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VII Congreso SEAE Zaragoza 2006 Nº 142

Limites e Avanços da Agroecologia no Brasil:


Coordenando propostas e relacionando saberes...
Fábio Dal Soglio* e Valéria Dias da Costa Lemos**

*Dep. Fitossanidade – UFRGS, Cx.P 15100 CEP 90001-970 Porto Alegre RS,
fabiods@ufrgs.br; **Faculdade de Agronomia – UNICRUZ. lerry@terra.com.br.

INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, a Agroecologia, Ciência que procura desenvolver modelos
sustentáveis de agricultura, deixou de ser um assunto restrito a poucos grupos, ligados
principalmente a Organizações Não Governamentais (ONGs), tornando-se um tema
de crescente interesse nas agendas dos governos e na academia. Entretanto, é
preciso reconhecer, que destarte um interesse crescente, há um longo caminho a
percorrer, pois apesar das pesquisas estarem demonstrando que o modelo de
agricultura industrializada, que chamaremos de convencional, tem promovido a
destruição dos agroecossistemas, colocando em risco nosso modo de vida (Tilman et
al., 2002), muito pouco tem sido feito de fato para alterar esse processo, ou ao menos
restringi-lo. Para a superação deste modelo hegemônico, produtivista, ligado a uma
noção equivocada de crescimento econômico sustentado, é necessário que as
pesquisas e experiências em Agroecologia sejam cada vez mais integradas às
políticas públicas e às demais áreas acadêmicas envolvidas no processo de
desenvolvimento rural. Nesse sentido, este documento procurará tratar da evolução
da Agroecologia como espaço acadêmico no Brasil, suas articulações e resultados, e
das perspectivas de organização deste campo.

Antecedentes Históricos
A Agroecologia surgiu como campo científico na primeira metade do século XX num
contexto de busca de modelos sustentáveis para a agricultura (Dalgaard et al., 2003).
Em sua primeira fase, tinha como objetivo integrar os conhecimentos da Ecologia à
Agronomia sob ponto de vista das Ciências Biológicas. Os trabalhos realizados nesse
sentido, no entanto, concluíram que a sustentabilidade da agricultura, ou seja, a
capacidade de produzirmos alimentos sem afetarmos a capacidade de regeneração
dos ecossistemas, não dependia apenas de conhecimentos biológicos sobre os
ecossistemas onde a agricultura era realizada, mas de uma complexa inter-relação
com a sociedade humana. Assim, atualmente a pesquisa em Agroecologia integra as
metodologias das ciências mais “duras”, como a Ecologia e a Agronomia com aquelas
provenientes das Ciências Sociais, Economia, Antropologia e Sociologia,
principalmente e sempre numa busca pela interdisciplinaridade.

No Brasil, embora na academia houvesse alguns pesquisadores atuando com base


em princípios agroecológicos, como Ana Primavesi, ao longo da segunda metade do
século XX, foram os movimentos pragmáticos, principalmente representados pelas
ONGs, que buscaram oferecer uma alternativa ao modelo de industrialização da
agricultura, voltado para a exportação de “commodities”, baseado em monoculturas e
incapaz considerar as dimensões sociais e ecológicas dos agroecossistemas. Os
saberes oriundos das experiências dos movimentos pragmáticos têm sido de
fundamental importância para compor, juntamente com as pesquisas e teorias que
estão sendo desenvolvidos na academia nos últimos anos, a base científica da
Agroecologia para desenvolver tecnologias e métodos de produção agrícola
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adaptados às comunidades e aos diferentes biomas brasileiros, sob a perspectiva de


uma agricultura sustentável.
O crescente reconhecimento da Agroecologia no espaço acadêmico1 converteu-a em
um canal de comunicação entre a Academia e as iniciativas dos grupos pragmáticos
que trabalham em conjunto com as comunidades excluídas do modelo de
modernização agrícola, mais especificamente a grande maioria dos agricultores
brasileiros que praticam uma agricultura de base familiar. Não cabe aqui discutirmos
os equívocos cometidos no Brasil em função do modelo de modernização da
agricultura adotado, e que vem resultando em empobrecimento dos agricultores (Leite,
2005) e em prejuízos, muitas vezes irreparáveis, ao meio ambiente e à saúde pública.
Entretanto, devemos também considerar que este modelo também é responsável pelo
distanciamento entre a sociedade e a academia, pois os investimentos em pesquisa e
desenvolvimento para a agricultura têm sido aplicados na geração de pacotes
tecnológicos direcionados para uma pequena parcela de agricultores, sendo
inadequado à maioria dos agricultores e biomas brasileiros. As análises da agricultura
familiar brasileira (Guanziroli & Cardim, 2000), as estatísticas anuais de intoxicação e
mortes por agrotóxicos2 e a problemática ambiental atuais, evidenciam a
insustentabilidade dos projetos derivados das políticas públicas brasileiras para a
agricultura nesses últimos cinqüenta anos e a necessidade de mudanças.

A superação desse modelo de agricultura e a busca de mecanismos sustentáveis –


sociais e ecológicos - na produção de alimentos são, portanto, tarefas que devem
considerar não apenas a capacidade produtiva e a realização econômica das culturas,
mas principalmente uma visão ecológica do fenômeno da produção agrícola. A partir
da análise de sistemas complexos, que permitem a integração dos mais diferentes
fatores que compõem os agroecossistemas, a Agroecologia vem se propondo a
superar essa visão reducionista na qual a Ciência e a geração de tecnologias
tornaram-se sinônimos. Os agroecossistemas incluem dimensões ecológicas,
econômicas, agronômicas, sociais e culturais, dado que são as manifestações da
coevolução dos fenômenos culturais e dos manejos agrícolas com os sistemas
biológicos de diferentes biomas. Isso resulta no postulado agroecológico de que o
desenvolvimento de tecnologias deve levar em consideração as especificidades
geradas por essas interações múltiplas, não podendo por isso ser homogêneo ou
planificado.

Esse novo objeto de estudo do fenômeno da produção agrícola – o agroecossistema –


é o referencial das críticas sistemáticas, muitas vezes incompreendidas, da
Agroecologia a diversos projetos de agricultura orgânica, cujos objetivos são a criação
de pacotes tecnológicos planificados. Para a Agroecologia, essas propostas, ao não
reconhecerem a diversidade ecológica e socio-ambiental de diferentes ambientes,
apenas substitui insumos. E, a substituição de insumos, além de manter a
equivalência entre geração de tecnologias e Ciência, nada mais é do que a reedição
1
Cabe aqui destacar a influência de nomes atuais da Agroecologia mundial, como Miguel Altieri,
Stephan Gliesmman, Richard Noogard e Vandana Shiva.
2
Segundo o Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas - SINITOX (
http://www.fiocruz.br/sinitox/ acessado em 20/09/2005), intoxicações por agrotóxico tem sido
sistematicamente a principal causa de óbitos, embora não a principal causa das intoxicações notificadas.
Em 2002 respondeu por 35% dos 375 óbitos notificados, superando em muito os óbitos devidos a
intoxicação por medicamentos (16%), principal causa de intoxicação no País, com cerca de 30% das mais
de 75.000 notificações anuais. Considerando que menos de 20% das intoxicações são notificadas, e que
muitos dos óbitos causados pela intoxicação por agrotóxicos sequer são atribuídos a este problema,
podemos concluir que a intoxicação aguda e crônica, direta ou indireta, pelo uso de agrotóxicos é um dos
principais problemas de saúde pública no Brasil.
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disfarçada da disseminada abordagem financista da agricultura, que, como já foi


demonstrado, é incapaz de promover um desenvolvimento ou mesmo práticas
sustentáveis.
A Agroecologia é uma Ciência e não um termo para designar as diferentes “escolas”
de agricultura orgânica. Tampouco é filosofia, movimento social ou político-partidário,
ou um guarda-chuva onde os pragmáticos, cientistas ou não, buscaram abrigo,
podendo ser aplicada a qualquer modelo de agricultura que não utilize insumos
químicos sintéticos. De fato, o termo “agroecologia” tende ainda a ser utilizado, de
maneira indiscriminada, e muitas vezes equivocada, como uma qualidade, uma
postura ou alinhamento social, e não como uma Ciência. Muitos são os agricultores
orgânicos, que produzem de maneira não ecológica, e que se autodenominam
“agricultores agroecológicos”. Também é freqüente encontrar políticos que defendem a
Agroecologia, como se o campo científico precisasse de defesa política. A “defesa” da
Agroecologia deve ser no sentido de receber apoio e ter reconhecida sua pertinência,
de modo a ser chamada a discutir as políticas públicas que visam a superaração do
modelo insustentável de agricultura industrializada.

Sociedade e Agroecologia
A crescente aceitação na academia e na política dos temas da Agroecologia pode ser
demonstrada pelo lançamento de editais de pesquisa do CNPq3 e pelos programas de
políticas públicas para o desenvolvimento rural, como aqueles desenvolvidos pelo
Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), incluindo o Plano Safra 2005-2006 e a
Política de Assistência Técnica e Extensão Rural4. Entretanto, o modelo produtivista
de crescimento econômico ainda é hegemônico nos planos do Governo Federal, em
especial nas políticas determinadas pelos Ministérios da Agricultura e Abastecimento
(MAPA), de modo que a aplicação da Agroecologia tem sido considerada como
referência para apenas uma pequena fração da agricultura no país. O discurso
brasileiro da responsabilidade social e ambiental está defasado em relação a políticas
de inclusão social e de respeito ao meio ambiente capazes de promover o
desenvolvimento sustentável. Esse modelo dualístico da agricultura brasileira,
certamente, é uma das principais causas dos fracassos de nossas políticas de
desenvolvimento agrário e de nossos baixos índices de desenvolvimento humano. A
inclusão dos princípios agroecológicos nos discursos sobre políticas públicas
aparentemente tem servido como o purgatório da incapacidade política brasileira em
alterar os rumos de seus próprios modelos de desenvolvimento baseados no
“agronegócio”: neologismo muito utilizado para justificar a manutenção do modelo de
agricultura industrializada, mecanizada, monocultora e excludente. Assim, podemos
comemorar a presença e a expansão da Agroecologia na cena acadêmica e na
política brasileira, mas precisamos admitir, no entanto, que ainda existe um longo
caminho a percorrer.

3 Um exemplo disso foi o Edital CT-Agro/MDA/MCT/CNPq - nº 020/2005, destinado a projetos


fundamentados nos princípios da Agroeclogia com recursos na ordem de R$4.000.000,00, embora sejam
editais para projetos com prazo de 18 meses, o que é pouco em projetos de Agroecologia. (Site
www.cnpq.br, visitado em 24/09/2005).

4
O Plano Safra 2005/2006 (http://www.pronaf.gov.br/home/plano_2005.pdf, acessado em 27/09/2005) e
a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão rural (http://www.pronaf.gov.br/dater/, acesso e.
27/09/20050) formulados pelo MDA, contemplam uma diretriz de apoiar, via crédito e extensão rural,
iniciativas que promovam o desenvolvimento sustentável, tendo os principíos da Agroecologia coo
norteadores do processo.
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Não obstante, é preciso reconhecer que estamos avançando na aproximação entre


academia e organizações sociais e agentes de desenvolvimento ligados aos
movimentos pragmáticos. Os mais diferentes Seminários e nos Congressos sob o
tema da Agroecologia caracterizam-se pela interação entre acadêmicos, agricultores,
representantes de ONGs e organizações sociais. Este é certamente um aspecto que
demonstra que a Agroecologia busca interfaces entre saberes acadêmicos e comuns,
como propõe Santos (2000), embora seja necessário aprofundar e refletir sobre os
referenciais teóricos da Agroecologia e ampliar sua base axiomática. Esse
aprofundamento passaria pela formação de pesquisadores e extensionistas, pelo
estabelecimento de grupos de pesquisa e pela criação de espaços de debate
acadêmico, como seminários, congressos e publicações de caráter científico.

Agroecologia e Academia
A Agroecologia é uma área de pesquisa hoje aceita e pertinente tanto dentro das
academias como para os órgãos e agências financiadores de pesquisas,
principalmente nas áreas de desenvolvimento rural, e, mais precisamente, nas
Ciências Agrárias. No entanto, o fato de declarar-se pesquisador na área de
Agroecologia, em que pesem os consensos sobre os postulados gerais da mesma, em
muitos casos, tem se configurado como um protocolo de intenções, resultante de uma
alteridade em relação àquilo que se designou como a “ciência oficial” – ou clássica, ou
cartesiana. Procura-se pesquisar aquilo que foi “esquecido”, “excluído” ou “deixado de
lado” pelos esquemas generalizantes, como agricultura orgânica, manejo ecológico de
culturas, indicadores de sustentabilidade, etnografia de comunidades, mediadores e
extensão rural. Ou seja, temas referentes ao desenvolvimento rural de comunidades
ou indivíduos que encontram-se à margem dos agronegócios e das disputas
brasileiras para se tornar um dos maiores produtores de “commodities” do mundo (em
que pese ser essa uma visão superada de Segurança Alimentar5).

A possibilidade da Agroecologia gerar uma identidade que supere essa alteridade vai
depender, por um lado, das capacidades da própria Agroecologia e de seus
pesquisadores e teóricos. Isso significa refletir sobre e eleger suas problemáticas
legítimas, sua capacidade de representatividade social, acadêmica e nos organismos
financiadores de pesquisa, como também, nas suas possibilidades de organização. E,
ao mesmo tempo, vai também ser função da aceitação de seus postulados e do
trabalho conjugado e transitivo com extensionistas e ONG´s, bem como, e mais
importante, com os agricultores que são o elo mais fraco e mais importante dessa
cadeia.

Analisando dados oficiais da produção de Ciência e Tecnologia, verificamos que os


pesquisadores em Agroecologia têm apresentado uma crescente participação no
cenário nacional. Isso demonstra que se tem levado a sério as recomendações
apresentadas nas Cartas Agroecológicas elaboradas desde 1999 nos encontros que
tiveram a Agroecologia como tema central6. Propostas como o estabelecimento de
linhas de pesquisa em Agroecologia junto às instituições oficiais de pesquisa e a

5
Ver MARTINS, Sergio Roberto “A Academia e a Soberania Alimentar: (Des)Compromissos
Individuais e Coletivos”. In: CANUTO, João Carlos e COSTABEBER, José Antônio (orgs.).
Agroecologia: Conquistando a Soberania Alimentar. Porto Alegre: Emater/RS-Ascar; Pelotas: Embrapa
Clima Temperado, 2004.
6
Disponíveis em CANUTO, João Carlos e COSTABEBER, José Antônio (orgs.). Agroecologia:
Conquistando a Soberania Alimentar. Porto Alegre: Emater/RS-Ascar; Pelotas: Embrapa Clima
Temperado, 2004.
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ênfase na Agroecologia como campo de estudo nas instituições de ensino das


Ciências Agrárias, têm sido cumpridas. Coincidentemente, aproximadamente 80% das
dissertações e teses contendo Agroecologia como palavra-chave, defendidas entre
1988-2003, concentram-se no período entre 1999 e 2003. Temos 62 grupos de
pesquisa registrados no CNPq no ano de 2005 na linha de Agroecologia, quando eram
31 em 2004, 27 em 2003 e, somente 3 em 20007. E, a maioria das pesquisas
(incluindo aquelas desenvolvidas em programas de pós-graduações) foram realizadas
em instituições federais de ensino superior e/ou vinculadas a agências financiadoras
de pesquisa e extensão federais e/ou estaduais. Ou seja, em termos formais a missão
está sendo, e, ao que tudo indica, continuará a sê-lo realizada com êxito.

Mas, para que se possa observar as direções que a Agroecologia vem tomando no
sentido de avançar e estabelecer sua identidade e, igualmente, como Ciência, superar
a alteridade de um protocolo de intenções, é necessário exceder ao fetiche dos
números e observar a qualidade dos dados que estão sendo obtidos. É preciso
assumir a postura de Ciência, sem receio dos enfrentamentos que deverão ocorrer,
naturais a qualquer campo do conhecimento. Para isso deve-se investir na construção
de referenciais que auxiliem na instrumentação necessária para superar a fase de
“Ciência em construção”. As condições que hoje se apresentam, e em especial no
Brasil, nos faz acreditar que isso poderá ocorrer em um curto espaço de tempo.

No total das teses e dissertações defendidas no período considerado entre 1988 e


2003, podemos identificar vários objetos de pesquisa, como seria o esperado em uma
Ciência interdisciplinar (embora as pesquisas em Ciências Agrárias sejam
numericamente prevalecentes8). No entanto, dois tipos de trabalhos são
predominantes: aqueles que pesquisam indicadores de sustentabilidade, e os estudos
de caso. De onde podemos afirmar que a pesquisa em Agroecologia tem atuado na
busca de critérios de avaliação mais precisos, e também procurado compreender o
ambiente social onde se faz Agroecologia.

Estudos de caso são como “decapagens” de áreas. Eles visam compreender as


relações sociais e o uso do espaço que se faz nela. Em Agroecologia, essa
decapagem das comunidades rurais tem tido como objetivos compreender os
aspectos específicos acerca de percepções sobre o meio ambiente, impactos de
transições para um manejo orgânico ou agroecológico, pesquisas participativas, bem
como estudos sobre a ação de ONG´s e empresas de extensão rural. Já as pesquisas
sobre indicadores têm buscado a “estratigrafia” dos manejos, identificando
sincronicamente impactos e variáveis ao longo do tempo, pertinentes aos manejos
agroecológicos. Mas, em ambos os casos, alguns aspectos merecem ser salientados,
mais por sua ausência do que pela sua presença.

O primeiro deles refere-se ao recorte regional dado aos estudos. Em que pesem as
restrições reais de qualquer pesquisa quanto ao objeto e a área a ser estudada, isso
não exclui a articulação desse “recorte” com o ambiente econômico e político no qual
está inserido. Descartando alguns poucos trabalhos específicos sobre o impacto de
políticas públicas (e mesmo assim em muitos casos restritos às esferas do mundo
legal ou institucional), e também algumas poucas análises econômicas sobre práticas

7
Censos dos Grupos de Pesquisa, Plataforma Lattes, CNPq, em www.cnpq.br. Esses dados devem ser
relativizados, pois é comum os grupos de pesquisa mudarem seus temas então serem absorvidos em
temáticas mais amplas.
8
Cerca de 80% das dissertações e teses com o tema Agroecologia foram defendidas na área de Ciências
Agrárias. Ver Banco de Teses e Dissertações da CAPES em www.capes.gov.br
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culturais (em muitos casos também restritas a análises de custos), a dimensão


relacional nos trabalhos realizados até 2003 é exígua. A comunidade, o zoneamento, o
assentamento, enfim, a área “decapada”, são identificados como produtos de uma
política de Estado e de relações econômicas, mas não são analisados como
possuindo com estes relações de fato.

Esse problema decorre de dois fatores interligados: a tendência a sobrevalorizar os


regionalismos e o resgate de valores regionais, e, a Crise dos Paradigmas que
resultou num recesso das ditas teorias “generalizantes”, que privilegiavam somente as
dimensões políticas e econômicas dos fenômenos ligados ao Desenvolvimento Rural.

No entanto, e principalmente no Brasil, tais dimensões não podem ser minimizadas,


pois vivemos num país de grandes desigualdades e exclusão sociais, onde os
processos de garantia da cidadania vêm sendo substituídos por políticas
assistencialistas. Fatores estes que são derivados de uma história de políticas
públicas e econômicas excludentes e que geraram as reflexões e também os “objetos
de pesquisa” da Agroecologia. E, embora recentemente se afirme o contrário, no Brasil
é válido dizer que a condição da economia e das políticas públicas interferem sempre
na condição de vida, na reprodução e sobrevivência daqueles que estão excluídos dos
números oficiais sobre o desenvolvimento político e/ou econômico. A pertinência das
esferas política e econômica no Brasil é dada pela ausência, pela fragilidade, e pela
dominação que se assume como natural, e por isso mesmo, não sujeita a análise. É
preciso entender e reconhecer que a lógica da dominação consiste em o dominado
aceitar seu espaço restrito como natural e legítimo, e que identificar e constatar é
apenas manter-se no terreno do permitido.

Compreender a inserção comunitária do assentado, do agricultor, do pequeno


agricultor, do agricultor familiar, é importante. Mas não pode ser deixado de lado que
eles não são apenas categorias profissionais, ou sujeitos culturais. A
“responsabilidade” de produzir alimentos de qualidade (a divisão do mundo em
categorias profissionais é um vício marxista ortodoxo antiquado, porém perfeitamente
superável sem o remédio do relativismo cultural) é o fato econômico que enquadra
essas diversas categorias, mas não é a realidade das mesmas. Encerrar a questão da
pesquisa em Agroecologia no sucesso de uma comunidade que se sustenta, é
privilegiar a intransitividade policultural e regional, e também aplicar os mesmos
expedientes e protocolos “ultrapassados e generalizantes” aos quais a Agroecologia
tenta superar. É necessário compreender porque nossos “objetos de pesquisa” não
estão sendo capazes de se autogerir e criar sua própria História inseridos em nosso
meio social (do qual, aliás, fazem parte sem participar). E, isso significa ter critérios
mínimos de aceitabilidade que estão sendo gerados pelas pesquisas verticais sobre os
índices de sustentabilidade. É reconhecer que nem tudo que é regional é comunitário.
Que nem tudo que é sustentado é sustentável, e que, nem tudo que é tradicional é
democrático.

O Congresso Brasileiro de Agroecologia e a ABA-Agroecologia


É inegável a consolidação da Agroecologia nas mais diferentes regiões, o que se
verifica pela massiva presença de agricultores, técnicos e acadêmicos nos muitos
encontros e seminários que são organizados em o País tendo por tema a
Agroecologia. Na última década, este movimento tem crescido, e nos últimos anos
aumentou a demanda por um espaço que permitisse a circulação dos conhecimentos
obtidos nas diferentes regiões do país. A partir dessa demanda que inicialmente
surgiu, em 2003, o Congresso Brasileiro de Agroecologia, que não apenas oportunizou
espaços para palestras e oficinas tratando dos mais diversos aspectos da
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Agroecologia no Brasil e no mundo, como abriu a possibilidade de apresentação de


trabalhos e de experiências. Nesse primeiro Congresso ficou clara a necessidade de
uma entidade que pudesse congregar as pessoas interessadas em apoiar a
Agroecologia, incentivando ou contribuindo diretamente na produção de conhecimento
científico nesse campo. Assim, no final de 2004, durante o II Congresso, foi fundada a
Associação Brasileira de Agroecologia – ABA-Agroecologia, com a finalidade de
ocupar este espaço ligando academia e saber local.
A ABA-Agroecologia tem como objetivos criar um espaço de dialogo para todos que,
profissionalmente ou não, se dediquem à Agroecologia, promovendo esta Ciência
levando-se em conta as múltiplas dimensões dos agroecossistemas (econômica,
social, ecológica, cultural, política e ética), e despertando o interesse do público nas
questões que dizem respeito ao desenvolvimento de formas sustentáveis de
agricultura. Para isso, tem como missão organizar eventos, editar publicações,
assessorar e aconselhar entidades oficiais ou particulares e manter um fórum
permanente de ensino em Agroecologia, práticas sustentáveis e cooperação
internacional. No seu quadro de sócios encontram-se profissionais, estudantes e
agricultores, estando também aberta para a associação de entidades que se
proponham a apoiar a Agroecologia. O recente III Congresso Brasileiro de
Agroecologia, realizado em outubro de 2005 em Florianópolis, Santa Catarina,
confirmou a importância deste espaço e o sucesso das duas primeiras edições que
foram realizadas em Porto Alegre. É sem dúvida imprescindível para a evolução da
Ciência e sua maior aplicação nas políticas públicas e mesmo nas práticas, que a
produção do conhecimento em Agroecologia tenha espaços como o do Congresso
brasileiro de Agroecologia e a ABA-Agroecologia. Ao permitir a troca de
conhecimentos, acadêmicos ou de experiências, representando a atual produção
científica em Agroecologia, entre agricultores, técnicos, estudantes e cientistas não
apenas do Brasil, como também de diferentes países, em especial latino-americanos,
estes espaços certamente contribuirão na formação da identidade da Agroecologia
como Ciência, ao mesmo tempo que ampliarão as bases científicas necessárias ao
desenvolvimento de uma agricultura sustentável de base ecológica.
Assim, para concluir, acreditamos que a ABA-Agroecologia, em parceria a tantas
outras iniciativas de caráter regional ou nacional, em especial a Articulação Nacional
de Agroecologia – ANA, pode contribuir no estabelecimento de um novo modelo para
a agricultura brasileira. A criação de um espaço plural e democrático, onde exista um
ambiente favorável para o debate e a disseminação do conhecimento em Agroecologia
é fundamental para que se alcance uma agricultura de base ecológica e o
desenvolvimento sustentável no Brasil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Dalgaard, T.; Hutchings, N.J.; Porter, J.R. Agroecology, scaling and interdisciplinarity.
Agriculture, Ecosystems & Environment. 100:39-51. 2003.
Guanziroli, C.E.; Cardim, S.E. (Coord.) O Novo Retrato da Agricultura Familiar: o Brasil
redescoberto. Projeto de Cooperação Técnica INCRA-FAO: Brasília. 74p. 2000.
Leite, S. Revisitando o papel da agricultura no desenvolvimento brasileiro: notas sobre
a insustentabilidade do predomínio de uma estratégia agroexportadora. Trabalho
apresentado no “Seminário Nacional em Desenvolvimento Rural Sustentável”, 23 a
25 de agosto de 2005, Brasília, DF. Brasília – CONDRAF, 8p. 2005.
Santos, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente.Contra o Desperdício da
Experiência.Porto. Afrontamento. 2000
Tilman, D.; Cassman, K.G.; Matsons, P.A.; Naylor, R.; Polasky, S. Agricultural
sustainability and intensive production practices. Nature, 418:671-677. 2002.

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