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Resumo: O artigo explora a relação entre Abstract: This paper aims to explore the
fenomenologia e hermenêutica a partir da relation between phenomenology and
estrutura responsiva da subjetividade hermeneutics according to the responsive
humana. Mesmo em sua proposta de um structure of the human subjectivity.
“retorno” ao mundo da vida, Husserl não Although Husserl proposes a "comeback"
abre mão de um eu constituinte que, ao to the world of life, he does not give up of
realizar a redução, parece suspender o a constitutional Ego which, at the moment
movimento real da vida e da linguagem. it makes the reduction, seems to suspend
Como pode o mundo como solo fundador the real movement of life and of language.
ser algo constituído pelo ego? Eis o How could the world as a foundational
paradoxo: para se recuperar o solo ground to be something constituted by the
fundador de toda ciência é fundamental ego? Here lies the paradox: to recover the
reconhecer a pureza transcendental do ego foundational ground of all science is
constituinte. A pergunta que colocamos, fundamental to recognize the transcendental
no entanto, é esta: a referida “pureza” purity of the constitutional Ego. However
transcendental significa um empecilho à the question we highlight is the following:
abertura dialógica proposta pela hermenêutica does this called transcendental "purity"
filosófica? Cumpre mostrar que não, pois, mean an obstacle to the dialogical proposed
pensadas a partir da unicidade respondente by the philosophical hermeneutics? We shall
(subjetividade humana), fenomenologia demonstrate that no, because if we think
transcendental e atitude dialógica them based on the respondent singularity
(hermenêutica) tornam-se modelos teóricos (human subjectivity), transcendental
que, mesmo muito diferentes um do outro, phenomenology and dialogical attitude
fecundam-se ou se enriquecem mutuamente. (hermeneutics) become theoretical models
that enrich themselves mutually, even if
very different from each other.
Palavras-chave: fenomenologia, hermenêutica,
transcendental, responsividade, diálogo Keywords: phenomenology, hermeneutics,
transcendental, responsivity, dialogue
1 e-mail: fabri.ufsm@gmail.com.
Entre fenomenologia e hermenêutica: a condição responsiva da subjetividade
etc.. Eis o que abre caminho para a ciência O sujeito que vive no mundo está sempre
objetiva. Todo ser relativo está vinculado a direcionado a algo, está ativamente
uma estrutura geral oferecida pelo próprio presente em seus atos, numa palavra, está
mundo da vida. As estruturas a priori sempre ocupado com alguma coisa,
necessárias às verdades em si da ciência envolvido por aquilo que o circunda,
têm seu correspondente na estrutura geral imerso numa comunidade etc. É aí neste
do mundo da vida. Nas palavras de mundo que tomamos posição sobre isto ou
Husserl: aquilo, ou seja, que estamos imersos num
processo sempre renovado de validações
Aquilo que a configuração de sentido e a teóricas ou práticas. Ao suspendermos
validade de ser de nível superior do a priori metodicamente esta vida naturalmente
matemático e de todo o a priori objetivo imersa no mundo, o olhar filosófico se
pr oduzem é uma certa operação torna livre de seu vínculo mais forte, mais
idealizadora, com base no a priori do fundamental, mais universal. Descobre-se
mundo da vida (HUSSERL, 2012, § como subjetividade transcendental,
36: 114). realizadora da própria validade do mundo
(HUSSERL, 2012, § 41: 123).
O que se traz à memória, portanto, não é a
vida em seu movimento, a linguagem em Todos os assim chamados interesses
sua peculiaridade, as obras humanas com naturais foram suspensos, postos fora de
sua beleza e variedade, mas um novo a jogo. Mas o mundo não desapareceu. Ele
priori, uma nova estrutura geral, base apenas se tornou um “correlato da
fundadora de todos os outros a priori, de subjetividade para ele doadora de sentido
que se beneficiam a lógica, as matemáticas de ser, subjetividade por cuja validade ele
e as ciências. O mundo é o “solo” de tudo em geral ‘é’ “(HUSSERL, 2012, § 41: 124).
o que fazemos, conhecemos e vivemos. O sujeito se encontra, assim, acima do
Nós já sempre estamos na certeza do mundo, ou seja, o mundo se tornou para
mundo. Vivemos nesta certeza e a partir ele simples fenômeno.
dela. Todos os objetos nos são “dados” a
partir desse horizonte do mundo. Mas o Mas este “estar acima do mundo” não
mundo não é um objeto. Ele é o horizonte significa ter abandonado o mundo
a partir do qual algo nos pode afetar, mas faticamente, empiricamente, realmente. Ao
também pelo qual podemos agir. Como contrário: é a condição para que o sujeito
podemos fazer deste mundo um tema, ou se descubra como sendo sempre e
ainda: como podemos observá-lo? Saindo inevitavelmente “um ponto de vista sobre
dele. Mas de que modo, se é dele que tudo o mundo”, um modo de perceber o que o
depende, provém ou tem início para nós? envolve, bem como o âmbito no qual vive.
A resposta de Husserl, a esse respeito, Numa palavra, tornar o mundo relativamente
resume seu pensamento: “A vida que ao sujeito, pela redução, é apontar para as
realiza a validade do mundo, validade várias maneiras subjetivas de doação, de
própria da vida natural do mundo, não se modos de aparecer. Seja real ou não, um
deixa estudar na atitude desta vida natural do ente tem sempre as suas formas próprias
mundo” (HUSSERL, 2012, § 39: 121). de doação e de aparição. A intencionalidade
é a chave para toda explicação genuína, ou
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A última frase é do próprio Husserl, em Zur Phänomenologie der Intersubjektivität. Texte aus dem
Nachlass II: 1921-1926 (Husserliana XIV), Den Haag: Nijhoff, 1973, p. 418. (Apud WALDENFELS,
2002: 112).
Como, então, reconhecer minha responsabilidade Trata-se da mais árdua tarefa humana,
nesta experiência? Posso me reconhecer a mim tanto mais para nós que vivemos num
mesmo naquilo que testemunho ou mundo marcado por ciências monológicas.
prometo, naquilo que digo ou realizo, etc. As ciências são um único e grande
Posso dizer e responder sobre o que digo. monólogo e são or gulhosas disso
Reconheço-me em minhas próprias (GADAMER, 2005: 81).
possibilidades (RICOEUR, 2006: 109).
Quando fazemos isto, não somos mais um Orgulhosas porquanto capazes de oferecer
termo lexical no sistema da língua, pois segurança e controle, sobretudo no que diz
sabemos que, ao usar o pronome pessoal respeito às surpresas do outro. E, no
“eu” quando falamos, já está em questão entanto, é este outro imprevisível que nos
um “insubstituível” (RICOEUR, 2006: traz a possibilidade de questionar nosso
109) É deste modo que “a estrutura amor-próprio e nosso egocentrismo. O
pergunta-resposta constitui a estrutura problema é ético-político, diz respeito a
básica do discurso enquanto implicando alg o que vai além de qualquer
locutor e interlocutor” (RICOEUR, 2006: particularidade, numa palavra, possui um
111). Mas se uma ipseidade respondente é alcance universal. Por quê? Porque se trata
imprescindível, a filosofia do diálogo não do desejo que possuímos de nos
abre mão da busca de uma morada compreender mutuamente, de nos fazer
comum, com a qual se tem familiaridade e entender, de compreendermos a nós
na qual é possível mover-se juntos mesmos e aos outros. O outro é aquele que
(GADAMER, 2005: 110). pode nos responder, nos confirmar, nos
corrigir.
A busca da morada comum não anula a
assimetria entre o um e o outro? Entremos Quem escuta o outro escuta sempre alguém
no argumento de Gadamer. Falar supõe o que possui o próprio horizonte. Entre eu e
encontro com uma alteridade, o “estar tu acontece a mesma coisa que entre povos
diante do outro”. Mas a linguagem ou entre esferas culturais e as tradições
enquanto práxis é um “comércio” que religiosas. Encontramo-nos onde estivermos
aspira à compreensão, à saída de uma diante do mesmo problema: devemos
limitação. É nesse sentido que a linguagem aprender que na escuta do outro se abre o
deixa de ser apenas proposição e juízo, verdadeiro caminho sobre o qual a
uma vez que é, principalmente, resposta e solidariedade se edifica (GADAMER,
pergunta. Mais do que saber, está em jogo o 2005: 81).
compreender. Na perspectiva hermenêutica,
a linguagem não é simples comunicação de Em vez de racionalização e burocratização,
mensagens, troca de signos. Ela é um “estar o que se dá é um movimento de escuta, de
a caminho”. Em direção a quê? Na direção respeito, de cuidado em relação ao outro.
do outro [Miteinander] e no intuito de nos Trata-se de um movimento de escuta
compreendermos a nós mesmos no recíproca, que, evidentemente, contrasta
mundo. Compreender-se no mundo quer com um mundo de especialistas. Para
dizer não só compreender-se com o outro, Gadamer, é certo que existem especialistas
mas compreender o outro. que sabem escutar as necessidades da
sociedade e da humanidade, mas isto já faz