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Ética Aristocrática-Patriarcal
A pessoa que tiver intenção de administrar uma casa da forma correta tem de estar
familiarizada com os lugares de que se vai ocupar, por natureza, de boas qualidades e
possuir, por vontade própria, sentido de trabalho e de justiça. Ora, se algum destes
elementos lhe faltar, irá cometer erros frequentes na empresa a que meteu as mãos
(ARISTÓTELES, Os econômicos, p. 49).
É conveniente que uma boa esposa seja senhora do que se passa dentro de casa e tome
conta de tudo, segundo as regras que estabelecemos; não deixará que ninguém entre em
casa, a não ser com o conhecimento do marido, e há de evitar, em especial, as conversas
das mulheres de soalheiro, que tendem a corromper o espírito. O que dentro de casa
sucede, apenas a ela compete e, se de fora algum mal sobrevém, ao marido apenas cabe a
responsabilidade (ARISTÓTELES, Os econômicos, p. 81)
A ciência da economia deve mostrar ao homem a boa utilização das coisas e dos seres, a
fim de aumentar a casa – aumentar a riqueza, e, aumentando a posse, ampliar as
possibilidades de aquisição (ANDRADE, Marta Mega de. A Cidade das Mulheres: cidadania
e alteridade feminina na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: LHIA, 2001, p, 146)
A condição da mulher junto ao mundo delimitado para o humano é marcada por seus
atributos, aqueles doados pelos deuses, e que fazem ela um imbatível ardil. Raça estranha,
descendência do espanto, cujo estatuto não se reconhece nem como humano, nem como
divino, nem como selvagem, o génos gynaikôn dá lugar ao indefinido, ao duvidoso, ao
ambíguo (ANDRADE, Marta Mega de. A Cidade das Mulheres: cidadania e alteridade
feminina na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: LHIA, 2001, p. 47).
O espaço doméstico, espaço fechado, com um teto (protegido), tem, para os gregos, uma
conotação feminina. O espaço de fora, do exterior, tem conotação masculina. A mulher está
em casa em seu domínio. Aí é o seu lugar; em princípio, ela não deve sair (VERNANT,
Jean-Pierre. Mito e Pensamento entre os gregos. Trad. de Haiganuchi Sarian. São Paulo:
Paz e Terra, 1990, p. 157-158).
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XENOFONTE. Econômico. Trad. de Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins
Fontes, 1999. Do bom administrador é próprio administrar bem o seu patrimônio familiar
(p.3).
Não são riquezas os cavalos, e nem a terra, nem as ovelhas, nem dinheiro, nem nada mais,
quando não se sabe usá-los (p. 13).
As suas mulheres, uns tratam de forma que as tenham como colaboradoras no crescimento
do patrimônio, outros, de maneira que, no mais das vezes, elas o arruínam (p. 18).
Os bens entram na casa através dos atos do marido, mas são gastos, em sua maioria,
através das despesas feitas pela mulher (p. 19).
“Nada, minha mulher, é tão conveniente e belo para o homem quanto a ordem” (p. 43).
Modelo de Mulher: a Mulher-Abelha: Melissa – a mulher submissa, que fica dentro da
colmeia, cuidando da casa.
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A Ética Platônica
Platão, em seu livro República, postula a formação de um Estado Ideal, regido pela virtude
incondicional dos seus governantes. Para Platão, virtude significa Justiça, Justiça como a
disposição de se realizar aquilo que corresponde à essência de cada um. Observando a
política de seu tempo, caracterizada pela corrupção dos seus governantes, Platão propõe
uma gestão política fundamentada na metafísica, aparentemente um paradoxo, uma vez
que a política lidaria com questões do mundo concreto, como a segurança pública, gestão
dos bens, comércio, cidadania etc. Uma política fundamentada na metafísica significa que
todos os problemas concernentes ao tema recebem um tratamento ético-moral de caráter
transcendente, como se a política se pautasse em um finalismo da história, um objetivo
maior a ser cumprido, caracterizando assim uma Teleologia da Política, ou seja, uma meta
transcendente coordenada por uma inteligência superior, fora do mundo. Para Platão,
somente essa forma de Política permitiria o efetivo progresso do Estado, pois sua gestão se
fundamentaria em critérios rigorosamente éticos, de modo a se garantir o estabelecimento
do bem comum para além de todo egoísmo, de toda tirania e do uso inadequado das
riquezas do Estado. Se os diversos Estados da época de Platão erravam por não aplicarem
convenientemente os critérios da virtude da justiça e seus inerentes elementos
concernentes, Platão considera que a gestão do Estado deve estar sob o comando de uma
elite de filósofos, aqueles que são capazes de contemplar as Verdades Eternas,
metafísicas, fonte de todo conhecimento autêntico, pois imutáveis. O filósofo, contemplando
as Ideias, arquétipos inteligíveis de toda a realidade, conhece assim a essência das coisas.
Para Platão, as Ideias não estão na mente humana, são realidades objetivas,
transcendentes, o verdadeiro fundamento de tudo. Para Platão, quem filosofa desenvolve
progressivamente o Bem em seu interior, em sua alma, de modo que as paixões grosseiras
são atenuadas até a predominância das virtudes como justiça, temperança, coragem. A
Filosofia, para Platão, não é apenas um exercício intelectual, uma atividade cognitiva, mas
um processo de elevação moral do ser humano rumo ao estado de plenitude, alcançada
somente no ato de desligamento da alma em relação aos apelos do corpo, isto é, pela
morte. Para Platão, a pessoa que contempla as verdades metafísicas do Mundo das Ideias
perde todo medo da morte, pois conhece o sentido da verdadeira realidade. O
filósofo-legislador é o sujeito por excelência para gerir o bem público, a Cidade que visa
alcançar na medida das possibilidades a plenitude no mundo sensível, o mundo em que
vivemos. Cabe ao filósofo-legislador determinar as funções que devem ser atribuídas a
cada cidadão dessa nova cidade, de modo a organizar racionalmente a gestão pública, e
assim tornar harmoniosas as relações humanas e satisfazer as necessidades
administrativas dessa cidade. Mais uma vez Platão apela para a metafísica, pois a justa
distribuição de funções sociais ocorre quando o filósofo-legislador, ao observar a alma dos
cidadãos, descobrir a quais atividades eles são naturalmente aptos. Haveria constituições
de alma próprias para o artesanato, outras para o campesinato, outras para a proteção da
cidade, outras para a educação, outras para a legislação, outras para a gestão da cidade,
conforme o grau de pureza de cada alma. Quanto mais pura a alma, maior a importância
política da alma para a cidade; isso não significa que as almas inferiores sejam
depreciadas, mas apenas não podem, na vida atual, exercer funções que não lhes cabem,
pois isso seria uma injustiça contra a própria ordem do Estado. Com certa liberdade,
poderíamos dizer que Platão propõe uma espécie de eugenia espiritual na organização da
cidade, pois as melhores almas exercem as funções mais nobres na administração pública
e cabe ao organizador gerenciar esse processo seletivo, inapelavelmente.
Ora o maior dos castigos é ser governado por quem é pior que nós, se não quisermos
governar nós mesmos (PLATÃO, A República. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983, p. 38)
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É conveniente que uma boa esposa seja senhora do que se passa dentro de casa e tome
conta de tudo, segundo as regras que estabelecemos; não deixará que ninguém entre em
casa, a não ser com o conhecimento do marido, e há de evitar, em especial, as conversas
das mulheres de soalheiro, que tendem a corromper o espírito. O que dentro de casa
sucede, apenas a ela compete e, se de fora algum mal sobrevém, ao marido apenas cabe a
responsabilidade (ARISTÓTELES, Os econômicos, p. 81)
O saber prático consiste no estudo da ética e da política que tem por objetivo tornar os
homens “bons, ou alcançar o grau mais elevado do bem humano. Este bem é a felicidade.”
(Ética a Nicômaco). Ética, no sentido original, significa hábito, costume. Em Aristóteles, a
noção de Ética adquire o sentido de uma reflexão racional sobre o valor da conduta humana
em sua vida prática, e de que maneira podemos alcançar a virtude, isto é, a perfeição moral
realizando em nossa existência o bem. O homem é feliz na medida em que é virtuoso, e a
ação ética só faz sentido autêntico na vida humana quando regido pela constância, ou seja,
o hábito de realizar continuamente aquilo que é bom. A Ética de Aristóteles visa a obtenção
da Eudaimonia, isto é, felicidade, beatitude. A Eudaimonia é o bem do homem, ou seja, a
que o homem se destina a partir de sua essência. Por sua vez, “o bem do homem nos
aparece como uma atividade da alma em consonância com a excelência” . Em primeiro
lugar, a eudaimonia é dita ser uma atividade. Essa afirmação implica no fato segundo o qual
a realização última do ser humano não consiste em um estado, como a felicidade é um
estado de espírito, mas em um fazer coisas. Para que sejamos virtuosos, precisamos atuar
sempre com a ponderação da razão, que nos regula sempre. Dessa maneira agimos em
nome da justa medida, o ponto justo entre dois extremos viciosos, carentes de bem, isto é,
de virtude. O homem é feliz na medida em que é virtuoso. Aristóteles considera que, por
natureza, possuímos a potência, a capacidade de adquiri-las. O ser humano só é capaz de
adquirir as excelências de caráter mediante o exercício, tal qual ocorre com as artes
(technai). A partir daí, com a prática constante, tornamos a excelência adquirida um hábito,
aperfeiçoando a capacidade humana natural de exercer essa excelência. Com efeito, só
nos tornamos justo praticando atos justos. E o mesmo se dá com as demais excelências de
caráter. De nada adianta fazermos um ato virtuoso hoje e amanhã incorrermos em ações
viciosas. O homem virtuoso se caracteriza então por estabelecer justa medida entre dois
extremos e agir de forma equilibrada com prudência e moderação (sophrosine) seria a
própria caracterização do saber prático. Já a Política de Aristóteles contém uma de suas
famosas definições: “o homem é um animal político” e articula a ética demonstrando que o
homem virtuoso deve exercer sua virtude de acordo com a sua vida na polis (cidade).
Conforme argumenta Aristóteles:
“Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com
vistas a algum bem, pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao
que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam a algum bem, é evidente que a
mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas este objetivo
e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política”
(ARISTÓTELES, Política, I, 1, 1252ª, p. 13).
Na ordem natural a cidade tem precedência sobre a família e sobre cada um de nós
individualmente, pois o todo deve necessariamente ter precedência sobre as partes (I, 1,
1253b, p. 15).
“É claro, portanto, que a cidade tem precedência por natureza sobre o indivíduo. De fato, se
cada indivíduo isoladamente não é auto-suficiente, consequentemente em relação à cidade
ele é como as outras partes em relação ao todo, e um homem capaz de integrar-se numa
comunidade, ou que seja autosuficiente a ponto de não ter necessidade de fazê-lo, não é
parte da cidade, por ser um animal selvagem ou um deus”(ARISTÓTELES, Política, I, I,
1253ª, p. 15-16).
Todo homem é por natureza um animal social, um animal político, pois imerso no âmbito
das relações sociais do Estado. A pessoa que não participava da vida pública era
considerada “idiotes”, ou seja, um idiota – esse termo originalmente não apresentada
significado ofensivo, mas apenas uma forma de distinção entre o indivíduo que opta não
participar do processo político normal e o plenamente atuante. Idiota, portanto, era o
indivíduo apolítico, alheio ao mundo das decisões governamentais. Os cidadãos destinados
a exercer as funções mais importantes devem ter três qualificações: primeiro, lealdade para
com a constituição vigente; em seguida, a maior capacidade possível para o desempenho
das tarefas inerentes à sua função, e terceiro qualidades morais e espírito de justiça do
gênero conveniente a cada forma de governo, pois o conceito de justiça não é o mesmo sob
todas as constituições, deve necessariamente haver diferenças também na qualidade da
justiça (ARISTÓTELES, Política, p. 186).
Ora, o que é comum a todos deve ser aprendido em comum. Não devemos pensar
tampouco que cada cidadão pertence a si mesmo, mas que todos pertencem à cidade, pois
cada um é parte da cidade, e é natural que a superintendência de cada parte deve ser
exercida em harmonia com o todo (Política, VIII, 1337a, p. 267).
De certa maneira, todos nós somos políticos – pois política significa interação social no
contexto de uma comunidade. Tudo é política, mesmo as ações mais triviais. Mesmo a
pessoa que escolhe não participar da vida pública é uma pessoa dotada de consciência
política, pois ela fez uma escolha efetivamente política. Para que existe relação social e
prática política, é preciso que haja comunicação, e esta depende da linguagem, ou seja, um
código linguístico que seja partilhado pelas pessoas de uma comunidade. Comunicação =
tornar comum uma ação, um sentimento, uma vontade. Comunicar = comungar valores. O
que chamamos de politicagem é a distorção da verdadeira prática política, sustentada pela
honestidade, pelo respeito e pela igualdade de condições de todos os indivíduos envolvidos
na esfera pública de debates. A politicagem se caracterizada pelas negociatas, pelas
falcatruas, desvio de verbas, a prevalência do interesse particular em relação ao bem
comum. Assim como a linguagem nivela as vivências humanas em prol do mútuo
entendimento, assim também o dinheiro rompe com toda hierarquização de símbolos e
objetos. Aristóteles, aliás, já dissera que
O dinheiro nos serve também como uma garantia de permutas no futuro; se não
necessitamos de coisa alguma no presente, ele assegura a realização da permuta quando
ela for necessária; com efeito, ele preenche os requisitos de algo que podemos produzir
para pagar por aquilo de que necessitamos, de maneira a podermos obter o que nos falta; o
dinheiro, agindo como um padrão, torna os bens comensuráveis e os igualiza, e não haveria
comunidade se não houvesse permutas, nem permutas se não houvesse igualização, nem
igualização se não houvesse comensurabilidade (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, V,
1133b).
Efetivamente, o objetivo original do dinheiro foi facilitar a permuta, mas os juros aumentam a
quantidade do próprio dinheiro (esta é a verdadeira origem da palavra: a prole se
assemelha aos progenitores, e os juros são dinheiro nascido de dinheiro); logo, essa forma
de ganhar dinheiro é de todas a mais contrária à natureza (Política, I, 3, 1258b, p. 28
(...) O estadista verdadeiramente dedicado ao povo deve ter em vista os meios de evitar que
as massas sejam excessivamente pobres, pois esta é a causa da fragilidade das
democracias. Deve-se portanto imaginar medidas capazes de trazer prosperidade
duradoura às massas. Como isto é também vantajoso para os ricos, o procedimento
adequado é acumular todos os excedentes das rendas públicas em um fundo e distribuí-lo
entre os pobres, principalmente, se possível, em quantias suficientes para a aquisição de
uma pequena propriedade ou, se assim não for, para servir de capital inicial em negócios na
agricultura (ARISTÓTELES, Política, p. 212).
Referências
____. Ética a Nicômacos. Trad. de Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. UNB, 1992.
____. Política. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. UnB, 1997.
A Ética Cristã
Não sei o porquê de tanta comoção por um indivíduo que era chamado de beberrão,
andava com prostitutas e com pecadores. Aos 12 anos já questionava a justiça e discutia
com os doutores da lei. Depois dos 30 entrou no templo e fez a maior arruaça, expulsando
os mercadores da fé. Não aplicou a Lei de Moisés à mulher flagrada em adultério e ainda
não cumpria os preceitos: trabalhava nos sábados. Morava na periferia é era filho de um
mero trabalhador braçal. Herodes e Pilatos é que eram mitos! (João Batista Damasceno)
Baruch Espinosa (1632-1677): Inúmeras vezes fiquei espantado por ver homens que se
orgulham por professar a Religião cristã, ou seja, o amor, a alegria, a paz, a continência e a
lealdade para com todos, combaterem-se com tal ferocidade e manifestarem
cotidianamente uns para com os outros um ódio tão exacerbado que se torna mais fácil
reconhecer a sua fé por estes do que por aqueles sentimentos. De fato, há muito que as
coisas chegaram a um ponto tal que é quase impossível saber se alguém é cristão, turco,
judeu ou pagão, a não ser pelo seu vestuário, pelo culto que pratica, por frequentar esta ou
aquela igreja, ou finalmente porque perfilha esta ou aquela opinião e costuma jurar pelas
palavras deste ou daquele mestre. Quanto ao resto, todos levam a mesma vida. Procurando
então a causa desse mal, conclui que ele se deve, sem sombra de dúvidas, a
considerarem-se os cargos da Igreja como títulos de nobreza, os seus ofícios como
benefícios, e consistir a Religião, para o vulgo, em cumular de honras os pastores. Com
efeito, assim que começou na Igreja esse abuso, se apoderou dos piores homens um
enorme desejo de exercer os sagrados ofícios; logo o amor de propagar a divina Religião se
transformou em sórdida avareza e ambição, de tal maneira que o próprio templo degenerou
em teatro, onde não mais se veneravam doutores da Igreja, mas oradores que, em vez de
quererem instruir o povo, queriam era fazer-se admirar e censurar publicamente os
dissidentes, não ensinando senão coisas novas e insólitas para deixarem o vulgo
maravilhado. Daí surgirem grandes contendas, invejas e ódio, que nem o correr do tempo
foi capaz de apagar [...] Certamente que, se eles tivessem uma centelha que fosse da luz
divina, não andariam tão cheios de soberba idiota e aprenderiam a honrar a Deus e
distinguir-se-iam dos outros pelo amor, da mesma forma que agora se distinguem pelo ódio.
Nem perseguiriam com tanta animosidade os que não partilham de suas opiniões; pelo
contrário, sentiriam piedades deles (se é, de fato, a salvação alheia e não a própria fortuna
que os preocupa). Além disso, se realmente tivessem alguma luz divina, ela ver- se-ia pela
sua doutrina (ESPINOSA, Baruch. Tratado Teológico-Político. São Paulo: Martins Fontes,
2003, p. 9)
O Cristianismo em suas bases originárias apresentava-se como uma vivência moral e uma
prática religiosa avessa em relação aos parâmetros sociais estabelecidos, seja em relação
aos judeus compatibilizados com o modo de ser greco-romano, seja com a administração
imperial romana que subjugava Israel e grande parte do mundo antigo. Uma leitura atenta
dos Evangelhos evidencia a condenação moral da riqueza como perigo capaz de afastar o
homem de Deus e do ofício da piedade, da caridade, da justiça e do amor.
“Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá o dinheiro aos pobres, e terás um
tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”. Ao ouvir essa palavra, o jovem afastou-se
pesaroso, pois era dono de muitas riquezas. … É mais fácil um camelo passar pelo buraco
de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus (Mateus, 19,24).
Para que o homem possa se emancipar de todo entrave espiritual é necessário que ele abra
mão das suas posses e riquezas (reconhecimento do caráter diabólico da riqueza, no
sentido de divisora entre o homem e seu próximo) e distribua o que tem aos pobres
(negação da legitimidade da propriedade privada), negação de toda ordem jurídica (“não
julgueis”, “não jureis” – Mateus, 7, 1, afirmação incondicional do perdão como forma de
suprimir as desavenças, ” (Mt, 18, 22)), supressão dos laços familiares pautados no sangue
em prol da família espiritual, mais ampla e coesa (“minha mãe e meus irmãos são os que
me seguem” – Lucas 8, 21). Vemos ainda o não-reconhecimento das autoridades
estabelecidas (Daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus, Mateus 22,21).
BÍBLIA, Atos dos Apóstolos, capítulo 2, versículos 44 a 47: "Todos os que abraçaram a fé
eram unidos e colocavam em comum todas as coisas; vendiam suas propriedades e seus
bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um. Diariamente,
todos juntos frequentavam o Templo e nas casas partiam o pão, tomando alimento com
alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e eram estimados por todo o povo. E a
cada dia o Senhor acrescentava à comunidade outras pessoas que iam aceitando a
salvação." BÍBLIA, Atos dos Apóstolos, capítulo 4, versículos 32 a 37: "A multidão dos fiéis
era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade particular as coisas
que possuía, mas tudo era posto em comum entre eles. Com grande poder, os apóstolos
davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus. E todos eles gozavam de grande
aceitação. Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou
casas as vendiam, traziam o dinheiro e o colocavam aos pés dos apóstolos; depois, ele era
distribuído a cada um conforme a sua necessidade. Foi assim que procedeu José, levita
nascido em Chipre, apelidado pelos apóstolos com o nome de Barnabé, que significa «filho
da exortação». Ele vendeu o campo que possuía, trouxe o dinheiro e o colocou aos pés dos
apóstolos."
O que se lê nessas passagens é: - ABOLIÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA. -
COMUNITARIZAÇÃO E DIVISÃO DOS BENS DE FORMA IGUALITÁRIA - ATENDIMENTO
DAS DEMANDAS DE ACORDO COM A NECESSIDADE (E NÃO PELAS POSSES) -
SIMPLICIDADE NO CONSUMO DOS BENS - APOIO POPULAR - ERRADICAÇÃO DA
DIVISÃO SOCIAL ENTRE AS PESSOAS. Que pontos em comum podem haver entre a
concretização da fé dos primeiros cristãos e o sistema capitalista, que hoje muitos
autoproclamados cristãos defendem, inclusive com raiva no coração?
“Você olha o mendigo como refugo da sociedade, enquanto o homem rico é que deveria ser
olhado assim. É o rico que oprime você e o arrasta aos tribunais” (TOLSTÓI, 2011, p. 49).
Para onde foi o último sentimento de decência, de respeito de si mesmo, se até os nossos
estadistas, homens bastante desembaraçados e perfeitamente anticristãos nos atos, ainda
se denominam cristãos e recebem a comunhão?... Um jovem príncipe, à frente do seu
regimento, magnífico como expressão do egoísmo e da soberba de seu povo – mas, sem
nenhum pudor, confessando-se cristão!... A quem o cristianismo nega, então? O que chama
de “mundo”? ser soldado, juiz, patriota; defender-se; zelar por sua honra; querer sua
vontade; ser orgulhoso... Toda prática de todo momento, todo instinto, toda valoração que
se torna ato é anticristã atualmente: que aborto de falsidade deve ser o homem moderno, se
apesar de tudo não se envergonha de ainda chamar-se cristão! (NIETZSCHE, 2007, p. 45).
Dois amores fundaram pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a
Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a
primeira em si mesma e a Segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e
tem esta por máxima glória a Deus, testemunha de sua consciência. Aquela
ensoberbece-se em sua glória e esta diz a seu Deus: Sois minha glória e quem me exalta a
cabeça. Naquela, seus príncipes e as nações avassaladas vêem-se sob o jugo da
concupiscência de domínio; nesta, servem em mútua caridade, os governantes,
aconselhando, e os súditos, obedecendo. Aquela ama sua própria força em seus
potentados; esta diz a seu Deus: A ti hei de amar-te, Senhor, que és minha fortaleza. Por
isso, naquela, seus sábios, que vivem segundo o homem, não buscaram senão os bens do
corpo, os da alma ou os de ambos e os que chegaram a conhecer Deus não o honraram
nem lhe deram graças como a Deus, mas desvaneceram-se em seus pensamentos e
obscureceu-se-lhes o néscio coração.
A intervenção contínua do Plano Divino mediante a ação concreta dos homens justos
garantiria, no fim dos tempos, a instauração de uma era de plenitude fundamentada no
altruísmo, no amor e na verdade; em suma, o “Reino de Deus” manifestado na Terra. A
partir do advento do Cristianismo, o tempo se articula em passado, presente e futuro. O
presente vincula-se ao passado pela Paixão e Ressurreição de Cristo e também ao futuro
pela Salvação e consumação do mundo no dia do Juízo Final. Pode-se considerar que é
justamente a existência de uma postulada crença que se encontra latente na tese
agostiniana acerca do estabelecimento da ordem divina na Terra que permite a associação
desta perspectiva soteriológica com a noção de progresso como um processo de
aprimoramento moral e teleológico da condição humana, pois a submissão do fiel cristão ao
mandamento divino representa o itinerário da alma humana rumo à sua salvação espiritual
e subseqüente possibilidade de fruir no Além-mundo a beatitude destinada àqueles que se
adequaram rigorosamente aos parâmetros morais cristãos. Conforme salienta Karl Löwith
sobre a questão do finalismo histórico na filosofia de Santo Agostinho,
Para um homem como Santo Agostinho, todas nossas elucubrações acerca do progresso,
das crises e da ordem mundial pareceriam pueris, porque, de um ponto de vista cristão, só
existe um progresso: aquele dirigido a uma distinção mais marcada entre a fé e a sua
ausência, entre Cristo e o Anticristo (LÖWITH, 1958, p. 243).
Referências
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus, Parte I e II. Trad. de Oscar Paes Leme. Petrópolis:
Vozes, 1991.
TOLSTÓI, Liev. Minha Religião. Trad. de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: A Girafa,
2011.
O Reino de Deus está em vós. Trad. de Celina Portocarrero. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos
Tempos, 1994.
Monarquia – O melhor governo, pois assim como existe um Deus único, deve existir um
único soberano no Estado a regular a vida humana
Não é a honra e glória mundana prêmio suficiente à solicitude régia – é de Deus que o rei
deve esperar prêmio. Está nas mentes de todos os racionais que o prêmio da virtude é a
felicidade, pois diz-se da virtude de qualquer coisa, que ela faz bom o que a tem a torna boa
a obra dele. Noção de governo: conduzir a um fim justo, virtuoso. Certamente, ninguém se
afasta da justiça a não ser pelo desejo de algum proveito. O tirano, além disso, priva-se da
bem aventurança, que se lhe deve por prêmio, e, o que é mais grave, granjeia o tormento
máximo nas penas. Se, pois, aquele que despoja um homem ou o escraviza, ou o mata,
merece a pena máxima que é a morte no juízo de Deus.