Ramos.
A aná lise de Costa Pinto vinculando o TEN à concepçã o de “elite negra” delineia alguns
estudos posteriores sobre o grupo teatral. Um deles, de Maria Angé lica Motta-Maué s, engloba
a perspectiva de Costa Pinto (1997). A autora versa sobre o discurso das elites dos
movimentos negros durante o sé culo XX, entre anos 1920 até 1980, abordando o jogo
ambı́guo e ambivalente da visibilidade e invisibilidade incorporado nesse discurso, que estaria
també m integrado ao pensamento social brasileiro, oscilando entre branqueamento e
negritude. Frisa també m a importâ ncia de se perceber a mudança e a “evoluçã o” desse
discurso, expressadas em suas ideologias polı́ticas e diretrizes de organizaçã o associativa.
A autora, que dialoga com a noçã o de “liderança” subjacente ao modo de o grupo
construir a imagem-de-si e de elaborar seus programas, de<ine tais elites:
“trata-se da sua atuação como intelectuais, que pensaram a questão racial e a própria sociedade
brasileira, de uma perspectiva muito particular e com uma leitura arguta e pragmática, que aliava
interpretação da ideologia com propostas de ação efetiva, vistas como uma espécie de missão dos que
conseguiam enxergar mais adiante e perceber que era preciso fazer algumas coisas” (Maué s, 1997: 93 –
grifo nosso).
A noçã o de “missão” é essencial para a conformaçã o dessas elites como arquitetas de
uma auto-percepçã o vanguardista para liderar social e polı́ticamente as massas negras. Tal
11Para ver discurso, que faz parte do momento inicial do TEN, ver Nascimento, A. Espírito e filosofia do teatro
experimental do negro, in: Nascimento,1950 e 1966.
percepçã o, presente no discurso do <inal dos 1940 de Guerreiro Ramos, denota a atuaçã o
polı́tica e posiçã o do TEN, como construtoras do valor histó rico do discurso do grupo em
torno de este inaugurar “uma nova fase de estudos e açã o sobre a questã o do negro”12.
Contudo, Maué s adiciona um ponto interessante em sua aná lise: considera que o cará ter
elitista do grupo explicitava nã o só uma posiçã o de diferenciaçã o perante as massas, mas
també m uma vontade polı́tica de legitimaçã o e prestı́gio:
“Trata-se, mais do que isso, ou nessa mesma perspectiva, de uma postura elitista – no sentido mais
imitativo daqueles intelectuais de quem desejavam o aval e o posto – ou da disputa mais política que
acadêmica de um campo intelectual: o dos estudos das relações raciais (de negros e brancos) no Brasil.
Que, no caso dos atores em questão, signi>ica falar de lideranças políticas do meio negro que são, ao
mesmo tempo, os intelectuais da raça, vis-a-vis estudiosos brancos com ou em busca de reconhecimento
acadêmico, numa área de trabalho especí>ica que nessa feição mais moderna, vai se con>igurar melhor
nesse momento. Em se tratando das lideranças negras ligadas ao TEN, o quadro rapidamente indicado
acima ganha força e nitidez, pois elas constituem o caso exemplar daquela disputa (unilateral diga-se)
que não se dera em 1930 – quando não podia mesmo se colocar – nem vai se dar mesma forma em 1970”
(Maué s, 1997: 162).
A projeçã o do grupo como uma “elite pensante e dirigente” pode ser um signi<icativo
indicador da importâ ncia que as expectativas daqueles ativistas negros assumiram em suas
ideologias. A ideia de disputa que Maué s preconiza viria de um nã o-reconhecimento por parte
dos intelectuais da academia, com quem as lideranças negras estabeleciam diá logo e
compartilhavam das ideias em torno do pacto democrá tico.
Certo ou nã o, é preciso ter em mente que as clivagens entre as duas esferas nã o sã o
rı́gidas. Como bem expressa Macedo, os intelectuais negros do TEN tinham mais interesse em
atrair do que confrontar os intelectuais brancos, os quais traziam ganhos de prestı́gio para o
grupo. Maué s també m reconhece isso:
“A sonhada de>initiva integração e ascensão social do negro, representada por ‘uma vontade negra
de ser brasileiro com as mesmas responsabilidades de todos os brasileiros’, como diz Abdias do
Nascimento, [sic] além de implicar na superação de valores africanos, precisava tornar-se visível, para ser
aceita e legitimada por quem podia fazê-lo – a classe dominante branca, de quem as lideranças negras
gostariam de ter o aval e o apoio” (Maué s, 1997: 182).
Ao mesmo tempo, Maué s acredita que as elites negras tinham de lidar com um “jogo de
cartas marcadas”, que envolve reconhecimento, aprovaçã o e desejo de integraçã o. Ou seja, a
relaçã o com intelectuais brancos nã o eliminaria um processo de invisibilidade dos negros
como produtores de pensamento e re<lexã o:
“De um lado, [termos uma História] a que o exclui do registro formal que o país faz de si mesmo, e
de sua história, de outro, e em sentido diferente, a que exclui ou ignora o registro, também formal, que o
próprio negro faz dele mesmo e do país. No primeiro caso é como se o negro não existisse >isicamente; no
segundo é como se não existisse intelectualmente” (Maué s, 1997: 284).
13 Mesmo explícita na literatura ainda há muita resistência ao reconhecimento, pelos intérpretes de pensamento social,
desses processos de invisibilidade. As contra-leituras desse processo vão desde vínculo de militância por parte do
analista que estaria trazendo a questão à tona, até “contaminação analítica a partir do referencial de atuação dos
militantes”. O fato, para além desses argumentos, é que não há em grande parte, esforço de leitura, crítica e
incorporação dessas visões em análises de processos sociais aos quais os mesmos fariam parte. Mais complicado
também se torna o tópico dado que, por outro lado, há constante incorporação política dessa ideia. De todo modo, as
críticas são sempre unilaterais e não se prestam a um exame crítico do que seria fato e do que seria interpretação. Em
tese recentemente defendida, sobre literatura negra e periférica, Mário Augusto Medeiros Silva tem uma instigante
discussão acerca do que ele denomina “Sociologia da Lacuna”, a partir do silenciamento e produção de lacunas na
memória de intelectuais negros. Ver Silva, M. A. M. A descoberta do insólito. Tese de Doutorado. São Paulo: Unicamp/
Depto. de Ciências Sociais, 2011. Ademais, a análise conceitual feita por Guimarães sobre Modernidade Negra também
nos traz o princípio de protagonismo dos intelectuais negros (Guimarães, 2004b).
14Os autores ainda afirmam que essa aliança teria amenizado a caracterização do movimento negro do pós guerra “do
ranço puritano e pequeno-burguês que teve a FNB” (Guimarães & Macedo, 2008); ponto de vista este que
concordamos.
intelectuais e artistas do mainstream. Pelo princı́pio da igualdade, como postula Guimarã es &
Macedo (2008), a ideia de democracia une e determina as regras do jogo. Contudo, é na
diferença que esse projeto de elite negra vai se desenvolver, e, assim, corroborar para
explicitar as incompatibilidades dentro do pacto democrá tico.
Guimarã es & Macedo levam a crer que, dentro dos principais delimitadores da açã o do
TEN, ou seja, forma como o grupo se insere no debate de relaçõ es raciais , a aposta na ideia de
democracia racial supera as bases de um projeto de elite. Esse projeto de alianças e endosso
do valor da “democracia” como instrumento para integraçã o do negro é assimilado pelo grupo
antes da chegada de Guerreiro e, de acordo com os autores sã o “as ciê ncias sociais que
legitimam o novo discurso” do perı́odo. O que signi<ica que em suas aná lises, qualquer
vestı́gio de um “projeto de elite dirigente e pensante”, nã o é o foco para re<letir sobre o grupo.
Mais importante é entender e delinear a construçã o de amplo pacto democrá tico que teria
orientado as alianças entre os ativistas negros e outros setores da sociedade no perı́odo: uma
noçã o de protagonismo de grupo.
Acredita-se que havia outro protagonismo do grupo que determinaria algumas
implicaçõ es posteriores, pois o projeto de elite negra movimenta nos anos 1950 e 1960, as
bases da divergê ncia para incompatibilidade das açõ es entre esse grupo e os intelectuais. Para
demonstrar melhor essa perspectiva, deve-se tratar sucintamente do momento em que esse
projeto veio à tona, que a memó ria histó rica de Nascimento registra como “queda de braços”
entre a militâ ncia e a intelectualidade: o Congresso do 1950.
15 Interessante refletir que essa fala, recorrente na literatura para ilustrar as intenções do grupo, também sublinhe o
título da obra de 1950, que, como sugerimos acima, contém as evidências do projeto de liderança do TEN. Parece que
Nascimento estava circunscrevendo politicamente o que Guerreiro pretendia intelectualmente, ou seja, a necessidade
dos ativistas negros de tomarem parte nos estudos sobre questão racial do país.
autor reforça na tese da questã o racial brasileira como protagonista do processo de re<lexã o
sobre tais experiê ncias.
Todavia, entre os participantes daquela mesa, as leituras tiveram diversas recepçõ es.
Primeiramente, o relator Darcy Ribeiro entende a proposta de Guerreiro como chave do ideal -
mais pró ximo do sentido conservador - da democracia racial, ressaltando aqueles
apontamentos como de “atenuaçã o de con<litos raciais” (Ibid.: 235). Em nenhum momento
Guerreiro usou essa expressã o. Seu objetivo era alavancar a presença mais incisiva dos
intelectuais negros na discussã o sobre as relaçõ es raciais. Em seguida, Costa Pinto avalia a
tese de Guerreiro como altamente pertinente aos interesses do paı́s (e, consequentemente dos
intelectuais que o representavam nas instâ ncias internacionais) em consolidar o olhar da
UNESCO para investimentos em pesquisas sobre relaçõ es raciais. O soció logo validava na
intervençã o de Guerreiro seus pró prios anseios polı́ticos e intelectuais frente à quela entidade
da ONU 16, apontando que a tese iria reforçar “os argumentos apresentados em Florença, de
que o Brasil é o campo indicado para tais investigaçõ es” (Nascimento, 1982 [1968]).
Temos, portanto, duas interpretaçõ es que, no fundo, em nada agradaram a Guerreiro
Ramos: a de Darcy Ribeiro defendendo a tese de democracia racial por meio de “atenuaçã o” e
mestiçagem; a de Costa Pinto, citando a pesquisa da UNESCO (da qual, sem dú vidas, Guerreiro
tomaria parte) sem dar nenhuma mostra de que incluiria aquele intelectual em seus esforços
polı́ticos junto à entidade.
Para Maio, o projeto UNESCO seria fruto de competiçã o entre propostas de diversos
grupos, e Guerreiro Ramos oferecia um contraponto à proposta dos intelectuais da regiã o
sudeste (Maio, 1997: 262). Ou seja, o Congresso de 1950 seria um passo na construçã o da
intelligentsia negra, como o autor aponta nos textos anteriores presentes na coletâ nea
“Relaçõ es de Raça”. Entretanto, o projeto de Guerreiro nã o teria vingado, e ele se tornaria
crı́tico severo dos estudos realizados nessa pesquisa, o que corroboraria para demonstrar o
impacto da mesma (Maio, 1997).
Os crité rios de diferenciaçã o que marcariam o inı́cio do afastamento do TEN do pacto
democrá tico dos anos 1940 e 1950 sã o a ideia de negritude e as evidê ncias de um projeto de
liderança negra. Esse projeto teria sido um dos motivos da crı́tica de Guerreiro Ramos aos
estudos UNESCO, especialmente a Costa Pinto. Nesse ambiente, Nascimento teria absorvido as
crı́ticas de Guerreiro em uma perspectiva mais polı́tica incorporando-as posteriormente ao
seu discurso ideoló gico sobre clivagem entre “intelectuais negros” e os “homens da ciê ncia”.
Assim, Guerreiro Ramos també m foi responsá vel por um “pontapé inicial” na construçã o
16 Como demonstra a apresentação de Maio para reedição de sua obra. Ver Costa Pinto, 1998 [1953]: apresentação.
simbó lica daquela clivagem ao criticar a obra de Costa Pinto, fruto do projeto UNESCO do qual
nã o participou, e acusá -lo, entre outras coisas, de ser “cidadã o sem quali<icaçõ es morais e
cientı́<icas”, “carreirista” e de ter cometido “grosseiro plá gio” em um de seus trabalhos
(Guerreiro Ramos, 1995 [1957]: 210).
A historiadora norte-americana Paulina Alberto(2011) reforça esse con<lito ao traçar
uma exposiçã o histó rica do pensamento negro nas organizaçõ es de trê s cidades brasileiras, SP,
RJ e Salvador, relacionando os elos dos pensamentos de Guerreiro e de Nascimento à
ideologia da democracia racial e suas implicaçõ es para os intelectuais negros17 em termos de
inclusã o social.
Debatendo com os trabalhos de Guimarã es (2002; 2003; & Macedo, 2008), a autora
aponta dois caminhos importantes acerca da ideia de democracia racial para entender como
se situam as incorporaçõ es feitas pelos intelectuais negros. Havia uma linha “conservadora”,
mais tradicional, como a ideia de “mestiçagem” presente na obra de Gilberto Freyre; e outra
linha “baseada em direitos” (right-to-Rights), ou seja, direitos e inclusã o do contingente negro
na sociedade. A in<luê ncia dos soció logos como Florestan Fernandes e Roger Bastide residiria
nessa ú ltima apropriaçã o, pois realça a noçã o de protagonismo dos negros e a participaçã o
polı́tica destes na luta pela igualdade e pelo “direito aos Direitos”. Um novo “consenso
socioló gico” chamou a atençã o pela contestaçã o à s abordagens folcló ricas promovidas pelos
estudos antropoló gicos dos anos 1930, os mesmos responsá veis pela linha mais conservadora
do ideal de democracia racial. Nas palavras da autora:
“In the eyes of many southeastern black thinkers, anthropological studies of Afro-Braziliana (much
like the ‘sentimentalism’ many of them disdained) cast people of color as objects, rather than as active
subjects, and zeroed in on black cultural difference at the expense of the kids of race-based political
activism they themselves practiced” (Alberto, 2011: 190).
A adoçã o dessa perspectiva buscava a ampliaçã o dos direitos dos negros. Na condiçã o de
campo de estudos em vias de institucionalizaçã o, os intelectuais negros teriam direito de
in<luir e de dar forma à s pesquisas sobre relaçõ es raciais. Ou seja, alé m de possibilitar a
apresentaçã o de suas pautas polı́ticas, a ideia de “democracia racial” encampava um interesse
implı́cito de que eles fossem produtores de re<lexã o e nã o só ativistas. De acordo com a autora:
“As the pronouncements of black thinkers like Nascimento, Guerreiro Ramos, and Leite suggest
[sic], the sociological perspective conferred agency on people of color not by granting a new role to the
black masses but by creating a formal space for the interventions of black thinkers and activists into
national intellectual life. In the sociological works that postwar black thinkers embraced, the ‘black man’
17 A autora durante todo o trabalho se utiliza do termo “black thinkers”. Em uma tradução, o termo “pensadores” não
daria o sentido que Alberto dá para termo: indivíduos que, além da militância política, produzem pensamento e reflexão
sobre relações raciais. Nesse sentido, optamos pelo termo “intelectuais negros” que é extensivamente utilizado na
literatura: Guimarães, 2002, 2003, 2004; Guimarães & Macedo, 2008; Macedo, 2005; Barbosa, 2004; Maués, 1997;
Maio, 1997; Siqueira, 2006; Larkin-Nascimento, 2003; Hofbauer, 2006; Hanchard, 2001, para ficar em alguns exemplos.
who was to become an agent in modernity looked very much like themselves. (…) it re>lected a concern for
their own role as intellectuals who would represent and help guide their race” (Alberto, 2011: 193).
Nã o se tratava de os intelectuais do TEN assumirem a posiçã o de “campo intelectual”, no
sentido estrito do termo. O ativismo seria mais que uma ferramenta de luta polı́tica;
envolveria també m, com a necessá ria legitimidade, a contribuiçã o dos intelectuais negros
como pensadores e produtores de re<lexã o. De acordo com Alberto,
“In Rio and São Paulo, black thinkers’ frustrations with the oppressive aspects of dominant
discourses of racial democracy would also intersect with changing attitude toward the social sciences,
which had proven so useful to their antiracist agenda in the immediate postwar years. Beginning even in
those years, and increasingly over the course of the 1950s and early 1960s, black thinkers in Rio and São
Paulo raised their expectations of social scientists and their disciplines. They demanded participation as
makers of knowledge about race and race relations rather than as mere informants or subject material
and criticized what they saw as the social sciences’ tendency to downplay the role of race and racism in
explanations of social inequality. These were pressing concerns for black thinkers at a time when rapid
social an economic change masked, in the eyes of many of their conationals, the persistent role of racial
discrimination in preventing people of color from bene>iting proportionately in Brazil’s development”
(Alberto, 2011: 198).
Como vimos na sua tese no Congresso de 1950, a intençã o implı́cita de Guerreiro era
validar as atividades do TEN e garantir a participaçã o do grupo nos estudos sobre soluçõ es
raciais no Brasil. Apesar de nã o envolver substituiçã o nem questionamento de outros
intelectuais da academia, esssa proposta nã o teria logrado. De acordo com a autora:
“In Rio, however, where a handful of people of color were historically able to establish alliances
with, or themselves enter the ranks of, the nation’s political and intellectual elite, black thinkers expected
to be more than just informants. During the Black National Congress of 1950, for instance, sociologist
Alberto Guerreiro Ramos called for the UNESCO to host an international congress on race relations in
Brazil, in which members of the TEN and other black thinkers would participate as producers of
knowledge alongside activists and scholars from around the world. Guerreiro Ramos saw his and other
black intellectuals’ inclusion in these proposed academic discussions as a key step toward racial justice in
Brazil. His hopes for academic parity were dashed, however, when a white scholar, Luiz Aguiar Costa
Pinto, announced that the UNESCO had decided (partly on his own advice) to sponsor a substantially
different project - a study of race relations in Rio de Janeiro (part of the broader studies the UNESCO was
then conducting across Brazil). Costa Pinto himself, and not any of Rio’s intellectuals, would conduct the
study. For Guerreiro Ramos and other TEN members, the difference between the two projects was
enormous. Guerreiro Ramos’s proposed world congress on race relations would have given black thinkers
from the TEN and other nationwide organizations a position as active and equal participants - experts on
race relations and narrators of their own experiences - in a prestigious event backed and funded by the
United Nations. Studies about race relations, carried out by accredited white scholars like Costa Pinto,
threatened to treat black activists as raw material - just like the anthropology to which they had
previously objected. (…) Their confrontation was, instead, about power in intellectual production, about
asserting black intellectuals’ right to be agents, rather than mere subject matter, in the study of race
relations. In Costa Pinto’s book, Guerreiro Ramos and other members of Rio’s TEN were demoted from
engaged, internationally visible black thinkers to a frivolous ‘black elite’ subject to the criticism of a white
‘expert’ on race relations” (Alberto, 2011: 217-218).
O interesse do grupo era uma extensã o da sua atuaçã o no campo polı́tico que lhe
permitisse protestar sobre a questã o racial. Como protagonistas do processo, os ativistas
poderiam expressar sua ideologia como forma de re<lexã o e nã o apenas como retó rica polı́tica.
Ora, mas qual a relaçã o desse discurso com Abdias do Nascimento? Como Macedo
explicita em seu estudo, Nascimento nã o estava arquitetando uma imagem de si baseada na
intelectualidade ou dignitá ria da academia. No entanto, aquelas intençõ es “re<letidas” no
debate sobre os intelectuais negros como “produtores de conhecimento”, sendo ativistas,
passam por uma leitura polı́tica em seu discurso ideoló gico.
Os contrastes do projeto de liderança negra do TEN em comparaçã o com o pacto
democrá tico da intelectualidade dos anos 1950, consistiam na noçã o de diferença que a
identidade negra (sob a é gide do termo negritude) colocava em pauta.
Na introduçã o de “O Negro Revoltado” podemos perceber isso. A clivagem que
Nascimento estabelece entre “ativistas negros” e os “homens da ciê ncia”, sugere uma resposta
direta aos estı́mulos provenientes do embate intelectual e polı́tico entre Guerreiro Ramos e
Costa Pinto. O que queremos dizer é que o autor se utiliza daquele confronto para marcar
posiçã o polı́tica de diferenciaçã o (e mé rito) em relaçã o aos ativistas negros do TEN, diante do
processo de ruptura com o discurso da mestiçagem. Nesse processo, entraria també m a
fragmentaçã o entre os setores do debate do Congresso de 1950 e o papel “especial” do TEN na
atuaçã o pelo resgate da cultura negra (Nascimento, 1966, 1967, 1971, 1972). Isso nã o
signi<ica que Nascimento valorizasse como projeto pessoal as ideias de compor uma
“intelligentsia negra” ou uma “elite dirigente e pensante”, todavia elas acabam se introjetando
em seu discurso, sua atuaçã o e sua produçã o a partir do <inal dos anos 1960. Naquele
momento, continuava sendo um “artista de ativista negro” e se vendo como tal.
Nesse sentido, o que preconizamos é a ideia de um projeto de liderança negra
corroborando para as construçõ es da autoimagem do autor a partir daquele momento, por
meio do vı́nculo que estabelece entre produçã o e ativismo. A ideia de “projeto de elite negra” é
um ponto secundá rio, sem dú vida, mas sugere o que teremos no desenrolar de seu autoexı́lio
em relaçã o ao modo como Nascimento estabelece uma imagem honrada e honrosa em torno
de sua trajetó ria e produçã o.
A noçã o de negritude explica o processo de ruptura no seu discurso ideoló gico no <inal
dos anos 1960, como bem demonstram Macedo (2005) e Guimarã es (2005), contudo nã o
bastaria para entender sua imagem de liderança negra apó s essa ruptura ideoló gica. Essa
liderança de<iniria uma visã o sobre o negro como ativista e produtor de re<lexã o, capaz de
liderar , por conta de sua experiê ncia, e de apresentar “soluçõ es para questã o racial”, como
a<irma Guerreiro Ramos (Nascimento, 1982 [1968]: 237).
Sem a noçã o de negritude, a ideia de “liderança negra” nã o teria sentido naquele
contexto, pois ela é essencial para que Nascimento reformule o conceito de cultura negra e
de<ina as especi<icidades que giravam em torno daquela ideia, bem como o protagonismo do
negro na sociedade. Ei desse conceito que trataremos agora.
18Esse ponto é um argumento específico do autor em relação à obra de Maio (1997), que não teria percebido a
ressonância das pesquisas da UNESCO em território nacional. Com bem argumenta Macedo, os resultados dela foram
apropriados pelos ativistas negros, produzindo argumentos pra que, a partir dos anos 1960, se colocasse em xeque o
ideal de “convivência harmônica”. Ver Macedo, 2005: 236
“Esté tica da Negritude”, contra a qual se insurgiram os cientistas presentes, como Costa Pinto
e Ei dison Carneiro (Macedo, 2005: 199). Apesar de reforçar a ideia de que essa clivagem é
“produzida e nã o re<lete essencialmente a realidade”, Macedo dá indı́cios da importâ ncia
simbó lica de tal divergê ncia no discurso de Nascimento e de outros membros do TEN. Ainda,
como lembra o autor, os textos relativos a essa tese teriam se perdido19, o que determinou a
di<iculdade em reconstituir detalhadamente todos os aspectos daquela discussã o.
A ideia de negritude seria catalisadora de trê s perspectivas diferenciadas: “1)
questionadora dos posicionamentos polı́tico-partidá rios e ideoló gicos de ambos os grupos; 2)
polemizadora da noçã o de ‘raça’; e 3) explicitadora da noçã o de diferença, o que vem a
questionar um projeto de naçã o mestiça e, portanto, homogeneizante” (Macedo, 2005: 204).
Dessas trê s perspectivas, as duas ú ltimas nos interessam para discussã o.
De acordo com Macedo (2005), no <inal dos anos 1940, a idé ia de negritude dá
tonalidades de uma “tı́mida ruptura” presente nas obras de Arthur Ramos, que teria
in<luenciado os membros do grupo naquele perı́odo. Para o antropó logo baiano Ramos, o
pressuposto originá rio de Levi-Bruhl consistia na ideia de culturas pré -ló gicas e pré -letradas,
para compreender a organizaçã o das culturas de origem africana. O sentido de identidade
racial proposto nas ideias da “né gritude” francesa, no entanto, teria se aplicado, especialmente
atravé s dos textos de Guerreiro Ramos e Ironides Rodrigues em uma nova perspectiva para a
“cultura negra”.
Paulina Alberto lembra que, por meio do conceito de negritude, o TEN dava consistê ncia
ao seu discurso dos valores culturais de origem africana como marca de diferença e da
contribuiçã o especı́<ica dos negros para cultura plural do paı́s. Essa aplicaçã o ocorre no
perı́odo do <inal dos anos 1940 e inı́cio de 1950, també m nos textos de Nascimento
(Nascimento, 1950, 1961, 1966) e no jornal “Quilombo” (Nascimento, 2003), que criticavam
os estudos culturalistas por fazerem, na visã o deles, uma abordagem folcló rica, está tica,
pró pria de um “museu”.
Os intelectuais do TEN bradavam por uma abordagem moderna e dinâ mica sobre o
continente, inspirada no movimento da négritude francesa de escritores francó fonos como
Aimé Cé saire, Leopold Sé nghor, que, como nos aponta Alberto, fora responsá vel pela
revalorizaçã o das culturas tradicionais africanas em uma perspectiva vanguardista,
posicionando este legado cultural como base compartilhada para um movimento diaspó rico
de descolonizaçã o polı́tica e cultural (Alberto, 2011: 220). Ponto adicional interessante que
19Nascimento e Guerreiro Ramos acusam Costa Pinto de ter extraviado parte dos textos do Congresso. Nascimento,
ademais, afirma que essa tese (e as outras extraviadas), comporia o segundo volume do livro “Negro Revoltado”,
denominado “Negritude Polêmica” (Nascimento, 1982 [1968]).
Alberto acrescenta nas aná lises sobre negritude é a in<luê ncia das expressõ es de negro<ilia dos
anos 1920, por artistas e intelectuais como Blaise Cendrars. A negro<ilia, como nos ensina
Guimarã es (2004b: 6) se insere na representaçã o positiva que os intelectuais brancos no inı́cio
de sé culo XX faziam dos negros, pela ideia de “cultura africana”. Diante disso, pode-se inferir
que os intelectuais negros francó fonos també m faziam uma releitura dessas primeiras
representaçõ es. Alberto acredita que os membros do TEN tiveram acesso à quelas publicaçõ es
europé ias e à introduçã o da famosa obra de Cendrars “Anthologie de la poésie nègre et
malgache” haja vista as constantes referê ncias a elas em “Quilombo” em maio de 1950
(Alberto, 2011: 341, nota 72), as quais levaram a cultura negra a fazer parte da cultura
nacional, nã o apenas nos discursos do TEN como també m nas versõ es o<iciais de identidade
nacional do governo Vargas.
Nã o obstante essa <iliaçã o inicial, Muryatan Barbosa sublinha que a negritude fora um
direcionamento de conseqü ê ncias de<initivas para o grupo, levando “a desagregaçã o gradual
da hegemonia do pacto da democracia racial” (Barbosa, 2004: 77). Nesse sentido, o principal
mobilizador dessa noçã o seria Ironides Rodrigues que, como aponta Barbosa, “foi quem,
efetivamente, se apoderou e se tornou um divulgador de tal temá tica” (Barbosa, 2004: 82). O
autor a<irma que Ironides era quem estava em contato com as obras dos autores da négritude,
e em especial com a obra de Sartre, Orfeu Negro, base da sua tese apresentada no Congresso
de 1950. Barbosa faz referê ncia à imagem de Rodrigues como “Paladino da Negritude”, a cujo
empenho deve-se a consolidaçã o da negritude como conteú do simbó lico no ativismo negro
brasileiro.
Entretanto é pelas mã os (ou pela “pena”) de Guerreiro Ramos que o sentido de negritude
incorporaria a subjetividade e “alma” negras. Dentro da perspectiva do pacto democrá tico que
circundava a ideologia do TEN no <inal dos anos 1940 e inı́cio de 1950, Guerreiro iria defender
uma visã o conciliadora da negritude como um “legado espontâ neo da intelligentsia do TEN,
que teria se tornado capaz de compreender e trabalhar com o ‘espı́rito de conciliaçã o’ da
negritude” (Barbosa, 2004: 86). Ou seja, nesse momento, a ideia de negritude, apesar de
denotar a diferença, preconizava uma subjetividade negra humanista e a-racial, testemunho
do espı́rito democrá tico e humano que levaria o paı́s a assumir liderança polı́tica da
democracia racial. Maio sintetiza essa ideia:
“A concepção de negritude de Guerreiro Ramos não se confunde com uma retomada dos valores
africanos. Trata-se de um processo de valorização estética do negro, de eliminação de complexos e
frustrações da população de cor, de preparação do negro para uma sociedade que sofria profundas
transformações sociais” (Maio, 1997: 278).
Guimarã es, em sua leitura sobre o “Quilombo”, enxerga a relaçã o construı́da pelo TEN
entre cultura brasileira e raı́zes africanas. De acordo com o soció logo, a produçã o do grupo,
seja nas peças ou no jornal, traria essas raı́zes e heranças culturais à tona, denunciando as
experiê ncias de humilhaçã o e preconceito contra o negro. Em suas palavras:
“Nesse sentido, o jornal [Quilombo] exalava né gritude. Na verdade, o jornal foi responsável
pela formação de uma negritude brasileira e nacionalista [sic]. Tratava-se ali também de um
compromisso, da negociação de uma identidade racial e cultural que, embora se subjugasse à
nacionalidade brasileira, mantinha-se singular” (Guimarã es, 2004b: 36).
Assim sendo, dois pontos devem ser realçados sobre negritude: a negritude como
marcador de diferença dá forma à s divergê ncias que os intelectuais negros tê m dentro do
pacto democrá tico; e a transformaçã o desse discurso em uma radicalidade polı́tica.
A noçã o de negritude marca a diferença que se envolve na noçã o de raça. Segundo
Macedo nos informa, aquela noçã o explicitadora de diferença abalaria as bases de uma
identidade nacional construı́da sobre o ideal de naçã o mestiça, que, conforme apreendemos
em Alberto (2011), nã o é qualquer perspectiva: é a base mais conservadora do entendimento
de democracia racial.
Esse abalo se concretizaria explicitamente no Congresso de 1950, em cujo encerramento,
alé m das discussõ es acaloradas sobre a tese de Ironides, há uma “segmentaçã o” da proposta
<inal. Alguns membros do congresso, em grande parte os intelectuais envolvidos nos estudos
de relaçõ es raciais, redigem uma outra Declaraçã o, que <ica conhecida na literatura como
“Declaraçã o do Cientistas”20. Nesta, os pressupostos da igualdade racial sã o os mesmos, mas
qualquer mençã o à ideia de negritude (como valorizaçã o de raça) é rechaçada, marcando,
portanto um discurso “ameno” de descon<iguraçã o daquela noçã o trazida pelos intelectuais
negros. Como nos lembra Guimarã es:
“A linguagem e as ideias que circulam no mundo estão na cabeça dos nossos intelectuais, brancos e
negros. No entanto, se eles aceitam a ideia de que os norte-americanos e caribenhos fazem uma ‘cultura
negra’ e ‘africana’, rejeitam ainda peremptoriamente a ideia da existência de uma ‘cultura negra’ no
Brasil, de>inindo-a como ‘mestiça’ ou, no máximo, afro-brasileira” (Guimarã es, 2004b: 34).
Apesar das divergê ncias, os intelectuais negros do TEN acabaram reelaborando e se
apropriando da noçã o de negritude , como ocorre com a obra de Nascimento, “Sortilé gio”, que
apresentaria crı́tica à mestiçagem e ao branqueamento por meio da valorizaçã o do
enegrecimento (Macedo, 2005: 221). Nesse sentido, de acordo com o autor:
“A>irmando cada vez mais uma diferença étnica em bases raciais e defendendo a ideia de uma
‘subjetividade negra’, elas acabam por impossibilitar a aliança almejada por Nascimento entre o ativismo
negro e intelectualidade branca pró-melhoria da condição do negro em bases reformistas e democráticas.
20Maio (1997) e Barbosa (2004) também assinalam que Guerreiro Ramos foi um dos que assinara a “Declaração dos
Cientistas”. Todavia, como Barbosa explicita, sua assinatura fora apenas estratégia pessoal na tentativa de se aproximar
dos intelectuais, de acordo com seus interesses. Em pouco tempo assumiria posição crítica a estes, especialmente
contra Costa Pinto. Ver Guerreiro Ramos, 1995 [1957].
(…) Nesse processo, tem início a valorização de uma identidade racial negra e a ideia de democracia
racial começa, paulatinamente, a ser descartada como possibilidade futura” (Macedo, 2005: 224).
Essa “reelaboraçã o” segue sentido contrá rio à s ideias do pacto, ou seja, de um discurso
cada vez mais conservador em torno da noçã o de democracia racial. A negritude, como
ressalta Alberto (2011), envolve o caminho desses intelectuais para preservar as
possibilidades de integraçã o e liberalidade que eles enxergavam; começa a adquirir maior
radicalidade, a medida que vai se afastando, e posteriormente criticando, as ideias que
determinavam o debate em torno do pacto democrá tico.
A negritude como crité rio de diferença estabelece, portanto, no discurso dos intelectuais
negros a partir nos anos 1950 subsı́dios para a ruptura polı́tica com pacto democrá tico, pela
crı́tica sobre pressupostos conservadores daquela ideologia, (as mesmas realizadas nos anos
1940 em torno dos estudos culturalistas e racialistas), e també m, pela aproximaçã o destes
autores - com exceçã o de Guerreiro Ramos que constró i uma re<lexã o mais abrangente - com
os novos paradigmas preconizados pelos estudos da UNESCO, os quais determinam a noçã o de
democracia racial como mito, como uma falsa ideologia.
Ademais, alguns elementos do projeto de liderança do TEN, como se discorreu acima, re-
emergem. A visã o conservadora que mantinha os intelectuais negros como meros
“coadjuvantes”, e o negro como “objeto de estudo”, <ica mais evidente com a noçã o de
protagonismo negro evidenciada pela negritude. Tal protagonismo representava, em primeiro
lugar, base para a integraçã o do negro, e, em segundo plano, chances de inserçã o dos
intelectuais negros como produtores de re<lexã o, ou, “sujeitos da pesquisa”. Nesse sentido,
entendemos que esse radicalismo, no <inal do anos 1960, sedimentou a ruptura ideoló gica do
discurso de Nascimento.
21O trabalho de Macedo (2005) também aborda essa fase, mas por seu recorte sobre trajetória política de Nascimento,
se detém mais sobre aspectos políticos – atividades, alianças e conflitos. Macedo, como mencionamos, também
compartilha da ideia de que a ruptura de Nascimento com o discurso da mestiçagem ocorre no período, mas não
desenvolve detidamente sobre como se dá no final dos anos 1960 essa mudança, optando por demonstrar, com vigor,
as bases constituintes dessa ruptura via noção de negritude (presente por exemplo na peça Sortilégio). Ver Macedo,
2005: conclusão. Outro texto que passa de certo modo sobre o momento, mais especificamente 1968, é o de Maués
(1997). No entanto, dado que o foco dela é o debate produzido no livro “80 anos de Abolição”, é pontuar como algumas
questões tratadas no discurso proferido pelos intelectuais negros e estudiosos da academia em 1968 respaldam a
discussão da questão racial tanto nos anos 1970, com o Movimento Negro Unificado, como nos anos 80, com a
articulação político dos movimentos negros em torno da Constituição de 1988. Ainda na literatura, temos o livro do
historiador José Jorge Siqueira (2006), que trabalha com a ideia de “ruptura do pensamento racial brasileiro” entre os
anos 1944-1964. Contudo, apesar de lidar com a constituição do debate levando em consideração os intelectuais
negros e os acadêmicos, o autor “pedrifica” as posições de ambos na discussão, e não leva em conta o pensamento
negro como protagonista dessa ruptura, ou seja, reserva apenas à sociologia (especialmente os estudos da UNESCO
sobre SP) tal mudança.
22Guimarães e Macedo endossam a importância da mobilização da noção de democracia racial pelos intelectuais nos
anos 1940. Ver Guimarães & Macedo, 2008.
negritude. Inspirada nos autores francó fonos e já latente no discurso destes intelctuais desde
<inal dos anos 1940, aqui nã o seria utilizada ipso literis em todas as suas dimensõ es:
“Nos anos 1950, Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento falarão ocasionalmente de raça negra;
mas é a ideia de cultura negra, tal como utilizada pelos autores da né gritude, que os in>luencia mais. Não
sem críticas e nunca integralmente, pois eles preferiram falar em cultura afro-brasileira, rechaçando o
afrocentrismo e o pan-africanismo da négritude. Ao contrário, a negritude brasileira terá a característica
peculiar de ser fusionada à democracia racial”. (Guimarã es, 2005: 162).
A ruptura de Nascimento com o pacto da democracia racial ocorreria apenas nos anos
1960, sob in<luê ncia da obra de Florestan Fernandes, “A Integração do Negro na Sociedade de
Classes”, que teria també m sido assimilada por outros ativistas negros do perı́odo23. De acordo
com Guimarã es, Nascimento apresentaria essa mudança no discurso polı́tico especialmente na
“Carta Aberta ao I Festival de Arte Negra”, de 1966, na qual deixa mais claras sua ruptura e sua
adesã o integral ao discurso da negritude.
Pois bem, o afastamento só estaria completo se houvesse a incorporaçã o dos conceitos
de revolta e de resistê ncia, que articularia um discurso polı́tico original e marcaria a
“maturidade” de Abdias, sendo portanto uma fase que culminaria na emergê ncia do conceito
de quilombismo. De acordo com Guimarã es,
“Meu argumento principal, todavia, é de que se houve ruptura no pensamento de Abdias, e houve
várias, a maior delas, a que marca realmente um ponto de in>lexão com sua ideologia política dos anos
1950, deu-se quando Abdias passou a narrar a história do negro brasileiro como uma história de
resistência cultural e de revoltas. (…) Mais ainda, é preciso salientar que foi precisamente a incorporação
das noções de négritude, primeiro, e, principalmente as de résistance e révolte, ou seja, de noções que
chegam ao TEN pela sua estreita correspondência com a Présence Africaine, que o pensamento de Abdias
começa a afastar-se do mainstream da intelectualidade brasileira, mormente da in>luência de >iguras-
chave como Arthur Ramos, Édison Carneiro, Costa Pinto e Gilberto Freyre, que veem com muita
descon>iança e preocupação a aproximação dos negros brasileiros aos padrões racialistas europeus e
americanos” (Guimarã es, 2005: 166-167).
A ideia de negritude abre caminho para um discurso cada vez mais radical e afastado dos
preceitos do debate nacional e faz emergir em seu cerne a noçã o de “cultura negra”, marcada
pela resistê ncia e representaçã o de revolta, ou seja, nã o adaptabilidade aos ideias de
aculturaçã o ou mestiçagem. Nossa percepçã o sobre a importâ ncia da leitura de Camus para o
pensamento de Nascimento permite enxergar a incorporaçã o de conceitos externos ao debate
brasileiro como ponto de ruptura em sua ideologia. A assimilaçã o dos conceitos de revolta e
resistê ncia conduziria Abdias, durante o autoexı́lio, a incorporar as noçõ es de pan-africanismo
e afrocentrismo. Guimarã es també m chama atençã o para esse aspecto, mesmo nã o se
debruçando sobre o material desse perı́odo pó s-1968:
“De real e completamente novo, portanto, Abdias trará ao Brasil o discurso afrocêntrico. É
certamente dele que decorrem os pontos mais virulentos do discurso quilombista: a denúncia do
23Esse argumento também é utilizado por Macedo, quando trata sobre as conseqüências dos estudos da UNESCO
para o cenário do debate racial no país. Ver Macedo 2005.
genocídio >ísico e cultural que estariam sofrendo os negros brasileiros, e a apresentação internacional da
democracia racial como discurso supremacista branco” (Guimarã es, 2005: 166).
Ei importante reforçar que, é atravé s da cultura, que Nascimento forma seu discurso
ideoló gico de ruptura. Como reforçam Macedo, Guimarã es e Barbosa, a ideia de pan-
africanismo nã o era estranha aos intelectuais do TEN nos anos 1940 e 1950, no entanto,
nenhuma referê ncia à africanidade ou afrocentrismo estaria (e poderia) presente no discurso
deles, pelas razõ es já explicitadas. No <inal dos anos 1960, com a mudança da conjuntura, a
ideia de identidade negra mais pró xima de uma perspectiva multicultural começa a tomar
parte no discurso de Nascimento. Ou seja, aquele pan-africanismo cultural e literá rio da
négritude francó fona teria sido assimilado parcialmente pelos intelectuais do TEN, e é essa
proposta de identidade negra que emerge no discurso de Nascimento. Nã o a polı́tica, muito
menos a econô mica.
Ainda culturamente, como veremos nos pró ximos capı́tulos, Nascimento se manifesta
contra a ideia de mestiçagem e critica a democracia racial. A negritude se transforma em
cultura e consciê ncia negras as quais ganham a força ideoló gica da noçã o de “resistê ncia”, que
marcaria a vida do negro na histó ria do paı́s. Ademais, alé m da ideia de o ambiente cultural
ser “ambiente privilegiado” para entender e desenvolver as pautas polı́ticas do autor, é nele
que Nascimento consegue expressar sua produçã o de modo amplo e se posicionar
pessoalmente. Teatro, artes plá sticas e poesia sã o expressõ es artı́sticas que <lorescem també m
nesse momento entre 1966-1968, quando ele começa a engendrar para si uma intervençã o
polı́tica mais ampla. No entanto, aquela ruptura ideoló gica teria de esperar suas experiê ncias
no exterior para orientar seu discurso nos anos subsequentes: cultura negra pan-africanista e
a emergê ncia do conceito de quilombismo. Esse momento será tratado nos pró ximos dois
capı́tulos.
1.3 - Conclusão
Neste capı́tulo, com base na literatura sobre Abdias do Nascimento, abordamos a sua
jornada no perı́odo que precede sua ida para o autoexı́lio. Esse ativista negro, que passara pela
contabilidade, economia, boemia, jornalismo, se “estabiliza” pessoalmente como artista e
ativista negro a partir do estabelecimento do TEN, em 1944. Entre os anos 1940 e 1950, o
grupo formado por intelectuais negros educados, constitui a “frente do ativismo” que
compusera o pacto democrá tico com os setores progressistas da sociedade. Conforme esse
pacto, a ideia de democracia racial girava em torno das possibilidades, por vias democrá ticas,
de inserçã o e inclusã o do negro na sociedade brasileira, bem como da luta contra preconceito
e discriminaçã o racial que o atingiam.
Vimos també m que, na vigê ncia do acordo, o grupo desenvolvera a noçã o de negritude
tomada de empré stimo do movimento francó fono de mesmo nome, que se posicionava como
ala cultural e literá ria do pan-africanismo dos anos 1940. Contudo, a incorporaçã o dessa ideia
pelos intelectuais negros brasileiros em nada destacava crité rios pró prios de africanidade ou
afrocentrismo. Era para eles uma forma de estabelecer, pela diferença, a valorizaçã o dos
negros, por sua cultura, sua subjetividade e sua contribuiçã o, com o objetivo de ampliar a
participaçã o e legitimidade do grupo nos processos de re<lexã o sobre a questã o racial em
curso no perı́odo, assim como de reforçar o vı́nculo com o pacto democrá tico.
Entretanto, o efeito fora contrá rio, em especial pela recepçã o da ideia de negritude por
parte de intelectuais (brancos) que a entendiam como diferenciaçã o de raça. O vı́nculo com a
UNESCO, que tentara construir uma visã o cientı́<ica nos anos 1950 a partir da supressã o da
ideia de raça, em vista dos acontecimentos trá gicos que marcaram a II Guerra Mundial, está na
raiz dessa recepçã o negativa. Por isso os intelectuais negros, que mantiveram e desenvolveram
a noçã o de negritude, acabaram entrando em con<lito com outros “aliados” do pacto, e se inicia
entã o o processo de ruptura polı́tica nos anos 1950 e 1960 em relaçã o a este. Como
explicitamos també m, o Congresso de 1950 é marcado na literatura por ser o momento-chave
dessa incompatibilidade de projetos, desencadeando atritos entre os lados, como a discussã o
<inal em torno da “Declaraçã o dos Cientistas”.
A partir desse contexto, discutimos sucintamente duas noçõ es que orientavam nossa
leitura sobre esse momento de Nascimento, e que teriam conseqü ê ncias diretas sobre dois
planos de sua atuaçã o no autoexı́lio, a saber, sua autoimagem e seu discurso ideoló gico.
As referê ncias sobre a autoimagem puderam ser encontradas, atravé s da contribuiçã o de
Guerreiro Ramos, em vestı́gios de um projeto de intelligentsia negra proposto pelo TEN. Esse
projeto, minoritá rio frente à concepçã o de negritude, mas nã o em valor simbó lico, preconizava
a intençã o dos intelectuais negros de participar do debate racial como produtores de re<lexã o
e conhecimento (knowlegde makers, como aborda Paulina Alberto [2011]), isto é , para alé m da
esfera polı́tica do ativismo. No entanto, como nã o houve compatibilidade em torno da noçã o
de negritude, essa abertura nã o teria vingado, determinando especialmente por parte de
Guerreiro Ramos uma crı́tica ferrenha contra os estudos produzidos nos anos 1950, incluindo
os da UNESCO.
O valor secundá rio desse projeto está na maneira como ele “adentra” o pensamento de
Nascimento: este absorveu as crı́ticas de Guerreiro contra a academia, baseadas na frustraçã o
daquela inserçã o intelectual, transpondo-as para o plano polı́tico. Como enfatizamos, ele era
artista e ativista e é assim que parte para exı́lio, de onde, anos mais tarde, retorna como <igura
legendá ria e intelectual: seriam duas faces simbó licas da sua amplitude e posicionamento de
ativista. Ei preciso ressaltar que, em nenhum momento até essa ocasiã o, prescrevera para si a
identi<icaçã o de intelectual ou de interessado na atividade acadê mica. Contudo, essa imagem
muda durante o autoexı́lio, e acreditamos que fora forjada em face das formas de integraçã o
logradas pelo TEN nos anos 1950. O discurso em torno da amplitude de sua produçã o por
meio do seu ativismo e luta polı́tica, reforça nosso argumento da importâ ncia de abordar esse
projeto de liderança negra .
Em relaçã o ao discurso ideoló gico, <izemos uma explanaçã o sucinta sobre a importâ ncia
da ideia de negritude, como marcador de diferença, para os processos de ruptura polı́tica e
ideoló gica de Nascimento. Politicamente, negritude dá tonalidade do afastamento pela
incompatibilidade dos projetos entre o TEN e os setores do pacto, somada à conjuntura
polı́tica e social do Brasil nos anos 1960 com a emergê ncia do governo militar. Desse ponto de
vista, como bem demonstram Guimarã es (2005) e Macedo (2005), Nascimento rompe com a
ideia de democracia racial - como preconizada no pacto – criticando-a como mito e farsa e
incorporando conceitos de resistê ncia e revolta em seu discurso. Era importante reconstituir
tal ruptura porque, a partir dela, o autor passou a re<letir sobre a cultura negra como sı́mbolo
de resistê ncia e revolta polı́tica, e no autoexı́lio, apresentou disposiçã o ideoló gica para
interlocuçã o e absorçã o do discurso negro internacional. Ademais, a compreensã o dos termos
como ocorreu tal ruptura, isto é , por meio do ambiente cultural, possibilita vislumbrar que
será justamente nessa esfera que Nascimento determinará e desenvolverá seu discurso
ideoló gico nos anos do exterior, e consequentemente, projetará novas concepçõ es como o
conceito de quilombismo.
Exposto esse primeiro balanço, adentraremos o perı́odo do exı́lio de Nascimento, entre
1968 e 1981, sabendo que nosso autor chega aos EUA descrente com a ideia de democracia
racial, crı́tico das supostas igualdade e harmonia raciais brasileiras e, nã o menos importante,
buscando um espaço de atuaçã o para si, pois as chances dentro do ativismo estavam cada vez
mais difı́ceis no contexto polı́tico, social e intelectual brasileiro.
CAPÍTULO 2: NO CONTEXTO DO AUTOEXÍLIO
26Entrevistamos e coletamos informações com as seguintes pessoas: Molefi Asante (Fevereiro de 2010), Anani
Dzidzienyo (Fevereiro de 2010), Kabenguele Munanga (Agosto de 2011), James Green (Agosto de 2011) e Clóvis
Brigagão (Outubro de 2011).
publicadas27 e consulta à s correspondê ncias do autor28. Dividiremos essa seçã o em itens, por
datas, para destacar diversos momentos especı́<icos, bem como pessoas que ele conheceu e
lugares por onde passou.
27Através das biografias, Nascimento, 2006 e Almada, 2009; e também dos detalhes de trajetória presentes em alguns
textos como Nascimento, 1976a, 1982, 1992, 2000.
28 A partir de 3 pastas: Pastas Cartas 1964-1977; Cartas 1969-1975; e Cartas 1968-1989. Acervo Abdias do Nascimento
(IPEAFRO). Agradecemos imensamente a Elisa Larkin-Nascimento por permitir acesso a essas correspondências.
29 Judith Illsley Gleason é autora de diversos livros sobre cultura africana. Dois principais trabalhos são A Recitation of
Ifa, Oracle of the Yoruba, de 1973, e Oya: in Praise of the African Goddess, de 1992. Não conseguimos rastrear as
circunstâncias da amizade entre ambos, mas tudo leva a crer que a relação de Nascimento com Henri Sénghor, e
provavelmente um círculo de africanistas brasileiros e estrangeiros, no qual se inclui Antônio Olinto, deve ter levado os
dois a se conhecerem.
30Depoimento de Abdias do Nascimento, Julho de 2010. O motivo do apartamento estar cheio de quadros e obras
artísticas é que Nascimento guardava com ele todas as obras do Museu de Arte Negra, que teria sido criado naquele
ano - mas sem lugar fixo para manter o material.
31Acreditamos que essa ligação se daria pela colaboração de Nascimento em 1964 à libertação no país do angolano
Lima Azevedo, vinculado ao Movimento Popular pela Libertação de Angola, que tinha relação com a esquerda. Preso e
torturado no Brasil por sua relação com a esquerda brasileira, Lima Azevedo fora solto por intervenção do embaixador
do Senegal, Henri Sénghor, que por vias diplomáticas conseguiu a libertação daquele. Segundo Nascimento, ele próprio
seria considerado embaixador do grupo no Brasil. Todavia, nenhum registro dessa representação fora encontrado na
pesquisa. Outros dois fatos que poderiam ter colaborado para essa pecha de “subversivo” nos IPM são sua participação
em evento no Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no qual falou
sobre tema da negritude, e a “Carta para Dacar”, de 1966, na qual critica o governo brasileiro por endossar a
perspectiva da democracia racial, esta vista como mito e falsa ideologia. O evento foi vetado pela diretoria da
Faculdade, mas ocorreu de forma não-oficial no pátio interno da escola, sob ameaça de repressão policial. Vale
ressaltar também que Nascimento tinha seu nome vinculado politicamente ao PTB, partido do deposto presidente João
Goulart, que caíra na ilegalidade com o golpe militar e tivera seus líderes, como próprio Goulart e Leonel Brizola,
perseguidos pela ditadura.
endurecimento da repressã o direta sofrida por ele nos anos posteriores, como será
demonstrado no decorrer desse capı́tulo.
A instituiçã o que o <inancia, a Fair<ield Foundation (doravante FF), era vinculada à
Famı́lia Fleischmann, milioná rio clã norte-americano do ramo de bebidas. De acordo com
Frances Stonor Saunders (2000), em seu trabalho sobre os investimentos da CIA em
atividades culturais no perı́odo da Guerra Fria, a FF era uma das que recebiam <luxo de
dinheiro da agê ncia norte-americana. Grande parte dos investimentos era voltada para artes,
literatura, programas de pesquisa, intelectuais e artistas e servia de contraponto polı́tico a
possı́veis <iliaçõ es do universo das humanidades com o bloco socialista.
A FF era desde 1952 uma instituiçã o sem <ins lucrativos. De acordo com a brochura de
apresentaçã o da instituiçã o, reproduzia por Saunders, podemos identi<icar seus propó sitos:
“It was formed by a group of private American individuals who are interested in preserving the
cultural heritage of the free world and encouraging the constant expansion and interchange of
knowledge in the >ields of the arts, letters, and sciences. To this end, the Foundation extends >inancial aid
to groups and organizations engaged in the interpreting and publicizing of recent cultural advances and
to groups whose enterprises in literary, artistic or scienti>ic >ields may serve as worthy contributions to
the progress of culture. The Foundation offers assistance to organizations whose programs tend to
strengthen the cultural ties which bind the nations of the world and to reveal to all peoples who share the
traditions of a free culture the inherent dangers which totalitarianism poses to intellectual and cultural
development” (Saunders, 2000: 126). 32
A bolsa de Nascimento se enquadrava no programa “Travel and Study”, estabelecido pela
fundaçã o em 1963, com intençã o de atrair personalidades, intelectuais e artistas de diversas
partes do mundo para desenvolverem projetos pessoais nos Estados Unidos e conhecerem
instituiçõ es culturais do paı́s (Saunders, 2000: 357). Seu presidente na é poca era Frank Platt33
(Saunders, 2000: 422).
Apesar de seus depoimentos e biogra<ias nã o determinarem as datas, há duas cartas
recebidas por Abdias no <inal de setembro e inı́cio de outubro de 1968, informando-lhe a
liberaçã o do dinheiro para as passagens e desejando-lhe sucesso na parada no Mé xico. As
circunstâ ncias dessa estadia també m sã o imprecisas. Ei sabido apenas que o autor passara
pelas cidades de Ciudad de Mé xico e Cuernavaca, onde foi entrevistado por jornalistas locais,
para o jornal “El Heraldo”. Em suas correspondê ncias há contato com um nome apenas,
Manuel Horá cio Gimené z, que era seu amigo.
32Para mais informações sobre FF ver também Coob, R. The Politics of Literary Prestige: Promoting the Latin American
‘Boom’ in the Pages of Mondo Nuevo. IN: A Contra Corriente: A Journal on Social History and Literature in Latin America.
Vol. 5 n. 3, Spring 2008, pp.75-94.
33Nas correspondências de Nascimento, ele aparece, no entanto, como “Diretor Executivo”. As cartas enviadas para
Nascimento são assinadas por ele, que parecia ter uma relação de certa proximidade com Nascimento.
Do Mé xico, Nascimento segue para Nova York, onde deveria permanecer pelos dois
meses da duraçã o da bolsa. Instala-se naquela metró pole justamente quando ocorre a
instauraçã o do Ato Institucional nú mero 5 (AI-5) no Brasil, cerceando ainda mais as
liberdades civis e estabelecendo uma verdadeira perseguiçã o a possı́veis opositores do
governo militar. Apesar disso, neste momento, sua permanê ncia nos Estados Unidos nos
parece mais uma questã o de oportunidades, sugestã o presente em alguns textos da literatura
sobre o autor (Green, 2010; Macedo, 2005; Guimarã es, 2005; Alberto, 2011; Dá vila, 2010).
Como mencionamos, Nascimento tinha IPMs em seu nome e relativa imagem de “subversivo”.
No entanto, nã o havia indı́cios naquele perı́odo - 1968-1969 - de risco de prisã o.
O que <ica explı́cito em sua trajetó ria é que sua imagem de “subversivo” se destaca à
medida que seu discurso ideoló gico e denú ncias sobre racismo no Brasil <icam mais
ostensivos no contexto internacional; isso poderia ter contribuı́do para a apreensã o de seu
passaporte pela Embaixada Brasileira nos Estados Unidos em 1975, quando já havia
participado de duas reuniõ es internacionais sobre questõ es raciais.
Como o autor James Green nos relata, a posiçã o de Nascimento poderia ser considerada
de exilado, pelo valor amplo que a palavra tinha naquele contexto34:
“Há vários tipos de exilados, acho eu, não somente os que fugiram quando receberam noticias que
estavam sendo perseguidos (mandado de prisão, ou ligado a alguém já preso), ou as pessoas banidas, etc.
Considero como autoexílio, pois acho que no caso dele [Nascimento], não existia as possibilidades de
seguir falando sobre as questões raciais, e por isso, quando ele se encontrou nos EUA em 1968 e 1969,
percebia que era melhor >icar. Depois sofreu perseguição nos EUA, justamente porque os militares não
gostaram da maneira que ele e outros criticaram a imagem do Brasil construído pela ditadura”
(Depoimento concedido por Green, Agosto de 2011).
Duas evidê ncias nos indicam que, pelo menos até o inı́cio de sua atuaçã o internacional
nos congressos em que assumiria papel protagonista como denunciador da “falsidade da
democracia racial brasileira”, Nascimento era menos um “inimigo do estado” do que um
ativista e artista buscando novas oportunidades em um paı́s estrangeiro: 1) suas
correspondê ncias com amigos, parentes e aliados polı́ticos no Brasil e 2)uma entrevista, dada
a uma TV brasileira, em 1970, quando estava na Wesleyan University, em Connecticut.
As cartas demonstram que durante praticamente todo o perı́odo entre 1968 e 1981, ele
mantivera contato com o Brasil. Ademais, em nenhum momento até meados da dé cada de
1970, ele menciona sua condiçã o de exilado. Esse discurso só apareceria apó s 1976.
Com o <im de sua bolsa, Abdias do Nascimento se instala em Nova York por alguns
meses. Sua sobrevivê ncia nesse perı́odo dependia da venda de suas pinturas enquanto
buscava contatos na á rea de teatro para se <irmar na cidade. Os rendimentos nã o eram muitos
(ele a<irma em seu depoimento ter enfrentado uma situaçã o <inanceira bastante precá ria),
mas conseguira sobreviver.
Apó s alguns contatos, Nascimento reencontra a famı́lia Bagley, por intermé dio de
Conceiçã o, uma brasileira que trabalhava na casa dos Bagley como domé stica. Ela teria
avistado Nascimento em um teatro no Harlem e comunicado à famı́lia, que o conhecia desde a
é poca do TEN. Em 1945, o casal havia assistido à estreia da peça “Imperador Jones” no Teatro
Municipal do Rio de janeiro. O Sr. Bagley36 era jornalista, correspondente internacional da
Reuters no Brasil nos anos 1940. Eles teriam abrigado Nascimento e o ajudado a se
estabelecer na cidade momentaneamente.
A importâ ncia desse encontro vai alé m da assistê ncia ao brasileiro. O Sr. Bagley era uma
pessoa bem relacionada e atravé s dele, Nascimento ampliou seus contatos pessoais. A pouca
<luê ncia na lı́ngua inglesa fazia com que a presença de outras pessoas nas suas atividades
iniciais nos Estados Unidos lhe fosse importante, como colaboradores nas atividades em
universidades e tradutores de seus textos. Durante a vigê ncia da bolsa, a Fair<ield Foundation
é que auxiliava Nascimento destacando tradutores para sua interaçã o nos eventos.
Por meio dos Bagley, Nascimento conheceu Maximo Soriano37, porto-riquenho, que
muito o ajudou em seus primeiros momentos em Nova York. Outra pessoa foi Angela Gilliam,
35 Na filmagem aparecem seus 4 alunos, e também seu segundo filho, Abdias do Nascimento, Jr. (Bida).
36Abdias do Nascimento não lembrava, em seu depoimento, o nome. Também não conseguimos rastrear pelas cartas,
pois todas mencionavam apenas o nome da esposa, Anne.
37 Segundo algumas cartas, Max Soriano teria intermediado a venda de algumas telas de Nascimento na época.
soció loga negra, que se tornaria sua amiga. Ele ajudou-a na elaboraçã o de sua tese de
doutorado realizada em Union Graduate School (NY)38.
Ainda por in<luê ncia dos Bagley, conheceu o professor Charles Wagley39, de Columbia
University, um grande interessado nas relaçõ es raciais do Brasil. Wagley sensibilizara-se com
Nascimento e conseguira-lhe uma bolsa de estudos em Columbia University para estudar
inglê s, alé m de ajudá -lo <inanceiramente comprando um de seus quadros por U$$ 1000,00
(mil dó lares).
38A tese, defendida em 1975, era: Language Attitudes, Ethnicity and Class in São Paulo and Salvador da Bahia, Brazil.
40No Anexo II listamos as exposições realizadas por Nascimento em todo o período. Também anexamos (Anexo III)
algumas das telas pintadas. Discutiremos no próximo capítulo alguns pontos relativos à produção artística de
Nascimento no autoexílio, que se constitui de pinturas, poesias e peças.
Em 1969, foi convidado para realizar seminá rios na á rea de artes e teatro na Yale School
of Drama. Esse convite parece ter relaçã o direta com a Fair<ield Foundation, que tinha em sua
diretoria membros ligados à quela Escola, como o pró prio Frank Platt. Nascimento <ica como
visiting lecturer durante o Fall Semester de 1969, quando dividiria “com estudantes e
professores minha experiê ncia do Teatro Experimental do Negro, e expondo minha pintura na
galeria da School of Art and Architecture da Yale University”42. Segundo seus relatos, nessa
ocasiã o, fora ajudado nas traduçõ es por uma estudante negra chamada Pamela Jones43.
Em 1970, o professor Kark Scheibe, do Centro de Humanidades dessa Universidade,
convida Nascimento a ser visiting fellowship de Wesleyan University, em Connecticut, onde foi
um dos responsá veis pelo seminá rio denominado “A Humanidade em Revolta”. Com duraçã o
de um ano, esse evento contou com a presença de destacadas <iguras da é poca, como
Buckminster Fuller, Norman Mailer, Norman O. Brown, John Cage e Leslie Fiedler44. Na
Wesleyan també m fora tutor pedagó gico de quatro alunos, interessados em literatura
brasileira.
No <inal desse perı́odo é convidado para ser professor na State University of New York
em Buffalo, onde assumiria o cargo no inı́cio do ano acadê mico de 1971-1972.
Apesar de assumir o posto de professor titular na instituiçã o, ele nã o era “cobrado” a
produzir nos moldes acadê micos clá ssicos. Entretanto, atuou de acordo de acordo com esse
modelo de ensino, ou seja, mesmo nã o sujeito à competiçã o entre os docentes da á rea,
incorporaria em seus escritos a forma de produçã o acadê mica americana.
Como será abordado no pró ximo capı́tulo, Nascimento constró i um discurso ideoló gico
fundamentado nã o apenas nas ideias e pautas polı́ticas que carregava desde os anos 1960,
45Entrevistaem julho de 2010. Elisa Larkin-Nascimento apontara que esse departamento estava burocraticamente
vinculado ao Departamento de Estudos Americanos, coordenado por Larry Teson, e não ao Departamento de Estudos
Afro-Americanos. Essa abertura para órgãos marginais, antes expressados apenas na militância política e que
ganhariam espaço institucional nas universidades norte-americanas, é uma sugestão que aparece em bell hooks.
Infelizmente não desenvolveremos muito aqui essa hipótese, por conta de espaço e da necessidade de uma pesquisa
mais extensiva com outros personagens que não apenas Nascimento.
46Pouca informação conseguimos levantar sobre Pábon. Segundo Larkin-Nascimento, era cineasta negro porto-
riquenho, radicado nos EUA. Ele também fora seu orientador no mestrado, que resultou no livro Pan-Africanism in South
America, publicado nos EUA e no Brasil em 1981. Cf. Larkin-Nascimento, 1981.
47Apesar de buscar tanto nos EUA quanto no acervo de Nascimento no RJ, não consegui encontrar os programas
(syllabus) desses cursos para explorar o conteúdo ensinado. As informações que temos, especialmente pela entrevista
de Julho de 2010, é que as aulas eram proferidas em espanhol e português, e alguns termos eram traduzidos em sala
por alunos com conhecimento em português.
mas també m em diversos autores e intelectuais, brasileiros e estrangeiros, o que denota sua
intençã o de desenvolver um discurso para alé m de sua retó rica polı́tica. Ao assimilar esse
modo de produçã o, ele corrobora para a reconstruçã o de sua imagem, produzindo um
discurso polı́tico em moldes acadê micos, para um pú blico receptor desses modelos - como
intelectuais africanos e norte-americanos dos congressos, muitos dos quais vinculados ao
exercı́cio acadê mico.
Outro ponto que colaborou para seu estabelecimento na academia foram as relaçõ es
pessoais. Alé m de lhe possibilitarem um trâ nsito social , elas o ajudaram na atividade bá sica
de traduçã o, seja oral em comunicaçõ es, seja em seus textos e cartas. Fora de SUNY, mas ainda
em Buffalo, Nascimento també m mantivera um cı́rculo de colaboradores e tradutores, como
Peter Lownds, que em 1976 traduziria Sortilégio48, e Angela Gilliam. Em Wesleyan, no
seminá rio “A Humanidade em Revolta”, foi auxiliado pelo irmã o de Karl Scheibe, Stephen
Scheibe. Até 1976, ano em que se casa com Elisa Larkin, esses tradutores foram fundamentais
nas atividades de Nascimento.
Alé m dos colaboradores, havia as pessoas mais pró ximas, as amizades. Entre elas estã o
o professor e escritor Dr. Mole<i K. Asante, a escritora e coreó grafa Kariamu Welsh (ambos
criadores do Museu de Artes e Antiguidades Africanas e Afro-Americanas de Buffalo), a
escritora Sô nia Sanchez, Karl Scheibe, Maria Helena Mocloy (també m tradutora), Joan Dassin e
John Henrik Clarke49. Por correspondê ncia, Nascimento també m mantivera contato constante
com o Brasil, destacando-se pessoas como Sebastiã o Rodrigues Alves, Efrain Tomá s Bó ,
Gerado Mello Mourã o, Leocá dia Ferreira de Castro, Paulo Pereira, Antô nio Olinto Zora Seljan,
Sebastiã o Januá rio, Eduardo de Oliveira e Oliveira (soció logo), Eduardo de Oliveira, Orlando
Fernandes e Mirna Gezich (ambos do IPCN), entre outros, que o mantinham informado dos
rumos do paı́s. Nessas cartas percebe-se nitidamente a mudança de “ares”, cada vez mais
repressivos entre o <inal dos anos 1960 e meados de 1970.
48Informação obtida na entrevista de Julho de 2010. A publicação da versão em inglês de Sortilégio ocorre apenas em
1978, pela Third World Press de Chicago. Cf. Nascimento, 1978.
49 Essas pessoas aparecem nas correspondências do período. Cartas 1969-1975, Acervo Abdias do Nascimento
(IPEAFRO).
A troca de correspondê ncia com Guerreiro era assı́dua. Parece que nã o chegaram a se
encontrar muitas vezes, mas o soció logo baiano, estabelecido nos EUA desde 1964, dava
suporte e apoio ao amigo, bem como chegou a escrever pró logos para seus catá logos de
exposiçõ es. Cló vis Brigagã o seria o contato essencial para incluir Nascimento no projeto
“Memó rias do Exı́lio”, entre 1974 e 1976, e també m posteriormente, em 1977, foi quem o
apresentara a Leonel Brizola .
Indubitavelmente a principal pessoa que fez parte da trajetó ria de Nascimento nesse
perı́odo foi Elisa Larkin. Nascimento a conheceu em 1974, quando ela era aluna de pó s
graduaçã o no Departamento de Estudos Porto Riquenhos. Elisa era bem mais jovem e tinha
um histó rico vinculado à militâ ncia nos direitos humanos de imigrantes e presidiá rios.
Egressa de Princeton, sabia espanhol e portuguê s (tinha visitado o Brasil quando adolescente)
e tinha retornado a sua cidade natal, Buffalo, onde trabalhava com direitos humanos e
ambientalismo.
O perı́odo entre 1974 e 1981 pode ser analisado sob trê s perspectivas: (1) aumento de
sua produçã o, (2) presença nos fó runs internacionais e (3) determinaçã o de um discurso
ideoló gico mais radicalizado sobre sua situaçã o, tida como de “autoexı́lio”. Destacam-se os
anos de 1976 e 1978, entre os quais Nascimento teria um “pico de experiê ncias” em sua
trajetó ria internacional. Publicaçõ es, viagens, perı́odo na Nigé ria e o FESTAC 77 marcariam
esse momento, decisivo para a construçã o das suas memó rias no exterior.
Até 1976, alé m das exposiçõ es, Nascimento apenas compusera um artigo sobre cultura
afro-brasileira (Nascimento, 1972) e reeditara outro escrito em 1967 sobre TEN (Nascimento,
1971). Sua produçã o literá ria <loresce a partir de entã o impulsionada por dois fatores:
presença nos congressos internacionais e a colaboraçã o de Elisa Larkin.
Nesse perı́odo, a produçã o anterior e sua trajetó ria passam por uma releitura. Em 1979,
reedita a peça Sortilégio escrita em 1951, para uma versã o II, incluindo mais elementos
culturais de seu discurso ideoló gico. Desse modo, como parte da formaçã o de sua imagem,
Nascimento constró i um “cı́rculo hermé tico” em torno de sua produçã o incluindo seus textos
polı́ticos, suas pinturas e a peça como produtos de um sentido ú nico: seu ativismo pan-
africanista em prol do resgate da cultura negra.
A importâ ncia de Elisa Larkin para a produçã o das obras é seminal: foi esposa,
companheira e tradutora das obras de Nascimento, permitindo que suas ideias chegassem a
um pú blico nã o-leitor de portuguê s. Ela també m teria papel fundamental para endossar a
<igura do autor naquele perı́odo, seja na produçã o de textos pró prios (como o livro Pan-
Africanismo na América do Sul), seja nas atividades apó s o retorno ao Brasil envolvendo o
Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO).
Em 1973, Nascimento era um artista negro brasileiro recé m emigrado para os Estados
Unidos e professor titular em SUNY. Em apenas quatro anos, conseguira, pelos seus contatos e
perspicá cia pessoal, dinamizar uma carreira pro<issional em um paı́s novo, aproveitando
oportunidades que nã o tivera em seu paı́s natal. Contudo, as atividades de artista e professor
nã o preenchiam a sua vocaçã o de ativista.
Dessa maneira, buscaria exercer seu ativismo atravé s das possibilidades que lhe surgem:
como professor e artista, começa a participar de eventos e palestras em territó rio norte-
americano, nos quais fala sobre a questã o do negro no Brasil, e depois, de eventos
internacionais. De acordo com os depoimentos e biogra<ias de Nascimento, nã o se tem ao
certo quem o teria conduzido para essas possibilidades. A ú nica referê ncia encontrada é a
ocorrê ncia de um encontro pessoal com C. L. R. James, em 1973 em Washington D.C., em que
Nascimento fora convidado para a Conferê ncia preparató ria do VI Congresso Pan-Africano.
Acredita-se que sua atuaçã o de professor universitá rio lhe teria rendido oportunidades e
status necessá rios para participar desses fó runs.
Na Conferê ncia Preparató ria do VI Congresso Pan-Africano, o qual ocorreria no ano
seguinte em Dacar, conhece Carlos Moore53 e a viú va de Marcus Garvey, Amy Jacques Garvey. O
Congresso é marcado por uma dissidê ncia interna por parte de C.L.R. James e dos intelectuais
negros de esquerda em relaçã o à s crı́ticas sobre os regimes de alguns estados africanos que
tendiam à ditadura.
Ademais, nesse ano de 1976, vai para a Universidade de Ife, no Depto de Lı́nguas
Africanas e Literaturas como profesor visitante onde permanece durante o ano acadê mico de
1976-1977, e alé m de participar de seminá rios57, peregrina por lugares sagrados da cultura
53Intelectual negro de origem cubana, ex-patriado deste país após o regime comunista de Fidel Castro iniciar
perseguição política aos grupos do protesto negro. Segue carreira acadêmica nos Estados Unidos, Europa, e
atualmente se encontra radicado no Brasil. Possui, em sua formação influenciada por Cheik Anta Diop, uma posição
mais radical acerca da questão racial, defendendo a ideia de que o racismo contra o negro embasa as relações sociais
entre grupos desde a Antiguidade. Ver Moore, 2007.
57Parte dos papers apresentados nestes seminários são publicados em Mixture (Nascimento, 1979). Como podemos
perceber, eles contém fragmentos de papers dos congressos que Nascimento frequentara.
religiosa ioruba, como as cidades de Oshogbo e Oyo. Conhece ainda outros paı́ses do
continente, como Uganda, Guiné Bissau, Angola e Gana.
Sua presença no continente africano se reveste de grande valor simbó lico, pois, a par
dos estudos de intelectuais pan-africanistas, marca o inı́cio do perı́odo de 1976 a 1978, o qual
lhe determinará uma reviravolta no exterior. Atravé s das teorias pan-africanistas e
afrocê ntricas, Nascimento aprofunda sua visã o sobre cultura negra como parte de um legado
transnacional da diá spora. També m, ao vincular o que escreve e o que pensa de si, começa a
entender (e divulgar) sua situaçã o de “estrangeiro”.
Esse exercı́cio retó rico de autoidenti<icaçã o aparece pela primeira vez em seu
depoimento para o livro Memórias do Exílio, de 1976, parte de um projeto organizado por
Pedro Uchoa Cavalcanti e Jovelino Ramos, para divulgar as experiê ncias dos exilados
brasileiros de diversas origens em diversos paı́ses. Nascimento teria sido convidado por Cló vis
Brigagã o, um dos colaboradores do projeto58, a ser “patrocinador”, pois precisavam de pessoas
de prestı́gio para atrair a atençã o sobre o mesmo. Desse modo, Nascimento, Paulo Freire e
Nelson Werneck Sodré sã o os “patrocinadores”59; o investimento viera por parte da Fundaçã o
Ford. No depoimento, Nascimento postula a si mesmo a condiçã o de “autoexilado”, a partir de
uma perspectiva estrutural e nã o contextual, como de outros exilados brasileiros, por ser um
negro fora da Ai frica. A ideia de “já nasci no exı́lio” busca uma identi<icaçã o com o discurso
internacional pan-africanista. Ao mesmo tempo, por participar do projeto, acaba criando um
vı́nculo com outros exilados brasileiros, sendo, portanto, considerado “um deles”.
58Em depoimento, Brigagão afirma que não teve seu nome assinado no livro, pois na época estava em condição legal
no exterior, como estudante de pós-graduação em Chicago.
59O termo “patrocinadores” aparece nas memórias de Clóvis e no livro de Green. Em uma carta, enviada para a
Fundação Ford por Rubens Fernandes, outro colaborador, o nome de Nascimento aparece como “Diretor”. Cartas
1969-1975, Acervo Abdias do Nascimento (IPEAFRO).
Contudo, os fatos desse Festival levam-no a rever suas posiçõ es. A priori o autor recebeu
um convite da UNESCO, ainda em 197460, para escrever um ensaio sobre as in<luê ncias da
cultura africana no Brasil. Escreveu-o e enviou-o para a instituiçã o em 1975, intitulado
In>luences of African Culture in Development of Brazilian Art (Nascimento, 1976b). Pois bem,
como descreve no livro-memó ria do evento, Sitiado em Lagos, movimentaçõ es polı́ticas por
trá s do Festival, entre 1975 e 1976, teriam deixado as Naçõ es Unidas e a UNESCO fora da
organizaçã o do mesmo e dado preferê ncia a entidades governamentais, “delegaçõ es
representantes o<iciais do governo” (Nascimento, 1981).
Nascimento submeteu entã o outro texto, já a versã o que está reproduzida em Racial
Democracy. Nã o sabemos o motivo especı́<ico da troca; entretanto, esse material, de teor mais
agressivo, teria passado pelo “censor” e sido veementemente repudiado pelo seu conteú do
contra a ideia de democracia racial por força da in<luê ncia do corpo diplomá tico brasileiro na
Nigé ria. Tudo indica que Nascimento pleiteara a condiçã o de “delegado o<icial” representando
o Brasil, como ocorrera nos dois outros congressos de 1974 e 1976, poré m nã o fora atendido.
60 Consultamos esse convite nas correspondências do autor. Cartas 1969-1975, Acervo Abdias do Nascimento
(IPEAFRO).
A partir da divulgaçã o desse material e da cobertura da mı́dia sobre o fato (favorá vel a
Nascimento), o corpo diplomá tico brasileiro, junto à sua delegaçã o, trava uma batalha para
evitar ainda mais exposiçã o do autor a questionamentos da imagem do paı́s como uma
democracia racial. O resultado fora uma situaçã o de “saia justa” para a delegaçã o brasileira,
que se viu pressionada pelos membros do grupo a dar satisfaçõ es em relaçã o à denú ncia de
Nascimento. Assim, com o apoio da delegaçã o norte-americana e de intelectuais africanos
como Wole Soyinka, ele consegue espaço para falar e incluir nas recomendaçõ es <inais uma
solicitaçã o de estudos da realidade racial no Brasil.
A vitó ria simbó lica de Nascimento nesse Festival lhe converte o apoio dos intelectuais
pan-africanistas e da diá spora, como os norte-americanos e lhe permite rever sua situaçã o no
exterior em relaçã o ao Brasil: ele nã o era “apenas” um ativista internacional representando a
“voz negra brasileira” nos fó runs internacionais; era també m, como <icava claro, uma “vı́tima
da perseguiçã o polı́tica” do governo militar brasileiro, por suas crı́ticas sobre o mito da
democracia racial, que atentavam contra a imagen externa do paı́s.
Como nos informa James Green, para o governo militar, a imagem externa do Brasil
assegurava o paı́s diante da plateia internacional. Denú ncias contra a realidade de repressã o,
63 Segundo descreve Dávila, a delegação oficial brasileira tinha cerca de 40 pessoas, entre músicos, artistas,
intelectuais entre outros (Dávila, 2010: 232). É interessante notar que dois ex-exilados, Gilberto Gil e Caetano Veloso,
compunham também essa delegação oficial, conforme relembra Nascimento.
de censura e sobre a questã o racial eram altamente indesejadas e acompanhadas com a<inco
pelo corpo diplomá tico. Contudo, em 1977, o regime já estava em processo de diluiçã o, já
havia uma certa abertura polı́tica, e consequentemente Nascimento nã o sofreria mais
represá lias ou perseguiçõ es para alé m desse episó dio64 na Nigé ria.
A importâ ncia desse episó dio se re<lete em sua produçã o e autoimagem. Alé m de uma
ediçã o em portuguê s de Racial Democracy, edita o livro Genocídio e investe també m em
coletâ neas, narrando sua trajetó ria naqueles anos. Era, simbolicamente, como se aquele
evento tivesse consagrado sua importâ ncia e imagem de lı́der do protesto negro em escala
internacional.
Em 1977, Nascimento participa do I Congresso das Culturas Negras nas Amé ricas,
realizado em Cali, Colô mbia. Alé m de orador, compõ e os quadros organizadores do evento. De
certa forma, essa distinçã o mostra que ele estava “colhendo” os frutos do FESTAC 77. Inclusive,
o tema de sua intervençã o é a “Polı́tica Internacional Brasileira” e a etnicidade afro-brasileira,
denotando que as experiê ncias recentes lhe impunham a necessidade de re<letir sobre o papel
da polı́tica externa na veiculaçã o da imagem de democracia racial65.
Alé m da organizaçã o de coletâ neas, que re<letiriam a “linearidade” de seu ativismo
internacional, o autor també m se engaja na re<lexã o mais sistematizada sobre cultura negra e
realidade do negro no Brasil, dando origem ao quilombismo, conceito criado por ele como uma
proposta polı́tica para a organizaçã o social, o qual seria uma “coroaçã o” de sua trajetó ria no
exterior.
Esse conceito fora apresentado pela primeira vez66 no II Congresso das Culturas Negras,
em 1980 no Panamá e aparece no livro-coletâ nea que leva o mesmo nome, publicado no
mesmo ano. O tı́tulo extenso: “Quilombismo: um conceito cientí>ico emergente do processo
histórico-cultural das massas afro-brasileiras”67 explica a pretensã o de Nascimento com esse
artigo. Na nossa percepçã o, o conceito de quilombismo representa o momento intelectual
64Nascimento conta que, em 1978, teve tanto a entrada quanto a saída dificultadas pela polícia federal no aeroporto;
parte porque desde 1975, viaja com um salvo-conduto e não possuía passaporte. No Arquivo Nacional há dois
documentos oficiais em nome de Nascimento, um datado de 1977 e outro de 1978. Entramos em processo para reaver
esses documentos, mas até agora não obtivemos retorno (Outubro/2011).
65Título do paper é “Afro-Brazilian Ethnicity and International Policy”, e está reproduzido em Mixture (Nascimento, 1979)
e O Quilombismo (Nascimento, 1980).
66Há menção a ele, no mesmo ano, em discurso que Nascimento faz em Washington, para a Câmara dos Deputados.
No entanto, não se configura no sentido adquirido pelo artigo apresentado no Congresso no Panamá. Esse address
aparece publicado e traduzido na 2a edição de “O Negro Revoltado” (1982), como um dos apêndices do prefácio da
edição. ver Nascimento, 1982.
67Nascimento, 2002b (1980). Trataremos no próximo capítulo desse conceito, de forma analítica. Aqui vamos apenas
situa-lo na trajetória de Nascimento.
chave de suas experiê ncias no autoexı́lio, haja vista o modo como ele o desenvolve e o publica:
tudo levaria para a agregaçã o <inal no conceito de quilombismo, que, no entanto, teve pouca
recepçã o como força ideoló gica.
Alé m dos novos ativistas negros nã o o terem endossado - a força do discurso de
Nascimento para esse pú blico residiria no Genocídio, assim como para o pú blico externo, no
Racial Democracy -, o Quilombismo acaba se tornando uma “corruptela” para as pautas que o
autor propõ e na carta-programa de Leonel Brizola. Nesse sentido, o “socialismo moreno” do
PDT incorporaria a ideia de quilombismo de modo descaracterizado, apenas como valor de
“real integraçã o e democracia social dos negros”. Aquele “conceito cientı́<ico emergente”,
portanto, fora criado mas nã o causara grande impacto na trajetó ria intelectual do autor, em
termos de recepçã o ou valor simbó lico.
De todo modo, o conjunto das obras a partir de 1976 demonstra uma imagem de
Nascimento para alé m de sua <igura de artista, conforme havia chegado aos Estados Unidos
em 1968. Atravé s delas, ele expressa sua condiçã o de ativista internacional e , pela recepçã o
do pú blico dos congressos e das redes nos Estados Unidos, passa a ser visto como “intelectual
negro”. Ei importante ressaltar que tal imagem é estritamente polı́tica e re<lete, por parte de
seus interlocutores, a percepçã o de “pensador e ativista orgâ nico que produz re<lexã o sobre
questõ es raciais do Brasil”, fundamentada na reconstituiçã o da histó ria do paı́s, como aparece
nos textos de Nascimento do perı́odo.
Mole<i Asante, em seu depoimento, ilustra essa percepçã o. Para Asante, Nascimento era
uma “representaçã o privilegiada de intelectual total”68, pela amplitude como manifestava sua
ideologia e pela contribuiçã o para a questã o negra na diá spora. Outro intelectual que tivera
contato com Nascimento, Anani Dzidzienyo, segue a mesma linha em seu depoimento, ao
preconizar que o autor era uma “metá fora da experiê ncia afro-brasileira na diá spora”69, na
qual Ai frica é ponto má ximo da identidade, e que, como “porta voz dos grupos negros
brasileiros”, coloca o Brasil no cená rio da dispersã o negra.
Essas falas sã o importantes porque ilustram uma construçã o de valor feita
paulatinamente durante esses treze anos no exterior. Como temos mostrado nesse item, a
presença de Nascimento nos congressos, sua produçã o polı́tica, o enfrentamento com o
governo brasileiro em 1977 dã o a tô nica de um conjunto ú nico e linear: sua trajetó ria como
ativista. Nesse sentido, o modo como ele expressa sua pró pria imagem a partir da
incorporaçã o de novos elementos, sejam os teó ricos, sejam as atividades, denota a percepçã o
Como a<irma James Green , “o ato de exilar-se, de mudar-se para um paı́s estrangeiro, e
os desa<ios da adaptaçã o a um paı́s, lı́ngua e cultura novos podem ser uma experiê ncia
traumá tica. També m pode abrir novas possibilidades de trabalho polı́tico, aperfeiçoamento
pessoal e desenvolvimento pro<issional” (Green, 2009: 240). Com certeza, para Abdias do
Nascimento, foi tudo isso...
Dentro do debate sobre a questã o racial, altamente agressivo, havia in<luê ncias explı́citas
desse modelo interno-externo. O discurso pelos direitos civis, a contestaçã o do regime do
apartheid na Ai frica do Sul e o apoio à s lutas pela libertaçã o dos paı́ses do continente africano
mesclavam ideologias formadoras de um discurso negro ora nacionalista ora
transnacionalizado. O transnacionalismo se referia a identidades que focavam politicamente
os aspectos da interaçã o racial do negro fora do continente africano para alé m dos contextos
locais.
Para entender a conformaçã o de alguns grupos é necessá rio voltar um pouco atrá s, na
histó ria do Movimento de Libertaçã o Negra, o qual, em suas etapas, foi responsá vel pela
linguagem polı́tica desenvolvida nos anos 1960 e 1970, e pela garantia dos direitos civis aos
negros nos EUA, trazendo outras oportunidades de inserçã o, como as polı́ticas de açõ es
a<irmativas.
Os autores Marable e Mullings (2000), em livro que traz uma antologia do protesto negro
norte-americano em seus momentos de revolta, resistê ncia e renovaçã o, traçam um panorama
dessa construçã o polı́tica do perı́odo. O movimento de libertaçã o negra nos EUA, com sua
concentraçã o de protestos entre anos 1950 e 1960, pode ser caracterizado em dois
momentos: o boicote ao transporte pú blico de ô nibus em Montgomery, em 1954, e a marcha
de Meredith, no Mississippi, em 1966. A composiçã o polı́tica e ideoló gica era muito diversa
nesse momento e promoveu certas coalizõ es em situaçõ es importantes, mas explicitava alguns
con<litos de diretrizes e caminhos apontados.
Segundo os autores, uma very broad-based united front (frente unida de grande
amplitude) tinha a polı́tica e a ideologia menos de<inidas pelas personalidades do que pelas
composiçõ es racial e social de seus apoiadores inseridos na coalizã o popular. Essa ampla
composiçã o era formada pelas alas moderadas (conservative wing), centristas e esquerdistas
(left wing).
Os moderados eram representados pela Associaçã o Nacional pelo Avanço do Povo de Cor
(National Association for the Advancement of Colored People - NAACP) e pela Liga Urbana da
Naçã o (Nation Urban League - NUL), sendo a primeira a de maior destaque. A NAACP, criada
em 1909 pelo Movimento de Niá gara, congregava alguns dos intelectuais negros da é poca,
como W. E. B. Du Bois e Ida B. Wells e alguns intelectuais brancos sensı́veis à causa (em grande
parte de origem judaica). Seu principal mote era a erradicaçã o do racismo contra os negros e
contra qualquer grupo minoritá rio nos EUA e a instituiçã o de direitos iguais para toda
populaçã o norte-americana. Basicamente, era uma associaçã o coordenada e dirigida por
indivı́duos com prestı́gio pú blico e pro<issional e desse modo continha em sua ideologia certo
elitismo que orientava suas posiçõ es. A ideia de integraçã o era fundamental para esse grupo
de conservadores cujo argumento era a necessidade de situar os interesses e objetivos do
movimento de desagregaçã o em um contexto que fosse aceitá vel pelo establishment branco
liberal, pelas corporaçõ es e pelo Partido Democrá tico. Essa visã o integracionista como
caminho polı́tico dava base a uma ideia de “anulamento da cor” (color blindness) (Marable &
Mullings, 2000: 369).
Ainda de acordo com os autores, apesar de esta visã o polı́tica integrar os negros sob uma
perspectiva reformista, trazia um paradoxo em relaçã o à discussã o racial. Ao mesmo tempo
em que os moderados pretendiam suprimir a noçã o de raça como uma categoria social de
signi<icâ ncia, ou seja, que era levada em conta para discriminaçã o do negro e outros grupos
minoritá rios, també m precisavam de tal noçã o para formulaçã o de polı́ticas pú blicas de
integraçã o. Essa contradiçã o parecia reduzida à crença do grupo de que, assim que a lei
segregacionista Jim Crow fosse desmantelada, a populaçã o norte-americana iria apoiar tais
reformas raciais sem grande reaçã o polı́tica.
A negaçã o do cará ter reformista proposto pelas alas conservadora e centrista ganha peso
no discurso negro dos anos 1960 a partir do surgimento da ala “esquerda”, cuja origem está na
representaçã o polı́tica do Comitê de Coordenaçã o de Estudantes pela Nã o-Violê ncia (Student
Non-Violent Coordinating Committee - SNCC). Atravé s de protesto e açã o de massas, a ala
esquerda se posicionaria como “transformacionista”. Ou seja, seus componentes eram
intensamente crı́ticos dos sistemas social e econô mico que seriam responsá veis pela
perpetuaçã o da desigualdade racial. Para esse grupo, a integraçã o do negro era um meio e nã o
um <im, para a realizaçã o da libertaçã o negra.
71Malcolm X rompeu com o Nação do Islã em 1964, devido conflitos internos com Elijah Muhammad, líder da
organização. Foi assassinado em 1965, segundo historiadores, a mando da própria organização. Grande parte de suas
ideias fora absorvida por grupos simpatizantes da ideologia do Nacionalismo Negro, como Movimento pelo Poder Negro
(Black Power Movement). Cf. Breitman, 1990, Haley, 1982 e Marable, 2011.
tinham esgotado sua incapacidade e interesse em desmantelar o racismo e, desse modo, seria
mais profı́cuo para os Afro-americanos se concentrarem na construçã o de uma naçã o pró pria,
separada da dos brancos. Essa radicalizaçã o perderia posiçã o diante dos outros grupos, como
o SCLC de Dr. King, que conseguira maior legitimaçã o social no momento de coexistê ncia, por
seus pressupostos de integraçã o e assimilaçã o.
Simultaneamente, na costa oeste, surgia o Partido dos Panteras Negras pela Auto Defesa
(Black Panther Party for Self Defense), com uma postura de reaçã o armada contra o racismo,
que deveria ser combatido de forma truculenta. Os ataques, poré m, seriam a algumas pessoas
e instituiçõ es que propagavam a discriminaçã o, e nã o a todos os brancos. Esse grupo, que nã o
tinha a prerrogativa de separaçã o , foi fundado em 1966 por Huey P. Newton e Bobby Seale e
marca a incorporaçã o de um discurso marxista como base de seu programa de açã o. O Partido
tivera um amplo nú mero de a<iliados (cerca de 5000 pessoas) e se espalhou pelo paı́s em
diversas sedes, determinando a emergê ncia de outros lı́deres locais como Fred Hampton, em
Chicago. Nã o obstante sua força polı́tica, foi o grupo que mais repressã o sofrera do governo
norte-americano72 devido à sua <iliaçã o marxista e maoı́sta.
A radicalidade do protesto negro parece també m conduzir, a partir da negaçã o das
experiê ncias no â mbito do integracionismo liberal, à absorçã o de novas perspectivas que
intensi<icassem o discurso contra o racismo. O “Poder Negro” substituiu o ideal de integraçã o
liberal por uma noçã o de identidade negra, preconizada como marcador de diferença para a
construçã o de alternativas polı́ticas e sociais que possibilitassem a integraçã o real do
contingente negro. Nesse sentido, uma das ideias que mais apareceram foi a de pan-
africanismo, oriunda de organizaçõ es histó ricas.
72É sabido que, por conta dessa filiação ideológica, dentro do clima de Guerra Fria, os Panteras Negras foram os que
sofreram maior combate e repressão por conta do governo norte-americano, que utilizara de aparatos legais (CIA,
processos judiciais contra seus principais líderes) e ilegais (facilitação para escoamento e tráfico de drogas nos guetos
negros) para desmantelar o grupo. Para mais detalhes sobre a constituição, atuação e desintegração dos Panteras
Negras, ver Joseph, 2006 e Jones, 1998.
Um dos grupos que mais se aproximaram das ideias de pan-africanismo foram os
“Nacionalistas culturais , atravé s do seu Movimento de Artes Negras de Amiri Baraka73 (ex-
LeRoi Jones) e de manifestaçõ es pontuais como as de Maulana Karenga, com o conceito de
“Kwanzaa” de celebraçã o da cultura negra. Construı́ram uma noçã o de identidade negra a
partir do resgate artı́stico e cultural de nomes, roupas, esté ticas, rituais e até de estrutura
familiar. Essa vertente, dentro do “Poder Negro”, foi responsá vel por tentar estabelecer, à sua
maneira, os laços com a Ai frica e denotar a ideia de pertencimento à quela luta impressa no
contexto norte-americano. Dessa vertente, foram construı́dos outros conceitos, como a
afrocentricidade de Mole<i Asante, tributá ria de uma sı́ntese entre o conhecimento produzido
por intelectuais africanos, como Chiekh Anta Diop, e a perspectiva cultural polı́tica norte-
americana de Maulana Karenga.
Primeiramente, seu interesse pela cultura negra , seus vı́nculos com Ai frica e a diá spora
chamaram a atençã o de produtores fora do contexto nacionalista, pois suas pinturas
transmitiam conhecimento sobre cultura negra brasileira para aquele pú blico. Vale notar que
pouco se conhecia sobre a real situaçã o dos negros no Brasil. Somente nesse momento os
primeiros brasilianistas começam a pesquisar essa situaçã o e se informar de uma realidade
diferente da que Gilberto Freyre fornecia em termos de integraçã o racial. Assim, personagens
como Abdias do Nascimento, concebido como artista negro do teatro e das artes, seriam
benquistas para a construçã o dessa ponte entre conhecimento negro nacionalista e
conhecimento diaspó rico.
Outro fato é que nesse perı́odo havia poucos departamentos de estudos afro-americanos
nas universidades de modo que a absorçã o de grande parte dos envolvidos no campo do
ativismo pelo ambiente acadê mico será posterior, durante os anos 1970. Alguns dos
73Amiri Baraka, nascido em 07 de outubro de 1934, anteriormente conhecido como LeRoi Jones, é um escritor
americano de poesia, drama, ficção, ensaios e crítica musical. Amiri Baraka, naquele período dos anos 1960, estava a
frente como liderança do Black Arts Movement, parte do Nacionalismo cultural do Black Power Movement. Ver Marable
& Mullings, 2000, Smethurst, 2006, e Collins & Crawford, 2006.
74Para mais detalhes da vinculação entre artes e protesto negro, ver Collins & Crawford, 2006 e Smethurst, 2005.
intelectuais que estavam à frente dos protestos, como Angela Davis, desenvolviam carreira
acadê mica em departamentos de outras á reas75.
Por defender os direitos sociais e civis dos negros, esse processo polı́tico causou
inserçã o de intelectuais negros naquele cená rio, resultado alcançado pelos protestos do
perı́odo. Como aponta Wright, em trabalho que analisa a produçã o, por esses intelectuais, de
uma esté tica negra pró pria:
“The Black Liberation Movement of the 1950s and 1960s had many successes (…) [as] the ending of
the public, blatant, and violent racism (…), the restoration of the national citizenship and national
political and civil rights of Black people (…) [and] the >irm establishment of the Black middle class as the
leadership class of Black people, and as the class that would, and that had to, carry out the vigilance to
see that Whites did not restore the openly blatant and violent racism that had been strongly eclipsed, as
well as to remain vigilant about and to attack the subtle White racism that had, in the late 1960s,
emerged as the new dominant form of White racism in America, and that has continued ever since (…)
[also] the liberation movement was to publicly catapult Black intellectuals as a sizable, knowledgeable,
capable, and permanent critical group in Black America and the larger American society”76.
Nesse sentido, Nascimento estava no lugar certo e no momento certo. O interesse
daquela sociedade e dos primeiros departamentos de estudos culturais sobre negros e outros
grupos fez com que inú meras personalidades da arte e do ativismo em geral fossem
absorvidas pelas universidades. A agregaçã o, mais simbó lica do que acadê mica, interessava
aos centros de pesquisa para legitimar a produçã o de conhecimento sobre aquelas realidades.
Sua inclusã o nesse contexto demonstra muito isso. O autor nã o fora contratado por um
Departamento de Estudos Afro-Americanos ou de Estudos Africanos, e sim pelo Departamento
de Estudos Porto-Riquenhos. Portanto, sua atuaçã o era mais esperada por sua vinculaçã o com
a Amé rica Latina do que por sua ideologia africana ou negra.
Assim, como artista negro brasileiro, ele representava um interesse especı́<ico pró prio de
uma é poca de mudanças e de novas possibilidades. Sugere-se aqui que nã o é por sua inserçã o
no ativismo norte-americano que se faz a atuaçã o de Nascimento naquele cená rio e sim, pelas
oportunidades surgidas em suas atividades acadê micas e artı́sticas.
Serã o veri<icados a seguir quais os sentidos de pan-africanismo que envolviam o diá logo
de Nascimento com o discurso internacional negro.
75Angela Davis, por exemplo, era professora assistente de Herbert Marcuse no Depto. de Filosofia em Berkeley
University no final dos anos 1960.
A segunda corrente é representada pela açã o de Marcus Garvey78 nos anos 1920 e teve
muita expressã o mundial. O ‘garveı́smo’, tido como o “pan-africanismo messiâ nico”, buscava o
estabelecimento de um bastiã o econô mico, polı́tico e cultural soberano na Ai frica continental
pela constituiçã o e consolidaçã o paralelas de forças polı́ticas e econô micas nacionais na
diá spora das Amé ricas, do Caribe e do Pacı́<ico. Apesar de diversos problemas de concepçã o
ideoló gica e da crença no uso da violê ncia como estraté gia polı́tica, o garveı́smo foi um dos
grandes responsá veis pela difusã o dos ideais de “solidariedade racial” a partir de uma origem
comum, segundo observa Decraene (Ibid: 20). As ideias de Garvey, principalmente as
concernentes à separaçã o entre negros e brancos, embasaram as primeiras manifestaçõ es do
Nacionalismo Negro nos Estados Unidos, in<luenciando discursos de Malcolm X e do
Movimento pelo Poder Negro. També m repercutiram no exterior, como , por exemplo, nas
ideias do psiquiatra e <iló sofo da Martinica, Frantz Fanon, um dos fundadores das teorias pó s-
coloniais.
77Ver excelente trabalho do intelectual negro C. L. R. James, Os Jacobinos Negros. Editora Boitempo, 2004.
A négritude foi a expressã o literá ria do pan-africanismo. Por meio dela, Nascimento teria
adentrado esse universo conceitual, em uma ressigni<icaçã o polı́tica com elementos oriundos
da esfera da cultura. Nesse sentido, como foi tratado no capı́tulo 1, ele absorve as diferenças
sobre a ideia de etnia para compor um discurso ideoló gico em torno da excepcionalidade da
cultura negra.
A interlocuçã o que Nascimento fez com o pan-africanismo foi mais polı́tica do que
teó rica porque sua participaçã o nos congressos e seminá rios no seio do continente africano
nos anos 1970 estava envolvida pelos projetos dos lı́deres e partidos polı́ticos focados na
construçã o de uma Ai frica liberta. E porque ele pretendia inserir as pautas provenientes de sua
re<lexã o sobre o Brasil no contexto internacional. De certo modo, essa nova fase é tributá ria do
5o Congresso Pan-Africano, realizado em 1945 em Manchester (Inglaterra). Ali, alguns futuros
lı́deres da libertaçã o dos paı́ses africanos, como Kwame Nkrumah, Kenyatta, Julius Nyerere
alé m dos teó ricos C. L. R. James, George Padmore, construı́ram um movimento de aproximaçã o
com os ideais de descolonizaçã o. Outro fator que contribuiu para a con<iguraçã o histó rica que
Nascimento encontrou mais tarde foi a Conferê ncia de Bandung, de 1955, a partir da qual,
ocorreu o comprometimento polı́tico e ideoló gico de grande parte dos lı́deres e intelectuais
pan-africanistas com o nã o-alinhamento, ou seja, busca de alternativas polı́ticas que
transcendessem o poder capitalista ou socialista das potê ncias.
Assim, pode-se dizer que o pan-africanismo, cuja as in<luê ncias das teorias pan-
africanistas incidem sobre uma nova perspectiva de cultura negra na ideologia de Nascimento,
foi importante para a determinaçã o de um novo discurso do autor durante seus anos de exı́lio.
Como será visto no pró ximo capı́tulo, Nascimento assimilou essas teorias nos congressos
que frequentara entre 1973 e 1981, cerca de seis eventos internacionais, nos quais as
discussõ es eram consequê ncia dos rumos polı́ticos que o pan-africanismo tomara a partir dos
anos 1960.
2.3 - Contexto Brasileiro: Brasil em África e África em Brasil
Alé m do contexto internacional dos Estados Unidos e de Ai frica, deve-se compreender
també m o que se passava no Brasil enquanto Nascimento estava no exı́lio. A relaçã o
estabelecida com a Ai frica desde os anos 1960 re<letiria muito nas suas experiê ncias nos
congressos em territó rio africano, especialmente o FESTAC 77. Mapeando o que se produzira
internamente sobre a questã o racial e imagem de Ai frica, alé m da emergê ncia dos novos
movimentos negros, pode-se compreender quais relaçõ es Nascimento mantinha com o
discurso proferido aqui e em que medida se diferenciava do mesmo.
Neste sentido, discorrer-se-á sobre dois tó picos do contexto brasileiro: (1) a relaçã o
diplomá tica do Brasil com paı́ses africanos; e (2) a emergê ncia de institutos de pesquisa sobre
Ai frica e cultura negra nos anos 1960 e 1970.
A relaçã o diplomá tica do Brasil, ou melhor, sua polı́tica externa no perı́odo da ditadura
militar, direciona para a ideia pó s anos 1960 de democracia racial. Conforme discutido no
capı́tulo 1, apó s as incompatibilidades entre os projetos dos setores progressistas e os
intelectuais negros em torno do pacto democrá tico, o discurso conservador sobre a
mestiçagem ganhava cada vez mais espaço o<icial. Com o regime ditatorial a partir de 1964, o
debate racial se tornara questã o de segurança nacional, e a imagem do paı́s como um
ambiente harmô nico de interaçã o entre as diversas raças (entendidas super<icialmente como
cultura) ganhava corpo interna e externamente.
Nesse meio tempo, apesar da repressã o contra movimentos sociais ou organizaçõ es
polı́ticas, grupos de pesquisa e institutos surgiram, trazendo o debate sobre Ai frica e a questã o
negra à tona. Desde o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), que surge na Bahia no <inal
dos anos 1950, até o Instituto de Pesquisas de Cultura Negra (IPCN) e o Centro de Estudos
Afro-Asiá ticos (CEAA) no Rio de Janeiro dos anos 1970, o tema identidade negra e relaçã o do
Brasil com o continente africano foi objeto de mobilizaçã o. Nã o obstante o cará ter de pesquisa
e estudos, parte dessas atividades culminaria no novo ativismo polı́tico negro do paı́s, no <inal
dos anos 1970, representado principalmente pelo Movimento Negro Uni<icado.
Esses dois tó picos perpassam a trajetó ria de Nascimento e a sua discussã o sobre a
questã o racial no Brasil. Seja pelo con<lito, como contra a imagem de uma democracia racial,
seja nas alianças e convergê ncias, como ocorre com novos movimentos negros no <inal dos
anos 1970, como será visto a seguir.
a) Brasil na África: política externa brasileira nos anos 1960 e 1970
O governo militar mudaria drasticamente sua posiçã o em relaçã o à Ai frica em termos da
polı́tica externa. Essa mudança, como apontam Dá vila (2010) e Alberto (2011) já começara
nos anos 1950, com a atençã o do corpo diplomá tico brasileiro e de setores do governo para as
possibilidades de expansã o comercial e de in<luê ncia com os primeiros paı́ses recé m libertos
daquele continente, como Gana, Nigé ria e Senegal. Conforme Alberto nos lembra, nã o havia
postos diplomá ticos em Ai frica desde o <inal do trá <ico de escravos (Alberto, 2011: 236).
O livro de Jerry Dá vila, Hotel Tropico: Brazil and the Challenge of African Decolonization,
1950-1980, ilustra bem esse processo. Dá vila busca compreender, a partir da reconstituiçã o
das memó rias e histó rias do corpo diplomá tico brasileiro, como se formou a relaçã o entre
Brasil e paı́ses africanos no auge de sua descolonizaçã o.
O primeiro grupo diplomá tico, denominado pelo autor como “Polı́tica Externa
Independente”, era formado por entusiastas da Ai frica e da sua cultura, conhecidos como
“Amantes da raça africana” e por diplomatas de carreira e foi importante para as relaçõ es
diplomá ticas entre Brasil e Ai frica nos anos de 1961 a 1964. Algumas das <iguras apresentadas
por Dá vila se destacam em relaçã o à proximidade com o autor desta pesquisa. O casal Antô nio
Olinto e Zora Seljan foi protagonista de diversas incursõ es diplomá ticas e intelectuais pelo
Oeste Africano. Olinto foi “cultural attaché ” na Nigé ria e sobre esse paı́s ele e a esposa,
representantes da “ala carioca” das relaçõ es entre Brasil e Ai frica, escreveram memó rias. Zora
Seljan també m participara de modo veemente nessas incursõ es, especialmente por seu
interesse na cultura ioruba e nas religiõ es afro-brasileiras e suas potenciais raı́zes na Ai frica
nigeriana. Esse interesse pode tê -los levado à amizade com Nascimento, da qual encontramos
indı́cios nas correspondê ncias do autor no <inal dos anos 1960.
Dentre os paı́ses de que o autor trata, a Nigé ria é o que mais interessa aqui. A relaçã o
com essa naçã o ilustra o tratamento dado pelo Brasil aos paı́ses africanos. Na perspectiva do
Itamaraty e de seu corpo diplomá tico, os elementos bá sicos da identidade brasileira
perpassavam pelas caracterı́sticas compartilhadas entre raça e etnicidade. Ambas eram
intercambiá veis e serviam para construir um elo de identi<icaçã o com aquele continente, de
modo a obter melhor aproximaçã o e ê xito polı́ticos e econô micos. Nesse argumento
intelectual e polı́tico acerca dos traços que vinculavam o Brasil à Ai frica, a Nigé ria se
diferenciava em relaçã o a outros paı́ses. Como lugar-sede da cultura ioruba, base
predominante da cultura negra brasileira, conforme antropó logos culturalistas já haviam
explicitado desde o inı́cio do sé culo79, é naquele paı́s que os brasileiros ressigni<icaram a
79 Como Nina Rodrigues e Arthur Ramos, nos estudos sobre origem e reminiscências dos elementos culturais de origem
africana.
pró pria relaçã o com o Brasil. Ademais, lá havia um pequeno, mas signi<icativo, contingente de
negros brasileiros ex-patriados no perı́odo da escravidã o, os “agudá s”80
Dessa maneira, o Itamaraty “empregava” intelectuais e artistas interessados em Ai frica,
<inanciando suas viagens e expediçõ es nas quais, invariavelmente, eles tinham papel de
difundir a imagem do paı́s como uma democracia racial. Essa inter-relaçã o, mediada por
interesses mú tuos, determinava a crença desses intelectuais naqueles ideais, mesmo
conscientes da existê ncia de discriminaçã o no Brasil81. A imagem propagada, que rendia a
alguns dos brasileiros que ali transitavam a descriçã o de “amantes da raça africana” (Lovers of
the African race), ia ao encontro dos interesses do corpo diplomá tico. Segundo o autor:
“the title characterized Brazil’s diplomatic approach to Africa and the attitude of many of the white
Brazilian diplomats who took posts in the growing number of Brazilian embassies in West Africa. Nigeria
was a place where Brazilians went temporarily and gained a new perspective on Brazil, and speci>ically
on Brazilian race mixture, the idea of racial democracy, and the sense of an African heritage shared by all
Brazilians. What is more, in the presence of ethnically Brazilian communities in Nigeria and other parts
of West Africa, these Brazilians found evidence that Brazil was African and Africa was Brazilian” (Dá vila,
2010: 69).
Ei també m nesse perı́odo dos anos 1960 que a imagem do Brasil como segunda maior
naçã o de populaçã o negra, depois da Nigé ria, entra em vigor. Vale notar a diferença no modo
como tratavam do assunto a diplomacia brasileira e os intelectuais negros, a exemplo do
pró prio Nascimento. Na perspectiva do Itamaraty, essa identidade era projetada no mesmo
plano super<icial da cultura, com o objetivo de convencer as naçõ es africanas da proximidade
do Brasil com as mesmas, para que o paı́s aparecesse no mercado exterior como o “mais
pró ximo e legı́timo parceiro comercial e polı́tico” daquelas naçõ es. Os intelectuais negros
veiculavam tal imagem à busca por laços culturais em comum com a Ai frica, no sentido de
resgatar a perspectiva pan-africanista. Nascimento, por exemplo, usava essa imagem em seu
discurso ideoló gico demonstrando que o Brasil era parte da diá spora e deveria tomar parte
dela.
Nos setores mais conservadores do Itamaraty, de que faziam parte os embaixadores na
Nigé ria José Osvaldo Meira Penna e Geraldo Hierá clito de Lima, apoiadores do regime militar,
predominava uma noçã o mais super<icial acerca de democracia racial, que nã o deveria
80Há o excelente trabalho de Manuela Carneiro tratando sobre esses brasileiros-africanos. Ver Carneiro, M. C. Negros
Estrangeiros.
81 Há uma observação interessante realizada pelo autor em relação às semelhanças de construção da “semelhança
cultural compartilhada” em relação a outros povos, como portugueses e mesmo japoneses. Tal noção de sameness,
como aponta o autor, parece bastante profícua para refletir sobre a natureza política do conteúdo de cultura, ao mesmo
tempo em que denota a superficialidade com a qual essa noção é ministrada pelos setores da elite (governo,
intelectuais, artistas). Não iremos além na exploração desse ponto, porém ele sugere um interessante tópico de
investigação.
endossar posiçõ es polı́ticas de identidade racial como negritude ou mesmo tomar partido na
defesa dos processos de libertaçã o.
A posiçã o de alguns desses diplomatas ilustrava a mudança entre a atitude externa do
governo populista, de 1961 e 1964, e a do governo militar em relaçã o à polı́tica cultural para a
Ai frica. Ao contrá rio dos entusiastas “amantes da raça africana” que compunham o corpo
diplomá tico do governo de Jâ nio Quadros e Joã o Goulart, a ditadura militar se <irmava pelo
afastamento simbó lico da Ai frica e pela aliança com a ditadura salazarista portuguesa.
A relaçã o paradoxal, e por vezes con<lituosa, com as questõ es polı́ticas africanas
envolvendo a descolonizaçã o, emerge novamente em 1966, diante do Festival Pan-Africano de
Artes e Cultura (FESTAC), realizado em Senegal. Esse evento protagonizou um con<lito entre a
diplomacia senegalense, representada pelo seu embaixador Henri Sé nghor e o governo militar
brasileiro. Diante das possibilidades polı́ticas que circunscreviam o festival, Sè nghor desejava
in<luenciar a composiçã o da delegaçã o brasileira de artistas, pro<issionais e ativistas negros.
Inclusive, teria mantido reuniõ es com esses grupos na Embaixada, com o apoio de intelectuais
interessados em Ai frica como Antô nio Olinto82. Por outro lado, o governo brasileiro, desejoso
de difundir a doutrina da democracia racial, queria compor sua delegaçã o somente de grupos
e indivı́duos apolı́ticos, ou, na mesma proporçã o, “politicamente comprometidos com o ideal
(conservador) de democracia racial”.
Nã o obstante a pressã o de Sé nghor, o governo militar enviara uma delegaçã o “a seu
gosto”, composta de grupos culturais de capoeira, escola de samba, artistas (sem vinculaçã o
com movimentos negros) e de intelectuais marcados por suas posiçõ es favorá veis à
democracia racial, como Raymundo Souza Dantas, Waldir Freitas, Ei dison Carneiro e Clarival
Valladares. Em suma, verdadeiros representantes do discurso do governo sobre a integraçã o
dos valores africanos na cultura brasileira.
Nascimento se posiciona contra a decisã o do governo em nã o incluir representantes do
ativismo negro na comitiva o<icial. Em “Carta para Dacar”, escrita naquele ano, o autor faz uma
crı́tica à democracia racial como ideologia de falsidade, mito, bastante in<luenciada pelas
ideias de Florestan Fernandes. A Carta fora publicada, devido a contatos de Sé nghor, em um
jornal do partido do presidente de Senegal, L’Unité, em francê s. Ganharia també m uma versã o
em inglê s posteriormente publicada no Présence Africaine.
82 Dois fatos que envolvem a trajetória de Nascimento se passariam nesse momento. Primeiramente o TEN seria um
desses grupos negros que comporia, a desejo de Sénghor, a delegação brasileira, objetivo este que fora frustrado. Em
segundo lugar, a amizade entre Nascimento e Olinto, que sugere ter ampliado ali. No acervo de Nascimento, há cartas
trocadas entre os dois durante o período do autoexílio de Nascimento, sugerindo uma relação de amizade e
proximidade entre ambos - incluindo a esposa de Olinto, Zora Seljan. Pasta Cartas 1965-1975, Acervo Abdias do
Nascimento (IPEAFRO).
O conteú do crı́tico da Carta teria recebido forte oposiçã o do corpo diplomá tico e do
governo, pois ela fora publicada internacionalmente, chamando a atençã o da mı́dia externa
para a imagem do paı́s, um dos pontos-chave de defesa e estraté gia do governo em relaçã o à
sua polı́tica externa. O embaixador brasileiro no Senegal Francisco Chermont Lisboa chamara
a atençã o do governo para o conteú do da carta, tomando-a como um “violento ataque fazendo
com que a comunidade externa acredite que o corpo diplomá tico brasileiro estava imbuı́do de
ideias racistas” (Dá vila, 2010: 133). Em 1966, o impacto desse confronto foi reduzido, tanto
para Nascimento quanto para a imagem do Brasil, entretanto, 11 anos depois, esse con<lito é
acirrado novamente.
Durante os anos 1970, a relaçã o comercial e cultural com a Nigé ria cresce devido ao
boom do petró leo que o paı́s vive. Aquela naçã o africana vê sua riqueza interna aumentar em
pouco tempo e o Brasil, de olho no mercado pó s-colonial em Ai frica desde o inı́cio dos anos
1960, vê uma excelente oportunidade para estabelecer relaçõ es comerciais. Naquela é poca, o
embaixador brasileiro no paı́s era Geraldo Hierá clito Lima.
As relaçõ es entre os dois paı́ses baseavam-se principalmente na exportaçã o de bens de
consumo como chuveiros elé tricos, carros e até alimentos (como carne), sob a justi<icativa de
que o Brasil era a naçã o mais apta para o fornecimento de suprimentos, pois tendo um clima
tropical, “entendia as necessidades dos nigerianos”. Nã o durararam muito tempo. Crı́ticas
constantes na mı́dia nigeriana em relaçã o à qualidade dos produtos brasileiros, assim como
certa arbitrariedade e nã o planejamento do governo local em relaçã o à infraestrutura e
impostos, teriam minado esse comé rcio ainda no inı́cio dos anos 1980, o qual só teria piorado
com os problemas polı́ticos que envolveram o corpo diplomá tico brasileiro, principalmente
em torno do FESTAC 77, realizado em Lagos.
Concomitante ao reforço simbó lico que a questã o da democracia racial assumia para o
governo brasileiro, a Nigé ria se preparava para converter seu prestı́gio econô mico dos anos
1970 em in<luê ncia polı́tica, aorealizar com ê xito a segunda ediçã o do FESTAC. O ú nico
incidente polı́tico (para o governo brasileiro) foi a presença de Nascimento, que denunciava
veementemente o racismo e a falsidade da democracia racial no paı́s. Ele conseguira chamar a
atençã o dos presentes para a questã o racial no Brasil, in<luindo nas consideraçõ es <inais do
coló quio. Tudo isso só aumentava as dú vidas e suspeitas dos membros africanos e norte-
americanos do evento, que enxergavam as atitudes do governo brasileiro e sua delegaçã o
como contraditó rias em relaçã o à questã o racial.
O corpo diplomá tico brasileiro teria feito o possı́vel para coibir a participaçã o de
Nascimento, delegando inclusive à comitiva de intelectuais que lhe “respondesse” à altura
qualquer comentá rio ou denú ncia. Os problemas da comitiva brasileira só aumentaram
quando, alé m de divulgar e respaldar a denú ncia dentro do coló quio, a imprensa local dera voz
e cré dito a Nascimento.
Ei importante notar que os caminhos entre a construçã o da imagem internacional do paı́s
pelo governo e a trajetó ria polı́tica de Nascimento se encontram nesse perı́odo. Como
apresentamos acima, a participaçã o no FESTAC 77 foi um dos ressigni<icadores das
experiê ncias de Nascimento em seu exı́lio, marcando o perı́odo de “pico de suas atividades”.
Ademais, as consequê ncias desses incidentes seriam diferentes para os dois lados.
A descon<iança em relaçã o aos verdadeiros interesses do governo brasileiro e a crı́tica
sobre a realidade da democracia racial, bem como o alinhamento recentemente estabelecido
com o paı́s colonizador , Portugal, corroboraram para manchar as relaçõ es diplomá ticas com
a Nigé ria e retiraram as possibilidades do Brasil em vender e efetivar sua imagem como
verdadeiro paı́s da democracia racial.
Para Nascimento, que nã o estava a par de todas as questõ es diplomá ticas entre os dois
paı́ses desde os anos 1960, aquela experiê ncia foi uma “vitó ria” de seu ativismo e contribuiu
para que ele projetasse sua produçã o polı́tica, entrando em uma nova fase, das “obras de
consolidaçã o”, a partir de 1978, a ser abordada no pró ximo capı́tulo.
83Nascimento, por outro lado, conhecia o grupo e o jornal e chega a cita-lo em alguns de seus textos do final dos anos
1970. Nascimento, 1978, 1979, 1980.
obra de Frantz Fanon e no reconhecimento da cultura como instrumento de poder e
resistê ncia à dominaçã o. Mas a semelhança era muito pró xima84. SINBA se posicionava
politicamente rede<inindo a Ai frica como um “front” de revoluçã o e descolonizaçã o, chave para
revigorar a polı́tica negra de oposiçã o no Brasil. Como sugere Alberto,
“This was a different kind of contemporary link to Africa than one envisioned by a previous
generation of scholars and activists in Rio and Bahia. SINBA held that the Africa worth knowing was not
one of diasporic literary and artistic vanguards or of venerable Yoruba ritual practices; rather, it was an
anticolonial, antiracist, and politically charged Africa, one that remained hidden from Brazilian
audiences by the dictatorship state and its heavily censored media (…) SINBA’s editors explicitly imagined
their links with Africa in terms of ‘solidarity with the peoples of black Africa who >ight against white
minority governments”(Alberto, 2011: 263).
A expressã o polı́tica de SINBA dava a tonalidade daquele momento como prá tica dos
novos movimentos negros. As revoluçõ es anticoloniais africanas e os movimentos
antiapartheid, com tendê ncias de esquerda e recorte antirracista, de<iniam o modelo ideal de
ativismo negro no Brasil.
De outro lado havia o IPCN, també m derivado dos encontros do CEAA, mas que tinha
atençã o voltada para pesquisa acadê mica em vez de açã o polı́tica como forma de militâ ncia.
Fundado por Paulo Roberto dos Santos e Carlos Alberto Medeiros, o IPCN tinha em seus
quadros estudantes e pro<issionais de classe mé dia, que divergiam das estraté gias de “massas”
propostas pela SINBA. O IPCN conseguiu agregar cı́rculos diferenciados de militantes, como
Lé a Garcia (ex-TEN) e Milton Gonçalves (ator da Rede Globo), bem como um nú mero maior de
militantes mulheres.
O instituto també m estava à s voltas com o problema de deformaçã o e exploraçã o
comercial da cultura negra e da restriçã o dos espaços de cidadania e integraçã o social do
negro na sociedade, assim como o SINBA. Poré m, considerava que a soluçã o era simbó lica: a
rede<iniçã o da imagem de Ai frica pela qual as formulaçõ es o<iciais de cultura brasileira e
cidadania negra permaneciam. Diferentemente de rejeitar um passado africano de celebraçõ es
da cultura negra como “culturalismo”, os membros do IPCN acreditavam na possibilidade de
in<luir na construçã o de imagens positivas sobre Ai frica e cultura negra, que poderiam
substituir as de<iniçõ es o<iciais de cultura brasileira. Ou seja, havia crença em poderem “ditar
novos parâ metros”.
Apesar das divergê ncias, um ponto que aproximava SINBA e IPCN era a ideia de
“solidariedade racial”. Beatriz do Nascimento, historiadora negra e membro do IPCN, foi uma
das que trabalharam essa questã o da solidariedade racial dentro da temá tica de quilombos,
84Alberto também sugere essa semelhança: “Much like Abdias do Nascimento in his polemic paper for the FESTAC,
then, SINBA writers lamented that African cultural traits had been sequestered as folklore, co-opted by a white dominant
class, stripped of their political content, and deployed in the service of a racist system. African or black culture was no
longer a viable touchstone for racial politics” (Alberto, 2011: 262).
maior objeto de suas pesquisas e escritos. Ei dela, por exemplo, as formulaçõ es correntes
acerca de Quilombo de Palmares como uma metá fora de um autê ntico e descolonizado Brasil
negro. Ainda, a <igura de Zumbi cristalizava a imagem da resistê ncia negra durante a ditadura,
como a de um heró i da libertaçã o cultural e racial, que essa nova geraçã o advogava.
Vale notar que esses grupos, tanto na abordagem polı́tica de SINBA quanto na cultural de
IPCN, inserem a discussã o racial e de identidade negra por meio dos movimentos urbanos
culturais dos anos 1970 de Soul Music e Black Soul, que acompanhavam a construçã o de uma
esté tica negra nutrida pela in<luê ncia do movimento norte-americano homô nimo e que
in<luenciaram a juventude da é poca em relaçã o à valorizaçã o de uma “negritude” (no sentido
de blackness esté tico, nã o da négritude), mas esvaziada de teor polı́tico e de qualquer açã o.
Em Sã o Paulo havia també m o Centro de Cultura e Arte Negra, fundado em 1972 pelo
soció logo Eduardo de Oliveira e Oliveira. O foco do CECAN era pró ximo ao de IPCN, ou seja,
promoçã o da cultura negra, exposiçõ es, conferê ncias e publicaçõ es, como a “Cadernos Negros”
e o “Jornegro”. O CECAN atraı́ra uma nova geraçã o de militantes e pesquisadores negros de Sã o
Paulo, provenientes das universidades. Havia entre aquele contingente uma combinaçã o de
interesse em eventos internacionais relativos ao ativismo negro, como nos EUA e em Ai frica,
com as preocupaçõ es de uma classe mé dia emergente e educada, consciente dos obstá culos
que a discriminaçã o racial impunha a sua ascensã o.
Esses movimentos no <inal dos anos 1970 se coadunaram nas propostas e pautas e
formaram o Movimento Negro Uni<icado Contra a Discriminaçã o Racial (MNUCDR, mais
conhecido como MNU). O MNU teve seu ato simbó lico inaugural em 1978, no centro de Sã o
Paulo com <iguras importantes da intelectualidade negra brasileira, como Lé lia Gonzalez85, e
com o apoio de Abdias do Nascimento.
Convé m resgatar alguns pontos tratados para se compreender melhor com quais
assuntos daquele grande movimento Nascimento convergia, e, ao mesmo tempo, dele se
diferenciava.
Primeiramente a questã o da cultura negra. Nascimento desenvolvia uma noçã o de
cultura como resgate da cultura africana, sı́mbolo de resistê ncia e marca da presença do negro
africano na diá spora durante os anos 1970. Havia a convergê ncia do interesse pela cultura
como locus privilegiado da re<lexã o sobre o negro e identidade negra no Brasil, contudo os
recortes ideoló gicos eram diferenciados.
Para o autor, a noçã o de cultura negra era construı́da pelos marcadores da diferença (da
negritude), com as ideias de resistê ncia e revolta e a incorporaçã o do discurso negro
86No acervo particular do autor encontramos alguns exemplares dos dois jornais. Pasta Jornais/ Revistas - Acervo
Abdias do Nascimento (IPEAFRO).
87 Vale pontuar que, apesar do sobrenome, não há nenhum parentesco entre ambos. Para mais informações sobre a
trajetória desta intelectual negra, ver Ratts, 2009.
2.4 - Conclusão
O “autoexı́lio” de Nascimento é um momento crucial em sua trajetó ria pessoal e
intelectual. Experiê ncias como artista, professor universitá rio, uma companheira, visitas a
paı́ses africanos e participaçã o em congressos e seminá rios internacionais impulsionam a
percepçã o que o autor tem de si e de sua produçã o. Como consequê ncia, percebemos a
transformaçã o de um artista, como saı́ra do Brasil em 1968, em um lı́der do ativismo negro
internacional, como retorna em 1981, junto com a “comitiva do Partido Democrá tico
Trabalhista”.
Vimos que o “autoexı́lio” nã o foi exı́lio por si só e foi construı́do de acordo com as
experiê ncias vivenciadas por Nascimento no exterior. O que seria o usufruto de oportunidades
especiais, à s quais nã o tivera acesso no Brasil, torna-se parte de sua autopercepçã o ideoló gica
e polı́tica de um “lugar do estrangeiro”, fruto de sua posiçã o contra a discriminaçã o racial, da
denú ncia do mito da democracia racial e do vı́nculo à proposta pan-africanista e afrocê ntrica
de re<lexã o.
Conforme sua participaçã o nos congressos internacionais ganhava força, a repressã o por
parte do governo brasileiro começava a aparecer, e Nascimento se transforma dentro do
“autoexı́lio” em um “exilado polı́tico”, fato importante nã o apenas pelo seu discurso, mas
també m pelos vı́nculos e redes estabelecidos nesse perı́odo, seja com intelectuais
estrangeiros, seja com exilados brasileiros, que o tomavam como “parte do mesmo grupo”.
Conforme nos informaram James Green e Cló vis Brigagã o, “nã o havia diferença naquele
contexto entre quem era exilado ou autoexilado: todos eram parte de uma mesma luta, pela
democracia efetiva no Brasil”88. A contribuiçã o de Nascimento para essa luta foi seu esforço
para a integraçã o do negro, inserida na construçã o de seu conceito de quilombismo.
A partir dessas relaçõ es, <ica explı́cito que a questã o principal da trajetó ria de Abdias do
Nascimento nã o foi a existê ncia ou nã o de um exı́lio, e sim suas experiê ncias daquele tempo,
as oportunidades que soube aproveitar, como artista e professor, para ocupar o espaço do
ativismo internacional e tornar pú blico seu discurso ideoló gico.
88Ambos falaram a mesma coisa em sentidos, mas tomamos aqui a fala de Clóvis Brigagão. Depoimento de Outubro de
2011.
a abertura polı́tica, vá rias <iguras do exı́lio, bem como novos militantes, emergem para a
construçã o de novas alternativas democrá ticas.
89Apesar de não ser nosso foco aqui de análise, seria de interessante ponto de investigação quais são as referências
precisas acerca dos elementos religiosos afro-brasileiros presentes na primeira edição de Sortilégio. Macedo (2005)
sugere em sua análise da obra a influência de Roger Bastide, que já aparece mencionada na coluna do autor no jornal
Diário Trabalhista, em 1946 (Macedo, 2005: 223). De fato, partindo das referências apresentadas por Peixoto (2000),
acerca da inserção investigativa de Bastide sobre o universo das religiões afro-brasileiras, parece ser um forte ponto
para delimitar as influências iniciais naquele momento para obra de Nascimento. Não obstante, não há nenhuma
referência indicativa da consulta de trabalhos de Roger Bastide anterior a 1959, sobre essa temática - a única do
mesmo período é o artigo de 1951 sobre o TEN. Nesse sentido, nos parece sugestivo pensar que as referências mais
precisas - que oferecem, inclusive o vocabulário empregado na peça acerca dos elementos presentes nessas religiões -
são tributárias de Arthur Ramos, com suas obras anteriores ao período de 1951. Uma indicação forte, que nos permite
sugerir a complementação dessa referência, é no artigo “Mission of the Brazilian Negro Experimental Theather”,
publicado em 1949 na revista norte-americana The Crisis. Nesse artigo, em uma das notas, aparece menção à obra de
Arthur Ramos e a Édison Carneiro, para “explicações não-técnicas sobre os candomblés da Bahia” (Nascimento 1949:
274).
valorizaçã o desta religiã o. Sua reflexã o contra as noçõ es estabelecidas de aculturaçã o e
sincretismo també m vai ao encontro do que Bastide formulou sobre o Candomblé .
Nesse sentido, a obra de Bastide teria influenciado as elaboraçõ es de Ai frica no
pensamento polı́tico de Nascimento, como nos sugere Priscila Nucci. (Nucci, 2009). O discurso
ideoló gico de Nascimento seria demarcado por um movimento duplo: por um lado a construçã o
de uma ideia de Ai frica, e por outro a reivindicaçã o desta ideia como marcadora de identidades
para a populaçã o de origem africana no paı́s (Nucci, 2009: 1).
Nascimento també m se apropriaria do termo “negro-africano”, presente nas obras
antropoló gicas de Arthur Ramos e Roger Bastide para quem o uso do termo possui valor
expressivo de posiçã o geográ fica e pertença é tnica. Para Nascimento, no entanto, a expressã o
(nos textos em inglê s como Black African) adquire valor simbó lico de abrangê ncia transnacional
dentro da cultura africana. O autor fala do negro na diá spora, reposicionando sua vinculaçã o
com suas raı́zes africanas.
A partir da leitura de Arthur Ramos e Roger Bastide, Nascimento estabelece uma correlaçã o
com obras de intelectuais africanos, no intuito de transpor a reflexã o de Brasil para o contexto
da diá spora, no qual o paı́s assumiria importâ ncia seminal pela representaçã o de Nascimento.
As principais obras que orientam essa transposiçã o sã o de Cheikh Anta Diop, abordadas mais
adiante.
b) Situação do Negro no Brasil
O segundo tema que orienta o discurso polı́tico de Nascimento é a situaçã o do negro no
Brasil, criticada por sua ideologia da democracia racial como mito e falsidade. Essa temá tica
passa pela denú ncia e explicitaçã o dos dados que envolvem tal realidade e pelo questionamento
acerca da histó ria, ciê ncia e pensamento acadê micos produzidos no paı́s sobre o negro.
Em linhas gerais, essas crı́ticas sã o as mesmas desde o final dos anos 1960, quando
Nascimento rompe com o pensamento vinculado ao pacto democrá tico dos anos 1940 e 1950
(Macedo, 2005; Guimarã es, 2005) , prosseguem no perı́odo do exı́lio e se tornam pauta-chave a
partir de 1976, quando seu discurso ideoló gico se torna mais agressivo politicamente. Dentre as
principais influê ncias para a construçã o dessa reflexã o do autor destacam-se Alberto Guerreiro
Ramos e Florestan Fernandes.
A presença de Guerreiro Ramos na obra de Nascimento é explı́cita, principalmente com
sua Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (editada em 1957) e com os textos da coletâ nea do
TEN: Testemunhos (editada em 1966).
Desde os tempos de companheiros no TEN, Guerreiro Ramos influencia uma sé rie de
questõ es que sã o “naturalmente” incorporadas pela ideologia de Nascimento. Como nos
demonstra com exatidã o Barbosa (2004), entre aqueles membros do TEN, Ramos tinha
formaçã o intelectual mais consistente que se refletia na sua produçã o naquele perı́odo,
reverberando, portanto, as principais ideias da negritude e ajudando a difundir, com Ironides
Rodrigues, alguns dos ideais presentes no pensamento dos intelectuais negros da négritude
francesa (Barbosa, 2004; Guimarã es, 2004; Oliveira, 1995).
No artigo “O Problema do Negro na Sociedade Brasileira”, Guerreiro Ramos denuncia a
realidade “transplantada” do pensamento social sobre o negro no Brasil. Para se reconstituir o
tema seria necessá rio “examinar aquela literatura, tendo em vista desmascarar os seus
equı́vocos, as suas ficelles, e, alé m disso, denunciar a sua alienaçã o” (Ramos, 1995 [1957]: 163).
Ei desta maneira que Nascimento critica, em seus escritos do exı́lio, o pensamento intelectual
nacional, apenas substituindo a postura de “alienaçã o” pela “ideologia da democracia racial e
suas estraté gias de embranquecimento”.
Para Nascimento, foi essa posiçã o dos intelectuais brasileiros “reprodutores da ideologia
dominante” que provocou a ruptura polı́tica do TEN com o pacto democrá tico, fato que lhe
tomou espaço entre 1950 e 1968. Enquanto Guerreiro Ramos criticou a todos, Nascimento
amenizou, principalmente em relaçã o aos autores que considerava caros, como Arthur Ramos,
Roger Bastide e Florestan Fernandes.
Entre os intelectuais criticados encontra-se o mé dico e antropó logo maranhense Nina
Rodrigues, cujo tratamento dado por Guerreiro é ratificado por Nascimento. Guerreiro Ramos
afirma que a produçã o de Nina Rodrigues, no plano da ciê ncia social, seria uma “nulidade,
mesmo considerando-se a é poca em que viveu”, exemplo de uma teoria recheada de “tanta
basbaquice e ingenuidade”90, em suma, “um monumento de asneiras” (Ramos, 1995 [1957]:
186). Nascimento cita trechos da sua obra para “ilustrar o pensamento racista brasileiro” e
aproxima as percepçõ es obtidas na obra de Rodrigues ao lusotropicalismo de Gilberto Freyre,
determinando-os como “face da mesma moeda que atinge negativamente o negro” (Nascimento,
1978).
Guerreiro atribuı́a a esses intelectuais a “patologia social do ‘branco’ brasileiro”, que
consistia em ler as questõ es nacionais pelo olhar estranho, do europeu. O “branco” de quem fala
Guerreiro é na verdade o “mestiço”, pertencente à s camadas produtoras daquele pensamento
transplantado, que sofreria de “instabilidade auto-estimativa” (Ramos, 1995 [1957]: 225). Era,
90Vale lembrar que no período em que escreveu a obra Guerreiro Ramos também se encontrava em polêmica com
Costa Pinto, a quem dedicou também algumas palavras em uma nota sobre a UNESCO. Comentando sobre o “melhor
padrão técnico” daquelas pesquisas, Guerreiro aponta a exceção “do que se refere ao negro no Rio de Janeiro que
confiado a Luiz Aguiar da Costa Pinto, cidadão sem qualificações morais e científicas”. Acusa, no mesmo segmento,
Costa Pinto de ser também um “doublé de sociólogo” e de ter cometido plágio (Ramos, 1995 [1957]: 210, nota 19). Para
polêmica entre Guerreiro Ramos e Costa Pinto, ver Maio, 1996 e 1997.
portanto, uma “emulaçã o de branco”, um “brancó ide”. Nascimento se apropria dessa ideia para
manifestar o desprezo que as elites dominantes do Brasil teriam para com a cultura negra.
Outra crı́tica de Guerreiro Ramos que influenciaria Nascimento é sobre a idé ia de
“aculturaçã o”, que concerne à relaçã o intrı́nseca entre “aculturaçã o” e defesa da brancura como
padrã o de esté tica social e cultural (Ramos, 1995 [1957]: 197). Nascimento leva essa crı́tica ao
limite ao relacioná -la diretamente à concepçã o de embranquecimento, das estraté gias fı́sicas e
culturais de eliminaçã o do negro (Nascimento, 1977; 1978).
Todavia, nã o seriam apenas de referê ncias negativas sobre o pensamento social brasileiro
que supostamente Guerreiro nutriria o discurso polı́tico de Nascimento. A Joaquim Nabuco e
Ai lvaro Bomilcar, por exemplo, Guerreiro faz referê ncias elogiosas, presentes no trabalho de
Nascimento91.
Florestan Fernandes é outro autor que influencia o pensamento de Nascimento sobre a
realidade do negro no Brasil, fornecendo-lhe a partir da obra O Negro no Mundo dos Brancos, de
1972, um diagnó stico da situaçã o de desigualdade enfrentada pelos negros no Brasil.
Fernandes identifica elementos sociais que anulariam o negro como membro ativo e
integrado na sociedade brasileira, como a neutralizaçã o dos movimentos sociais negros e a
“cooptaçã o” de membros daquele contingente, passı́veis de serem lı́deres de tais movimentos
(Fernandes, 2007 [19720: 29). Em relaçã o à s questõ es para anulaçã o do negro, Fernandes
reconhece a força que o mito de democracia racial exerce sobre essa forma de sociabilidade que
toma contornos de embranquecimento e nã o de integraçã o. Nascimento leva essas concepçõ es
para um plano polı́tico mais agressivo, relacionando a democracia racial à estraté gia ideoló gica
de aniquilaçã o fı́sica e cultural dos negros (Nascimento, 1977, 1978).
A reflexã o de Fernandes acerca do sincretismo, ou melhor, das “influê ncias recı́procas”
entre negros e brancos no Brasil, també m serve de referê ncia para Nascimento. Fernandes
preconiza a miscigenaçã o como mecanismo de reproduçã o da hegemonia da raça dominante.
Daı́, sua conclusã o sobre a ideologia da democracia racial, endossada por Nascimento :
“Essa quadro revela que a chamada ‘democracia racial’ nã o tem nenhuma consistê ncia e, vista do
â ngulo do comportamento coletivo das ‘populaçõ es de cor’, constitui um mito cruel. Ainda assim, mau
grado os contornos negativos desse quadro, existem certos elementos potencialmente favorá veis à
emergê ncia e à consolidaçã o de uma autê ntica democracia racial no Brasil” (Fernandes, 2007 [1972]:
47).
91 Os dois últimos autores, Nabuco e Bomilcar, são particularmente incluídos na obra de Nascimento com algumas
citações de seus trabalhos. Em relação a Nabuco, Nascimento se utiliza de “O Abolicionismo” (1883) para ilustrar a
questão da escravidão, enquanto estatuto jurídico e social, de acordo com a análise de Nabuco no pré-abolição. Já a
obra de Bomilcar, “O Preconceito de raça no Brasil”, (1916) ilustra os primeiros ensaios sociológicos acerca do
sentimento de inferioridade envolvendo o elemento negro no Brasil, e uma crítica à incorporação pelos intelectuais
brasileiros sem crítica de ideias do contexto europeu, utilizadas aqui de modo dogmático. Nascimento, em seus escritos,
faz mais referências diretas a Nabuco, a quem incorpora desde os anos 1960, mas ambos não recebem tratamento
sistemático de análise, e o que nos leva a crer serem leituras influenciadas a partir da obra de Guerreiro.
Para Nascimento, tais “elementos favorá veis” consistiam em resgatar o valor da cultura
negro-africana, o que poderia corroborar para uma efetiva democracia e regime social
igualitá rio no paı́s. Com a proposta de Quilombismo ele incorporaria tal perspectiva que, assim
como nas esperanças de Fernandes, sã o de cunho normativo em sua ideologia polı́tica.
c) Pan-Africanismo, Diáspora e solidariedade africana: elementos
transnacionais na ideologia de Nascimento
Nascimento transpõ e elementos da cultura negra brasileira para a dinâ mica da diá spora,
por meio de uma expressã o pan-africanista. Nessa correlaçã o, a principal referê ncia é Cheikh
Anta Diop, com a obra The African Origin of Civilization: Myth or Reality (1974)92. A assimilaçã o
dos escritos de Diop é mais complexa do que a dos antropó logos brasileiros, pois Diop disserta
sobre as bases originá rias da filosofia, ciê ncia e religiã o na Antiga civilizaçã o egı́pcia.
Seu monumental trabalho é considerado, na literatura africana, como um dos maiores
legados cientı́ficos da reflexã o pan-africanista. Ao resgatar esses elementos da antiguidade da
histó ria do continente, assume posiçõ es contrá rias à historiografia europeia, que considera
“falsificaçã o da histó ria” (Diop, 1974). A extensa pesquisa desse autor, assim como a
multiplicidade de formaçõ es e conhecimentos que possuı́a - Diop era fı́sico, historiador,
linguista, etnó logo e arqueó logo - parecem chamar a atençã o de Nascimento93.
Os principais tó picos absorvidos da obra de Diop sã o: (1) a concepçã o da antiguidade
egı́pcia, ou seja, a ideia de Egito negro e posiçã o precursora daquela sociedade frente à s á reas de
ciê ncia, filosofia, matemá tica, lı́nguas, arte e religiã o; (2) a influê ncia da cultura egı́pcia sobre
arte e lı́ngua em outras sociedades africanas, incluindo a ioruba; (3) pressuposto dos regimes
matrilineares que, em oposiçã o à noçã o patrilinear ocidental, determinaria a preeminê ncia da
mulher (negra) como figura de poder e alguns atributos, entre os quais a tolerâ ncia e a cultura
da paz; (4) resgate da Histó ria africana como base polı́tica do pan-africanismo polı́tico-cultural e
crı́tica aos regimes polı́ticos ocidentais, incluindo socialismo, como alternativas inconsistentes
para determinaçã o dos interesses do continente africano.
As referê ncias diretas ao trabalho de Diop só aparecem tardiamente, no artigo
“Quilombismo”. No entanto, sua teoria já transparece de forma “tı́mida” desde 1975
(Nascimento, 1976b), como base parcial do discurso sobre o legado cultural africano na arte
92Ha também nas obras de Nascimento referência a três outros trabalhos de Cheikh A. Diop: “Interview to Black Roots
Bulletin” (1977), Black Africa - The Economic and Cultural Basis for a Federated State (1978) e The Culture Unity of
Black Africa (1978). No entanto, para as principais questões incorporadas na ideologia de Nascimento, o trabalho de
1974 é o fundamental.
93 A figura de Diop já era conhecida desde tempos do TEN, a partir da obra de Guerreiro Ramos que citava o trabalho
Nations nègres et culture em seus textos. No entanto, a incorporação que Nascimento faz de Diop durante o autoexílio
nada faz relação àquela abordagem de Guerreiro; pois naquele momento dos anos 1940 e 1950, Nascimento não tinha
interesse naquele autor, pelo que se sugere as referências em suas obras do período.
negra no Brasil. Ainda, o tı́tulo do texto destinado ao FESTAC 77, Racial Democracy in Brazil:
Myth or Reality foi claramente inspirado no tı́tulo da obra de Diop. Outra evidê ncia é a
valorizaçã o da mulher negra por meio de seçõ es a ela dedicadas nos textos, ou mesmo por meio
da figura de sua mã e, Dona Georgina (Nascimento, 1980, 1983).
Nascimento transpõ e a ideia da antiguidade da cultura egı́pcia para a africana e ressalta
essa relaçã o como influê ncia na cultura ioruba. O autor considera algumas manifestaçõ es
culturais do Brasil (como Candomblé ) tributá rias da antiga e primeva civilizaçã o egı́pcia. Em
termos histó ricos e polı́ticos, isso significa situar a cultura negra em uma categoria anterior à
cultura de matriz europé ia de raı́zes na Gré cia antiga94. O retrato feito por Diop acerca da
“falsificaçã o da Histó ria” (Diop, 1974: cap. 3) elaborada pelos historiadores europeus é
absorvido por Nascimento como exemplificaçã o do que ocorrera no Brasil com a “falsificaçã o
histó rica e cultural” promovida pela ideologia da democracia racial. A conversã o de Nascimento
ao pensamento diopiano é fruto especialmente dessa passagem:
“Ancient Egypt was a Negro civilization. The history of Black Africa will remain suspended in air
and cannot be written correctly until African historians dare to connect it with the history of Egypt. In
particular, the study of languages, institutions, and so forth, cannot be treated properly; in a word, it will
be impossible to build African humanities, a body of African human sciences, so long as that relationship
does not appear legitimate. (…) The ancient Egyptians were Negroes. The moral fruit of their civilization
is to be counted among the assets of the Black world. Instead of presenting itself to history as an
insolvent debtor, that Black world is the very initiator of the ‘western’ civilization fainted before our eyes
today. Pythagorean mathematics, the theory of the four elements of Thales of Miletus, Epicurean
materialism, Platonic idealism, Judaism, Islam, and modern science are rooted in Egyptian cosmogony
and science. One needs only to meditate on Osiris, the redeemer-god, who sacrifices himself, dies, and is
resurrected to save mankind, a figure essentially identifiable with Christ” (Diop, 1974: xiv).
A revelaçã o de Diop é como um “chamado” aos pesquisadores e intelectuais negros para
desvendarem as verdadeiras razõ es e circunstâ ncias que teriam orientado a civilizaçã o negra.
Nascimento concorda, levando ao limite uma noçã o que já aparecia nos escritos de Bastide e
Guerreiro Ramos: a autenticidade do pensamento negro. Como exemplo, podemos demarcar
dois momentos especı́ficos da produçã o de Nascimento nos quais essa autenticidade emerge:
(1) ao falar da arte negra e da responsabilidade do artista negro em revelar os elementos
culturais que orientam sua histó ria e tradiçã o (Nascimento, 1976a); e, (2) ao enfrentar a
delegaçã o brasileira no FESTAC 77, denunciando o silenciamento dos intelectuais e ativistas
negros, estando eles pró prios em condiçã o “autê ntica” para falar de si (Nascimento, 1977, 1978
e 1981).
94 Vale mencionar que a valorização da antiguidade histórica africana permanece como item político no pensamento de
Nascimento até tempos atuais. Em parceira com Elisa Larkin-Nascimento, por meio do IPEAFRO, em 2000, constroem
a “Linha Histórica do Tempo”, por ocasião da comemoração dos “500 anos de Brasil”. Essa monumental empreitada tem
como objetivo comparar o “espaço preenchido no tempo histórico pela existência de Brasil” com toda a linha da história
da África, ressaltando as principais inovações e fatos que marcaram a história daquele continente.
Outras influê ncias teó ricas aparecem no discurso de Nascimento sobre pan-africanismo e
conceito de diá spora na concepçã o de cultura negra, como as de: Julius Nyerere, John Henrik
Clarke, Maulana Ron Karenga, Ronald Walters95, Wole Soyinka, Amilcar Cabral, Frantz Fanon,
Molefi Asante96. Sobre o câ none da obra de Diop, esses autores sustentam a reelaboraçã o de
Brasil feita por Nascimento, baseada na noçã o de diá spora.
Vale pontuar que essas incorporaçõ es promoveram relativa ampliaçã o de sua ó tica polı́tica
e corroboraram para a sua imagem de ativista brasileiro, de lı́der do ativismo internacional,
sı́mbolo de “pensador da diá spora” e responsá vel por dar dinâ mica afrocê ntrica à cultura negra
brasileira. Como lembra, em seu depoimento, o intelectual ganense Anani Dzidzienyo, nesse
momento “Abdias is placing his position at Pan-African History!”97.
Uma ilustraçã o da “afrocentrizaçã o” de elementos brasileiros vem de Julius Nyerere
(Nascimento, 1979, 1980), por meio do seu conceito de Ujamaa, um sistema polı́tico baseado no
comunalismo e na manifestaçã o de um “tradicional socialismo africano”. Nascimento explora as
conexõ es entre uma concepçã o pró pria do “socialismo africano” com a criatividade artı́stica
atribuı́da à cultura negra. Lembremos que Ujamaa está presente na reflexã o polı́tica de alguns
intelectuais africanos a fim de propor novos caminhos e alternativas polı́ticas para o continente
que estava erigindo seus Estados-naçã o a partir dos anos 1950 e 1960.
Novamente atravé s da cultura, Nascimento desloca seu pensamento, explorando os traços
pan-africanos brasileiros, incorporando os elementos que seriam pró prios de Ai frica e
ressaltando a importâ ncia histó rica do Brasil na conformaçã o da aliança do povo negro em
funçã o da diá pora. A ideia dessa aliança sobressai quando Nascimento se apropria
ideologicamente do Quilombo dos Palmares (1977, 1978, 1979, 1980). Nela, suas intençõ es
polı́ticas e conciliató rias ficam mais explı́citas pela utilizaçã o do termo “Repú blica de Palmares”
95 Esses 3 intelectuais compunham a delegação oficial norte-americana no FESTAC 77, que também contava com
Harold Cruse e Malachi Andrews. Eles integravam o mesmo grupo de trabalho que Nascimento, o Grupo IV - Civilização
Negra e Educação. De acordo com os documentos consultados no Acervo Abdias do Nascimento (IPEAFRO), na Pasta
C2 - Documentos FESTAC 77, encontramos contribuições destes autores no formato de papers para os painéis e
conferências. Os textos encontrados destes autores são: “Afro-American Nationalism: Social Strategy and Struggle for
Community”, de Karenga; “The Development of Pan-Africanist Ideas in the Americas and in Africa Before 1900”, de
Clarke; e “The Future of Pan-Africanism in World African Relations”, de Walters. O perfil destes intelectuais também é
digno de nota: todos eram intelectuais acadêmicos, com envolvimento político na questão racial e dos direitos civis, com
intervenção especialmente feita pela teoria. Entre os três, Nascimento tinha relação pessoal mais próxima de Clarke,
com quem inclusive trocava correspondências, conforme encontramos no arquivo das cartas do período (Pasta 2 -
1969-1975, Acervo Abdias do Nascimento - IPEAFRO).
96Não trataremos especificamente da obra de Asante nesta seção. O autor, bastante próximo de Nascimento desde o
período em Buffalo, tem obra seminal de reflexão afrocêntrica, que, entretanto, influencia a reflexão de Nascimento
(assim como de Elisa Larkin-Nascimento) após anos 1980. Seu livro The Afrocentricity (1988) e The Afrocentric Idea
(1998) são duas obras que marcam a reflexão sobre afrocentrismo e diáspora, mas apenas após o período que estamos
analisando.
98Este, inclusive, é citado por Nascimento como o “pai do pan-africanismo”. Essa posição tem forte conotação política
de inserção e deslocamento de simbologias, de modo a incluir os negros da diáspora - no caso Brasil - na formulação
dos pressupostos políticos do momento em relação ao Pan-Africanismo.
99 Durante a pesquisa nos pareceu interessante essa relação entre República - Reinado que marca as reconstituições
históricas acerca de Palmares. No entanto, apesar de não termos nos aprofundado no tema, sugere um questionamento
sobre qual dos lados seria o mais simbolicamente importante, ou seja, ser Palmares uma República (e se sim, qual o
significado disso) ou ser Palmares um reinado de um rei negro - o que, dentro do discurso pan-africanista dos anos
1970 parece ter mais peso - e quais as implicações disso. Como salientamos, grande parte da literatura mobilizada
trabalha com a perspectiva da contestação e da revolta com chave interpretativa desse quilombo. Ver Moura, 1955 e
(sobre textos de Beatriz Nascimento) Ratts, 2007.
3.2 - Expressão artística de Abdias
Nesta seçã o abordaremos o conjunto da produçã o artı́stica de Nascimento dividido em
pinturas, poesias e peça teatral, preconizando que essa produçã o també m está conectada ao
conteú do de seu discurso ideoló gico e contribui para a construçã o de sua autoimagem.
Juntamente com a produçã o polı́tica, a produçã o artı́stica projeta a amplitude da
contribuiçã o de Nascimento para construçã o uma imagem pú blica no contexto internacional de
“ativista e pensador da diá spora”, ou seja, ativista polı́tico, crı́tico teó rico e artista de ampla
atuaçã o e expressã o polı́ticas, seja na militâ ncia, nas artes, na academia ou na cultura. A noçã o
de amplitude incluı́da aqui é da amplitude de expressõ es: escritos, pinturas, poesias, peças, todo
material produzido pelo autor como “itens de uma mesma atividade”: sua atuaçã o polı́tica pelo
resgate da cultura negra.
A temá tica dessa produçã o gira em torno da ideia de cultura negra e de resgate da
identidade “negro-africana”100 construı́dos especialmente por meio da religiã o, atravé s da
exposiçã o dos elementos afro-religiosos e do Candomblé , que mostram como o autor via esses
temas, em especial nas pinturas e na peça “Sortilé gio”.
a) Pinturas
A produçã o de pinturas de Abdias do Nascimento é vasta (cerca de cem telas
contabilizadas nas publicaçõ es e nos catá logos coletados), a maioria produzida durante o
perı́odo do autoexı́lio101. Boa parte desse material está publicada no livro Orixá s: os deuses
vivos da Ai frica, publicado em 1988 e reeditado em 1995. Nesta obra, alé m da reproduçã o das
telas, há també m textos de diversos intelectuais e ativistas comentando o trabalho artı́stico de
Abdias.
Entre os catá logos, verificamos dois deles (um de 1971 e outro de 1974) encontrados em
Nova Iorque no Schomburg Black Center102. Sã o constituı́dos de um texto de apresentaçã o sobre
a exposiçã o, de algumas reproduçõ es e da lista de telas que compõ em a mostra. Intelectuais
como Guerreiro Ramos, Olu Balogun103 e Anani Dzidzienyo104 escreveram esses textos de
apresentaçã o.
100Termo é uso do próprio Nascimento, que se refere a conexão entre identidade negra (afro-brasileira) e africana, da
diáspora. Esse termo é apropriado em seu discurso ideológico a partir das leituras de Arthur Ramos e Roger Bastide, e
recebe um novo sentido em contato com discurso negro internacional, preconizando simbologia da diáspora negra.
Discutiremos as influências teóricas na ideologia de Nascimento mais a frente, em um item próprio.
102Biblioteca Pública de NY, seção especializada em literatura e material bibliográfico sobre questão racial. Localizada
no Harlem, bairro historicamente de ocupação negra da cidade, foi parte da pesquisa realizada nos EUA em 2010.
105Ver Anexo III. Uma análise sobre a pintura de Nascimento está no livro “Orixás: os Deuses vivos da África”,
produzida por Roger Isaacs, no texto “The Paintings of Abdias do Nascimento: the Ethic of Liberty”(1975). Ver
Nascimento, 1995.
b) Poesias: identidade negra e resistência nos versos
Nascimento també m escreveu poemas durante o autoexı́lio. Grande parte da sua criaçã o
poé tica está publicada no livro Axés do Sangue e da Esperança (orikis106), de 1983107. Nesta obra,
concentram-se os poemas escritos entre 1967 e 1982.
Na introduçã o, escrita por Lé lia Gonzalez, há uma definiçã o clara em relaçã o ao conteú do
da poesia do autor:
“A poesia de Abdias Nascimento tem muito a ver com sua pintura e com seu teatro. Exatamente
porque cada registro nos remete ao outro, numa espé cie de circularidade, tematizando em suas
respectivas linguagens, um campo cultural alternativo à quele totalitariamente imposto pela cultura
dominante: Abdias ‘poeteia, pinta e teatraliza’ porque e enquanto negro” (Nascimento, 1983: i).
Esse trecho nos sugere a proximidade da sua poesia com outras manifestaçõ es artı́sticas. A
ideia de uma “complementaridade circular” em sua produçã o artı́stica é assimilada em sua
autobiografia e imersa em seu modo polı́tico de auto-representaçã o.
A produçã o poé tica de Nascimento segue o mesmo caminho de apreensã o das obras
artı́sticas, ou seja, (1) de uma produçã o respaldada na cultura religiosa afro-brasileira nas
figuras e entidades do Candomblé para abordar a cultura e identidade negras; e (2) em seu
conjunto, contribui para seu discurso de intervençã o polı́tica.
Alé m desses dois pontos, as poesias tê m um adicional em relaçã o à s outras obras
artı́sticas: vistas em conjunto, como estã o na coletâ nea “Axé s”, demarcam o “mapeamento da
trajetó ria” do autor no contexto internacional. Nã o sem sentido, esse mapeamento auxilia a
determinar as datas e os locais, para entendimento do pú blico, de sua circulaçã o e “ocupaçã o”
na diá spora108.
106Os Oríkì (do yorùbá, orí = cabeça, kì = saudar) são versos, frases ou poemas, formados para saudar o orixá
referindo-se à sua origem, suas qualidades e sua ancestralidade nas religiões afro-brasileiras. Os Oríkì são feitos para
mostrar grandes feitos realizados pelo orixá. Com isso, podemos nos deparar com Oríkì não somente para os nossos
Orixás, mas também para pessoas que foram grandes lideres, caçadores, governantes, sacerdotes, reis, rainhas,
príncipes e todas as pessoas, em que em um passado distante ou recente fizeram algo de importante para com uma
comunidade ou para com o povo. Fica expresso, portanto, já no título, a vinculação entre sua poesia e a cultura negra
de origem africana, mais precisamente ioruba. Vale ressaltarmos que tal definição não aparece dentro da obra,
denotando “naturalização” da expressão. Definição de “orikis” foi retirada do canal Orixas.com
107Há certa inconsistência nessa data. Nos dados do livro aparece a data de 1983, mas a introdução escrita por Lélia
Gonzalez está datada como de 18/01/1984. Outro indício dessa inconsistência é que a introdução da autora (há duas,
uma dela e outra de Paulo Freire) não aparece no sumário com numeração específica, além de suas páginas serem
pouco menores que as do livro – indicando, portanto, acréscimo desta introdução ao final. Bem, mas qual a relevância
desse comentário minucioso? Pelo teor da introdução de Lélia, a citar, mais “afrocentricamente politizado”, acreditamos
que sua inclusão no calor da produção final do livro seja para dar mais peso político ao trabalho. Diferente das palavras
esboçadas por Paulo Freire, que rememoram os encontros de ambos no exílio, Lélia Gonzalez faz uma leitura política
da importância da poesia de Nascimento para o conjunto de sua obra. Nesse quesito, já no título, vincula a imagem de
Nascimento a uma figura cultural tradicional africana que é a do guerreiro e do “griot”, o ancião responsável pela
transmissão do legado e da história de um povo pela oralidade. Essa menção será apropriada por Nascimento anos
depois, em sua última autobiografia (Nascimento, 2006).
108Todos os poemas da coletânea têm data e local de realização. A importância dessa dado será tratada logo mais a
frente, dentro da ideia da construção da “ilusão biográfica” que carrega o conjunto da coletânea.
Elementos e entidades de religiõ es afro-brasileiras aparecem na poesia de Nascimento
para expressar suas visõ es polı́ticas e ideoló gicas. Atravé s da cultura, ele resgata e aborda a
identidade negra, trazendo as ideias de resistê ncia e revolta à exaustã o como reforço de seu
discurso ideoló gico. A religiã o també m é assunto em uma crı́tica à noçã o de miscigenaçã o
compulsó ria, presente em seus escritos polı́ticos109. Nesse caso, o sincretismo religioso com o
catolicismo é visto como uma imposiçã o das classes dominantes contra a liberdade e
manifestaçã o cultural “autê ntica” dos negros brasileiros.
Nascimento arrisca, mesmo que de modo mais superficial, tratar de todo o universo da
diá spora, cuja definiçã o, em seus poemas, é polı́tica e compreende a ideia de “extensã o cultural
dos territó rios africanos”. Essa extensã o reside na permanê ncia dos elementos culturais e da
populaçã o negra nos territó rios fora de Ai frica, que teriam mantido a cultura de origem. A noçã o
de pan-africanismo, neste sentido, se inscreve na noçã o de “herança comum” e solidariedade
é tnica, como consequê ncia da resistê ncia cultural dos negros na diá spora. Sua abordagem da
diá spora vai alé m do Brasil e paı́ses africanos. Nascimento inclui locais como o Caribe e paı́ses
latino- americanos com populaçã o de ascendê ncia africana.
O interesse implı́cito de demarcar a construçã o de sua autobiografia a partir da
experiê ncia do autoexı́lio pode ser visto de vá rios modos no conjunto de sua produçã o poé tica.
Primeiramente, pelas fotos usadas na ilustraçã o dos livros. Fotos de parentes, filhos,
amigos mostrando o autor junto à s pessoas que o “definem e representam”. Esse recurso,
utilizado em suas publicaçõ es desde o perı́odo do TEN, sugere a importâ ncia de, como polı́tico,
mostrar a imagem fotográ fica de si junto com suas palavras.
Outro dado que aparece é a dataçã o e localidade de todos os poemas. Mais do que
transformar o conteú do em dado histó rico preciso, pela forma como organiza e seleciona os
poemas publicados, Nascimento nos sugere um “mapeamento dos caminhos” de sua trajetó ria,
remontando, em um sentido mais amplo, os lugares de sua atuaçã o durante os anos de
autoexı́lio. Esses lugares e a forma como os tematiza ou simplesmente a eles se refere, dã o ao
autor um status diferenciado em sua experiê ncia no ativismo internacional, o de “agente da
diá spora”.
Nascimento utiliza mençõ es biográ ficas pró prias e de pessoas pró ximas, importantes para
a sua imagem. Sobre si mesmo, no poema “Autobiografia” (Bú falo, 25/01/79), constró i a
imagem de sua revolta como consequê ncia de uma situaçã o histó rica de opressã o do negro. Essa
situaçã o seria universal, mas se manifesta em momentos de sua vida, de sua infâ ncia, em que
Franca, sua cidade natal, se projeta simbolicamente como outro “espaço da diá spora”.
110A edição em inglês foi publicada no trabalho de William Branch, Crosswinds: An Anthology of Black Dramatists in the
Diaspora. Nessa coletânea, de 1993, há trabalhos de reproduzidos também de Wole Soyinka, August Wilson, e Amiri
Baraka, entre outros, o que, positivamente na trajetória de Nascimento, reconhece o mesmo como um dos grandes
dramaticistas da Diáspora.
111O fato de ter como editora “Teatro Experimental do Negro” reforça a ideia de que a tiragem tenha sido baixa, dada as
constantes limitações financeiras do grupo. De acordo com o exemplar que consultamos, foram impressos, numerados
e assinados à mão pelo autor 500 exemplares apenas, não havendo posterior reedição.
Nascimento, 1978; tradução feita por Peter Lownds em 1976, segundo depoimento de Nascimento em Larkin-
112
113 O periódico publicou as versões em inglês e português no mesmo número. Ver Nascimento, 1995.
assassinato, foge para uma ribanceira onde se depara com um pegi de Exú e rituais de religiã o
de origem africana. També m compõ em o elenco da peça Efigê nia, negra e primeira namorada de
Emanuel, abandonada por ele quando conheceu Margarida, filhas-de-santo, orixá e as Teorias
das Iaô s e dos Omulus.
A peça se inicia com a chegada de Emanuel ao Bosque no alto do morro, e durante a
encenaçã o, reconstitui os fatos de sua vida e de algumas situaçõ es de discriminaçã o racial
sofridas por esse “negro assimilado”. O assassinato da esposa branca Margarida ocorrera pela
recusa dela em conceber um filho de Emanuel por medo de sua cor e pelo afastamento da
relaçã o do casamento, uma vez que “que ela já havia satisfeito sua curiosidade”. As personagens
femininas que giram em torno de Emanuel marcam duas relaçõ es interessantes em termos
sociais: casamento inter-racial como consequê ncia (nã o plenamente satisfeita) da ascensã o
social de Emanuel e a sua introjeçã o dos valores brancos, da “civilizaçã o”. Esses valores
preconizam o abandono das raı́zes culturais africanas e també m a valorizaçã o da “brancura”, ou
seja, desejo de parecer-se fı́sica e psicologicamente com o branco, seja atravé s da cultura ou da
miscigenaçã o (casamento).
Na primeira versã o de Sortilé gio, está em jogo, portanto, o universo da cultura negra
dentro da mistura de raças que configura o Brasil dos anos 1940 e 1950. O que Nascimento
demonstra com seu personagem Emanuel é que sua ascensã o social nã o apaga os vestı́gios do
preconceito e da discriminaçã o, e o negro, aquele com quem ele “pretendia falar” na peça,
deveria estar desperto para o resgate da cultura afro-brasileira, para o misté rio que envolvia
seus antepassados. Trata-se de enunciar o resgate cultural dentro da cultura nacional, em
termos de valorizaçã o do elemento negro.
També m há outro elemento interessante a se considerar nessa obra. O papel de Emanuel,
advogado negro de classe mé dia, portanto com formaçã o universitá ria, nã o interage
diretamente com um contingente mais amplo da sociedade. Basicamente as questõ es de
interaçõ es social e cultural apresentadas em primeiro plano (negro educado/ negra prostituta/
branca sem valor social efetivo/ desrespeito social por parte das autoridades/ nã o-realizaçã o
diante do casamento inter-racial e negaçã o do filho mestiço) podem ser entendidas como
questõ es que atingem os negros em ascensã o. O estranhamento em relaçã o à s religiõ es afro-
brasileiras e o interesse no casamento inter-racial denotam isso e projetam sobre Emanuel o
papel do negro que está nos estratos mais altos da sociedade.
Essas expectativas vã o se apresentando, mas sempre desmembradas em sua plena
realizaçã o como, por exemplo: o abuso dos policiais no momento em que defendia Efigê nia e o
casamento com sentimento nã o-correspondido por parte da esposa, que casara com um negro
apenas por ter sido anteriormente “violada” e por perder, assim, seu status social de mulher
“pura”. A sintonizaçã o se dá no final, com a redençã o de Emanuel perante o ritual dos orixá s, em
que ele se reencontra com o seu legado cultural e se proclama um “negro livre”. Desse modo, em
uma mensagem que parece direcionada para os pró prios intelectuais e indivı́duos negros dos
estratos mé dios do TEN no perı́odo, Nascimento estaria tratando també m de uma nã o-sincronia
entre os fatos reais e as expectativas dessa classe mé dia negra.
A noçã o do resgate da identidade negra se modifica com o tempo. Os termos dos anos
1950 assumem novos significados, e a importâ ncia em torno da obra se desloca para o discurso
ideoló gico de Nascimento em sua segunda versã o escrita em 1977. Essa alteraçã o já pode ser
percebida na introduçã o escrita da primeira ediçã o de Sortilé gio I em inglê s. Ali, o resgate da
identidade negra significa “resistê ncia” e é decorrente de seu discurso no final dos anos 1960, de
radicalizaçã o e revolta. O valor das manifestaçõ es culturais, representado pelas entidades das
religiõ es afro-brasileiras, ganha mais peso.
Uma revoluçã o nessa nova leitura era a da radicalizaçã o do negro atravé s da figura de
Emanuel. Sua decisã o de redençã o e retorno à s raı́zes, que lhe custa a vida terrena, faria parte
do processo de revolta necessá rio à populaçã o negra brasileira para se libertar dos grilhõ es da
exploraçã o e da condiçã o subalterna de cidadania. Nesse sentido, ocorre o deslocamento da
questã o social de Emanuel, do conflito de raça e classe e da discriminaçã o que sofre o negro já
em estratos mais altos da sociedade, para a questã o da resistê ncia cultural como determinaçã o
da cultura negra. Atravé s dessa releitura da obra de 1951, Nascimento tenta impor a seu
personagem uma pertença à condiçã o transnacional de ser negro.
114 Menciona esse contexto em vários momentos posteriores, como nesse trecho em um texto de 2004, sobre a história
do TEN: “Uma segunda versão de Sortilégio resultou de minha estada de um ano na Nigéria, na cidade sagrada de Ile-
Ife (1976-1977). Introduzindo na peça novos personagens e cenários, aprofundamos a dimensão da cultura africana
fundamental a seu desenvolvimento. A dimensão histórica também mereceu maior destaque que na segunda versão,
com referência específica à saga de Zumbi dos Palmares” (Nascimento, 2004: 220).
contingê ncias só cio-determinadas primeiramente a Emanuel, a outros personagens. Ei
introduzida a figura de uma Iyalorixá (mã e-de-santo que poderia ser, em alguma adaptaçã o,
també m um Babalorixá , pai-de-santo) como mais um personagem para mediaçã o com o
universo da cultura afro-brasileira.
A importâ ncia desses elementos na segunda versã o consiste na centralidade de dois
aspectos do discurso ideoló gico do autor à é poca: (1) apropriaçã o das manifestaçõ es culturais
de origem africana como foco de resistê ncia cultural, e (2) incorporaçã o dessas manifestaçõ es
em uma escala transnacional de resistê ncia contra a opressã o racial sofrida pelo negro.
Em relaçã o ao discurso transnacional, veem-se algumas referê ncias nas falas de Iyalorixá e
de Emanuel, como por exemplo, a lugares na Nigé ria – onde Nascimento viveu por um ano e
“peregrinou” por templos sagrados da cultura religiosa ioruba –, ou a personalidades da
diá spora, como Patrice Lumumba e Henri-Christophe. O tema da diá spora aparece també m
indiretamente, envolvendo uma noçã o de “expatriaçã o cultural do negro” do continente
africano.
O final da peça, totalmente transformado, torna-se uma apoteose dos elementos culturais
africanos. A transformaçã o de Emanuel, que se “entrega aos orixá s”, despindo-se de suas
“vestimentas culturais de brancura” é seguida por um momento de valorizaçã o do legado
africano e das raı́zes reencontradas pelo personagem. E é pela fala de Iyalorixá que o Zumbi se
torna a noçã o mı́tica da resistê ncia, marcada pela experiê ncia de Palmares.
Alé m de apoteó tica em termos do resgate da cultura negra, a cena final també m modifica o
destino da mulher negra – algo que nã o ocorria na primeira versã o, em que a saı́da de Efigê nia
de cena era praticamente fantasmagó rica. Agora, ela recebe a coroa e a lança de Ogun, sendo
també m redimida pelos orixá s. Nascimento salva as duas figuras negras da peça em uma
redençã o mais do que artı́stica: ela é localizada e ideoló gica.
De modo geral, a produçã o artı́stica durante o autoexı́lio auxilia a construçã o de sua
imagem. Sempre vista de modo espelhado com a atuaçã o e produçã o polı́ticas de Abdias,
respalda e complementa a trajetó ria intelectual do autor no exı́lio.
Essas imagens refletem-se em suas outras atuaçõ es no exterior contribuindo, por meio das
caracterı́sticas agregadas, para a formaçã o de seu perfil , que o faz retornar ao Brasil como lı́der.
Contudo, a obra artı́stica apenas dá o tom da construçã o dessa imagem de lı́der e “pensador da
diá spora” consolidada concreta e invariavelmente na produçã o polı́tica e teó rica. Ei essa
produçã o que será abordada em seguida.
3.3 - Obras políticas
As obras escritas por Nascimento no exterior sã o tributá rias da ideologia sobre cultura
negra e dos congressos e seminá rios de que ele participou durante os anos 1970, conforme já
visto no capı́tulo anterior. Nascimento trata suas contribuiçõ es a esses congressos de maneira
modificada, ou seja, editando-as e acrescentando-lhes referê ncias, com intençã o de dar a elas um
sentido de “conjunto” para sua produçã o no perı́odo.
Para compreender os sentidos destas obras na trajetó ria de Nascimento, devemos
considerá -las em sua particularidade e cará ter de coletâ neas, isto é , compreender que, mesmo
construı́das de modo geral como um conjunto da produçã o de seu ativismo, elas adquirem
sentidos diferenciados quando produzidas em particular, como Racial Democracy (1977) e
Genocídio do Negro Brasileiro (1978), ou em formato de coletâ nea, como Mixture or Massacre
(1979) e O Quilombismo (1980). Conclui-se que essa diferença nas obras marca os momentos de
produçã o e autoimagem do autor durante o autoexı́lio.
Podem-se percorrer, dessa maneira, todas as obras, ressaltando dois aspectos que
emergem delas: discurso e imagem. O discurso revela as principais questõ es abordadas e as
principais pautas disseminadas na ideologia polı́tica de Nascimento, e como elas vã o se
constituindo no perı́odo retratado. A imagem reflete implicaçõ es que o conteú do de tais obras
tê m para reconstruçã o da autoimagem de seu autor diante das experiê ncias e atuaçã o,
determinantes para os posicionamentos e projetos pessoais que marcam a figura de Abdias em
seu retorno ao Brasil, diferentes dos que envolviam sua posiçã o antes do autoexı́lio.
As obras polı́ticas de Nascimento e suas implicaçõ es no seu percurso intelectual , divididas
em trê s seçõ es: obras de Demarcaçã o, obras de Inserçã o e obras de Consolidaçã o, serã o expostas
a seguir.
a) obras de Demarcação
Os primeiros artigos produzidos no exı́lio representam as “obras de Demarcaçã o”, cujo foco
é o tema da cultura negra como resgate da identidade africana, que já aparecia nos seus textos
escritos no Brasil no final dos anos 1960 (Guimarã es, 2005) e que continua presente em toda
sua produçã o no exterior, com a diferença de que, nos textos iniciais do autoexı́lio, o autor
começa a costurar essa ideia de identidade negra atravé s das manifestaçõ es do legado africano
no Brasil.
Os elementos presentes nas religiõ es afro-brasileiras sã o tomados pela noçã o de resistê ncia
e servem de base para sua produçã o artı́stica.
Dois artigos publicados ilustram esse processo. Em “Afro-Brazilian Culture” (1972),
Nascimento discute a ideia de cultura negra articulada com as noçõ es de revolta e resistê ncia,
com foco em certas manifestaçõ es de africanidade no Brasil como modo de entender e ressaltar
o resgate da identidade negra. Já em “Afro-Brazilian Art: a liberating spirit” (1976), essa cultura
negra estaria enraizada nos elementos culturais vinculados à religiosidade afro-brasileira,
especialmente o Candomblé .
O artigo de 1972, publicado na revista Black Images, é precedido de uma entrevista com o
autor, em que Nascimento defende a abordagem da identidade negra brasileira por meio da
cultura, reconstituindo o papel do teatro negro como valorizaçã o dessa identidade e da
incorporaçã o histó rica da cultura “folk” ioruba no Brasil. Inseridas també m na cultura ioruba
estariam as entidades de religiõ es afro-brasileiras, que marcariam os traços da cultura nacional
a partir de uma ó tica africana.
No artigo apresentado apó s a entrevista, a definiçã o de cultura parece proveniente das
teorias de Arthur Ramos e Roger Bastide, entendidas pelo legado cultural africano. Para o autor,
o resgate da identidade cultural africana promoveria a criaçã o de uma esté tica afro-brasileira
pró pria, necessá ria para a definiçã o dessa identidade.
Nascimento també m critica a ideologia da democracia racial como farsa ideoló gica a
serviço do culto à brancura, “perversa contra o povo negro”, determinante do ideal de “nã o-
beleza negra” e que se caracterizaria como uma “sutil e hipó crita forma de genocı́dio do negro”.
Com a intençã o de enaltecer os valores culturais dos negros, Nascimento trazia as
questõ es sociais para o espaço da cultura. Socialmente, o negro era visto como problema, como
algué m associado à negatividade, à marginalidade, ao crime e ao atraso; suas manifestaçõ es
culturais eram relegadas à ideia de primitivismo e ignorâ ncia, nas quais era tratado como
exó tico, visto de fora, “empalhado”.
A partir dessa condiçã o de marginalidade e subjugaçã o social e cultural, surgiria a
necessidade de se lutar pelo resgate da cultura negra como forma de constituiçã o da
humanidade do negro. O resgate segue duas conformaçõ es: a ideia de retomada histó rica e a
ideia da resistê ncia cultural negra. A primeira se pauta na visã o de que o passado assumiria
lugar de força vital dessa cultura para presente e futuro, na busca de raı́zes. A noçã o de
resistê ncia é pontuada pelos exemplos histó ricos de reaçã o como Quilombo dos Palmares,
revoluçã o no Haiti, pan-africanismo de Garvey e a Négritude francesa, localizados e
simbolicamente eficazes para atestar a noçã o da resistê ncia negra contra a dominaçã o europé ia
branca.
Em Afro-Brazilian Culture, Nascimento define o que considera ser “responsabilidade do
intelectual ou artista negro”: o engajamento com a questã o cultural e a busca de revelaçã o das
autenticidades. No limite, remonta à funçã o do artista negro como modelo de si mesmo, a partir
da definiçã o que constró i sobre a atuaçã o desse artista em resgatar a cultura ancestral.
Ademais, a delimitaçã o da cultura negra de modo geral (artes, mú sicas, danças) para
elementos culturais religiosos se mostra importante, pois atravé s das manifestaçõ es religiosas,
Nascimento enuncia a concepçã o que terá suma importâ ncia em seu entendimento e reflexã o
sobre cultura negra: a posiçã o central que a invocaçã o dos elementos religiosos do Candomblé
assumiria para o resgate da cultura negra brasileira.
A concepçã o de cultura negra com contornos mais definidos aparece no artigo de 1976,
publicado no perió dico Black Art: an international quarterly. Em “Afro-Brazilian Art: a liberating
spirit”, Nascimento situa historicamente os obstá culos para a emergê ncia e o reconhecimento da
arte negra no Brasil e demonstra a importâ ncia do Candomblé e de seus elementos culturais
como influê ncia de uma “genuı́na” arte negra.
Ele expressa seu entendimento de “arte negra” em convergê ncia com a noçã o de diá spora,,
que ali assume um sentido de “territó rios habitados por negros de origem africana”, concepçã o
esta absorvida em suas primeiras incursõ es pelo discurso negro internacional.
“Arte negra” denota uma expressã o da cultura negra vinculada à s manifestaçõ es
concebı́veis como artı́sticas, que poderiam ser percebidas em toda a diá spora como motivaçã o
religiosa. Nascimento mobiliza a ideia de 'inclinaçã o artı́stica do africano' para remontar à
situaçã o dos escravizados. Estes se utilizariam da arte e da religiã o para expressar suas raı́zes
culturais originá rias da Ai frica, mesmo diante das perseguiçõ es.
Esse entendimento de Nascimento parece um tanto “essencialista” ou mesmo româ ntico
em relaçã o à s expressõ s artı́sticas, pois a arte negra tem sentido polı́tico, mais do que exatidã o
histó rica. Ao preconizar a motivaçã o religiosa como base da arte negra na diá spora, Nascimento
destaca a origem religiosa dessa arte na cultura africana, ou seja, a religiosidade está na
“essê ncia” de sua tradiçã o. No processo da diá spora, essa arte é contestató ria, fruto de
resistê ncia cultural dos negros contra dominaçã o eurocê ntrica. Em suas palavras:
“For Black art is precisely the practice of Black liberation – reflection and action, action and
reflection – in all levels of existence: material and spiritual; social, cultural, religious; esthetic, economic,
political. (…) The art of Black people in the diaspora objectifies the world around us and furnishes a
critical image of this world thus it fulfills a need of utmost relevance: critically historicizing the structures
of domination, violence and oppression which characterize Western, capitalist civilization. It struggles for
the humanization of human existence” (Nascimento, 1976: 59).
Se a arte negra é motivada pela religiã o, portanto, é nela que Nascimento enxerga o foco de
permanê ncia da cultura de origem africana. O que diferencia essa (re)leitura sobre religiã o e
arte negra do ensaio de 1972 é o lugar delas a partir de um vié s pan-africanista de mundo. O
Candomblé é , assim, uma forma de resgate da identidade negra africana e serve como fonte de
resistê ncia para aculturaçã o e para miscigenaçã o compulsó rias europeias. Portanto, configura-
se como elemento de identidade nã o só brasileiro, mas sim da diá spora, de conexã o para todas
as experiê ncias dos negros fora do continente.
Entre as obras de Demarcaçã o e de Inserçã o, há um artigo com uma peculiaridade em
relaçã o ao contexto em que foi escrito: o “Influences of African Culture in Development of
Brazilian Art”. Na capa do documento115, datado de Dezembro de 1976, vê -se a sua origem:
“working paper written at the request of Unesco”. Alé m disso, há plena explicitaçã o do evento
em que ele seria utilizado: “Second World Black and African Festival of Arts and Culture”, a ser
realizado em Lagos entre os dias 15 de Janeiro a 12 de Fevereiro de 1977, ou seja, o FESTAC
1977116. Bem, nã o se sabem exatamente quais razõ es levaram Nascimento a modificar o texto de
vinculaçã o ao congresso117. No entanto, é possı́vel reconstruir os pontos com os quais ele
articula seu discurso ideoló gico.
O autor traça um background só cio-histó rico brasileiro, necessá rio para um pú blico nã o
informado sobre as especificidades da histó ria nacional e da histó ria dos negros brasileiros.
Todavia, nã o parece ter apenas a intençã o de desvelar os meandros da Histó ria à s plateias
externas, tem també m objetivo polı́tico, dado que Nascimento relê a histó ria do Brasil à luz da
presença africana na conformaçã o da naçã o brasileira. A reconstituiçã o da histó ria do Brasil a
partir da inclusã o de elementos negros aparece em contraposiçã o a uma visã o de Brasil
rechaçada pelo autor , representada també m nas obras de Nina Rodrigues, Oliveira Viana, Silvio
Romero, Gilberto Freyre, Dante de Laytano, Clarival do Prado Valladares.
O foco de seu argumento reside em demonstrar que o povo negro teria, por meio de
religiõ es afro-brasileiras, mantido resistê ncia polı́tica e “espiritual”. O fundamental para
sublinhar a abordagem de religiõ es afro-brasileiras é a convergê ncia que Nascimento estabelece
entre fato e produçã o, ou seja, entre o fato narrado acerca da histó ria negra no Brasil e a sua
pró pria produçã o artı́stica e polı́tica. Artisticamente, desenvolve em suas pinturas e poemas a
temá tica das entidades do Candomblé ; do ponto de vista polı́tico, com foco em cultura negra,
Este documento foi coletado em pesquisa no Schomburg Center (NY, EUA), em Fevereiro de 2010. Estava
115
mimeografado, e pelas descrição da capa, era de circulação limitada e continha caráter oficial.
116 Ainda na capa reproduzida do artigo, há indicação de sua apresentação no “Simpósio sobre Civilização Negra e
Educação”, o mesmo ao qual Nascimento, a partir de seu depoimentos (Nascimento, 1978 e 1981) afirma que havia
sido convidado. Interessante, como dado de reconstituição do episódio e, conforme nosso interesse aqui de elucidar a
trajetória intelectual deste, as explicações dadas pelo próprio autor, é que a menção a este texto “solicitado pela
Unesco” teria sido feita em 1974. No entanto, complicações políticas em torno da organização do Colóquio do Festival
teria afastado a participação direta da organização no evento, o que, mesmo Nascimento não explicitando, poderia ter
sido a circunstância para que tal texto não fosse absorvido. Esse relato aparece em “Sitiado em Lagos”, 1981.
117 Vale mencionar que o artigo, além de conter partes de textos anteriores sobre o tema - como o publicado de 1976,
que provavelmente foi composto no mesmo período -, também é base da contribuição de Nascimento nos seminários
internos do Departamento de Línguas Africanas e Literaturas, da Universidade de Ife, realizados em Dezembro de 1976.
Também, o artigo recebe uma publicação posterior, praticamente sem alterações, em 1978, saindo em uma edição do
Journal Of Black Studies. Ver Nascimento, 1989 [1979] e 1978b.
posiciona-se como desvelador dos elementos africanos presentes na cultura brasileira. Como
consequê ncia, seu posicionamento sobre cultura negra em ambas as esferas acaba adquirindo
relativo sentido de criaçã o de mitos, ou “etnoessê ncias”, pelo modo como explora a arte e a
religiã o na raiz da “essê ncia criativa do africano”.
No geral, as obras de demarcaçã o apresentam dois pontos que corroboram para a
construçã o de seu discurso ideoló gico e de sua autoimagem durante o autoexı́lio: (1) sua
produçã o conectada com a necessidade de resgate da identidade cultural africana, que lhe
engendra a imagem de conexã o com a diá spora; e (2) a centralizaçã o da cultura em sua
produçã o, expressa nos elementos do Candomblé , manifestada de diversas formas (escritos,
artes), e que determinaria sua imagem de ativista negro com “amplitude de intervençã o
polı́tica”. O tema “cultura negra” e a relaçã o com arte e religiã o africanas remetem ali à principal
categoria mobilizadora de sua contribuiçã o polı́tica. A partir de 1976, esse tema seria ampliado
para uma visã o mais radical com foco na denú ncia de uma sistemá tica eliminaçã o fı́sica e
cultural dos negros, o que será visto a seguir.
b) obras de Inserção
Conforme tratamos no capı́tulo 2, os anos entre 1976 e 1978 foram bastante marcantes
para Nascimento pela sua participaçã o em congressos internacionais, experiê ncia como
professor visitante na Universidade de Ife (Nigé ria), entre outros fatos. O momento de maior
impacto, contudo, foi o Coló quio do FESTAC 77, por suas ocorrê ncias polı́ticas . O conteú do de
seu texto para esse congresso, denunciando a democracia racial, foi considerado uma afronta à
imagem externa do Brasil, resultando na pressã o polı́tica do corpo diplomá tico brasileiro na
Nigé ria para que Nascimento tivesse sua participaçã o vetada (Dá vila, 2010).
Comparado com o tom das obras anteriores dentro do autoexı́lio, o discurso em Racial
‘Democracy’ in Brazil: Myth or Reality?, e sua ediçã o traduzida e ampliada O Genocídio do Negro
Brasileiro, expõ em um Abdias do Nascimento mais radical. O que antes era ponto de apoio para
as manifestaçõ es culturais africanas e elementos de resistê ncia se tornava nestes dois trabalhos
o ponto crucial de denú ncia: o modo como o paı́s estava histó rica, econô mica, polı́tica, social,
cultural e intelectualmente voltado para o extermı́nio sistemá tico do contingente negro.
As obras desse perı́odo servem como “guia de inserçã o” de Nascimento no contexto pan-
africano do ativismo negro. A partir delas, ele projetaria sua imagem e seu discurso para um
pú blico que até entã o desconhecia grande parte das questõ es que envolviam a situaçã o do
negro no Brasil. Alé m de difundir sua ideologia incorporando elementos daquele contexto,
Nascimento remonta sua autoimagem como representante da crı́tica negra brasileira, que lhe
assegura especialmente ser um dos ú nicos ativistas presentes no â mbito daqueles congressos e
seminá rios.
Para ilustrar a produçã o desse perı́odo, vamos analisar trê s obras geradas no contexto do
FESTAC 77 que influenciaram a trajetó ria intelectual e a projeçã o da imagem de Nascimento:
Racial ‘Democracy’ in Brazil? Myth or Reality, de 1977 (doravante Racial Democracy), O Genocídio
do Negro Brasileiro, de 1978 (doravante Genocídio) e Sitiado em Lagos: Autodefesa de um negro
acossado pelo racismo, de 1981 (doravante Sitiado).
b.1 - Racial Democracy e Genocídio
Essas duas obras constituem o texto escrito para apresentaçã o no FESTAC 77. Apesar de
algumas diferenças e de ter sido lançado um ano depois, no limite, Genocídio nã o representa
nenhuma mudança expressiva daquilo que está exposto em Racial Democracy.
Racial ‘Democracy’ in Brazil: Myth or Reality? (A Critical Re-Appraisal of Historical and
Contemporary Structures and Systems of Education in Brazil) (1977) é estritamente uma obra de
“combate”, cujo ponto de partida sã o as contribuiçõ es que já enunciadas até aquele momento
em papers que Nascimento escrevera para seminá rios e congressos de que participou
anteriormente118. A obra é publicada pelo Departamento de Lı́nguas Africanas e Literaturas da
Universidade de Ife, onde Nascimento estava como professor visitante, e dedicada a Florestan
Fernandes119.
O prefá cio, escrito por Wole Soyinka120, trata da noçã o de “autenticidade”. Tal
autenticidade se daria pela oportunidade de o negro falar de si mesmo e de seu povo, sem a
mediaçã o do branco121. No caso, tratar-se-ia de Abdias do Nascimento, que é visto como um
118Vale ressaltar aqui que parte desse material é publicada posteriormente em Brazil Mixture or Massacre? (1979) e O
Quilombismo (1980). Até aquele momento não havia nenhuma reprodução direta que fosse originária desses
congressos internacionais.
119Nascimento, 1977: v. Apesar da importância que tem Fernandes como fonte sociológica para Nascimento, essa
dedicação parece ser resultado de uma “gentileza”, dado que a obra de 1972 de Fernandes, O Negro no Mundo dos
Brancos, é dedicada a Abdias. Posteriormente, Fernandes escreveria também o prefácio da edição brasileira dessa
obra, Genocídio. A figura de Florestan Fernandes, como temos apontado em diversos momentos, aparece
constantemente na obra de Nascimento como “lado parceiro da intelectualidade”, ou seja, de intelectuais que
compreendem a questão negra no Brasil e especialmente as concepções que envolvem a noção de democracia racial.
120 Wole Soyinka, intelectual nigeriano e escritor, é uma das figuras mais importantes do mundo intelectual africano.
Ganhador do Prêmio Nobel, é autor da seminal obra Myth, Literature and the African World, obra que assumiu
importância na reflexão acerca da questão literária pan-africana. Soyinka era naquele período professor de Literatura
Comparada na Universidade de Ife, e também participou de diversos congressos no continente africano, incluindo
alguns onde teve contato com Nascimento, como o VI Congresso Pan-Africano de 1976 e o Seminário das Alternativas
do Mundo Africano, organizado pela Associação dos Escritores Africanos, da qual era presidente. Para mais
informações sobre seu pensamento, ver Soyinka, 2006 [1976].
122Apesar da “novidade” que a obra representava em termos do foco sobre a questão do genocídio, a estrutura do texto
segue basicamente a mesma do artigo “Genocide: The Social Lynching of Africans and Their Descendants in Brazil”,
presente na coletânea Brazil Mixture or Massacre?. Naquela publicação, Nascimento atribui a data de uso do texto em
duas ocasiões: fevereiro de 1976 e Fevereiro de 1977. Pelo teor da construção, e presença da estrutura na publicação
de 1977, podemos sugerir que ele tenha sido apresentado parcialmente em 1976, mas que tenha recebido uma versão
mais concreta em 1977, tributária portanto da obra Racial Democracy. Como mencionamos, os textos dos congressos
são publicados apenas em 1979.
que mais da metade da populaçã o brasileira seria de origem africana123. A ideia do clareamento
populacional, do “quanto mais branco melhor”, orientaria a noçã o de “harmonia racial”.
De acordo com os argumentos apresentados por Dzidzienyo (1971), a ideologia da
democracia racial seria responsá vel pelo entravamento da discussã o racial e da crı́tica sobre a
experiê ncia africana no Brasil promovidas pelos movimentos negros. O tratamento ideoló gico
de todos os grupos é tnicos como “brasileiros” e a ocultaçã o de dados estatı́sticos oficiais124
representariam formas de controle social: os negros brasileiros nã o teriam indı́cios legais ou
informaçã o adequada para utilizar como instrumento de luta e ativismo.
A outra estraté gia do genocı́dio é o “embranquecimento cultural”, ou seja, a destruiçã o do
legado cultural africano. Nascimento endereça sua crı́tica contra os defensores da democracia
racial, responsá veis pelo calculado genocı́dio fı́sico, cultural e social dos negros. O governo se
utilizaria do aparato educacional e do controle das mı́dias , como mote à “destruiçã o do negro
como pessoa e como criador e possuidor de uma cultura” (Nascimento, 1977:45).
Com isso o autor retoma a crı́tica sobre sincretismo cultural, imposto pelo catolicismo e
tido como falseamento da ideologia dominante, apontando que as concepçõ es metafı́sicas e
esquemas filosó ficos africanos, a estrutura de seus ritos e liturgias religiosas nunca haviam
recebido o verdadeiro reconhecimento como parte da identidade nacional brasileira. Como
consequê ncia, a cultura negra africana seria reduzida à condiçã o de folclore, conjunto de
manifestaçõ es vistas de modo “exó tico, estereotipado e animalesco, para que o branco pudesse
explorá -la em seu benefı́cio”. (Ibid: 62)
123 Nascimento não reporta a nenhuma pesquisa ou números oficiais para tal afirmação, ao mesmo tempo que justifica
politicamente a ausência desses números. Esse argumento parece ser “antigo”, dado que desde os anos 1950,
Guerreiro Ramos já postulava que o negro era realidade da constituição demográfica brasileira, portanto pensar no
negro não era pensar em um grupo minoritário e sim no povo (RAMOS, 1995 [1957]). Independente de ser essa uma
formulação política (e filosófica) de Guerreiro, ela parece ter sido assimilada na ideologia política de Nascimento. Mais
além, Nascimento dá ares pan-africanistas e (mais) políticos à ideia, como vemos nesse trecho:
“It would be correct to estimate at least 50% of the population of Brazil as belonging to the Black race, at least
phenotypically. However, if our focus were to observe a rigorously racial perspective, that is to classify all Brazilians with
blood of African blood origin as Black, we could come to the conclusion that Brazil is a Black country - since close to 80%
of her current population of 110,000,000 inhabitants is found to be definitely ‘contaminated’ with blood of African origin
-the second largest Black country of the world. And this brings us to the logical consequence: that we are dealing with a
nation with a Black majority governed by white minority, a South American version of the Union of South Africa…”
(Nascimento, 1977: 40).
É importante ressaltar que a ideia de “segunda maior nação negra do mundo” não é exclusiva do discurso político de
ativistas negros. Como mencionamos no capítulo anterior, o governo militar (e o empresariado vinculado a ele) a partir
dos anos 1960, no interesse de expansão de negócios pelos países africanos recém libertos, se utilizou de tais
argumentos para se aproximar daqueles governos. Para essa questão, ver Dávila, 2010 e Santos, 2005.
124 Os censos demográficos durante o regime militar não incluíam informação de cor/etnia nos questionários. Além
dessa situação, Nascimento faz menção também ao ocultamento dos documentos relativos à escravidão, que em 1899
teriam sido destruídos por ordem do Ministro das Finanças Rui Barbosa.
Em tom de discurso, Nascimento exorta “os negros e os africanos”125 a lutarem pelos
interesses e necessidades da civilizaçã o africana, partindo de ideais pan-africanistas. Essa
exortaçã o se inclui nas dezessete recomendaçõ es finais que traçaria para o Coló quio, entre
outras, como a junçã o de pautas polı́ticas já presentes no seu discurso desde o perı́odo do TEN,
com pautas oriundas das incorporaçõ es feitas em sua ideologia a partir da experiê ncia do
autoexı́lio126.
Para alé m de seu conteú do crı́tico, Racial Democracy é marcado por sua relativa profusã o
na literatura internacional, sendo a primeira obra de Nascimento em lı́ngua inglesa, que recebe
certo reconhecimento por parte de intelectuais e ativistas estrangeiros, em particular dos que
partilhavam de convicçõ es pró ximas em relaçã o à concepçã o de pan-africanismo e diá spora.
Rastreando a literatura internacional, pode-se encontrar referê ncia sobre essa obra em
trabalhos de intelectuais como Angela Gilliam127, Ronald Walters128, entre outros. Racial
Democracy torna-se a primeira obra de Nascimento passı́vel de incorporaçã o e referê ncia
dentro do “mundo africano”. A importâ ncia desse fato se dá porque, como explorado no capı́tulo
2, seu ativismo negro nos EUA nã o teve pleno reconhecimento. A possibilidade de Nascimento
ser lido e se tornar uma referê ncia sobre Brasil no contexto internacional se coaduna com a
autoimagem projetada em sua trajetó ria no autoexı́lio, para cuja formaçã o a obra contribui .
O livro O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado, 1978, é a
priori a versã o brasileira de Racial Democracy. Ei a primeira obra de Nascimento publicada em
portuguê s apó s sua ida para o exterior129. Como mencionamos acima, nesse momento a
125Quando Nascimento menciona “negros e africanos”, como acontece recorrentemente no texto, ele trata do conjunto
de indivíduos de ascendência africana (etnicamente) do continente (africanos) e da diáspora (negros), ou seja, territórios
historicamente ocupados por indivíduos de descendência daquele continente. De certo modo, o autor utiliza as
referências constantemente cruzadas (“negros”, “negro-africanos”, “africanos”, “afro-brasileiros”), que pode levar a
confusão. Entretanto, dentro do contexto de seu discurso ideológico o sentido é sempre voltado a todos os
descendentes da etnia negra.
126Entre tais recomendações se inserem a inclusão de estatísticas raciais no censo nacional, a divulgação de
documentos que possibilitem resgatar informações sobre período da escravidão, ensino de História e Cultura africana
nas escolas em todos os níveis, ensino escolar de línguas africanas, política de compensação para negros na esfera
pública e privada, suporte financeiro à organizações negras, e (talvez uma das mais interessantes) o estímulo por parte
do Governo da formação de uma liderança negra na esfera política, no Legislativo, Executivo e Judiciário. Interessante
notar que parte dessas pautas vão guiar o discurso político de Nascimento mesmo quando ele retorna ao Brasil,
remontando parte dessas recomendações também como uma “agenda política” do autor.
127Ver Gilliam, A. “Sexual Commodification of the Women”, in: McClaurin, I. Black Feminist Anthropology: Theory,
Politics, Praxis and Poetics. New York: Rutgers, 2001. A proximidade descrita entre os dois, no capítulo 2 desse estudo,
não diminui a importância dessa referência, dado que é a única obra de Nascimento que aparece em seus registros.
128 Ver Walters, R. W. Pan Africanism in African Diaspora. Wayne State University Press, 1997. Nesta obra, uma espécie
de releitura de quase 30 anos de reflexão sobre a diáspora negra, o intelectual norte-americano Ronald Walters designa
uma seção específica para tratar sobre Abdias do Nascimento, dentro do item “Pan-Africanismo no Brasil”. Como temos
insistido aqui, essa construção é tributária da imagem e produção realizada por Nascimento durante seu autoexílio.
Voltaremos a essa questão mais a frente.
129Excetuamos aqui seu depoimento prestado ao projeto “Memórias do Exílio”, de 1976, por não considerarmos essa
reconstituição como “obra autoral” de Nascimento.
ideologia da democracia racial recebia um foco especial sob uma perspectiva pan-africanista.
Trata-se, portanto, da primeira obra brasileira em que o autor emprega tal referencial
afrocê ntrica.
Há pequenas inserçõ es em relaçã o à estrutura original da obra de 1977130, poré m as
questõ es polı́ticas tratadas sã o as mesmas. Alguns trechos sã o reestruturados para dar mais
peso ao discurso polı́tico na lı́ngua nativa do autor, com inclusã o de expressõ es metafó ricas e
novas referê ncias de autores e intelectuais negros e africanos.
Comparado ao Racial Democracy, em Genocídio o autor amplia as referê ncias citadas,
fazendo crı́ticas mais diretas aos intelectuais considerados “guardiã es da ideologia da
democracia racial”. Dentre eles, um dos principais é Gilberto Freyre a quem Nascimento critica
mais agressivamente, em parte, como resposta polı́tica ao soció logo pernambucano em
defender a manutençã o das colô nias portuguesas na Ai frica nos anos 1960 e 1970.
Dentro deste mote, Nascimento amplia sua discussã o sobre a polı́tica externa do Brasil. O
Governo brasileiro nã o estaria alinhado interna ou externamente aos princı́pios de valorizaçã o e
de resgate da cultura negra-africana, haja vista as estraté gias de embranquecimento enredadas
no territó rio nacional e o apoio do paı́s à colonizaçã o europeia nos paı́ses africanos.
A obra traz també m uma adiçã o que chama a atençã o: a referê ncia a Frantz Fanon. Em
Genocídio, as citaçõ es de Fanon ressaltam o cará ter racista das alegaçõ es presentes nos
discursos da ideologia da democracia racial. Todavia, o psiquiatra martinicano nã o é
incorporado teoricamente ao texto. Nos trechos em que é citado, sua “voz” apenas reforça o
sentido imposto por Nascimento ao racismo131.
Outra referê ncia acrescentada é digna de nota: no capı́tulo final, destinado a retomar a
histó ria de resistê ncia negra no Brasil a partir dos principais movimentos negros do sé culo XX,
130 A saber, os capítulos inseridos são “A perseguida persistência da cultura africana no Brasil” e “A bastardização da
cultura afro-brasileira”. Também há um prólogo, chamado “A História de uma Rejeição”, que explica o incidente no
FESTAC 77 por não ter seu trabalho aceito, e a mobilização do governo brasileiro para silencia-lo - fatos que discorrerá
mais amplamente na obra “Sitiado”. Na re-edição da obra, em 2002, publicado em conjunto com “Sitiado”, conjunto
denominado “O Brasil na Mira do Pan-Africanismo”, Nascimento insere mais dois artigos como anexo do final de
“Genocídio”. Estes, a saber “Teatro Negro do Brasil: uma Ausência Ostensiva” e “Arte Afro-Brasileira: um Espírito
Libertador”, teriam sido publicados nas revistas nigerianas “Afriscope” e “Ch’Indaba” respectivamente, por ocasião do
FESTAC. No entanto, conforme verificamos na reconstituição da produção bibliográfica de Nascimento, ambos os
artigos são uma re-edição (quase sem alterações) de textos anteriormente publicados nos EUA: o primeiro em 1967 (e
depois novamente em 1971) e o segundo em 1976. Ver Nascimento, 1971 [1967] e 1976a.
131 Guimarães em um artigo sobre a recepção de Frantz Fanon no Brasil discorre sobre o “atraso” da incorporação das
ideias de Fanon na reflexão nacional, bem como o fato de ela ter ocorrido de forma esparsa e pouco concentrada
(Guimarães, 2008). Nesta obra de Nascimento não é diferente, apesar de se configurar uma referência interessante
dado ser a primeira vez em sua ideologia que recorre a esse autor. As citações são todas provenientes de um único
livro, Toward on African Revolution, de 1969, a exceção da última citação que é referente ao livro Black Skin, White
Masks, mas apenas como epígrafe do último capítulo - e não inserido ao texto, como as outras referências.
Nascimento faz mençã o ao MNU, recé m fundado em 1978132. No conjunto das associaçõ es
negras que o autor destaca dos anos 1970, como SINBA, o Instituto de Pesquisas das Culturas
Negras133, o MNU aparece como movimento oriundo de uma “ativa e politizada comunidade
negra” (Ibid:191). Ei possı́vel sugerir que essa adiçã o decorre de um certo interesse de
Nascimento em estabelecer um diá logo direto com a nova geraçã o do ativismo negro brasileiro.
Esse diá logo parece se intensificar nas obras posteriores, especialmente O Quilombismo (1980).
Em relaçã o a sua autoimagem, a obra Genocídio marca para o pú blico brasileiro a etapa do
ativismo e das experiê ncias de Nascimento, inseridas em um contexto internacional, em que se
destaca a relaçã o polı́tica que o autor estabelecera com as concepçõ es provenientes do pan-
africanismo e do afrocentrismo. Nascimento reforça sutilmente que sua contribuiçã o está
entrelaçada com o tempo e com o cará ter multifacetado dessa atuaçã o: “esta é a nossa
contribuiçã o na denú ncia que, atravé s dos anos e de vá rias formas e maneiras, tem confrontado
a arrogâ ncia e a pretensiosidade racial da sociedade brasileira” (Nascimento, 2002 [1978]: 198).
b.2 - Sitiado
Sitiado em Lagos: Autodefesa de um negro acossado pelo racismo é uma obra polı́tica de
reconstituiçã o de fatos histó ricos ocorridos durante o incidente de FESTAC 77. Apesar de ter
sido publicado somente quatro anos depois dos acontecimentos, Sitiado se configura como um
acerto de contas com os “defensores” da ideologia da democracia racial e com o governo
brasileiro. Reproduzindo documentos oficiais adquiridos de uma fonte nã o revelada,
Nascimento tenta demonstrar toda a estraté gia da diplomacia brasileira para impedi-lo de
divulgar suas ideias contra a concepçã o de democracia racial do paı́s.
Para ampliar a situaçã o de perseguiçã o, Nascimento vincula aquela situaçã o ao momento
anterior, em 1975, quando teve seu passaporte apreendido pela embaixada brasileira nos
EUA134. A imagem de perseguido polı́tico pelo seu ativismo e denunciador internacional do
racismo brasileiro assume posiçã o central em seu discurso apenas apó s o incidente de 1977;
nã o há registro dessa questã o do passaporte em nenhum dos textos ou depoimentos entre 1975
132Como já destacamos anteriormente, Nascimento esteve em São Paulo na data da fundação simbólica ocorrida nas
escadarias do Teatro Municipal da cidade, julho de 1978.
135 É importante ressaltar que Nascimento também aponta outros regimes de governo, estes localizados no continente
africano, que seriam “imagem e espelho” do regime brasileiro em termos de repressão, autoritarismo e violência. Entre
eles o ditador do Zaire, Mobuto Sese Seko, acusado de “entreguismo”, de ser “servo do neocolonialismo” em África e
protagonizar uma “ditadura corrupta e repressiva” (Nascimento, 41-42). Vale lembramos que durante o Colóquio, o
ditador se posicionou a favor da delegação brasileira diante das acusações de Nascimento.
137 Para entendermos algumas das questões que mais afetam a maneira como Nascimento reage, transcrevemos aqui
alguns trechos da nota:
“A embaixada brasileira em Lagos lamenta muito os aborrecimentos causados pelo Sr. Abdias do Nascimento às
autoridades competentes do Festac 77, em relação ao ensaio que ele apresentou ao Colóquio, o qual foi rejeitado por
sua junta de seleção de trabalhos como ‘não estritamente acadêmico. (…) o Sr. Abdias do Nascimento nasceu
efetivamente no Brasil, mas ele tem vivido por mais de 10 anos nos Estados Unidos, onde está, sob cobertura de dar
palestras, trabalhando como militante político com dúbios grupos engajados em protestos contra a segregação racial.
Os trabalhos do Sr. Abdias do Nascimento nos Estados Unidos são considerados, como agora se viu na Nigéria,
destituídos de valor acadêmico e reconhecidos como de uma natureza panfletária, desde que eles são planejados,
financiados e aprovados pelas organizações que os patrocinam e a seus estudos. Ninguém pode negar que, assim, têm
algum valor onde a intolerância racial prevalece. (…) O melhor caminho para julgar o Sr. Nascimento é ler seu próprio
trabalho. Ele mesmo é uma contradição viva de sua tese, desde que ele casou duas vezes - uma brasileira branca e
agora, na idade de 62, ele persistentemente comete ‘genocídio’ tendo casado com uma loura americana de 19 anos de
idade. As atividades do Sr. Abdias do Nascimento são conhecidas desde os dias de pré-guerra quando ele se registrou
como um membro proeminente do chamado ‘partido fascista’ do Brasil, baseado no modelo do partido nazi, um partido
que defendia, como é sabido, ideias de ‘supremacia branca’, tornando-se - e isto não teria sido de outra forma - o objeto
da gargalhada do dia. Falhando de impressionar qualquer segmento da opinião pública brasileira, e levantando sérias
dúvidas entre muitos de que ele deve ser mentalmente desequilibrado, o Sr. do Nascimento deixou o país de sua
própria vontade, para propagar absurdas teorias as quais só têm repercussão onde a intolerância racial é um assunto
de preocupação. Nos parece uma pena que o Sr. Nascimento deixasse de entender que ele está sendo usado como um
títere bem pago. (…) Em 200 anos, ninguém jamais ouviu falar de problemas ou conflitos raciais no Brasil. O Brasil
apresenta, a este respeito, sua grande contribuição universal, como o mais genuíno, espontâneo e significativo exemplo
para qualquer país realmente interessado em aprender a praticar a tolerância racial” (Nascimento, 1981: 49-51).
reportados nas mensagens. Outra nota especı́fica elogia com mé rito o serviço de informaçã o
prestado pelos professores Fernando A. A. Mourã o, Dorea, George Alakija e Jurandyr138, “cuja
cooperaçã o tinha sido importante na conquista daqueles resultados positivos”139.
Trê s mensagens desvelam os temores do governo brasileiro, entre os quais cita-se a
tentativa dos EUA em atribuir ao Brasil a imagem de naçã o racista, tirando assim o foco do
mundo sobre suas pró prias leis de discriminaçã o e do regime racialista da Ai frica do Sul.
Respaldado na ideia do apoio “subversivo” dos norte-americanos a Nascimento, o corpo
diplomá tico divulga que o autor era um representante “de grupos americanos de inspiraçã o
esquerdista” (Ibid.: 40).
Em um aspecto geral, as obras de Inserçã o marcam dois pontos essenciais na trajetó ria de
Nascimento: (a) a incorporaçã o plena de uma perspectiva pan-africanista em sua ideologia
polı́tica perante os pú blicos estrangeiro e brasileiro atravé s de um discurso mais agressivo; e (b)
a partir dessa incorporaçã o, a projeçã o de sua imagem pessoal de ativista e pensador da
diá spora, representante da luta pan-africanista no contexto do Brasil.
A noçã o de cultura negra na ideologia de Nascimento, no contexto de 1976-1978,
configura-se cada vez mais em um terreno estritamente polı́tico. Como se pode perceber, a
imagem de liderança despontada a partir de sua experiê ncia de deslocamento e produçã o
afrocê ntrica seria construı́da nas obras de Inserçã o e nã o apenas com o conceito de
quilombismo, como faz o autor . Invariavelmente, a recepçã o que teve no contexto internacional
com a obra Racial Democracy acaba lhe servindo de motivaçã o para prosseguir na sua reflexã o e
engendrar um projeto de coletâ neas, ou melhor, de obras que sintetizassem e consolidassem seu
pensamento e sua atuaçã o na trajetó ria internacional. Ei nesse â mbito que se inserem as obras
de Consolidaçã o.
138Mesmo que grande parte das críticas feita ao corpo de intelectuais que compunha a delegação brasileira em termos
de sua “servilidade ao governo” e promoção da noção da democracia racial seja mais ideológica do que teórica, em
momento conclusivo do texto Nascimento expõe uma crítica mais convincente:
“Serviços de idêntica natureza são também registrados no fato, bastante ilustrativo, dos ‘professores’ Gumercindo Dorea
e Jurandyr terem participado como delegados oficiais do Colóquio e Lagos sem haverem apresentado qualquer
contribuição, escrita ou oral. A investidura de ambos se inscreveu no âmbito exclusivo da ‘informação’ e da pressão, a
serviço do governo ditatorial. Nunca, nem antes e nem depois do Festac, esses ilustres desconhecidos do mundo afro-
brasileiro prestaram qualquer contribuição à causa do negro” (Nascimento, 1981: 60-61).
139p. 40. Durante a pesquisa tentamos rastrear tais professores, alguns dos quais pertencia a Universidade de São
Paulo, como Fernando A. A. Mourão. Nosso interesse era verificar a relação que eles teriam com o governo, sendo
parte da delegação oficial, e a imagem destes sobre Nascimento. No entanto não conseguimos acesso a nenhum dos
que permanecem vivos. Entretanto, em depoimento coletado do Professor Kabenguele Munanga (Agosto de 2011), este
afirma que parte desses professores não respondeu a crítica de Nascimento por considerá-lo “apto” a faze-las. No caso
do professor Mourão, como ressalta Munanga, “um dos introdutores de Estudos Africanos na USP”, ele não teria
guardado nenhum ressentimento ou desejo de responder a Nascimento, pois ele entendia a posição do líder negro
como produto de seu ativismo político, e não uma questão específica com intelectuais.
c) obras de Consolidação
Essas obras també m poderiam ser chamadas de obras de coletâ nea porque se constituem
como a organizaçã o e a consolidaçã o da atuaçã o do autor no contexto do ativismo internacional.
Basicamente marcam essa produçã o: Brazil: Mixture or Massacre? e O Quilombismo, coletâ neas
de textos provenientes da participaçã o de Nascimento em congressos e seminá rios
internacionais.
Como temos apontado, nesse momento Nascimento tenta consolidar sua imagem formada
no exterior, e a partir dela, endossar uma posiçã o honrada de ativista negro na diá spora.
Analisaremos os principais tó picos das duas obras, com enfoque nas suas principais questõ es e
respectivas implicaçõ es na imagem do autor.
O livro Brazil Mixture or Massacre? (doravante Mixture) ilustra a noçã o de unidade que
Nascimento pretende construir em torno de sua trajetó ria intelectual; para isso o autor aglutina
textos produzidos em é pocas e contextos diferentes como “capı́tulos de um mesmo livro” 140.
Pode-se sugerir, portanto, que a estrutura do livro remonta a uma estrutura simbó lica, pela
forma como o autor pretende tornar pú blico seu legado.
Assim como ocorre entre Racial Democracy e Genocídio, as estruturas de Mixture e O
Quilombismo sã o basicamente as mesmas141; apenas, no conjunto, O Quilombismo, publicado em
1980, constró i em seu movimento interno um sentido de “consolidaçã o” do pensamento do
autor.
Os dois livros retomam os principais tó picos de seu ativismo polı́tico , tais como: a cultura
negra como elemento de afirmaçã o e resistê ncia; releitura da histó ria do Brasil pela ó tica da
participaçã o do negro; revelaçã o da produçã o artı́stica e cultural do negro, demarcando a funçã o
e importâ ncia dessa arte e dos elementos religiosos afro-brasileiros na manutençã o do legado
africano; vı́nculo entre democracia racial e um genocı́dio fı́sico e cultural do negro brasileiro;
polı́tica externa do Brasil alinhada com o sistema colonial e racista.
141 Apenas o artigo “O Quilombismo”, que é do mesmo ano da publicação do livro, não consta em Mixture.
Dentro desta percepçã o, analisaremos aqui somente o ú ltimo artigo publicado na versã o
brasileira, “O Quilombismo”, escrito para o 2o Congresso de Cultura Negra nas Amé ricas, que
ocorrera em 1980 no Panamá 142, mais precisamente quanto à contribuiçã o deste para a
trajetó ria de Nascimento.
Há diversas leituras que se podem fazer dos sentidos representados pelo conjunto dessa
obra. Aqui, mostraremos como a ideia de “sı́ntese” determina a emergê ncia do quilombismo e dá
tonalidade à posiçã o de Nascimento no autoexı́lio.
Essa ideia de sı́ntese envolvendo o conceito també m é tratada em alguns trabalhos na
literatura socioló gica. Assim, articulamos nossa discussã o com base em trê s autores, a saber,
Hofbauer (2006), Siqueira (2006) e Guimarã es (2002; 2005).
Andreas Hofbauer, em Uma História de Branqueamento ou o Negro em questão, trabalha
sobre os conceitos de raça, cultura e identidade como conceitos-chave de discursos de inclusã o e
exclusã o (Hofbauer, 2006: 15), destacando a importâ ncia dos intelectuais negros no debate
sobre a questã o racial.
Na perspectiva de Hofbauer, Nascimento representa, por sua biografia, a “metamorfose
ideoló gica e semâ ntica” que o movimento negro brasileiro sofrera entre os anos 1950 e 1980, e
sua ideologia “elucida alguns passos do processo de reorientaçã o radical do ideá rio do
movimento negro” (Hofbauer, 2006: 371). Ei nesse â mbito que o autor insere a aná lise de
quilombismo.
Para Hofbauer, o livro O Quilombismo representa uma sı́ntese ao congregar no discurso do
“artista e intelectual” Abdias do Nascimento “ideias que estavam sendo debatidas na é poca
entre militantes negros, e tenta transformá -las em um projeto amplo” (Ibid.: 373). Como
enfatizado anteriormente, Nascimento dialogava com a nova geraçã o desde Genocídio, em
especial com intelectuais como Lé lia Gonzá lez e Beatriz Nascimento, incorporando alguns de
seus elementos referentes à noçã o de quilombo, como foco de resistê ncia construı́do a partir da
experiê ncia histó rica brasileira.
També m compondo essa sı́ntese, Hofbauer chama a atençã o para a mudança no discurso
de Nascimento em relaçã o ao seu pensamento nos anos 1950, “fortemente impregnado por
concepçõ es de inclusã o e exclusã o caracterı́sticas do mundo norte-americano, por ideias
culturalistas ligadas ao par conceitual ‘etnia e cultura’” (Ibid.: 373). A partir dessa impregnaçã o,
o estudioso austrı́aco delineia as referê ncias utilizadas por Nascimento nesse contexto: Diop
para ideia de racismo e Nyerere para noçã o de “comunalismo africano”.
142 Há ainda outra versão publicada em inglês, em uma edição especial do Journal of Black Studies, na qual
Nascimento fora editor convidado. Ver “Quilombismo: An Afro-Brazilian Political Alternative”, Journal of Black Studies,
Vol. 11 No 2, Dec. 1980.
Como discutido no item Influê ncias, Nascimento, de fato, incluı́a a reflexã o de intelectuais
africanos em sua ideologia, como forma de aproximá -la de um discurso pan-africanista. Por isso,
a ideia de Hofbauer da “impregnaçã o norte-americana” nã o procede, pois, como vimos, a
interlocuçã o de Nascimento ocorre quando ele interage com o meio intelectual africano. Mesmo
diante das constantes referê ncias aos intelectuais norte-americanos John Henrik Clarke ou
Maulana Karenga, os elementos referentes ao pan-africanismo presentes no conceito de
quilombismo sã o provenientes do pensamento africano, como Hofbauer acredita.
A percepçã o de Hofbauer acerca dos crité rios de inclusã o e exclusã o que marcariam o
pensamento quilombista de Nascimento remonta, de fato, a uma visã o multicultural, que seria
tributá ria do esforço que Nascimento realiza em seu discurso ideoló gico durante os anos 1970
para construir a relaçã o entre a cultura negra brasileira e a cultura africana, em uma perspectiva
afrocê ntrica. Apesar de levar em consideraçã o as referê ncias que conformam a sı́ntese em torno
do conceito, Hofbauer se até m aos pontos mais ideoló gicos da noçã o de quilombismo, o que o
impede de enxergar os pressupostos polı́ticos daquele discurso. Ao ressaltar a ideia de
sociedade quilombola como sı́mbolo má ximo do projeto pan-africanista do autor, ele obscurece
a importâ ncia de outros elementos na composiçã o do discurso de Nascimento, dentre os quais,
estã o a noçã o de democracia, a questã o de gê nero e a defesa de uma abordagem cientı́fica
afrocê ntrica que, juntos, corroboram para que se entenda quilombismo mais como uma
proposta de representar o pensamento pan-africanista no contexto brasileiro do que um
programa polı́tico delimitado e preciso.
José Jorge Siqueira segue a mesma ló gica de Hofbauer ao enfatizar a internacionalidade
do conceito e valorizar por demais a ideia estabelecida de “alternativa nacional do sistema
capitalista desumano” (Siqueira, 2006: 225), como um “receituá rio pronto e acabado” (Ibid.:
226). Siqueira classifica a aná lise de Nascimento como “crı́tica é tico-moral maniqueı́sta” por
sua oposiçã o aos modelos cientı́ficos e contribuiçõ es acerca da historicidade do negro como
tributá rias dos ideais eurocê ntricos. No entanto, nã o vislumbra que essas formulaçõ es sã o
meramente ideoló gicas, servindo apenas para Nascimento criar uma clivagem polı́tica
idealizada, na qual ele se posiciona (e, consequentemente valoriza sua pró pria abordagem) em
oposiçã o a outras formulaçõ es. Ainda, como demonstrado, nã o é todo o debate que Nascimento
critica em sua aná lise ideoló gica: sã o os autores, alinhados aos princı́pios da democracia racial.
De fato, a crı́tica de Siqueira sobre quilombismo é construı́da sobre o propó sito ideoló gico
do conceito, por isso ele enxerga apenas o lado teleoló gico do discurso de Nascimento,
caracterizando-o como “metafı́sico”, denotador de um “reino da utopia e da ficçã o” (Ibid.: 226).
Dois sã o os problemas dessa abordagem: (1) levar a proposta ideoló gica como base do conceito,
o que acaba descaracterizando a construçã o polı́tica das outras pautas que marcam o
pensamento do autor durante os anos 1970 – e que estã o presentes nos artigos do livro -; e (2)
cobrar de Nascimento a mesma construçã o rigorosa e analı́tica dos intelectuais brasileiros,
como Florestan Fernandes.
Realmente, a autoimagem construı́da por Nascimento era de que sua ideologia fosse
considerada legı́tima para reflexã o sobre as questõ es raciais no Brasil. Contudo, e Siqueira
segue por esse caminho, Nascimento nã o pode ser colocado no mesmo patamar de outros
intelectuais da sociologia nacional, pois seu pensamento está estritamente vinculado ao seu
ativismo polı́tico. Quando Siqueira olha para os pontos teleoló gicos e os critica , o historiador
acaba, mesmo que negativamente, “caindo nas graças” do discurso de Nascimento: tomando a
sé rio a pauta menos consistente de sua ideologia.
Um autor que consegue depurar a tonalidade entre ideologia e contribuiçã o ao
pensamento racial presente em quilombismo é Antô nio Sé rgio Guimarã es, ao analisar o conceito
em dois momentos (Guimarã es, 2002 e 2005), dentro da reconstituiçã o do movimento negro
brasileiro no inı́cio dos anos 1980, levando em consideraçã o a “evoluçã o” do pensamento do
autor. Essa aná lise contextual é indubitavelmente necessá ria para que se entendam ideias
propostas por Nascimento em O Quilombismo, o sentido da obra e o teor das noçõ es ali
abordadas. Trata-se, portanto, de levar també m em consideraçã o o teor teleoló gico de algumas
das propostas presentes na caracterizaçã o do conceito e entendê -las dentro do ponto de vista
contextual do pensamento negro, perspectiva nã o adotada por Hofbauer e Siqueira.
Guimarã es aponta duas influê ncias que teriam fundamentado a doutrina quilombista, a
saber, o afrocentrismo, de “intelectuais africanos e afrodescendentes radicados na Europa e nos
Estados Unidos” (Guimarã es, 2002: 100) e o marxismo, da vertente mais pró xima ao
nacionalismo brasileiro dos anos 1960.
O afrocentrismo veio atravé s de Diop e Asante sob um projeto de “filiar os negros
brasileiros a uma ‘naçã o’ negra transnacional, de cuja matriz teria evoluı́do a civilizaçã o
ocidental e cujas raı́zes mais profundas se encontram no Antigo Impé rio egı́pcio e na presença
africana na Amé rica pré -colombiana” (Ibid.: 100). Guimarã es, portanto, considera o
afrocentrismo parte de um movimento de invençã o de tradiçõ es, inserido em uma reivindicaçã o
de processo civilizató rio negro, presente nos discursos construı́dos no autoexı́lio. O modo como
Nascimento articulara cultura negra, arte e elementos da religiã o de origem africana dera
condiçõ es para formulaçõ es com sentido de criaçã o de mitos, de novos processos de integraçã o
na civilizaçã o. A construçã o desse eixo afrocê ntrico dos anos 1970 em seu pensamento, como
lembra Guimarã es, teria assumido lugar da “negritude” dos anos 1950143.
O marxismo como referê ncia seria a base da relaçã o de sı́ntese que conecta o pensamento
de Nascimento em Quilombismo com a ideia de emancipaçã o do negro e da exploraçã o
capitalista do povo brasileiro. Poderı́amos adicionar um ponto à correta interpretaçã o de
Guimarã es: o recorte à esquerda de suas pautas polı́ticas també m tem certa raiz na ideologia
pan-africanista dos anos 1970, principalmente em intelectuais como Julius Nyerere, George
Padmore e Ron Walters.
Para Guimarã es, o quilombismo deve ser visto por sua integraçã o com a realidade
brasileira, em especial no movimento de redemocratizaçã o, momento do retorno do autor.
Nesse sentido, os elementos ideoló gicos do quilombismo sã o anticapitalismo, birracialismo,
noçã o da maioria (povo) oprimida, exclusã o e terror sofridos pelo povo negro, inclusã o plena
por meio dos direitos civis e anti-imperialismo (Guimarã es, 2002: 103-105). Esses elementos
podem ser identificados, a nosso ver, em duas interlocuçõ es do autor no inı́cio dos anos 1980:
com a nova geraçã o do movimento negro, especialmente com os militantes do MNU, e com o
PDT de Brizola, no qual Nascimento exercia influê ncia em termos de “polı́tica negra”.
De acordo com Guimarã es, é que o autor desejava demonstrar que se podem absorver os
sentidos implicados na construçã o de quilombismo por meio das conexõ es polı́ticas com a
realidade. O lado “teleoló gico” é , a nosso ver, uma possibilidade que Nascimento enxergava em
si de criar uma nova proposta pan-africanista para o Brasil. Entretanto, o pragmatismo e
experiê ncia do autor fazem com que ele aspire a outros elementos mais concretos na
interlocuçã o polı́tica com os grupos citados.
No artigo de 2005, Guimarã es reforça as implicaçõ es do diá logo de Nascimento com as
teorias transnacionais do pensamento negro internacional, apontando que houve
enriquecimento da ideologia polı́tica de Abdias, no entanto aquelas ideias oriundas do “mundo
anglo-afro-saxô nico” nã o seriam absorvidas de forma isolada. Elas integrariam a “velha matriz
da identidade negra brasileira, à negritude brasileira com suas inclinaçõ es nacional-populistas,
seu anticolonialismo e anti-imperialismo, potenciadas pela noçã o camusiana de resistê ncia”
(Guimarã es, 2005: 164). Como já foi tratado, nesse artigo, Guimarã es destaca a importâ ncia das
noçõ es de resistê ncia e revolta presentes em Albert Camus na ideologia polı́tica de Nascimento,
confirmando que o seu pensamento polı́tico sofreria, no final dos anos 1960, uma ruptura com
143Apesar de não termos ressaltado na análise das peças, quando comparamos a introdução do autor presente na
primeira edição de Drama para Negros e Prólogo para Brancos (1961), com a mesma introdução reproduzida (e
editada) na segunda edição de Sortilégio (1979), percebemos a total supressão do termo “negritude”, que é substituído
por “consciência negra” ou “identidade negro-africana”. Ver Nascimento, 1979.
as ideias da democracia racial de vá rios setores progressistas (incluindo os intelectuais negros
do TEN) nos anos 1940 e 1950.
O que Guimarã es faz é contextualizar o conceito em termos das possibilidades de
entendimento no cená rio em que fora divulgado, no caso o retorno de Nascimento ao Brasil.
Aqueles elementos mencionados no texto de 2002 sã o enxergados ali pela luz da conjuntura
polı́tica dos anos 1980 e pela internacionalizaçã o da luta negra em conexã o com alguns
movimentos sociais internacionais, tais como “restabelecimento da democracia na Amé rica
Latina, defesa dos direitos humanos ameaçados pelas ditaduras instaladas na dé cada de 1960, a
luta contra o apartheid e contra as desigualdades raciais e de gê nero” (Guimarã es, 2005: 165).
Por fim, Guimarã es aponta que a real novidade do discurso quilombista de Nascimento jaz
sobre as influê ncias do discurso afrocê ntrico, adquirido durante seu autoexı́lio. Segundo o autor,
“é certamente dele que decorrem os pontos mais virulentos do discurso quilombista: a denú ncia
do genocı́dio fı́sico e cultural que estariam sofrendo os negros brasileiros, e apresentaçã o
internacional da democracia racial como discurso supremacista branco” (Guimarã es, 2005:
166).
O conceito de quilombismo, a nosso ver, també m permite externar outras implicaçõ es para
o percurso de Nascimento. Agregando a aná lise de Hofbauer, Siqueira e Guimarã es, adicionamos
mais trê s pontos para a reflexã o dessa ideia.
I) Primeiramente em relaçã o à definiçã o de quilombismo. Apesar de Hofbauer e Siqueira
retirarem-na do subtı́tulo, “Quilombismo: um conceito cientı́fico emergente do processo
histó rico-cultural das massas afro-brasileiras”, percebe-se que no decorrer o texto Nascimento
nã o apresenta uma definiçã o precisa haja vista as diversas implicaçõ es que faz da ideia. A
intençã o de reforçar um projeto polı́tico comum, que abrangeria os negros da diá spora e os
africanos, dá ao conceito de quilombismo, conforme avança a exposiçã o de seus princı́pios, um
sentido teleoló gico. A falta de uma abordagem mais sistemá tica do conceito obscurece sua
definiçã o e sua singularidade.
Podemos detectar pelo menos quatro aplicaçõ es, a saber: a) Quilombismo como Estado,
ou modelo constitucional de organizaçã o social (Estado Nacional Quilombista); (b)
Quilombismo como Movimento Social ou Partido/ Agremiaçã o Polı́tica; (c) Quilombismo como
organizaçã o de liderança ou vanguarda do ativismo polı́tico; e (d) Quilombismo como Modo de
organizaçã o socio-econô mico-cultural alternativo - em oposiçã o ao socialismo europeu e ao
capitalismo.
Nesse sentido, entende-se que Nascimento constró i mais uma ampla plataforma polı́tica
de atuaçã o do que apresenta um conceito cientı́fico delineado, conforme expressa o tı́tulo. Em
defesa do autor, argumenta-se que o uso da perspectiva “afrocê ntrica de ciê ncia”, que seria
retirada de Diop (1974), permite-lhe fazer as devidas apropriaçõ es para que, no caso, a ideia de
cientı́fico seja a mesma que polı́tico-ideoló gico.
II) A partir dessa indefiniçã o, deslizante entre diversos contextos e aplicaçõ es, sugere-se
que quilombismo é elaborado como oportunidade de intervençã o polı́tica de Nascimento no
contexto brasileiro apó s seu retorno. Como Guimarã es informa, os principais elementos daquela
ideia se fundamentam na conjuntura polı́tica dos anos 1980.
A partir dela, Nascimento consegue, atravé s dele, inserir-se no PDT e dialogar com os
novos movimentos negros, possibilitando sua intervençã o no programa trabalhista de Brizola,
que preconizava o “socialismo moreno” . Ao mesmo tempo, mas com outro recorte, o discurso
quilombista fundamentava as intervençõ es de Nascimento no ativismo em conjunto com grupos
como MNU, a exemplo de sua participaçã o na subida à Serra da Barriga144 (Alagoas) em 1980.
III) Em relaçã o a sua trajetó ria, o conceito se coaduna com as reelaboraçõ es da
autoimagem feitas durante o perı́odo do autoexı́lio. Entretanto, nosso ponto aqui é que o
quilombismo é mais consequê ncia dessa autoimagem do que criaçã o dela. Como foi esboçado
nesses capı́tulos, os escritos polı́ticos de Nascimento, especialmente as obras de Inserçã o,
refletem a relaçã o que o autor fizera entre sua produçã o (polı́tica e artı́stica), seu ativismo e seu
trâ nsito pelo universo intelectual negro internacional. Essa relaçã o, feita como “partes de um
todo”, toma ares de projeçã o pessoal à medida que ele se insere naquele contexto e se posiciona
como representante do ativismo negro brasileiro em escala internacional.
Nascimento, portanto, incorpora sua condiçã o de autoexilado a partir dos anos 1976 e
1978, atravé s do teor contestató rio de seu discurso, bem como da ampliaçã o de sua produçã o .
Essa condiçã o de exilado marca um novo passo nas obras de Consolidaçã o, na medida em que,
na organizaçã o de coletâ neas e de um novo conceito, quilombismo, Nascimento pretende
consolidar de forma linear e conjunta toda sua experiê ncia , evidenciando um lugar de destaque
e a autoimagem de “ativista e pensador da diá spora”. Nesse sentido, o quilombismo corroboraria
a consolidaçã o externa do que já estava pautado nos escritos anteriores e a transferê ncia desse
status simbó lico para a atuaçã o do autor no Brasil.
Por isso, o quilombismo só poderia ser entendido como consequê ncia das imagens
anteriores de Nascimento, de modo que ele as posiciona em uma linha do tempo na qual relê a
experiê ncia do autoexı́lio e as experiê ncias anteriores, como TEN e outras atividades. Essa
operaçã o pode ser percebida principalmente em dois textos: na introduçã o escrita para a
segunda ediçã o de O Negro Revoltado (1982) e na reediçã o traduzida e ampliada de seu
depoimento para o livro Memórias do Exílio, reproduzida em Africans in Brazil (1992).
Chega-se ao <inal do sucinto estudo para apontar algumas questõ es que re<letiram um
balanço do autoexı́lio, seguindo com o marcador de nossa abordagem, o par discurso-imagem,
para tentar demonstrar as consequê ncias que o exı́lio imprimiu à trajetó ria do autor.
O capı́tulo 1, apoiado na literatura sobre o tema, relata a saı́da do Brasil em 1968 como
artista vinculado ao teatro e ao ativismo negro. Sua ideologia havia passado por uma recente
ruptura, elaborada desde o perı́odo do I Congresso do Negro Brasileiro, com o pacto
democrá tico em torno da noçã o de democracia racial e da mestiçagem (Macedo, 2005,
Guimarã es, 2005, Guimarã es & Macedo, 2008). Assim como outros intelectuais negros do TEN,
Nascimento abraça as ideias de negritude e dá seguimento à s mesmas aproximando-as da
formaçã o de uma identidade negra que nã o estaria contemplada na ideologia o<icial da
mestiçagem. Nesse sentido, a idé ia de negritude com ê nfase na questã o cultural procura
demarcar os caminhos da integraçã o simbó lica do negro brasileiro atravé s da incorporaçã o
das noçõ es de “resistê ncia” e “revolta” (Guimarã es, 2005).
A partir dessa discussã o de negritude e cultura negra, Nascimento compõ e seu discurso
no inı́cio de sua estada nos Estados Unidos de diversas maneiras: na prá tica artı́stica, na qual
os elementos culturais afro-brasileiros sã o a maior inspiraçã o para suas telas; no seu ativismo
polı́tico; em forma teó rica, sugerindo a ponte direta entre cultura negra brasileira e suas raı́zes
africanas. Nesse aspecto, as religiõ es afro-brasileiras, como Candomblé , surgem como locus
privilegiado para detectar essas raı́zes. O autor reforça sua ideologia ao incidir sobre essa
perspectiva a noçã o de resistê ncia, delineando uma de<iniçã o politizada da religiã o dentro de
esfera cultural.
Ainda no capı́tulo 1, foram analisados alguns elementos em torno da ideia de formaçã o
de uma “elite negra” presentes no TEN dos anos 1940 e 1950, especialmente na voz de
Guerreiro Ramos. Nossa principal motivaçã o para explorar esse tó pico era buscar evidê ncias
de uma expectativa de inserçã o e status dos intelectuais negros do TEN a <im de legitimar suas
ideias e re<lexõ es no cená rio da discussã o racial.
Como apresentado por Guerreiro Ramos no Congresso de 1950, havia uma
incompatibilidade de projetos e interesses entre os intelectuais negros do TEN e os setores
progressistas (intelectuais, polı́ticos) da é poca. Essa incompatibilidade nã o parecia ser apenas
sobre a ideia de identidade racial, da negritude, mas també m sobre a in<luê ncia da agenda dos
estudos de á rea, dentre eles o projeto Unesco. Como explicitou Alberto (2011), as expectativas
de inclusã o como “pensadores negros” (black thinkers, na expressã o da autora para designá -
los) seriam frustradas tanto pelo possibilidade de uso de negritude quanto pela possibilidade
de reconhecimento das ideias e pautas legı́timas em torno do debate sobre o negro.
A literatura mostra que, embora Nascimento nã o apresentasse nos anos 1950 nenhuma
intençã o de ser acadê mico ou intelectual (Macedo, 2005, Guimarã es, 2005), a evoluçã o de sua
imagem no perı́odo do exı́lio mostra uma <igura de liderança e de “pensador”. Destacamos
esse aspecto para tentar demonstrar que, em certa medida, os projetos de liderança internos
do TEN orientaram algumas reconstruçõ es de Nascimento posteriormente, no contexto
internacional.
No capı́tulo 2, discorreu-se sobre o contexto internacional, no qual Nascimento atuara
principalmente como artista plá stico e professor universitá rio, assumindo cargo de titular na
Universidade Estadual de Nova York, em Buffalo, a partir de 1971. Como artista, desde 1969
realizou diversas exposiçõ es de suas obras pelos Estados Unidos. A relativa abertura que
existia naquele contexto dos anos 1960 e 1970 para novas á reas de conhecimento, bem como
o interesse de algumas instituiçõ es em se aproximarem das culturas de Amé rica Latina, sã o as
prová veis explicaçõ es para a inserçã o de Nascimento na academia norte-americana.
Como professor universitá rio e sob o status de inserçã o social e pro<issional,
Nascimento consegue expandir sua atuaçã o no ativismo negro participando de congressos e
seminá rios internacionais. Desde 1973 até o perı́odo de seu retorno, sua presença nesses
eventos fora fundamental para rede<iniçã o de seu discurso ideoló gico bem como de sua
imagem.
No capı́tulo 3, a abordagem foi sobre a produçã o de Nascimento durante o autoexı́lio,
em grande parte marcada por esses eventos, em especial entre 1976 e 1978, quando se
sugeriu haver um “pico de experiê ncias” no seu percurso pro<issional
Ei nesse perı́odo, com as experiê ncias dos congressos, a estada na Nigé ria como professor
visitante, a participaçã o do projeto Memórias do Exílio como “patrocinador” e depoente, alé m
dos fatos envolvendo atrito com corpo diplomá tico brasileiro no FESTAC 77, que Nascimento
rede<ine seu discurso ideoló gico, incorporando plenamente os elementos conceituais do
discurso negro internacional como pan-africanismo e afrocentrismo e revendo sua situaçã o no
contexto externo, compreendida como “autoexilado polı́tico”.
As implicaçõ es ideoló gicas dessa virada estã o presentes na suas obras. As de inserçã o
apresentaram o diá logo de Nascimento com aquele contexto externo, no esforço de relacionar
suas pautas sobre cultura negra e histó ria de discriminaçã o e resistê ncia do negro no Brasil
como parte da noçã o de diá spora. Nesse recorte, ele reproduz um discurso mais radicalizado
sobre democracia racial, que agora era mais do que um mito ou falsidade ideoló gica: era uma
estraté gia cultural de genocı́dio do negro. Essa questã o també m é discutida numa perspectiva
transnacional: sendo a cultura negra brasileira parte da diá spora, o “atentado cultural e fı́sico”
contra o negro cometido pela democracia racial seria um “ataque à s raı́zes africanas”
(Nascimento, 1977, 1978).
Essa argumentaçã o, de fundo ideoló gico, permite a Nascimento aproximar a experiê ncia
brasileira a de outros paı́ses com problemas raciais, como EUA e Ai frica do Sul. Por isso, seu
discurso ideoló gico nas obras seguintes, intituladas de obras de Consolidaçã o, pretende
constituir uma unidade identitá ria negra transnacional, pela qual o afro-brasileiro se
espelharia culturalmente no negro-africano. Parte dessa construçã o advinha da absorçã o da
ideia de Pan-Africanismo como perspectiva de solidariedade polı́tica , atravé s da cultura, e
nã o como doutrina polı́tica como foco de grande parte dos intelectuais africanos nos quais
Nascimento se inspirou.
As implicaçõ es na autoimagem també m sã o amplas. De modo geral, dois pontos em
especial ajudaram a elucidar minimamente o perı́odo: (a) a importâ ncia da de<iniçã o de “auto-
exilado” como uma construçã o; e (b) o descolamento simbó lico feito pelo autor para a obra O
Quilombismo.
Para tratar a questã o do sentido do “autoexı́lio” para o autor, reconstituiu-se sua relaçã o
com a repressã o polı́tica brasileira. Como demonstrado, Nascimento teve problemas efetivos
com o governo militar brasileiro: apreensã o do seu passaporte em 1975 e impedimento de sua
participaçã o do FESTAC 77 , apesar de em nenhum momento até 1976, ele haver se
manifestado como exilado polı́tico. As correspondê ncias com amigos que estavam no Brasil e
sua entrevista em 1970 para uma rede de televisã o brasileira, reforçam a sugestã o de que
Nascimento nã o permanecia nos EUA fugindo da repressã o.
No entanto, sua vivê ncia começa a modi<icar seu discurso. O reconhecimento como auto-
exilado vem em duas etapas: pelo discurso ideoló gico in<luenciado pelas teorias pan-
africanistas, de cará ter transnacional; e em seguida, como resposta à repressã o direta ao seu
posicionamento contra imagem de democracia racial do Brasil.
O discurso de “exı́lio” vinculado a uma ó tica pan-africanista emerge em seu depoimento
para o livro Memórias do Exílio (1976). Ali, Nascimento de<ine sua condiçã o como “exı́lio de
outra natureza”, ou seja, um “exı́lio estrutural” por sua condiçã o de descendente africano,
sobre a qual a<irma: “Hoje mais do que nunca compreendo que nasci exilado” (Nascimento,
1976: 25). O discurso em torno da opressã o histó rica sobre os negros, de sua transposiçã o
forçada para outros territó rios fora do continente africano é base dessa formulaçã o, que tem
mais sentido se lida pela intençã o de Nascimento, naquele momento, em se aproximar do
ativismo internacional.
Já o discurso em torno da repressã o do governo a sua denú ncia e sua acusaçã o de
racismo no Brasil é um dos pontos fundamentais de sua “virada”. Como autores demonstram
(Green, 2009, Dá vila, 2010), o governo militar estabeleceu controle ferrenho sobre a imagem
do paı́s projetada no estrangeiro, para mantê -lo como lugar sem con<litos raciais, paraı́so da
harmonia racial. Nascimento se tornara persona non grata para o corpo o<icial, por isso, sua
atuaçã o no festival foi tida como uma vitó ria simbó lica, por ter conseguido distribuir
exemplares do seu texto escrito, pelo apoio de intelectuais africanos e norte-americanos e da
mı́dia local, e ainda por in<luir nas recomendaçõ es <inais do coló quio (Nascimento, 1978,
1981; Dá vila, 2010). Tudo isso estimulara o autor a se considerar um representante do
ativismo negro brasileiro no contexto internacional, cuja posiçã o aparece nos escritos de 1979
e 1980, organizados em coletâ neas, dando sentido agregador e de unidade linear à sua
trajetó ria de “militante pan-africanista”. Nesse momento, Nascimento relê suas experiê ncias e
se de<ine como “auto-exilado polı́tico” pela cará ter de sua luta e enfrentamento à s elites
brasileiras: denú ncia ao genocı́dio do negro no Brasil.
O livro Quilombismo e o valor do conceito como sı́ntese foram analisados. A partir de
uma retomada dos autores Guimarã es, Siqueira e Ho<bauer, avaliou-se a sintetizaçã o feita por
Nascimento a partir de sua ideologia polı́tica anterior, acrescentada de elementos adquiridos
no contexto internacional.
A partir dessa aná lise, consideramos que o Quilombismo resulta de elementos
ideoló gicos anteriores, assimilados por meio das obras de inserçã o. O valor de sı́ntese do
conceito é importante, dado que Nascimento conseguira cristalizá -lo em apenas um termo.
Contudo, foi na expressã o do discurso ideoló gico presente nas obras Racial Democracy e
Genocídio e de sua recepçã o, entre 1977 e 1978, que ele forjou sua imagem pessoal.
Quilombismo, portanto, é um conceito importante para detectar a experiê ncia de Nascimento
no exı́lio, poré m ele re<lete mais uma continuidade do que já estava estabelecido durante
aqueles anos do que uma novidade. A nosso ver, este conceito só poderia ter sido criado por
algué m com reconhecimento social de liderança de ativismo, dentro das expectativas de
recepçã o que envolvem suas ideias. Nesse sentido, as obras de inserçã o demarcaram esse
papel, tanto no contexto internacional, quanto em sua imagem no Brasil, diante da nova
geraçã o do ativismo negro.
A complexidade desse estudo esteve aliada especialmente à maneira como Nascimento
reconstitui sucessivamente sua imagem atravé s de seu discurso ideoló gico sobre cultura negra
e na crı́tica à democracia racial, como també m pelas atividades e oportunidades no contexto
internacional. Tudo é constantemente relido e ressigni<icado. A atuaçã o como artista plá stico é
reforçada como parte de sua expressã o polı́tica, denotando o valor do autor como um “ativista
de amplas formas de expressã o e contribuiçã o”.
Ei no momento do Quilombismo, ou seja, das obras de Consolidaçã o, que a construçã o de
si, feita paulatinamente em diversos eixos - na ideologia, na atividade de pintura, na docê ncia,
- é reunida e ressigni<icada sobre a é gide de sua representaçã o no contexto internacional pan-
africanista. Nascimento, assim, erige sua autoimagem como “ativista de amplitude
internacional” e “pensador da diá spora”. Sã o imagens. Imagens de si construı́das em seu
discurso, mas tomadas e endossadas no contexto em que atuava, seja pelos intelectuais
africanos mais pró ximos, pelas redes de contatos, pela companheira, ou por ele mesmo.
E é desse modo que ele retorna ao Brasil em 1981, no contexto da abertura polı́tica em
curso, da emergê ncia de novos movimentos sociais, entre outros fatos. Vale ressaltar que
durante o exı́lio, Nascimento visitou o Brasil por trê s vezes, em 1975 e 1978145, o que lhe
permitiu construir um retorno gradual. Poré m dois fatos marcaram seu retorno de<initivo, em
1981: (a) relaçã o com novos movimentos negros, e (b) a aproximaçã o com Brizola e a
formaçã o do PDT.
A visita de 1978, marcou o inı́cio do diá logo de Nascimento com a nova geraçã o de
militantes negros brasileiros. Sem passaporte - apenas com “salvo conduto” oferecido pelo
governo norte-americano - participou do ato de lançamento do MNU nas escadarias do teatro
Municipal em Sã o Paulo. Conforme informado anteriormente, a conexã o com essa nova
geraçã o já ocorria atravé s do contato com as obras e jornais produzidos por esses novos
ativistas e destes com o trabalho de Nascimento. O Quilombismo, por exemplo, foi lançado com
apoio do IPCN.
Nascimento també m estabelecera amizade com diversas <iguras daquela nova geraçã o,
como Lé lia Gonzá lez146, Carlos Alberto Oliveira e Eduardo Oliveira e Oliveira, que foi de<initiva
para marcar o interesse de Nascimento em se aproximar desses novos grupos, na perspectiva
de voltar para o paı́s. Essa interaçã o, contudo, nã o foi duradoura, pois apó s seu retorno nã o se
a<irma como membro em nenhum deses grupos, mesmo no MNU onde tinha conhecidos.
Esses laços nã o duradouros foram mú tuos: apesar de Nascimento ser uma representaçã o
145As informações sobre essa data são desencontradas. Em Memórias, ele afirma ser 1975 e 1976; em Africans in
Brazil, onde faria a tradução em inglês e ampliação do depoimento de 1976, afirma 1974 e 1975. Pessoalmente
Nascimento não conseguia lembrar com exatidão, confirmando a vinda de 1975 (falecimento de Efrain Tomás Bó) e
1978, ato do MNU e o casamento de seu afilhado, filho de Gerardo Mello Mourão.
146Lélia esteve nos Estados Unidos com Nascimento e também participara da Conferência de Estocolmo, em 1979,
com o autor. Eram bastante próximos, e inclusive Gonzalez prefaciou a coletânea e poesias do autor, Axés do Sangue e
da Esperança. Para mais informações sobre a trajetória de Gonzalez, ver Ratts & Rios, 2010.
antiga147 da luta anti-racista para os novos militantes, suas ideias (especialmente o
Quilombismo) nã o foram abraçadas por aquela geraçã o. Será preciso investigar mais o
pensamento desses novos militantes para apontar as razõ es , mas o seu direcionamento à
esquerda poderia ser um fator dessa nã o identi<icaçã o total. Basta pensar que as ideias
anteriores, em torno da noçã o de genocídio do negro, foram mais bem recebidas dentro do
â mbito do novo radicalismo negro.
A aliança com Leonel Brizola determina novas possibilidades para o autor em seu
retorno ao paı́s. Apresentado a esse polı́tico por Cló vis Brigagã o em 1977 em Nova York,
Nascimento consegue incluir a pauta da questã o racial na agenda do novo partido que estava
sendo construı́do. Como relata Brigagã o, em uma entrevista para James Green:
“Brizola não entendia a questão negra. Achava que aquilo [racismo] não existia no Brasil. Então
reuni na casa onde eu morava Abdias do Nascimento, Zé Almino [de Alencar], Lélia González, que era uma
liderança negra nova no Brasil, [e outros novos dirigentes]. E durante a noite inteira Abdias contou a
história do Brasil do ponto de vista do negro e da escravidão. Isso acendeu uma luz na cabeça do Brizola,
que passou a entender o trabalho do negro na construção do Brasil. Foi a partir daí que Abdias passou ser
>igura constante ao seu lado, quando ele veio para o governo no Rio de Janeiro [em 1982]. Brizola teve
cinco secretários negros” (Green, 2009: 462).
A partir desse contato, Nascimento se torna uma das <iguras importantes na criaçã o do
Partido Democrá tico Trabalhista, fundado no exterior em junho de 1979, e dá vazã o à sua
carreira polı́tica nos anos 1980 quando volta ao Brasil.
147Em seu depoimento, Anani Dzidzienyo compara a figura de Nascimento, em seu retorno, a de “Luís Carlos Prestes
do movimento negro”. Ao mesmo tempo, e não conseguimos que o intelectual ganense nos desse mais indicações
sobre um ponto que ele afirma que “Nascimento sabia que sua volta incomodava muita gente”. Restaria saber, talvez no
prosseguimento dessa pesquisa, quem exatamente, e por quê? Depoimento em Fevereiro de 2010.
Em 1990, passa uma estada em Temple University, como professor visitante, onde
trabalhou junto de seu amigo dos tempos de exı́lio, Mole<i Asante.
A• guisa de conclusã o, inserimos uma pequena re<lexã o em torno dessa rica trajetó ria.
Valendo-nos das re<lexõ es de Lilia Schwarcz sobre Lima Barreto, trazemos aqui a questã o das
ambivalê ncias que constituem a vida de um indivı́duo em busca de seu lugar de destaque.
Guardadas as devidas proporçõ es e diferenças entre os dois personagens, Nascimento
també m poderia ser observado pela frase “a biogra<ia fermenta a literatura e vice-versa”
(Schwarcz, 2010: 16). No caso do nosso autor, “literatura” signi<ica discurso ideoló gico. Ele é
ambivalente, é complexo. Nã o obstante as formas de categorizaçã o de seu pensamento ou
autoimagens que tentamos apontar nesse estudo, elas sempre se con<iguram como
contextuais e podem ser ressigni<icadas a cada dado novo da realidade.
Nesse sentido, a ideia emprestada de Schwarcz nos ajuda a elucidar relativamente os
signi<icados do autoexı́lio para Nascimento. Suas ambivalê ncias na imagem e discurso, e por
vezes inconstâ ncias, denotam as expectativas do autor em assumir uma posiçã o honrada
dentro de sua trajetó ria, como ativista, como lı́der dos movimentos negros. Isso responderia,
portanto, o porquê de o autor permanecer no estrangeiro com um discurso e re<lexã o com
foco no Brasil.
As atuaçõ es de artista, poeta, pensador sã o iluminadas a partir da crença de Nascimento
de seu papel de “homem polı́tico”, de luta e de batalha. Essa visã o, por vezes romanceada, nos
faz compreender quais os sentidos que tais experiê ncias teriam na vida do autor: suas
posiçõ es no cená rio interno e externo das questõ es raciais ganhavam destaque. Destaque
també m como artista plá stico que pintava telas sobre elementos religiosos em um ambiente
onde pouco se conhecia sobre cultura negra. Destaque como professor universitá rio, que
mesmo sem a <luê ncia do idioma inglê s, mobilizava atençã o de intelectuais, estudantes e
pesquisadores interessados na questã o do negro no Brasil. Destaque como pensador e
representante do ativismo negro brasileiro em um espaço onde, nã o apenas faltavam tais
representaçõ es, como os elos polı́ticos estavam abertos à s conexõ es que poderiam fortalecer
uma pauta polı́tica em prol daqueles paı́ses recé m libertos. Destaque por ser o ú nico com
discurso antio<icial em um contexto em que a imagem pú blica nã o deveria ser atingida.
As ambivalê ncias em torno das autoimagens criadas por Nascimento em sua trajetó ria
no autoexı́lio permitiriam que ele pudesse se reinventar e se reconstruir em uma posiçã o de
destaque e atuaçã o que, de fato, no Brasil nã o seria possı́vel. O contexto histó rico explica as
oportunidades que lhe surgiram no â mbito internacional. Poré m, acreditamos que os dé <icits
do passado, de um lugar de destaque nã o atingido, ajudam a explicar as readequaçõ es
constantes de imagem e de discurso de Nascimento em seu autoexı́lio.
O “Exı́lio”, nesse sentido, se constitui uma fronteira na trajetó ria de Abdias do
Nascimento. Uma fronteira simbó lica, que perpassa a descoberta de novas possibilidades,
oportunidades e condiçõ es de reconstruir a si mesmo e determinar sua memó ria em relaçã o
ao passado, presente e futuro. O exı́lio, ou melhor, o autoexı́lio, é portanto um “começo” e
marco em todas as suas potencialidades, incluindo discurso e principalmente imagem.
Concluı́mos trazendo a ideia de “começo”, de acordo com que Edwards Said nos ensinou:
“In retrospect we can regard a beginning as the point at which, in a given work, the writer departs
from all other works; a beginning immediately establishes relationships with works already existing,
relationships of either continuity or antagonism or some mixture of both. But the moment we start to
detail the features of a beginning - a moment likely to occur in examining many sorts of writers - we
necessarily make certain special distinctions” (Said, 1985: 3).
Sã o essas distinçõ es na trajetó ria de Abdias do Nascimento que tentamos demonstrar aqui.
Abdias do Nascimento e Maulana Ron Karenga - Los Angeles, 1983
FIM
ANEXO I - Lista Obras do Exílio (por texto, ano, local de
publicação)
148
148
• “Teatro Negro del Brasil: una Experiencia Socio-Racial,” In: Luzuriaga, G. Popular Theater
for Social Change in Latin America, a Bilingual Anthology. Los Angeles: UCLA Latin
American Studies Center, 1978. [não encontrado]
• Mixture or Massacre, (trad. Elisa Larkin Nascimento). Buffalo: Afrodiaspora, 1979 [2a
edição 1989].
• Three Black Brazilian Plays (trad. Elisa Larkin Nascimento). Buffalo, NY: Amulefi
Publishing, 1979c. [não encontrado]
• “Reflections of an Afro-Brazilian,” Journal of Negro History LXIV:3 (Summer 1979), 1979.
• Journal of Black Studies, v. 11, n. 2 (December 1980) (Edição especial). 1980.
• O Quilombismo. Petrópolis: Editora Vozes, 1980. (reeditado em 2002)
• Sitiado em Lagos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. (reeditado em 2002).
Catálogos de Exposições:
• Exposição “Abdias do Nascimento: a Brazilian Brother”, Museum of the National
Center of Afro-American Artists, Feb. 28 – Mar. 17, 1971.
• Exposição “Abdias do Nascimento”, Langston Hughes Center for the Visual and
Performing Arts, April 21 0 May 12, 1974.
149
149
ANEXO II – Produção pictórica de Abdias do
Nascimento e Exposições
Individuais
01. The Harlem Art Gallery, New York, 1969.
03. Yale University School of Art and Architecture, New Haven, 1969.
07. Puerto Rican Studies and Research Center, State University of New York at Buffalo, 1970.
09. Musem of the National Association of Afro-American Artists, Dorchester, MA, 1971.
18. Museum of African and African-American Arts and Antiquities, Center for Positive Thought,
Buffalo, NY, 1977.
19. El Taller Boricua and Caribbean Cultural Center, New York, 1980.
05. Permanent Collection, Museum of African and African-American Arts and Antiquities, Buffalo
NY (two pieces).
06. Permanent Collection, Latin American Studies Institute, Columbia University, New York.
As informações das pinturas são as mesmas reproduzidas no catálogo. Para padronização, no catálogo de 1971 e
150
1974, retiramos o tamanho dos quadros. As datas, que aparecem no catálogo de 1974, não estão presentes no de
1971.
151
151
32. Yemanja, mother of the waters and all the Orixas (Yemanja, mã e das á guas e de todos as
Orixas)
33. The Black Christ (Cristo Negro – no. 2)
34. The Oxun’s Fan (O legue de Oxun)
35. The hermaphrodite Orixa (Orixa hermafrodita)
36. The double personality of Oxunmare (A dupla personalidade de Oxunmare)
37. Ritual blood (Ritual do sangue)
38. The house of silver's moon (A casa da lua prateada)
39. Three huts (Trê s cabanas)
40. Butter<lies (Borboletas)
153
153
ANEXO III – Reprodução de Pinturas151 de Abdias do
Nascimento
Neste anexo, reproduzimos algumas das pinturas realizadas por Abdias de Nascimento
durante período do auto-exílio. Como percebemos nos títulos das telas, grande parte de suas
pinturas tem como temática os elementos culturais do Candomblé. Essas pinturas foram material
de exposição durante aqueles anos, e foram reproduzidas no livro “Orixás: deuses vivos da África”
[de onde as escaneamos].
151Reprodução autorizada pelo IPEAFRO. Proibida cópia sem autorização. Direitos autorais reservados a todas as
imagens e fotografias reproduzidas neste trabalho.
154
Xangô Rodrigues Alves, 1970, Middletown.
155
Oxum em seu Labirinto, 1975, Buffalo.
156
Flecha do Guerreiro Ramos: Oxóssi, 1971, Buffalo.
157
Oxum em Êxtase, 1975, Buffalo.
158
Senhora dos Mortos e dos Cemitérios: Iansã, 1972, Buffalo.
159
BIBLIOGRAFIA
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1961.
Nascimento, A. “Open Letter to the First World Festival of Negro Arts,” Presence
Africaine XXX:58 (Summer 1968), 1968d.
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1971.
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Press, 1976c.
160
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Nascimento). Ile-Ife: University of Ife, 1977.
Nascimento, A. Sortilégio II: Mistério Negro de Zumbi Redivivo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979b.
161
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Culture: the Rhythms of Unity, ed. Molefi K. Asante e Kariamu W. Asante. Trenton: Africa
World Press, 1990.
Nascimento, A. Orixás: os Deuses Vivos da África/ Orishas: the Living Gods of Africa
in Brazil. [Bilingual, fully illustrated volume of artwork with poetry, texts, 74 color
reproductions of the author’s artworks, and critical essays by an international selection of
authors including Ola Balogun, Anani Dzidzienyo, Molefi Asante, Barry Gaither, Roger
Isaacs, Muniz Sodré, Clóvis Brigagão and others. Distributed in the U.S. by Temple
University Press].Rio de Janeiro: IPEAFRO, 1995.
Nascimento, A. Sortilege II: Zumbi Returns, trans. Elisa Larkin Nascimento. Black
Drama, Digital Anthology of African and African Diaspora Dramatic Works. Alexandria:
Alexander Street Press, 2002c.
Nascimento, A. Sortilege: Black Mystery, trans. Peter Lownds. Black Drama, Digital
Anthology of African and African Diaspora Dramatic Works. Alexandria: Alexander Street
Press, 2002d.
162
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Nascimento. In Munanga, Kabengele, org., O negro na história do Brasil. Brasília: UnB/
Fundação Cultural Palmares, 2004, pags. 105-151.
163
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