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Entre fenomenologia e Between phenomenology and


hermenêutica: hermeneutics:
a condição responsiva da subjectivity's responsive
subjetividade condition
Marcelo Fabri1
Professor do Departamento de
Filosofia da UFSM –
Santa Maria – RS

Resumo: O artigo explora a relação entre Abstract: This paper aims to explore the
fenomenologia e hermenêutica a partir da relation between phenomenology and
estrutura responsiva da subjetividade hermeneutics according to the responsive
humana. Mesmo em sua proposta de um structure of the human subjectivity.
“retorno” ao mundo da vida, Husserl não Although Husserl proposes a "comeback"
abre mão de um eu constituinte que, ao to the world of life, he does not give up of
realizar a redução, parece suspender o a constitutional Ego which, at the moment
movimento real da vida e da linguagem. it makes the reduction, seems to suspend
Como pode o mundo como solo fundador the real movement of life and of language.
ser algo constituído pelo ego? Eis o How could the world as a foundational
paradoxo: para se recuperar o solo ground to be something constituted by the
fundador de toda ciência é fundamental ego? Here lies the paradox: to recover the
reconhecer a pureza transcendental do ego foundational ground of all science is
constituinte. A pergunta que colocamos, fundamental to recognize the transcendental
no entanto, é esta: a referida “pureza” purity of the constitutional Ego. However
transcendental significa um empecilho à the question we highlight is the following:
abertura dialógica proposta pela hermenêutica does this called transcendental "purity"
filosófica? Cumpre mostrar que não, pois, mean an obstacle to the dialogical proposed
pensadas a partir da unicidade respondente by the philosophical hermeneutics? We shall
(subjetividade humana), fenomenologia demonstrate that no, because if we think
transcendental e atitude dialógica them based on the respondent singularity
(hermenêutica) tornam-se modelos teóricos (human subjectivity), transcendental
que, mesmo muito diferentes um do outro, phenomenology and dialogical attitude
fecundam-se ou se enriquecem mutuamente. (hermeneutics) become theoretical models
that enrich themselves mutually, even if
very different from each other.
Palavras-chave: fenomenologia, hermenêutica,
transcendental, responsividade, diálogo Keywords: phenomenology, hermeneutics,
transcendental, responsivity, dialogue

1 e-mail: fabri.ufsm@gmail.com.
Entre fenomenologia e hermenêutica: a condição responsiva da subjetividade

compreendemos previamente, solo


fundador de toda teoria, mundo da vida
que foi transformado pela civilização
tecnológica. Pode-se perguntar se não é a
motivação autêntica de Husserl que a
hermenêutica filosófica pretende explorar
(GADAMER, 2012: 230). Tudo se passa
como se a hermenêutica lançasse luz sobre
um mundo que Husserl “tirou do
esquecimento”, mas do qual sempre se
A fenomenologia e a hermenêutica são distanciou, tendo em vista sua obsessão
recursos metodológicos de extrema pela constituição transcendental do próprio
atualidade para se pensar a condição mundo. Por outro lado, a fenomenologia
responsiva e dialógica da realidade humana. parece “tirar do esquecimento” algo que a
São, no entanto, propostas muito hermenêutica, por princípio, deixa de lado:
diferentes. A fenomenologia (pelo menos a a necessidade de um “espaço transcendental”
de Husserl) se prende a um conceito de mínimo, a língua universal capaz de realizar a
transcendental que jamais prescinde da mediação das diferentes línguas. Mas, eis a
referência a um ego constituinte, livre para nossa tese, somente a fenomenologia da
realizar a redução [epoché]. A hermenêutica, subjetividade respondente poderia pensar a
por sua vez, não abre mão da situação de articulação dessas propostas tão diferentes e
linguagem, questionando enfaticamente a contrastantes.
primazia do sujeito transcendental,
entendido como constituinte absoluto do 1. Reminiscência
mundo, em sua significação objetiva e
intersubjetiva. Para Gadamer, a ênfase Husserl concebeu a filosofia como
sobre o eu transcendental, mantida por autorrealização da humanidade. Entrar no
Husserl até mesmo em sua obra de domínio da razão filosófica implica
maturidade, em que o mundo da vida vem engajar-se pela ideia de verdade numa
exaustivamente nomeado e pensado, não tarefa que jamais encontra termo. Mas,
diminui a dificuldade de se considerar o para que tal entrada se consolide num
“tu” e o “nós” a partir do conceito de trabalho coerente e eficaz, é preciso vencer
constituição, no qual o ego é a figura os prejuízos da atitude natural realizando a
eminente (GADAMER, 2012: 178). A epoché. Só assim se poderia chegar a uma
referência ao mundo da vida, solo ciência inteiramente nova, que não é outra
fundador de todo conhecimento elaborado senão a ciência subjetiva voltada para o
pelas ciências, não abandona o recurso à próprio eu transcendental. A filosofia se
atitude metódica que “põe fora de jogo” o compreende como luta incessante da razão,
mundo pré-dado, que faz deste solo um um movimento sempre renovado de
fenômeno para a consciência, elevando o aclaramento, pelo qual o ideal mais caro à
eu acima do mundo (HUSSERL, 2012, § Filosofia do Ocidente (o ideal de saber
41: 124). Husserl objetaria: é esta elevação rigoroso) é assumido por uma vida pessoal
que nos faz reencontrar (recordar) aquilo comprometida com a verdade e a
que está mais próximo de nós, que liberdade. No intuito de evitar o domínio

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técnico sobre o pensamento e a vida, é de ser de ambos” (HUSSERL, 2012, § 34.:


necessário “recordar” o fundamento 107). Ora, o que entender por mundo
humano da ciência. O que se busca, em verdadeiro? Mundo científico e mundo da
última instância, é um sentido de vida não possuem o seu próprio modo de
racionalidade marginalizado e esquecido ser, a sua especificidade? Pois bem, na
pelas ciências. medida em que se realiza a epoché em
relação ao mundo das ciências, o ego volta
O que se encontra esquecido? Aquilo que é seus olhos para as relatividades do mundo
mais próximo de nós. Aquilo que é em que já sempre vivemos. Descobre-se,
primordial: a intuição, sempre relativa a assim, que não há um mundo da vida,
subjetividades concretas, num mundo pré- único para todos, mas mundos, outras
científico. Este mundo relativo, isto é, que referências valorativas, outros universos
sempre pressupõe nossas percepções, culturais. Por outro lado, é preciso
avaliações, recordações etc., é esquecido considerar o seguinte. O esforço de
pelos homens de ciência, mas tal reminiscência implica não só a lembrança
esquecimento não pode contornar o fato do mundo em que vivemos, ou das
de que “as ciências estão construídas sobre a diferenças infindáveis das várias formas
obviedade do mundo da vida” (HUSSERL, culturais de vida, mas também a
2012, § 34: 102). Certo, aquilo que é apenas “recordação” do caminho da própria
“relativamente ao sujeito” deve ser ciência, do olhar objetivo para o mundo.
ultrapassado pelo olhar objetivo da ciência, Como assim?
mas o domínio das evidências originárias é
o pressuposto “subjetivo” e concreto desse É que, para além das verdades cientificas,
olhar. Nem mesmo as idealidades da lógica supostamente objetivas, isto é, das
pura, que são “verdades em si”, poderiam verdades de ninguém em particular, há
dispensar a fundação de todo o saber verdades concernentes ao próprio mundo
objetivo no assim chamado mundo da vida. das relatividades, àquilo que é comum a
Pois as idealidades não alteram o fato de todos os povos e culturas. Não aquilo que
que “as teorias são configurações humanas, sintetiza as diferenças numa universalidade
essencialmente referentes a atualidades e que superou toda particularidade, mas as
potencialidades humanas” (HUSSERL, “verdades” referentes às particularidades. O
2012, § 34: 106). pensamento de Husserl chega, aqui, a um
limite intransponível. Só se pode trazer à
Temos, então, o problema: como “fazer tona o que foi esquecido pelo olhar
justiça” a este mundo pré-dado, entendido objetivo da ciência se houver uma analogia
como solo fundador de toda teoria, de entre o olhar objetivo, proposto pelas
tudo o que é verdadeiro do ponto de vista ciências, e a generalidade, passível de
científico? Como devemos compreendê-lo explicitação, do próprio mundo da vida.
ou, pelo menos, valorizá-lo devidamente? Pois, para Husserl, também o mundo da
Mais ainda: como encontrar uma vida possui a sua estrutura geral, aquilo que
cientificidade adequada a ele? Nas palavras é comum aos vários mundos, supostamente
de Husserl: “A paradoxal referência mútua tão diferentes. Todos esses mundos
entre o ‘mundo objetivamente verdadeiro’ e possuem objetos tais como “figura
o ‘mundo da vida’ torna enigmático o modo espacial”, movimento, qualidades sensíveis

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etc.. Eis o que abre caminho para a ciência O sujeito que vive no mundo está sempre
objetiva. Todo ser relativo está vinculado a direcionado a algo, está ativamente
uma estrutura geral oferecida pelo próprio presente em seus atos, numa palavra, está
mundo da vida. As estruturas a priori sempre ocupado com alguma coisa,
necessárias às verdades em si da ciência envolvido por aquilo que o circunda,
têm seu correspondente na estrutura geral imerso numa comunidade etc. É aí neste
do mundo da vida. Nas palavras de mundo que tomamos posição sobre isto ou
Husserl: aquilo, ou seja, que estamos imersos num
processo sempre renovado de validações
Aquilo que a configuração de sentido e a teóricas ou práticas. Ao suspendermos
validade de ser de nível superior do a priori metodicamente esta vida naturalmente
matemático e de todo o a priori objetivo imersa no mundo, o olhar filosófico se
pr oduzem é uma certa operação torna livre de seu vínculo mais forte, mais
idealizadora, com base no a priori do fundamental, mais universal. Descobre-se
mundo da vida (HUSSERL, 2012, § como subjetividade transcendental,
36: 114). realizadora da própria validade do mundo
(HUSSERL, 2012, § 41: 123).
O que se traz à memória, portanto, não é a
vida em seu movimento, a linguagem em Todos os assim chamados interesses
sua peculiaridade, as obras humanas com naturais foram suspensos, postos fora de
sua beleza e variedade, mas um novo a jogo. Mas o mundo não desapareceu. Ele
priori, uma nova estrutura geral, base apenas se tornou um “correlato da
fundadora de todos os outros a priori, de subjetividade para ele doadora de sentido
que se beneficiam a lógica, as matemáticas de ser, subjetividade por cuja validade ele
e as ciências. O mundo é o “solo” de tudo em geral ‘é’ “(HUSSERL, 2012, § 41: 124).
o que fazemos, conhecemos e vivemos. O sujeito se encontra, assim, acima do
Nós já sempre estamos na certeza do mundo, ou seja, o mundo se tornou para
mundo. Vivemos nesta certeza e a partir ele simples fenômeno.
dela. Todos os objetos nos são “dados” a
partir desse horizonte do mundo. Mas o Mas este “estar acima do mundo” não
mundo não é um objeto. Ele é o horizonte significa ter abandonado o mundo
a partir do qual algo nos pode afetar, mas faticamente, empiricamente, realmente. Ao
também pelo qual podemos agir. Como contrário: é a condição para que o sujeito
podemos fazer deste mundo um tema, ou se descubra como sendo sempre e
ainda: como podemos observá-lo? Saindo inevitavelmente “um ponto de vista sobre
dele. Mas de que modo, se é dele que tudo o mundo”, um modo de perceber o que o
depende, provém ou tem início para nós? envolve, bem como o âmbito no qual vive.
A resposta de Husserl, a esse respeito, Numa palavra, tornar o mundo relativamente
resume seu pensamento: “A vida que ao sujeito, pela redução, é apontar para as
realiza a validade do mundo, validade várias maneiras subjetivas de doação, de
própria da vida natural do mundo, não se modos de aparecer. Seja real ou não, um
deixa estudar na atitude desta vida natural do ente tem sempre as suas formas próprias
mundo” (HUSSERL, 2012, § 39: 121). de doação e de aparição. A intencionalidade
é a chave para toda explicação genuína, ou

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ainda: é o conceito com o qual se torna fenomenologia procura recuperar a


possível qualquer compreensibilidade. Se experiência corporal vivida, aquela que
permanecermos na atitude natural, ou seja, manifesta uma relação sensível com tudo o
se não realizamos a epoché, caímos numa que nos cerca, manifestação de mobilidade
espécie de desconhecimento sistemático de e, consequentemente, de liberdade. Ponho
nós mesmos e do próprio mundo em que e disponho de meu corpo. Ele é o órgão do
vivemos. Desconhecemos, igualmente, o querer, ele me ensina sobre minhas
fato de que a subjetividade na qual tudo próprias possibilidades perceptivas e
termina se centrando, só é o que é graças à cognitivas, numa palavra, o corpo próprio
intersubjetividade. Eis por que é preciso [Leib] é sinônimo de “eu posso”. Meu
buscar não somente a simultaneidade dos corpo se encontra, portanto, reduzido à
vários sujeitos, mas também e, sobretudo, a minha esfera de propriedade e, por causa disto,
sociabilidade universal, ou seja, o “espaço” o mundo enquanto um “nós”, enquanto
de todos os sujeitos pensados do ponto de mundo comum a vários indivíduos de que
vista do polo eu (HUSSERL, 2012 § 50: eu mesmo faço parte como ser social e
141). cultural, também foi posto fora de jogo.
Por isso, os outros com quem partilho as
2. Responsividade experiências no interior do mundo foram
também separados de mim, graças a uma
Ora, o método redutivo, que suspende as espécie de abstração (HUSSERL, § 44,
crenças voltadas ao mundo da vida, 2013: 136). Surge, assim, a questão: como é
termina isolando, artificialmente ou que tal “separação” abstrata poderia
abstratamente, o ego na assim chamada reconhecer algo de “outro” em relação a ela?
esfera própria. Enquanto se observa a si Qual seria a primeira experiência de
mesmo em suas operações intencionais “alteridade”?
direcionadas a seus correlatos, o ego se
descobre numa espécie de solidão Tudo o que foi reduzido ou separado
monádica, isto é, compreende que a metodicamente estará vinculado a uma
redução o põe em contato exclusivo com experiência transcendental, apropriada pelo
aquilo que lhe pertence, não o autorizando próprio eu. Tudo o que é exterior é, em
a experimentar nada que tenha o sentido certo sentido, correlacionado à esfera de
de não-propriedade [Nichteigene] ou de propriedade. Tudo, em certo sentido, me
exterioridade. Tudo o que seja predicado pertence. O que resistiria a esta vinculação,
do mundo objetivo e das pessoas que nele a esta apropriação egológica? O que
se encontram deve, pois, ser colocado poderia fornecer a mim, ego que realiza a
entre parênteses, ou fora do jogo, pela meditação, um sentido de “exterioridade”,
redução transcendental. O sentido de “mundo objetivo”, um “fora” de meu
“objetivo” desaparece, e com ele tudo o mundo próprio? A resposta é óbvia: uma
que se relaciona à esfera de intersubjetividade, esfera que não fosse redutível às minhas
sem a qual este “objetivo” não poderia ser vivências, à minha imanência. O corpo do
constituído (HUSSERL, § 44, 2013: 134). outro aparece em minha esfera de
propriedade, mas o outro eu possui, ele
Paradoxalmente, em vez de um sujeito também, a sua esfera de propriedade. O
distanciado do mundo ou desencarnado, a conceito de esfera própria pressupõe o

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conceito de estrangeiro, de alteridade, de Na perspectiva de Waldenfels, a alteridade


algo inacessível para mim. do outro se anuncia sob a forma de um
pathos. Do ponto de vista do corpo [Leib],
O que Husserl descobre, portanto, é que a o outro existe em mim e me precede. Por
relação intersubjetiva, que faz do mundo isso, nós nos sentimos tocados pelos outros
algo comum e objetivado, não é uma antes mesmo de perguntar o que as suas
atividade sintética da consciência, não é expressões são e significam. A estraneidade
uma unificação de diferenças realizada por do outro nos surpreende, nos desestabiliza.
um sujeito histórico, porta-voz da razão O outro existe co-originariamente a mim. A
universal, e sim associação, possibilidade de estraneidade do outro embaraça nossa
formação de pluralidade. O mundo intencionalidade primeira. Mesmo sendo
objetivo (de todos) é sempre e meu semelhante, o estrangeiro é fora de
necessariamente mundo de vários “eu” em série, é incomparável. A razão, em sua
relação e interação. O mundo objetivo é o busca de compreensão e intelecção, seria
correlato de uma experiência intersubjetiva, insuficiente para se proteger deste abalo,
idealmente concordante. Não fosse a para dominá-lo. O ser corpóreo faz que o
percepção do “outro” como estrangeiro, semelhante seja outro, seja único. No outro e
ou não-próprio, a formação de uma através do outro, eu me reduplico. A
comunidade estaria comprometida. Ora, o estraneidade estática de mim mesmo pode
mundo objetivo já me foi dado antes dar-se através da estraneidade duplicativa
mesmo que eu refletisse sobre ele. Mas a do outro. O olhar estranho a que estou
redução, que me separa desse mundo exposto concorre para que eu me sinta
apenas artificialmente, faz ver que o ponto visto antes de notar que ele vê coisas e me
de partida para se compreender o social e o vê. Esta condição põe em questão toda
coletivo não é algo “comum”, e sim a pretensão de uma filosofia transcendental.
experiência do “estrangeiro” como tal. Não se pode fazer a experiência do
Explica Waldenfels: estrangeiro, nem por mim mesmo nem
pelas regras universais ou gerais. Trata-se
Na sua análise da experiência de uma “experiência” não pensável
fenomenológica, Husserl não parte da previamente.
experiência comum, nem mesmo da
experiência daquilo que é comum, mas sim Não há indivíduos prontos e constituídos.
da experiência do estrangeiro enquanto “Aquilo que sentimos, percebemos,
estrangeiro. O que se encontra no início fazemos ou dizemos é – como em um
não é a humanidade em cada pessoa, nem tapete tibetano – imbricado com aquilo
mesmo a estraneidade na minha pessoa, que os outros sentem, percebem, fazem ou
mas sim a humanidade no “outro”: “O dizem” (WALDENFELS, 2008: 102).
primeiro homem é o outro, e não Recebemos o próprio nome de outros. Há
eu2” (WALDENFELS, 2002: 112. um inominado em nós. O corpo é lugar de
grifos do autor). transição: natureza e cultura, ação e paixão,

2
A última frase é do próprio Husserl, em Zur Phänomenologie der Intersubjektivität. Texte aus dem
Nachlass II: 1921-1926 (Husserliana XIV), Den Haag: Nijhoff, 1973, p. 418. (Apud WALDENFELS,
2002: 112).

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o próprio se muda em estranho e vice- 3. Diálogo


versa. Eis por que o discurso sobre o
corpo próprio contém apenas meia
verdade. O corpo próprio pode ser Husserl parece não abrir mão jamais de
designado como semi-estranho, uma vez uma segurança transcendental. A
que é atravessado por intenções estrangeiras, fenomenologia responsiva, por sua vez,
além de projetos, hábitos, afecções e lesões descreve, graças ao método inaugurado por
que provêm de outros. O outro e os outros Husserl, o abalo desta segurança. E a
estão em mim. Eu me encontro neles. E hermenêutica? Ela aponta para uma
isso não é uma situação de diálogo. Por exigência não menos arriscada e difícil.
conseguinte, encontrar o outro frontalmente Trata-se de se reconhecer que não há
é não-estar-no-mesmo-plano. Como responder horizonte fixo, que, na abertura dialógica,
ao apelo que vem do não-próprio? Eis a nós nos colocamos à prova, e isto vale para
dificuldade ética de uma fenomenologia nossos conceitos e tudo aquilo que
responsiva. supostamente compreendemos. Sem este
“desprendimento”, os horizontes jamais
Para haver diálogo, em sentido clássico, poderiam se “fundir”, se alargar a partir do
uma assimetria já deve ter ocorrido. encontro. A finitude é, então, o limite.
Assimetria de pergunta e resposta. O Todo o projeto visando compreensão
diálogo que nós sempre somos provém de mútua está marcado, desde o início, pela
uma distância, de um estranhamento, de insegurança, pela incerteza.
uma demanda que precede uma relação em
que os interlocutores se encontram no Em meio à fragilidade e à vulnerabilidade
mesmo plano. A demanda que vem do que constituem a condição humana, a
estrangeiro implica um destinatário, uma her menêutica aposta numa crença
ipseidade respondente, um sujeito que se fundamental. O verdadeiro valor, afirma
descobre no acusativo. O responder não Gadamer, é o próprio diálogo. Ou seja, não
começa com o falar sobre alguma coisa. se trata de valorizar a particularidade dos
Nem mesmo o falar em geral o explica. Por interlocutores, mas a capacidade de seguir
quê? Porque responder tem início com o o diálogo (GADAMER, 2000: 757). A
“voltar o olhar e prestar ouvidos, os quais verdade supõe o logos, que não é de
possuem uma for ma própria de nenhum interlocutor em particular, mas
inevitabilidade” (WALDENFELS, 2008: algo que os envolve, que os transforma e,
70). Obedecer ao imperativo da resposta sobretudo, que os guia. Ao final das contas,
implica, paradoxalmente, já tê-lo obedecido. o verdadeiro meio para a compreensão
A resposta pode ser automática, um gesto mútua é a linguagem. Ora, não é
mecânico de pura prevenção, de pura justamente esta aufhebung que vem posta em
defesa. Mas, enquanto tal, o responder não causa pela fenomenologia transcendental e,
é orientado previamente, não recai sob o mais duramente, pela fenomenologia
domínio de regras. Por isso, o ser humano responsiva? Eis o ponto. Na perspectiva
não é apenas como tradicionalmente se diz hermenêutica, trata-se também de escapar
um animal dotado de logos, mas também e, à prisão na linguagem, mas para tanto é
fundamentalmente, um animal que dá preciso realizar a própria experiência
respostas (WALDENFELS, 2008: 72). hermenêutica (GADAMER, 2000: 821).

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Como, então, reconhecer minha responsabilidade Trata-se da mais árdua tarefa humana,
nesta experiência? Posso me reconhecer a mim tanto mais para nós que vivemos num
mesmo naquilo que testemunho ou mundo marcado por ciências monológicas.
prometo, naquilo que digo ou realizo, etc. As ciências são um único e grande
Posso dizer e responder sobre o que digo. monólogo e são or gulhosas disso
Reconheço-me em minhas próprias (GADAMER, 2005: 81).
possibilidades (RICOEUR, 2006: 109).
Quando fazemos isto, não somos mais um Orgulhosas porquanto capazes de oferecer
termo lexical no sistema da língua, pois segurança e controle, sobretudo no que diz
sabemos que, ao usar o pronome pessoal respeito às surpresas do outro. E, no
“eu” quando falamos, já está em questão entanto, é este outro imprevisível que nos
um “insubstituível” (RICOEUR, 2006: traz a possibilidade de questionar nosso
109) É deste modo que “a estrutura amor-próprio e nosso egocentrismo. O
pergunta-resposta constitui a estrutura problema é ético-político, diz respeito a
básica do discurso enquanto implicando alg o que vai além de qualquer
locutor e interlocutor” (RICOEUR, 2006: particularidade, numa palavra, possui um
111). Mas se uma ipseidade respondente é alcance universal. Por quê? Porque se trata
imprescindível, a filosofia do diálogo não do desejo que possuímos de nos
abre mão da busca de uma morada compreender mutuamente, de nos fazer
comum, com a qual se tem familiaridade e entender, de compreendermos a nós
na qual é possível mover-se juntos mesmos e aos outros. O outro é aquele que
(GADAMER, 2005: 110). pode nos responder, nos confirmar, nos
corrigir.
A busca da morada comum não anula a
assimetria entre o um e o outro? Entremos Quem escuta o outro escuta sempre alguém
no argumento de Gadamer. Falar supõe o que possui o próprio horizonte. Entre eu e
encontro com uma alteridade, o “estar tu acontece a mesma coisa que entre povos
diante do outro”. Mas a linguagem ou entre esferas culturais e as tradições
enquanto práxis é um “comércio” que religiosas. Encontramo-nos onde estivermos
aspira à compreensão, à saída de uma diante do mesmo problema: devemos
limitação. É nesse sentido que a linguagem aprender que na escuta do outro se abre o
deixa de ser apenas proposição e juízo, verdadeiro caminho sobre o qual a
uma vez que é, principalmente, resposta e solidariedade se edifica (GADAMER,
pergunta. Mais do que saber, está em jogo o 2005: 81).
compreender. Na perspectiva hermenêutica,
a linguagem não é simples comunicação de Em vez de racionalização e burocratização,
mensagens, troca de signos. Ela é um “estar o que se dá é um movimento de escuta, de
a caminho”. Em direção a quê? Na direção respeito, de cuidado em relação ao outro.
do outro [Miteinander] e no intuito de nos Trata-se de um movimento de escuta
compreendermos a nós mesmos no recíproca, que, evidentemente, contrasta
mundo. Compreender-se no mundo quer com um mundo de especialistas. Para
dizer não só compreender-se com o outro, Gadamer, é certo que existem especialistas
mas compreender o outro. que sabem escutar as necessidades da
sociedade e da humanidade, mas isto já faz

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deles algo diferente de indivíduos voltados absorva as subjetividades (e as culturas)


para uma especialidade. Eles fazem isso num “terreno comum”, é preciso resgatar,
enquanto motivados por uma espécie de para além pluralidade das línguas, a língua
sentimento de responsabilidade pela do universal! Para falar com Levinas, que
humanidade (cf. GADAMER, 2005: 82), tanto nos alertou para os perigos da
pelos seus destinos, pela diversidade dos sabedoria grega, é fundamental guardar os
horizontes. Eis por que é preciso realizar ensinamentos da língua do universal. A
mediação, tradução, interpretação. Tudo língua grega é a da claridade, do método,
depende do tradutor, daquele que realiza a da progressão do simples ao complexo. E é
mediação entre dois mundos diferentes, ou exatamente por causa disto que ela é
do trabalho de audição de mundos t a m b é m a l í n g u a d o d i á l o g o, d a
diferentes um para o outro, no desejo de universidade, da capacidade de valorizar,
compreender-se mutuamente. Buscar um discutir e ensinar línguas diferentes, de
ter reno, comum, afir ma Gadamer defender a legitimidade de outras culturas,
(GADAMER, 2005: 83). de outros modos de pensar etc. Para
Levinas, a Grécia nos transmitiu a linguagem
Para o filósofo do diálogo, a tarefa da como ato de decifrar, de desmistificar e
filosofia nos dias de hoje é enfrentar o desmitificar. “É a prosa do comentário, da
desafio da pluralidade das línguas, é buscar exegese, da hermenêutica” (LEVINAS, 1988:
o papel do tradutor, em vez da planificação 65). De nossa parte, perguntamos: não é
e da programação racionalizante que também a língua do transcendental, tal
parece imperar. É compreender o espaço como Husserl o entende?
do “estrangeiro” [Fremd] por referência ao
movimento do diálogo, ao in Gespräch sein. A filosofia não é só a língua da Europa,
Mais do que buscar contradições lógicas, mas pode tornar-se a língua universal,
ou teses que reagem contra outras teses, contanto que a filosofia possa articular-se
está o desafio atualíssimo de enriquecer o na sua forma mais autêntica e completa.
próprio conceito de razão. Diante de Se isto tiver êxito, a língua universal não
situações concretas, em que se confrontam anulará as línguas particulares, não as
mundos diferentes, em que horizontes reduzirá a instrumentos inferiores, mas
inconciliáveis se enfrentam, cálculo e assumirá para si a responsabilidade de
dedução são insuficientes. Que significa, mediar a peculiaridade dessas línguas, de
então, buscar, em meio ao diálogo, transmitir os seus impulsos, de
coerência e racionalidade? Sem salvaguardar os seus valores, de fazer que
compreender as intenções do outro, sem horizontes diferentes possam se comunicar
ouvir o que ele tem a dizer, as questões entre si .(CRISTÍN, 1999: 25)
controversas perderão a chance de se
resolver. Certo, a filosofia do diálogo representa
Eis que chegamos à tese central de nossa sempre uma crítica contundente à região
exposição. A abertura à pluralidade de transcendental de sentido, entendida como
horizontes só é possível quando nos suspensão inevitável do movimento real da
inserirmos no horizonte da reciprocidade vida e da linguagem, de tudo o que é
sob a forma de efetivação de um espaço “mundano”. No entanto, como evitar que
transcendental. Para que o diálogo não os indivíduos e as culturas que se abrem ao

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diálogo sejam dissolvidos ou absorvidos Referências bibliográficas:


por uma cultura em particular, que
pretende falar em nome de todas as outras? CRISTÍN, R.- La filosofia come lingua
Só se o espaço transcendental for aquele europea. In: HUSSERL, E.- Crisi e
que, pelo menos em tese, torna possível a rinascita della cultura europea. Trad.
interação e o encontro das diferenças (cf. Renato Cristín, Venezia: Marsilio, 1999
CRISTÍN, 1999: 20). Assim, a língua do (p. 9-26).
universal e a pluralidade das línguas não GADAMER, H.-G.- El giro hermenêutico.
são termos contraditórios nem implicam Trad. Arturo Parada, Madrid: Catedra,
filosofias incompatíveis. Sair metodicamente 1988.
do mundo pré-dado (redução
transcendental), bem como abrir-se a GADAMER, H.-G.- Verità e método
outros mundos, dialogicamente, só serão (edição bilíngue). Trad. Gianni Vattimo,
atitudes contrastantes ou excludentes se Milano: Bompiani, 2000.
esquecermos a condição responsiva da
subjetividade humana. Descrever a ipseidade GADAMER, H.-G.- Linguaggio. Trad.
ou si-mesmo respondente implica reconhecer Donatella Di Cesare, Roma-Bari:
dois caminhos que, ao se abrirem, chocam-se Laterza, 2005.
e se fecundam mutuamente: o diálogo
ultrapassando o âmbito das subjetividades GADAMER, H.-G.- Hegel, Husserl,
consideradas do ponto de vista do ego, e a Heideg ger. Trad. Marco Antonio
redução transcendental (responsiva), sem a Casanova, Petrópolis: Vozes, 2012.
qual não se poderia chegar ao “ego
absolutamente único” (HUSSERL, 2012: HUSSERL, E.- A crise das ciências européias e
153). O sujeito transcendental se descobre a fenomenologia transcendental. Trad. Diogo
como sendo único, um eu capaz de Falcão Ferrer, Rio de Janeiro: Forense,
responder. Graças a esta unicidade, o 2012.
diálogo, entendido como busca de uma
morada comum, é um belo risco que HUSSERL, E.- Meditações cartesianas e
podemos correr. Conferências de Paris. Trad. Pedro M.S.
Alves, Rio de Janeiro: Forense, 2013.

LEVINAS. E.- A l’heure des nations, Paris :


Minuit, 1988.

RICOEUR, P. – Percurso do reconhecimento.


Trad. Nicolás Nyimi Campanário, São
Paulo: Loyola, 2006.

WALDENFELS, B.- Fenomenologia


dell’estraneità. Trad. Gabriella Baptist,
Napoli : Vivarium, 2002.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea


Brasília, vol 3, nº 2, 2015. 73
Marcelo Fabri !

WALDENFELS, Fenomenologia dell’estraneo.


Trad. Ferdinando G. Menga, Milano:
Raffaello Cortina Editore, 2008.

Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea


Brasília, vol 3, nº 2, 2015. 74

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