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No limite da candura

Olavo de Carvalho

Espero que, antes de solidarizar-se com as efusões de revoltafingida da esquerda chique


contra a ascensão da delinqüência, o leitor se lembre de que essa gente apregoou aos
quatro ventos as virtudes revolucionárias do banditismo, ensinou técnicas de guerrilha e
organização paramilitar aos detentos da Ilha Grande e por fim encabeçou o movimento
internacional de solidariedade aos seqüestradores de Abílio Diniz, em 1989, dando a seus
sucessores na carreira do crime a esperança, senão a certeza, do respaldo midiático e da
impunidade.A candura sonsa, a incapacidade de enxergar a malícia alheia, tem limites:
ultrapassado um certo ponto, torna-se cumplicidade ativa do otário com o vigarista, do
sequestrado com o seqüestrador, da vítima com os advogados de seus agressores e
assaltantes.

Se a opinião pública brasileira, malgrado os alertas que lhe chegam, ainda que parcos e
escondidos nas entrelinhas de um noticiário fortemente policiado pelos gerentes da boa
imagem esquerdista, se recusar por mais tempo a tomar consciência da índole
essencialmente criminosa, golpista e manipuladora da política de esquerda neste país, mais
cedo ou mais tarde terá de se submeter calada às exigências ditatoriais dessa política, que
não serão diferentes aqui do que foram em Cuba ou no Camboja.

É verdade que à índole do brasileiro repugna ver na alma alheia qualquer dose de maldade
superior àquela de que ele próprio se imagina capaz. Exposto diariamente à tentação
vulgar de obter miúdas vantagens ilícitas aqui e ali, com a maior facilidade ele adivinhará
intenções idênticas no coração do próximo. Mas a perfídia maior, o grande conluio da
revolução continental da narcoguerrilha, é algo que ultrapassa a sua concepção do mal.
Incapaz de conceber um criminoso maior que o juiz Lalau ou do que os delinqüentes
avulsos que pululam no noticiário, ele tenderá, instintivamente, a rejeitar com horror a
mera sugestão de que certas coisas possam estar acontecendo.

De início, ele o fará com uma certa afetação de tranqüilidade superior, rindo do interlocutor
e atirando-lhe na cara o estereótipo fácil da “teoria da conspiração”, do qual aliás só tomou
conhecimento por um título de filme e cujo sentido desconhece por completo. Depois, aos
poucos, sob o bombardeio dos fatos que se sucedem, ele sentirá vacilar a falsa segurança
de sua certeza inicial e, diante de qualquer tentativa mínima de tirar desses fatos as
conclusões que eles logicamente impõem, começará a reagir com quatro pedras na mão.
Fará do interlocutor o emissário do mal, vingando-se das más notícias na pessoa do
carteiro.

Mas nem mesmo um cego de nascença, vendado e preso num quarto escuro, pode se
impedir de enxergar, com os olhos da inteligência, o sentido nítido e patente de certos
fatos. Que há uma articulação política entre Hugo Chávez, Fidel Castro, as Farc e a
esquerda brasileira, por exemplo, é algo que ninguém pode negar, pois essa parceria foi
afirmada e reafirmada vezes sem conta pela própria esquerda, seja no Foro de São Paulo,
discreta reencarnação do Comintern, seja, mais espetaculosamente, nos dois Fóruns
Sociais Mundiais de Porto Alegre.

Mas a parceria vai além das declarações de intenção. Chávez, segundo se revelou num
vídeo recentemente divulgado, é fornecedor de armas às Farc, enquanto estas, conforme o
provaram os arquivos do “laptop” do delinqüente Fernandinho Beira-Mar, estão
intimamente associadas à rede brasileira de tráfico, e Fidel Castro, por sua vez, é acusado
por seu ex-assessor Ernesto Bettancourt de manter uma conta pessoal na Suíça para
lavagem de dinheiro do comércio latino-americano de drogas. Os partidos esquerdistas
legais, por seu lado, em vez de combater de frente a articulação revolucionária, como em
Portugal o fez Mário Soares contra as tropas militantes de Álvaro Cunhal — e como seria de
fato a única atitude digna de esquerdistas convertidos ao constitucionalismo democrático –,
fazem o possível e o impossível para acobertar essa gigantesca manobra, para infundir no
público a impressão de que ela não existe, para protegê-la enfim de todo risco de
investigação e denúncia.

Com isso, dão à revolução em marcha o tempo precioso que ela necessita para fortalecer-
se à sombra, até estar pronta para dar sobre o continente o seu bote fatal. Fecha-se assim
o círculo: é absolutamente inescapável a conclusão de que a liderança esquerdista deste
país está de braços dados com a revolução continental armada, financiada pelo
narcotráfico. Quem quer que se recuse a ver uma coisa tão óbvia, não estando ele próprio
amarrado por algum compromisso com essa gente, é na melhor das hipóteses um ingênuo,
um incurável ingênuo.

Publicado na edição de 10.02.2002 do Jornal Zero Hora

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