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VIDAS

EXEMPLARES
de
IRMÃOS
CARTUXOS

traduzidas das Efemérides da Ordem


pelo
Irmão Joaquim Pedro Maria Quintella
Donato de Scala Coeli
o primeiro falecido na restauração no s. XX

ilustradas
com quadros do
Irmão Miguel Guedes de Sousa
restaurador de Scala Coeli em 1960
BEATO GUILHERME

O Concílio Vaticano II pediu a renovação das Ordens religiosas de jeito a se


adaptarem aos tempos que correm; isto há-de ser voltando à primitiva inspiração,
pelo conhecimento e imitação do espírito dos fundadores e das melhores tradições,
como diz o Concílio. Eis traduzidas para o português, algumas vidas modelares de
antigos Irmãos leigos Cartuxos. Nelas não é tudo imitável por todos nós; nem é
tudo adaptado ao nosso tempo. Mas nelas vê-se como cada um desses santos
Irmãos soube praticar as virtudes cartusianas no seu tempo, e duma maneira
pessoal. Lendo, portanto, os actuais Irmãos Cartuxos estas Vidas, aprenderão a
encarnarem o espírito da Ordem cartusiana no nosso tempo praticando cada um
as virtudes que a graça pessoal lhe pede. Dessa maneira conseguirão a renovação
interior exigida pelo Concílio. E os amigos da Cartuxa sentirão a “brisa suave” do
Espírito, que nos chega de séculos passados e de Cartuxas memoráveis.
Com a ajuda da Virgem Branca, adiante!
Irmão pintor (autoretrato)

3 de Janeiro

IRMÃO JOÃO OLBERRI


PROFESSO DE VALDECRISTO

Originário de Navarra, este bom Irmão revelou, desde tenra idade, dons
excelentes e um gosto pronunciado pela piedade. Admirava-se nele uma grande
pureza de alma e um amor muito terno para com a Augusta Mãe de Deus.
Enquanto criança, a sua candura angélica conquistou-lhe a afeição de todos. Mais
tarde as suas qualidades sólidas e o seu carácter já formado granjearam-lhe a
estima dos homens sérios.
Depois de ter terminado o seu curso de medicina, fixou-se na qualidade de
cirurgião no hospital de Saragoça a fim de aí dar regularmente consultas gratuitas.
Do exercício da caridade, o nosso jovem doutor passou, com mais zelo ainda, à
contemplação das coisas divinas. A sua fé crescia de uma forma maravilhosa.
Mas só o pensar nos perigos que corria a sua virtude no meio de mundo
lançou-o em cruéis angústias. Querendo a todo o preço salvar a sua alma, deixou
bruscamente o seu país e retirou-se para a cartuxa de Val-de-Cristo, no reino de
Valença. Bem longe, como se vê, da sua família e das suas relações; mas por outro
lado mais perto de Deus.
A sua primeira educação, o posto que tinha ocupado na sociedade, o
prestígio ligado ao seu nome, tudo devia, assim parece, abrir-lhe a porta do
claustro e a entrada do santuário. Mas ele não se tinha jamais fixado na ideia de
ser padre. A grandeza das obrigações do sacerdócio paralisavam-no de medo.
Felicíssimo seria ele de viver a vida mais humilde dos conversos. Abriu-se
lealmente com o prior. Este, tocado pela sua franqueza assim como pela sua
generosidade, acolheu-o com solicitude e deu-lhe o santo hábito (1592).
O ano seguinte, o querido Irmão pronunciou os seus votos, no dia da
Imaculada Conceição, comovido até às lágrimas da coincidência que lhe permitia
de se abandonar de corpo e alma entre as mãos da Virgem sem mácula. Nada
saberia exprimir o amor que ele tinha a Maria. Nome bendito que tinha
constantemente nos lábios. O pensamento da Rainha do céu não o deixava por
assim dizer. As suas meditações, as suas leituras, as suas orações jaculatórias
tinham todas por objecto as grandezas e as misericórdias da Mãe de Deus. Quem
poderia dizer quantas Ave Marias em vinte e quatro horas ele desfiava? Com que
piedosos transportes ele cantava o Tota pulchra es, em louvor da Imaculada!
Todas as vezes que o seu ofício de enfermeiro o chamava ao claustro,
parava diante da porta do capítulo, por cima da qual se achava uma estátua da
Santa Virgem. Lá ele dava livre curso à sua piedade filial, sem negligenciar, no
entanto, os deveres da sua obediência. Estes piedosos colóquios repetiam-se tão
frequentemente que bastantes anos depois deles, o pavimento tinha ainda a marca
dos seus joelhos.
Será de espantar, que esta boa Mãe cumule o seu devoto servidor de favores
quase inauditos? Ele deve, em particular, à sua especial protecção o nunca ter
conhecido as lutas profundamente humilhantes que são apanágio de todo o filho de
Adão, e de deixar esta terra de exílio com a inocência do seu baptismo.
Uma noite em que o santo homem estava em oração na cela do prior, D.
João Bellot, a Mãe de Deus apareceu-lhe; mas Ela não dirigiu a palavra senão ao
Irmão converso, e isto por três vezes. O boato espalhou-se logo na comunidade sem
espantar ninguém. No entanto todos repararam que longe de se envaidecer com
esta atenção delicada de Maria, aquele que tinha sido objecto de tal graça, a partir
de aí, tornou-se marcadamente mais humilde. Era com uma perfeita sinceridade
que ele se proclamava o mais miserável dos homens e o último dos pecadores.
Como enfermeiro, o Irmão João foi admirável de dedicação e de paciência.
Ele afrontava todas as fatigas e todos os perigos, sempre que se tratava de
procurar um alivio ou uma consolação a um dos seus irmãos. Os dons do espírito e
do coração que lhe tinham granjeado tantas simpatias no hospital de Saragoça, ele
empregou-os com não menos zelo, junto aos doentes de Val-de-Cristo. Por isso,
como lhe estavam afeiçoados!
Era com efeito, às orações do santo, mais que à ciência do doutor, que a voz
pública atribuía as curas efectuadas pelos seus cuidados.
Um cartuxo de uma cartuxa vizinha (Porta Coeli) encontrava-se nas
últimas, os seus confrades em desespero pediam ao prior para fazer vir Oloberri,
cujo nome era conhecido nos quatro cantos do reino. Este acorre, dirige-se à cela
do moribundo, e com um sorriso nos lábios: «Coragem, venerável Padre, diz ele.
Recuperareis a saúde. - Pensais vós isso? Respondeu o doente com uma voz meio
apagada. O meu estômago recusa todo o alimento. - Não importa, rebate o
enfermeiro. Dizei-me. que vos agradaria tomar neste momento? - Aquilo que vos
aprouver. «Imediatamente o Irmão preparou uma sopa à qual junta um calmante.
Apenas o doente a tomou, experimenta uma melhora muito sensível. No dia
seguinte estava de pé e retomava a vida comum.
O eco destas curas maravilhosas, ao mesmo tempo que decuplicava o
número das consultas, merecia ao seu piedoso autor o reconhecimento de todo o
país. A humildade do nosso taumaturgo, impressionava mais do que saberíamos
dizer. Ele bem que tentou mudar este estado de coisas. Tão logo não usava senão
medicamentos vulgares sobre a propriedade dos quais era impossível se enganar.
Tão logo sob o pretexto de não molestar a delicadeza de um doente, de suavizar o
amargor de um remédio, ele alterava os ingredientes, persuadido que seriam
menos eficazes. Vãs combinações! Os pacientes curavam-se com e contra tudo.
O sinal da cruz, traçado pela mão do santo converso sobre um órgão ou um
membro sofredor, retirava instantaneamente a dor, por mais aguda que fosse.
Frequentemente, antes que o doente abrisse a boca, o enfermeiro assinalava a
parte do corpo dolorida e expunha os sintomas da afecção que ele padecia. Mais
ainda, iluminado de uma luz sobrenatural, acontecia-lhe penetrar nas profundezas
da alma e de desvelar as misérias mais íntimas.
A reputação do homem de Deus crescia de ano para ano. Bastantes vezes ele
tentou subtrair-se a esta multidão de importunos. Sabiam que ele era de uma
extrema solicitude. Cada um usava e abusava. As pessoas que o tinham consultado
levavam para contar, maravilhas. «É um santo, diziam de todas as partes; um
santo que lê nas consciências e que nos dá concelhos de alto gabarito».
Mas depois de quarenta e oito anos de profissão, forçoso foi ao velho
enfermeiro parar na prática do seu zelo. Uma dolorosa doença, teve-o, um ano
inteiro, colado ao leito. Ele que tinha executado, como que a brincar, tantas curas
notáveis, teve que se resignar ao martírio da impotência, martírio crucificante
para um homem que desenvolveu uma tão grande actividade. Este martírio, ele
suportou-o com essa calma, essa resignação piedosa que ele sabia tão
discretamente inspirar aos moribundos.
Pouco tempo antes de expirar, o homem de Deus foi favorecido com uma
visão. Um religioso falecido há alguns dias, apareceu-lhe, apressando-o a
acompanhá-lo na glória. Imediatamente o bom Irmão entoa o Nunc dimitis, e a sua
alma, rompendo a última ligação que o prendia à terra, tomou voo e foi repousar
em Deus dos trabalhos do exílio. Estávamos nos começos do ano de 1641.

Irmão pintando (autoretrato)


11 de Janeiro

IRMÃO MANUEL DA PURIFICAÇÃO


DONATO DO PAULAR

Manuel da Purificação teve por pais uns pobres cultivadores de costumes


profundamente cristãos. Logo que ele chegou à idade de se tornar útil, o seu pai
ocupou-o nos trabalhos do campo. Esta vida tão áspera como modesta, sorria à
alma cândida e já reflectida do pequeno. Bem cedo ele sentiu nascer uma poderosa
atracção pela solidão; a sua vocação desenhava-se com os anos.
Foi justamente para encontrar um meio mais conducente a esta necessidade
íntima, que o jovem Manuel entrou como familiar na cartuxa do Paular.
Pressentiram, pelo aspecto dos seu começos, que ele não se deteria em tão belo
caminho. O prior, tendo descoberto nele, depois de um atento exame, os sinais
indubitáveis de um apelo da graça, ofereceu-lhe o hábito religiosos. A proposição
foi aceite, com a condição, assim mesmo, que a doação seria o seu primeiro e
último passo. «Subir mais alto, disse ele, fazer profissão, nunca o consentirei. Se
soubessem como eu sou indigno deste favor excepcional!» O prior guardou-se
prudentemente de insistir.
O nosso aspirante fez a sua doação a 2 de Fevereiro de 1644, e ficou donato
toda a sua vida. Que bela alma estava escondida sob esta rude casca! A sua
piedade, mais esclarecida que de ordinário, entre as pessoas desta condição,
revestia as formas mais diversas, sem nada perder do seu perfume. A oração e a
mortificação eram as duas asas que o tinham elevado por cima do terra-à-terra,
onde vegetam muito frequentemente os religiosos em contacto forçado com as
pessoas e coisas do exterior. Indiferente no que diz respeito às obediências, ele
passava duma a outra sem mostrar a menor repugnância. Trabalhador infatigável,
nunca o encontraríeis desocupado. Ao vê-lo gastar todo o longo dia, dir-se-ia que
não sonhava senão com o zuzum dos negócios. Escravo da obediência, ele não sabia
o que era raciocinar. Sobre uma ordem, bem mais, por um sinal dos superiores,
iria atirar-se cegamente nos braços da morte.
O segredo daquilo que se chama o justo meio o querido Irmão achava-o ao
pé do tabernáculo. Era lá que ele se retirava, logo que tinha um momento livre. O
que se passava então entre esta alma recta e aquele que declarou se comprazer
particularmente com os simples? Não tentaremos dizê-lo.
Sabemos que os donatos não estão sujeitos à abstinência de alimentos
gordos. Se, nos nossos dias, todos a guardam, é que todos vivem na clausura.
Dantes não era assim. As refeições dos donatos com carne eram preparadas no
exterior, num apartamento reservado, aonde eles se dirigiam à hora regulamentar.
O nosso bom Irmão, como bem se pode pensar, era do pequeno número daqueles
que preferem seguir sempre o regime da comunidade.
No entanto, o momento chegou, em que as enfermidades prematuras
paralisando as suas forças obrigaram o servo de Deus a ter que se resignar a
sofrer. Ele sofreu muito mas com uma paciência admirável que fez a admiração de
todos. Morreu no dia 11 de Janeiro de 1668 com a segurança tranquila e a fé
serena dum verdadeiro religioso.
Irmão despenseiro (o tradutor)

18 de Janeiro

IRMÃO GONÇALO HERNÁNDEZ


PROFESSO DE PORTA COELI

Gonçalo Hernández viu o dia em Cantillana, perto de Sevilha. Os seus pais


de condição modesta, eram honestos e profundamente cristãos. Ele entrou bastante
jovem, na qualidade de criado, na casa dos nossos Pais de Sevilha, e um pouco
mais tarde na cartuxa de Jerez. Em 1575, fez uma viagem a Roma para ganhar as
indulgências do Jubileu. De volta a Espanha um dia em que passava por Valência
sentiu a necessidade de visitar a cartuxa desta cidade. Foi para lá, pode-se dizer
para pedir trabalho. Deus tinha sobre ele outros planos.
Era um grande e belo jovem, bem vestido, transparecendo no conjunto da
sua pessoa um ar de distinção que seduzia. O porteiro, surpreendido de ver um
passante desta condição à procura de emprego, tentou dissuadi-lo, com o pretexto
de que o pessoal da casa era suficiente para as necessidades correntes. Perante as
insistências do viajante: «Talvez, diz ele, ocupar-vos-eis da cozinha; e ainda assim,
só será sob as ordens dos serventes.» Gonçalo não pedia senão isso: o último posto
e os trabalhos ínfimos. «O que quer que façam por mim, ficarei contente. Além de
que, não sou digno senão de desprezo.»
Impossível de encontrar ao mesmo tempo mais candura e lealdade. O
procurador empregou-o efectivamente nesta obediência. Os ajudantes, grosseiros
na sua maior parte e buliçosos, tratavam indignamente o recém chegado. Era na
ausência do cozinheiro, um desenrolar de ditos sarcásticos e equívocos, por vezes
obscenos. Gonçalo não se afastou um único dia da sua atitude humilde e reservada.
Mais admirável ainda foi a sua paciência em relação a um pobre Irmão que
ficou vários anos retido no leito. Paralítico de todos os membros, não podia fazer
nenhum movimento sem a ajuda de alguém. Hernández foi um daqueles que
despendeu mais tempo à cabeceira do querido doente. Exerceu este ministério de
caridade oito anos seguidos: os seis primeiros como criado; os dois outros na
qualidade de converso. E isto sem manifestar nunca a menor repugnância ou
menor aborrecimento.
Depois de ter dado as provas evidentes da solidez da sua virtude, Gonçalo
Hernández foi admitido a tomar o hábito da ordem. Isto foi para ele a ocasião de
redobrar de fervor no serviço de Deus. Obedecer não lhe custava nada. Em
pequeno, prestava-se de bom grado a todos os sacrifícios que lhe impunha a
humilde condição da sua família. Uma vez introduzido na milícia do claustro,
elevou-se repentinamente, sem um esforço visível, até ao terceiro grau da
obediência. Pouco lhe importava de estar aqui ou acolá; hoje numa obediência,
amanhã noutra. No momento em que ele tinha a consciência de fazer a vontade dos
seus superiores, o resto era-lhe indiferente.
Para o fim da sua vida, contudo, exprimia timidamente um desejo, que o
atormentava, era o de trabalhar na Igreja sob as ordens do sacristão. É que ele
tinha, pelas melhores do dia, as horas passadas diante do Santíssimo Sacramento.
Este favor, de que ele dava tanta importância, o prior julgou dever recusá-lo. Mas
o bom Irmão consolou-se consagrando a Nosso Senhor, no tabernáculo os raros
momentos livres que lhe deixava a sua obediência.
O amor divino de que ele estava consumido dava à sua fisionomia uma
graça especial e às suas palavras uma unção penetrante. Deus, o céu, a graça, disso
não saía. Quando se dirigia para o trabalho, tanto andava com os olhos
modestamente baixos, pensando dizia ele, na brevidade do tempo e na
instabilidade das coisas humanas; ora parava radiante à vista das belezas da
criação. E não podendo mais conter-se, cantava cânticos da sua infância, em honra
da majestade divina.
O dom da oração, quando tomou posse de uma alma, é quase sempre
acompanhado do dom das lágrimas. É durante o Ofício da noites que as do querido
Irmão corriam mais abundantemente. Em vão ele tentava compor-se, saindo da
Igreja sob capa de indisposição. Imediatamente ao regressar à Igreja, as lágrimas
retomavam o seu curso e não mais secavam.
Por outro lado, o grande atractivo que sentia já há muito tempo pelas
penitências corporais ia crescendo de dia para dia. Além das práticas em uso na
ordem, obteve licença de não tomar senão algumas horas de sono, sobre simples
tábuas, tanto no verão como no inverno.
Um facto, de passagem, provará quanto esta alma simples era poderosa
sobre o coração de Deus. Enquanto ele exercia o ofício de porteiro, um habitante
de Valência apresentou-se no mosteiro. O seu andar pouco seguro denotava uma
fraqueza nas pernas. Uma delas, com efeito, estava coberta de úlceras. Com esta
visão, o nosso converso cheio de piedade põe-se em oração e abençoa o pobre
doente. As chagas fecharam-se nesse mesmo dia.
Fiel aos compromissos da sua profissão, o Irmão Hernández permaneceu até ao
fim, um modelo de piedade, de humildade, de obediência. Apagou-se nestas felizes
disposições, com a idade de setenta e dois anos (7 de novembro de 1610).
Irmãos rezando a Nossa Senhora

30 de Janeiro

IRMÃO DINIS HÉRON


PROFESSO DA GRANDE CARTUXA

Este bom Irmão veio ao mundo em Paris. Que conjunto de circunstâncias o


levou para as montanhas da Grande Cartuxa? Não o sabemos. Tudo o que
podemos dizer, é que ele pronunciou os seus votos em 29 de junho de 1629.
Havia nesta natureza absolutamente iletrada o estofo de um contemplativo.
Somente a gravidade da sua postura e a forma do seu caminhar denotavam uma
alma profundamente unida a Deus. As suas práticas respiravam uma unção que
vos penetrava até ao fundo da alma. era maravilhoso de o ouvir - ele que apenas
sabia ler - expor os mistérios da nossa santa religião. Fazia-o com uma
simplicidade encantadora, - não sem protestar a sua ignorância - sempre com
discernimento, por vezes com calor. Alguns teólogos atraídos pela curiosidade,
divertiam-se a discorrer, na sua presença, sobre as questões mais abstractas da
mística. Este metia-se de boa vontade na discussão e deixava os mestres
entusiasmados com a sabedoria das suas respostas.
Confiaram-lhe o encargo de enfermeiro. Era bem o homem que convinha
junto aos doentes. O seu zelo inteligente, a sua devoção infatigável, as suas atenções
de mãe, a sua pontualidade que nada fazia alterar, e sobretudo, a sua piedade, a
propósito das suas exortações, fizeram dele um guarda doentes fora de série.
As belas qualidades do Irmão Héron, não menos que os seus conhecimentos
de farmácia, atraíam-lhe uma numerosa clientela. O Reverendo Padre, que o
apreciava grandemente, não julgou dever recusar-lhe o dar consultas às pessoas de
fora. Ele autorizou-o mesmo a visitar os pacientes no campo. O nosso enfermeiro
dispensava ao pé de cada um o mesmo zelo e a mesma dedicação. Esta existência
atormentada não alterava nunca a paz da sua alma. Fora do mosteiro, como na
cela, ele não vivia senão para Deus.
O querido Irmão não contava senão sete anos de profissão, quando
sucumbiu sob o peso do trabalho. Apagou-se docemente em 19 de fevereiro de
1636, deixando a Grande Cartuxa embebida da sua caridade e mais ainda do
perfume das suas virtudes.
O escriba do Reverendo Padre, Dom Agostinho Joyeulx, eleito mais tarde
prior da cartuxa de Paris, declarou que viu várias vezes o santo Irmão
transfigurado no momento da comunhão.

Silêncio !

5 de fevereiro

IRMÃO JOÃO FONTANA


PROFESSO DE PORTA COELI

João Fontana, de origem espanhola, entrou pelo ano de 1419, na cartuxa de


Porta Coeli, na diocese de Valência, para aí vestir o hábito de converso.
Era um homem simples, animado de uma sólida piedade, guiado em tudo
por um notável espírito de fé. Uma oração, em particular, o Pai Nosso, que compõe
com a Ave Maria o ofício dos nossos Irmãos, colocava-o num estado de alma
vizinho do êxtase. Apenas tinha ele pronunciado a primeira palavra da oração
dominical, que imediatamente parava. Era o respeito causado pela presença da
majestade divina que lhe paralisava os lábios? A sua alma derretia-se de amor e de
confiança a esta única palavra: Pai Nosso, meu Pai? Sempre acontecia que o santo
homem não ia mais longe repetindo até à saciedade: Pai Nosso que estais no céu.
Depois, pressionado pelo tempo, prosseguia sem interrupções, de tal forma que
tinha todo tempo do mundo para recitar a tempo os seus Pai Nossos e Ave Marias.
Os superiores, apreciando as excelentes qualidades do Irmão João,
confiaram-lhe uma obediência delicada, a de ir em comissão aos fornecedores da
cidade. Ele ocupou-se conscenciosamente desta tarefa, sem jamais se separar da
gravidade que compete ao religioso. Longe de se distrair, o barulho da rua
reavivava a sua piedade, fazendo-lhe estimar mais ainda o preço da sua vocação.
Se parava diante duma Igreja, entrava para adorar o hóspede dos tabernáculos.
mas isto não era nunca por muito tempo, pois, senão se teria repreendido de
sacrificar o dever aos atractivos da devoção.
Uma vez, no entanto esqueceu-se no convento da Roqueta, situado num
bairro afastado de Valência. Esmagado pelo cansaço, ele pressente que não
chegaria à cartuxa antes de cair a noite. Ei-lo no desespero. Que inquietações
causadas por este atraso! Que desagradável impressão irá produzir sobre a
comunidade uma infracção tão grave? - a primeira de que tinha consciência - E o
pobre Irmão começa a gritar em alta voz: «Oh bom Jesus! Tende piedade do vosso
servidor. Está no vosso poder o conduzir a casa antes da hora do grande silêncio.
Não lhe recusais esta graça.» E logo em seguida, ele é transportado, sem saber
como, à porta do mosteiro.
João Fontana, embora estivesse de robusta saúde, teve o pressentimento do
seu fim próximo. Ele tinha o costume, quando ia à cidade, de parar em casa das
irmãs de São Julião, cuja superiora era sua parente. Um dia, contra o seu costume,
passou adiante. A irmã porteira tendo-o visto por acaso, julgou que tinha havido
algum esquecimento da parte dele. «Meu bom Irmão, diz-lhe ela, não entreis no
locutório? - Não, minha irmã, respondeu ele. Saudai da minha parte a vossa boa
Madre, e diga-lhe, se faz o favor, que não nos voltaremos a ver mais neste mundo.»
Apenas chegado à cartuxa, o querido Irmão caía gravemente doente, e ao fim de
algumas semanas adormeceu no sono dos justos (1 de fevereiro de 1464). Tinha
passado quarenta e cinco anos na ordem.

Irmãos no coro
19 de Fevereiro

IRMÃO CRISTÓVÃO CEREZO


PROFESSO DE MIRAFLORES

Vindo de uma família espanhola, não menos distinta pela nobreza do


sangue que pelo espírito cristão de que estava animado cada um dos seus
membros, a criança tinha crescido à sombra do lar paterno onde tudo lhe falava de
Deus. A sua primeira educação foi tal como a reclamava a condição e a solicitude
dos seus pais. A pureza dos seus costumes, a doçura do seu natural, a sua modéstia
e a sua grande piedade fizeram-no ser querido de todas as pessoas de bem.
Chegado à idade onde se experimenta a necessidade de orientar o futuro, o
jovem Cerezo hesitou, ansioso e tremendo por tomar uma decisão falsa, do mesmo
modo que tinha recolhido os ecos de rumores estranhos que não enquadravam
absolutamente com as suas aspirações. O pai e a mãe, com efeito, justamente
orgulhosos do seu filho mais velho, tinham-se posto à busca de algum partido
vantajoso e digno do seu nome em todos os sentidos.
Assim, foi grande a sua surpresa, quando tiveram conhecimento, pela boca
do seu próprio filho, que, não amando nada o mundo e não se sentindo nada
atraído pela vida de família, tinha tomado o propósito de se encerrar na cartuxa de
Miraflores, para aí tomar o hábito de converso. Eles não se puderam defender
dum primeiro movimento de revolta com o pensamento de ver encerrado num
claustro, aquele filho tão amado, sobre o qual repousavam uma parte das suas
esperanças. Mas pressentindo que toda a oposição seria inútil, e temendo, por
outro lado, de contrariar os caminhos da Providência , os dois recalcaram o seu
desgosto e disseram generosamente: Fiat!
Aplanada esta dificuldade, Cerezo desprendeu-se dos abraços dos seus
parentes e partiu subitamente para Miraflores, onde ele já tinha feito algumas
visitas. Quer dizer que foi admitido sem exame.
A aprendizagem da vida de converso não é, assim é necessário, um jogo de
crianças. Aqueles mesmos que, em virtude do seu nascimento, são preparados para
isso, de longa data, reconhecem que a prova é longa e laboriosa.
Incomparavelmente mais rude, será para um candidato saído, como o nosso, dum
meio escolhido, onde o trabalho manual não é mais que uma agradável distracção.
Nós não iremos ao ponto de pretender que o jovem Cerezo não tivesse nada que
sofrer nesta passagem súbita de uma vida desafogada e livre para um regime
austero do claustro. Ver-se com sangue nobre nas veias , relegado sempre para o
último lugar e aplicado aos trabalhos mais humildes, não fazer mais do que
obedecer quando se sente que nasceu para mandar, tudo isto implica lutas, por
vezes violentas. Feliz, três vezes feliz, a alma que triunfa dos seus primeiros
obstáculos!
Nada podia espantar o nosso aspirante. Várias viagens a Miraflores e
diversas conversas íntimas com o prior tinham-no iniciado pouco a pouco no
conhecimento dos estatutos e nos numerosos detalhes da observância. Ele sabia
bem o que lhe reservava o humilde estado de converso. E aí se colocou
alegremente, com o mais completo esquecimento de si mesmo. O gosto pelas coisas
santas, apagando nele toda estima pelos bens e prazeres da vida presente, fê-lo
cumprir, sem repugnância, os exercícios mortificantes que retemperam cada dia o
vigor da alma. Era ao mesmo tempo o mais amável dos confrades. Cheio de doçura
e de complacência, duma amenidade perfeita no tom de voz e nas maneiras, ele
fazia-se tudo por todos, passando indiferentemente duma obediência para outra.
Esta constância de alma mereceu-lhe graças inumeráveis, à sombra das quais ele
avançou rapidamente nas vias da santidade.
A este profundo desprezo de si mesmo, o querido Irmão juntava uma
obediência cega. O seu juízo próprio, ele identificava-o perfeitamente com a
vontade dos seus superiores, e só por eles via e agia. Discutir uma ordem formal,
somente parar a pesar os termos, parecia-lhe incompatível com a obediência
religiosa. Ao mesmo tempo que não queria nem sabia senão obedecer. Triunfar era
seu menor cuidado. Dificuldades capazes de o fazer parar, ele não as encontrava
em nenhuma parte. Desde o momento em que um superior falava, não havia mais
que executar as suas prescrições. De resto, nada lhe parecia impossível.
Seguindo este caminho tão simples e tão seguro, o Irmão Cristóvão tinha
chegado a um grau de oração muito elevado. Por certo, ele não perdia jamais a
lembrança da presença de Deus. De dia, de noite, na Igreja, durante as horas do
trabalho, ele planava sem esforço sobre as alturas, onde era impossível segui-lo.
Ele tinha, por intervalos, destes impulsos sublimes, através dos quais resplandecia
a beleza da sua alma. Por exemplo, durante a assistência ao santo sacrifício. A sua
felicidade era de ajudar cada manhã, a tantas missas quanto lhe fosse permitido. A
simples vista de Jesus imolado no altar punha-o fora de si. Unindo a sua oração
cheia de lágrimas e ardente de amor à voz da vítima três vezes santa, ele conjurava
o Pai eterno de baixar o seu olhar sobre o seu divino Filho e de ter misericórdia
para com os pobres pecadores.
A caridade do bom Irmão não era unicamente interior; ela traduzia-se por
fora em actos. Os indigentes da região eram os seus amigos privilegiados. De todas
as partes, eles afluíam à porta do mosteiro. Havia sempre pão em abundância para
cada um. Os doentes eram também, da parte do porteiro, - o próprio irmão
Cerezo, - objecto de delicadas atenções. Provisões e remédios, ele distribuía-os com
uma equidade irrepreensível, acompanhava-os sempre dos seus piedosos e sensatos
conselhos que dobravam o preço duma boa obra.
Entretanto, uma epidemia alastrava em Espanha e fez em todos os lugares
do reino, inumeráveis vítimas. Os arredores de Miraflores foram particularmente
atingidos. O querido Irmão redobrou de zelo no exercício do seu cargo,
multiplicando as esmolas em proporção das necessidades. Também o seu nome
andava em todas as bocas; os pobres publicavam por toda a parte as suas
larguezas. Atingido, por sua vez, deste mal inexorável, ofereceu espontaneamente a
Deus o sacrifício da sua vida. Depois de algumas horas de sofrimento, o santo
converso, mártir da caridade, foi repousar (26 de junho de 1599).

Irmãos no refeitório
26 de Março

IRMÃO PEDRO RAYMONT


PROFESSO DE VALDECRISTO

Aragonês de nascimento, Raimundo era originário de uma honesta família


de trabalhadores. Atendendo à situação precária dos seus pais, aprendeu um oficio
- o de canteiro. Tornou-se em pouco tempo, muito hábil e vivia do seu trabalho,
encarando de frente os seus deveres de cristão aos quais ele ficou sempre fiel.
Apesar de se manter cuidadosamente à parte das companhias suspeitas, um
medo instintivo do mal apoderou-se dele. Querendo, custasse o que custasse
subtrair-se às armadilhas que lhe estendiam os seus camaradas, prefere retirar-se
para a solidão. Efectivamente, ele desaparece uma bela manhã, e circulou o boato
de que ele tinha acabado de entrar em Nossa Senhora das Grutas - cartuxa pouco
afastada da sua cidade natal. O bom aspecto do jovem, o seu ar recolhido, e o seu
ofício - de qual fala com competência - tudo abonava em seu favor. Assim, foi
admitido imediatamente entre os conversos.
Com a alta ideia que tinha formado da vida monástica, colocou-se
corajosamente no caminho da observância, fazendo o seu melhor para se tornar
um modelo em tudo. Infelizmente as coisas deixavam um pouco a desejar nessa
casa. Fundada em 1509 e incorporada à ordem no ano de 1515, foi encerrada
quarenta anos mais tarde. Reocupada no começo do século dezassete, não estava
ainda perfeitamente organizada, no momento em que Raimundo veio começar o
seu noviciado. Com um pessoal pouco numeroso, era difícil de seguir
rigorosamente os estatutos. Obrigados a multiplicarem-se, - frequentemente em
prejuízo dos seus exercícios espirituais - os Irmãos respondiam com grande
dificuldade às necessidades do momento.
Este estado de coisas não deixou de surpreender o nosso aspirante. Ele não
se dá conta, evidentemente, do imprevisto que traz uma fundação. É lá sobretudo
que é preciso acudir o mais urgentemente. Assim, também nos nossos dias façamo-
lo sensatamente - para não expor as vocações nascentes - de não confiar esta
trabalho senão a homens experimentados.
Raimundo, temendo comprometer o seu futuro de religioso pediu para
passar a Val-de-Cristo, casa em tudo de uma boa observância regular. Ele foi
autorizado. Feliz de se sentir no seu elemento, o bom Irmão entregou-se de corpo e
alma à oração e ao trabalho, – estas duas coisas que enchem a existência dos nossos
conversos – fazendo parte uma da outra na medida querida pelo estatuto. Ele não
compreendia que uma alma consagrada titubeasse – é a palavra – com o bom Deus
sempre tão liberal para com ela. Ele di-lo abertamente a quem o queira ouvir, e
sobretudo àqueles que parecem abrandar no caminho da perfeição. Este zelo
intempestivo atraiu-lhe algumas vezes respostas amargas. Mas, ele nunca se
ofendia. E, os por assim dizer, ofendidos acabavam por sorrir, tão cheias de
bonomia e de piedade, estavam cheias as piadas do Irmão Pedro.
Ele exerceu a caridade fraterna com não mão menos ardor nas suas
relações com os seculares. Tendo adoptado por linha de conduta, de nunca encetar
uma conversação sem misturar algumas palavras edificantes, tinha todos os dias,
como porteiro, numerosas ocasiões de cumprir o seu propósito, fosse em serviço
dos pobres, fosse acompanhando os visitantes que afluíam à cartuxa. Ele falava até
entusiasmar das coisas espirituais; ele falava delas todo o dia. Mas fazia-o com
uma tocante simplicidade que não se cansavam de o ouvir. Era na oração e nas
leituras piedosas, acompanhadas naturalmente de sangrentas macerações, que o
humilde Irmão colhia esta ciência pouco comum – a verdadeira ciência dos santos.
Deus, de resto, favoreceu-o mais de uma vez com graças extraordinárias,
testemunhando assim a sua preferência pelas almas simples que vão direitas a ele.
Um dia, em que ele se dispunha a amassar, ele viu que a farinha ia faltar. O que
não é caso para o embaraçar. Começou o seu trabalho sem se preocupar
grandemente, e aconteceu que a fornada foi largamente suficiente.
Como consequência das rigorosas penitências que acabamos de falar, o
Irmão Raimundo contraiu enfermidades que o reduziram durante um longo tempo
a uma impotência quase absoluta. Ele nunca quis reduzir do seu primeiro ardor
nem da sua invariável pontualidade. Facto curioso, apenas levantado para se
dirigir aos exercícios conventuais, ele não sente mais os seus sofrimentos. Observa
as cerimónias sem qualquer problema aparente; de manhã, serve a uma missa e
não experimenta nenhuma fadiga. Desde que volta à cela, as dores redobram de
intensidade.
O servo de Deus teve o pressentimento da sua morte. Foi súbita, mas não
imprevista. Ele velava, a sua lâmpada acesa, no momento em que foi convidado ao
banquete dos eleitos (8 dezembro 1640).

Irmão preparando-se para comer

13 de Abril

O IRMÃO TIAGO LÁZARO


DONATO DE PORTA COELI.

Tiago Lázaro veio ao mundo numa vila do reino de Valência, em Penáguila.


Seu pai e a sua mãe eram muito modestamente providos de bens da terra. Mas a
estes aparentes rigores a Providência misturava compensações inapreciáveis: o
temor de Deus e a piedade, com as respectivas bênçãos de que eles são a causa.
A criança cresceu e viveu até à idade de trinta e cinco anos nestas condições
modestas, ocupado alternadamente na guarda dos rebanhos e nos trabalhos do
campo, aplicando o seu coração à oração e a sua inteligência ao estudo das
maravilhas da natureza. Quem é que lhe deu o gosto do latim? Quem lhe inculcou
os seus rudimentos? Não sabemos dizer. O certo é que ele traduzia facilmente o
texto da Bíblia.
Muito piedoso, muito regular, ele sabia unir uma grande piedade, a uma
amabilidade requintada. Os seus companheiros estimavam-no muito; amavam-no
mais ainda. Por isso, não foram senão meiosurpreendidos ao tomarem
conhecimento da sua partida para Porta Coeli.
O prior deu-lhe o hábito da ordem, pressentindo que este hábito seria
levado nobremente. Mas o querido Irmão, considerava-se indigno de abraçar o
estado de converso, permaneceu donato toda a vida, quer dizer até a idade noventa
e quatro anos.
Ele não era um desses trabalhadores da décima primeira hora que não
trazem para o claustro senão os restos de uma existência agitada ou falhada. Nem
uma falta mortal tinha escurecido a frescura da sua inocência. O seu confessor
estava em situação de perguntar se o bom Irmão se teria tornado culpável de um
único pecado venial.
Criado na rude escola da miséria, Tiago Lázaro amava apaixonadamente a
pobreza. Encontrou-se na sua cela utensílios de que ele se servia à quarenta e cinco
anos e mais. Longe de se queixar da comida, ele dizia que ela valia vinte vezes, em
qualidade e quantidade, a de Penáguila.
Entregue desde muito jovem à fatiga, entendido como ninguém em
agricultura, ele nunca estava desocupado e procurava em tudo os interesses da
Casa. Quando ele não estava ocupado numa obediência, quando ele passava de um
trabalho a outro, encontravam-no sempre com o rosário na mão. Dizer quantas
vezes ele pronunciava a Avé Maria, da sua primeira infância à sua extrema
velhice, é impossível.
Dotado de uma modéstia angélica Irmão Lázaro mostrou-se em todas as
ocasiões duma reserva extrema que muitos taxaram de crueldade. Testemunha-o o
facto seguinte:
Uma das suas sobrinhas, órfã à pouco tempo, apresenta-se um dia na
cartuxa para o ver, a ele e a um outro tio, o Irmão João, converso na mesma casa.
O donato suplica ao prior para o dispensar desta entrevista. Este insiste. O Irmão
protesta. E a pobre sobrinha desolada dá para responder: «Oh! se me fosse
permitido ao menos de o entrever, mas sem que ele saiba.» O prior volta à carga e
ordena ao donato de sair. Este é repentinamente acometido de um tremor nervoso.
Um suor frio banha o seu rosto; ele torna-se pálido como um cadáver. «Por isso
não vale a pena, meu querido Irmão. Tranquilize-se. Eu vou substitui-lo junto da
sua sobrinha.» Logo a seguir o santo homem voltou a si confuso, mas bendizendo a
Deus por esta vitória.
O valente atleta aguentou-se bem até ao fim. Tinha conservado todos os seus
dentes, andava sem apoio, trabalhava como aos quarenta anos, sempre alegre,
sorridente, serviçal, afável tanto em relação às pessoas como às coisas. Sete
semanas antes de morrer, sentiu que chegava ao fim. Durante mais de um mês, não
tomou mais que um pouco de água açucarada.
Recebeu os últimos sacramentos com uma perfeita lucidez de espírito e a
piedade que lhe conhecemos. Depois apagou-se placidamente, cheio de dias e de
méritos, na véspera da Anunciação (1551).
Irmão em jejum

14 de abril

IRMÃO JOÃO DE PERS


(CHAMADO O CLÉRIGO)
PROFESSO DE PARIS

Encontrar, entre os Irmãos, um homem solidamente estabelecido nas vias


sobrenaturais, um verdadeiro contemplativo, não é raro, graças a Deus. Mas que,
nesta condição modesta, ao contemplativo se junte um letrado, eis o que se
encontra menos frequentemente.
João de Pers oferece-nos na sua pessoa um desses fenómenos curiosos.
Conservaram-se muito tempo na cartuxa de Paris, a sua casa de profissão, vários
tratados notáveis sobre a perfeição e a mística. Tinha estofo: uma inteligência
superior e um rico fundo de piedade. Isto não teria sido suficiente para fazer dele
um escritor de méritos. Foi graças às luzes sobrenaturais, que se elevou acima da
média.
Um facto singular edificará o leitor sobre a qualidade deste bom Irmão. Ele
trabalhava um dia numa quinta da cartuxa. Era a Véspera da festa do Corpus
Christi – como se dizia nesse tempo. Veio-lhe a ideia de se dirigir à Igreja vizinha
para as primeiras vésperas. Que se passou? Apenas ele transpôs a entrada da
Igreja e avistou o altar onde mora o hóspede do tabernáculo, sentiu um sobressalto
no coração, acompanhado de fortes náuseas. Devia avançar? Não seria prudente
retirar-se? Vai aproximando-se do santuário. Longe de diminuir, o malestar
aumenta. É em vão que tenta estimular a sua devoção. Quanto mais ele reza,
menos fervor sente.
Subitamente o véu cai; o santo homem compreendeu. Impulsionado por um
movimento secreto, dirigiu-se à sacristia, e disse em tom modesto: «Assaltou-me
uma dúvida, diz ele ao sacerdote, em seguimento duma impressão que senti no
momento em que entrei na vossa Igreja. Digo-o com toda a simplicidade. A hóstia
que espusestes esta manhã à adoração dos fiéis, estava consagrada? Em que
pensais vós meu caro Irmão? Responde-lhe o sacerdote – Sim! Pergunto-me a mim
próprio, e permito-me de vos perguntar sem mais rodeios. – Quem é que vos
imprimiu essa ideia bizarra? – Não sei. No entanto o certo é que não a posso
afastar do meu espírito. Ah! Se eu ousasse traduzir-vos a emoção penosa, que se
apoderou de mim há pouco! – Nosso Senhor, vejo-o, meu bom Irmão, revelou-vos a
horrível profanação de que me tornei culpável. – Que dizer? – Preocupado, no
momento de celebrar com os preparativos da festa, esqueci-me de consagrar uma
hóstia grande, e, para evitar um escândalo, expus o pão que devia levar amanhã na
procissão. Eis o meu crime. Deus se digne perdoar-me! – Vós ireis, penso, repará-lo
de imediato. – Como? É demasiado tarde. – Não, não é.» E, sobre o conselho do
Irmão, o padre colocou no ostensório uma hóstia da santa reserva.
O piedoso converso guardou até ao fim esta admirável simplicidade, ao
mesmo tempo o sentimento da sua humilde condição. Coisa tanto mais de
espantar, que tudo nele parecia a concorrer em colocar esta dupla virtude em
perigo: os seus vastos conhecimentos e a sua merecida reputação.
No fim da sua vida, em que ele não podia mais conversar com os homens,
conversava sem cessar com o céu, não querendo mais ouvir falar que de coisas da
outra vida. Ele recebeu os últimos sacramentos e respondeu às orações sem
inquietação nem emoção. Após o que, tendo à mão a bandeira da caridade, os olhos
e o coração no alto, o santo ancião esperava a hora de Deus. Ela ressoou no dia 14
de abril de 1624. Coragem, bom e fiel servidor, entrai nas alegrias sem sombra do
vosso Mestre.

Oração no trabalho

15 de abril

IRMÃO JERÓNIMO DURBAN


DONATO DE VAL DE CRISTO

Muito pouco de fortuna e muito de virtude, eis o que distinguia os Durban.


Teríamos dificilmente encontrado, na cidade de Valência (Espanha) um interior
mais humilde e mais honesto ao mesmo tempo. Essas valorosas gentes educavam a
sua pequena família na piedade e no temor de Deus. As crianças, constrangidas a
bastarem-se a si próprias, acabam por criar uma situação e perpetuam as piedosas
tradições do lar doméstico.
Aquele a quem consagramos esta notícia, era admiravelmente dotado tanto
no espírito como no coração. Teve, com bastante pena, de se contentar com a
instrução comum a filhos de operários. Mas, em compensação, fez rápidos
progressos na ciência da salvação. Bastante jovem, ele amava a oração, fugia do
jogo, frequentava a igreja. Apenas saído da infância, experimenta este misterioso
atractivo pelas coisas santas que é uma das marcas das mais comuns de vocação
religiosa. Com os anos a atracção se definiu. Não tendo a menor dúvida sobre os
desígnios de Deus a seu respeito, parte para Vale de Cristo. Ele possui as aptidões
requeridas e preenche as condições indispensáveis para ser admitido entre os
conversos. Mas esta situação não quadra bem com a sua humildade, considera-se
feliz de ser colocado no último lugar da família. Ninguém pode decidir-se a subir
mais alto. Eis porque Jerónimo Durban permanece donado toda a vida. O bom
Irmão nunca saiu do seu papel. De uma extrema benevolência para com todos,
bom e paciente mesmo para com os animais, ele fazia a admiração da comunidade
pelo seu amor da observância, pela simplicidade das suas maneiras, pela reserva
habitual da sua linguagem. O seu exterior entretanto impunha-se, ao ponto que lhe
chamavam o Padre Jerónimo, Dom Jerónimo. O hábito do recolhimento, a leitura
dos autores espirituais, a meditação, familiarizavam-no com os segredos da vida
interior. Os seus confrades, atraídos pelo encanto das suas conversas e o bom odor
dos seus exemplos, procuravam com emoção a sua companhia.
Desde a infância que se notava nele, uma grande piedade pela Santíssima
Virgem. Esta devoção não fez senão crescer com o passar dos anos. No claustro, o
Irmão Durban era assinalado como um devoto servidor de Maria. Esta boa Mãe
recompensou-o visivelmente. Atingido, por volta da idade dos sessenta anos, por
um câncer na língua, o santo homem sofreu durante muito tempo de dores atrozes,
capazes de esgotar a paciência do mais provado. Depois de ter recebido os últimos
sacramentos, pronunciou algumas palavras cheias de unção e cantou as
misericórdias do Senhor. Depois prevenido do seu fim próximo, fez acender alguns
círios que tinha em reserva para esta circunstância solene. Após o qual, recitou o
Pater, a Ave, o Credo, a Salve Regina, e adormeceu no sono dos justos, à mesma
hora que tinha indicado. Nos encontrávamos em 26 de Dezembro do ano de 1601.

Irmão hortelão
24 de abril

IRMÃO GUILHERME RAYMOND


PROFESSO DE SCALA DEI

Este bom Irmão era professo da Grande Cartuxa, tendo renovado os seus
votos em Scala Dei, logo que chegou ali como hóspede.
Foi um homem de grande virtude, um santo em toda a acepção da palavra.
Não é por acaso, que nós consignamos aqui esta nota, em seu louvor. Ela não tem
nada de exagerado. Dois ou três factos o provarão.
Um dia em que ele se dirigia à casa de baixo, um bando de demónios, sob a
forma de crianças alegres, acorrem ao seu encontro, gritando com toda a força:
«Oh! o santo, o santo! Venham ver o santo.» Chegado à cela, o bom Irmão tomou
uma corrente de ferro e, flagelou-se até sangrar. Os santos! Eis os que fazem os
santos. Receita infalível contra a soberba.
Quando estava encarregado da obediência da cozinha, ele tinha o costume
de se escapar, cada manhã, durante a missa conventual. Aonde acorria ele? Ia à
igreja, ao som do sino do Sanctus, para aí adorar a divina Eucaristia nas mãos do
sacerdote. Não podendo aperceber-se do altar da porta do coro dos Irmãos onde se
mantinha ajoelhado, foi mais de uma vez elevado pelos anjos.
Certo dia em que o trabalho o retinha na cozinha, prostrou-se no momento
da consagração e viu distintamente a santa hóstia sobre o altar.
A sua morte foi daquelas que todo o religioso pode invejar. Ela chegou no
dia 24 de abril de 1439.

Irmãos agricultores
2 de maio

O IRMÃO ADRINA LHOMMEL


PROFESSO DE NOYON

Este bom Irmão tinha atingido a idade de noventa anos, e contava sessenta
anos de profissão, quando adormeceu no sono dos justos.
Tinha nascido em 1563 em Villa, nos arredores de Noyon, de pais
mediocremente fornecidos de riquezas da terra, mas liberalmente avantajados do
lado da virtude. Esta boa gente era temente a Deus, amavam-no com todo o seu
coração e serviam-no com todas as suas forças. Há algum tesouro comparável a
este!
A sua educação foi a de um filho do povo. Mas no que diz respeito à
inteligência e à piedade, não cedia a ninguém.
Admitido por volta dos trinta anos, na cartuxa de Noyon, deixava entrever,
desde o primeiro dia, o que se podia esperar dele. Simples como uma criança, de
uma candura angélica, de uma regularidade exemplar, de uma rectidão sem
desvios, de um carácter sólido, se bem que um pouco rude, caminhava na via do
bem com um passo atento, guiado em tudo pelo sentimento do dever.
De um outro ponto de vista, o bom Irmão possuía qualidades extremamente
preciosas. A par da ciência infusa da economia doméstica, a não menos notável, de
se lembrar de todos os detalhes, fazia a admiração de todos. O que entrava no seu
espírito, não saía mais. Tinha no mesmo grau, a memória dos homens e das coisas.
O activo e o passivo da casa, as rendas da propriedade, a questão do gado, o
ordenado dos criados, o salário dos trabalhadores, as compras e vendas, tudo
estava matematicamente classificado na sua memória. Ele abordava estes assuntos
tão difíceis, com a precisão e segurança dum homem, que não tem senão uma
obediência a gerir. Chamavam-lhe por brincadeira, o registo vivo do mosteiro.
Com efeito, ele estava sempre em situação de responder, em qualquer altura ás
perguntas e às dúvidas que lhe apresentavam os oficiais. Jamais o bom Irmão era
apanhado desprevenido. Não que ele ficasse vaidoso. Antes se espantava de se ver
abordado de dez lados ao mesmo tempo, tanto as dificuldades lhe pareciam pouco
sérias.
O que, com efeito realçava as suas qualidades naturais e lhes dobrava o
valor eram a sua grande simplicidade, a sua bonomia sorridente, a sua igualdade
de humor, a unção comunicativa que respirava a sua piedade.
Nele, uma devoção sobrepujava tudo o resto: o santo rosário. Exceptuadas
as horas do dia em que trabalhava com um utensílio na mão, encontravam-no
invariavelmente armado do terço. A Ave Maria era por assim dizer, a sua única
oração. Quando ele não falava com os homens, conversava com a Santíssima
Virgem, dedilhando a sua coroa. E isto, sem respeitos humanos, à vista e com o
conhecimento da comunidade, operários e criados. A tal ponto que a maior parte
não ousava tirá-lo destes colóquios. Mas ele suspendia-os sem esforço, desde que o
dever o chamava a uma obediência ou a uma oficina.
Não são geralmente os bons religiosos que receiam os Padres visitadores. Na
ocasião da sua passagem, cada um pode perguntar o que lhe reserva o escrutínio, e
deve preparar-se a receber as censuras e as correcções que lhe são infligidas pelos
delegados do capítulo geral. Se bem que a sua conduta fosse em tudo
irrepreensível, o pobre Irmão Lhommel tremia em todos os seus membros e
chorava grossas lágrimas, quando respondia às perguntas dos veneráveis Padres.
Os mais ricos em dons espirituais são os mais conscientes da sua pobreza. Possuem
os méritos sem o saber.
O santo ancião suportou, no fim da sua carreira, horríveis sofrimentos;
suportou-os com a calma inalterável que foi um dos seus traços salientes desta
simpática figura. Sentindo o aproximar-se da crise suprema, recebeu os
sacramentos e dispôs-se às últimas orações. Logo, começou a agonia; durou doze
longas horas. Apertando o seu crucifixo com uma mão, e na outra a imagem da
rainha do céu, o moribundo entrou num encantamento delicioso, prelúdio do
êxtase eterno. (24 de março de 1653)

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Irmãos no espairecimento

10 de maio

O IRMÃO FRANCISCO JUSTO


PROFESSO DE PORTA COELI

Justo de nome, ele foi-o também de facto. Ele viu o dia em Espanha. Os seus
pais eram pobres cultivadores, privados de dons de fortuna, mas ricos de bens do
céu. Deus, que se compraz em exaltar os humildes, lançou sobre ele, um olhar de
predilecção. Dócil aos ensinamentos e exemplos da sua família, o pequeno fez-se
notar pela sua modéstia e pela sua piedade. Ocupado no pastoreio dos rebanhos,
passava os dias nos campos e entregava-se à oração, antes de lhe conhecer os
segredos.
Coisa curiosa, a cartuxa de Porta Coeli, situada a uma boa jornada da lá,
falava-lhe ao coração. Cada vez que ele pensava nisso ou ouvia pronunciar o seu
nome, ele experimentava um movimento indefensível. Empurrado pela curiosidade
ou, para melhor dizer, por um toque da graça, ele dirige o seu gado nessa direcção,
sem se preocupar grandemente nas angustias que vai causar as pais. Ele chega à
hora de matinas, sobre os muros do mosteiro. O som do sino encanta-o e atrai-o.
Depois de ter confiado o seu rebanho a um companheiro, ele chama o porteiro.
«Deixai-me, diz ele deixai-me entrar. - O que é que vos traz a esta hora? - Eu quero
ver, eu quero entender o que se passa aqui.» O jovem pastor assiste ao ofício e sai
transformado.
Pouco tempo depois, volta e pede o santo hábito. Deram-lhe e viram logo de
imediato que o bom Irmão é da raça destas almas simples que vão direitos a Deus e
não recuam nunca em presença do dever. acham-se os últimos de todos, nunca se
queixam, acham ao contrário que a sua pobre pessoa é alvo de demasiadas
atenções. Duma obediência perfeita, passa de um trabalho a outro, ao menor sinal
dos superiores e aplica-se em toda a parte com o mesmo entusiasmo. tendo-se
tornado muito hábil como ferreiro, devia-lhe ter custado mais de uma vez mudar
esta obediência por uma outra pela qual ele não sentia nem aptidão nem gosto. A
forja, o jardim, o trabalho da terra, etc, tudo lhe era indiferente. Menos os
humildes contam para eles próprios, mais Deus se ocupa deles e, encontrando-os
suaves e maleáveis, mortos a tudo, faz com eles grandes coisas.
No seguimento de uma imprudência, o bom Irmão contraiu uma doença
grave que o conduziu prematuramente ao repouso eterno. A sua morte teve lugar
no dia 4 de setembro de 1528.

Irmão pastor

17 de maio

O IRMÃO BARTOLOMEU GARCIA


PROFESSO DE VALLIS CHRISTI

Castelhano de origem, entrou quase criança ao serviço dos cartuxos de Vallis


Christi. Encarregado primeiro de guardar o gado, aplicou-se em seguida a todos os
trabalhos, sem preferência marcada.
O espectáculo de bons Irmãos, que ele via aplicados alternadamente, á
oração e ao trabalho dos campos edificou-o, e ele adquiriu insensivelmente o desejo
de viver esta vida de que ele entrevia preciosas vantagens.
Nada, em princípio, parecia opor-se à sua admissão. Rico de saúde,
generoso, suave a qualquer mão, ele oferecia na sua pessoa, as garantias de uma
verdadeira vocação. Tanto mais que estes dons excelentes, eram acompanhados
dum gosto já pronunciado pelos exercícios espirituais. O único obstáculo sério
vinha da sua extrema juventude; ele devia ocultar-se. Ao fim de alguns anos, o
pequeno pastor recebeu o manto e, um pouco mais tarde, o hábito religiosos.
A comunidade não teve mais que louvar-se de ter conquistado este recruta.
O Irmão Bartolomeu tomou de imediato, a linguagem e os modos, dum outro
homem. A sua conduta irrepreensível até então, tornou-se sobremaneira
edificante. A sua estonteante actividade chegava para tudo; a sua constituição de
ferro, ainda que sobrecarregada, não conhecia a fadiga. os interesses materiais da
casa não podiam ser postos em melhores mãos. O bom Irmão ia, vinha, dedicava-se
de manhã à noite, sem descanso. Sob o pretexto de ganhar tempo, preparava ao
domingo a sua alimentação. Advinha-se qual seria o sabor ao fim de oito dias. O
objectivo deste singular costume, é que ele queria matar o homem velho
reduzindo-o à medida exacta.
No meio destas ocupações incessantes, o Irmão Garcia permanecia
absolutamente dono das suas potências interiores. Isso explica-se. O sentimento da
presença de Deus sendo-lhe habitual, o seu pensamento planava sem esforço nas
alturas. A sua vida era uma meditação ininterrupta. Cada objecto criado, um
utensílio, uma planta, o canto de um pássaro, lembravam-lhe o Criador.
Entre tanto, o querido Irmão essencialmente prático, fez aprovar e executar
um projecto bastante inteligente do qual convêm dizer duas palavras.
Os cartuxos de Val de Cristo possuíam de longa data vários moinhos
contíguos à casa. O Irmão Bartolomeu tendo sido colocado à frente desta
importante obediência, entreviu logo em seguida, os perigos da situação. «Estes
moinhos dizia ele, explorados pelo pessoal do mosteiro, provocam despesas
consideráveis. Os ganhos são apenas suficientes, para a manutenção dos edifícios.
Haveria toda a vantagem em alugá-los. Sem falar dos escolhos, que encontram os
nossos irmãos neste terreno, aberto ao público dos dois sexos, o preço da
deslocação, por pouco elevado que seja, será um benefício claro.» Ao prior
agradaram-lhe estas sugestões e, os moinhos foram alugados por quinhentos
ducados.
Aliviado deste lado, o Irmão construiu uma padaria e tomou a sua direcção.
Conservou-o durante o espaço de vinte e quatro anos. Quanto ele se sentiu feliz
nesse dia, neste oficio, onde ele vivia habitualmente só. Muito ocupado, sem
dúvida, mas infinitamente menos distraído, que anteriormente! Conservou até ao
fim, até ao fim a sua robusta constituição e, o seu infatigável ardor. Atacado de
repente, duma forte febre - estava-se no começo de julho - expirou, no dia 25 do
mesmo mês. (1612)
No momento, em que lhe administraram o santo viático, ele deixou entrever
o rico tesouro escondido nas profundidades da sua alma, no decorrer da sua longa
carreira. Era lá que ele sacava os avisos espirituais, os ditos edificantes, de que a
comunidade se recordava. A cerimónia terminou, ele fechou-se no silêncio e passou
os três últimos dias sem tomar nenhum alimento. De tempos a tempos, murmurava
uma oração, toda incendiada de amor: «O céu! o céu!» Oh! como tardava em lá
entrar!
«Querido Irmão, disse-lhe o enfermeiro, quando estiver lá em cima, pensará
em mim? Por favor, não se esqueça de mim diante de Deus. – Esquecer-vos, a vós e
aos meus irmãos de religião! Isso, é impossível. Na casa do Pai celeste, onde não se
sabe mais que amar, cada um conserva a memória do coração. E quê! ela sairia
das minhas lembranças, esta querida casa, berço da minha vida religiosa seriam
cortados sem retorno, os laços que me unem a esta comunidade de Val deCristo!
Oh não, nunca, nunca!! Mas eis a hora.»
Ao dizer isto, lança um olhar para o céu um último olhar. «Ó Jesus, chamai-
me, dai-me o vosso paraíso. Fazei que eu vos veja, que eu vos contemple nos
esplendores do vosso Reino! Vinde, Jesus, vinde.» A alma chegava ao porto.

Irmão sapateiro

21 maio

O IRMÃO PEDRO ROGER


PROFESSO DE SEIZ

Ignoramos, por que concurso de circunstâncias, Pedro Roger, parisiense de


origem, foi parar aos confins da Áustria, e encalhar na cartuxa de Seiz, onde
tomou o hábito de converso. Mas, o que nós sabemos, é que ele passou bem cedo
por um modelo de piedade, regularidade, e de paciência sobretudo. Tomado, ainda
jovem, por um tremor nervoso quase continuo, passava os dias e as noites sentado
sobre uma cadeira. Impossível de andar sem apoio. Um homem robusto tinha
necessidade de ter os pés em repouso. A resignação do pobre Irmão não se
desmentia um só instante. Diziam-no de mármore, tão impassível era. Não
saberemos nunca até que ponto a sua natureza efervescente foi provada por este
estado de impotência física. Os cuidados não lhe faltaram. Os paliativos, foram
usados à saciedade. O melhor, para não dizer o único calmante, eram os nomes
sagrados de Jesus e Maria. Tinha-os constantemente nos lábios. Com que acento
de fé os pronunciava!
Entretanto, o prior de Seiz, Dom Vian Gravel, foi convidado a receber o
salário do bom e fiel servidor. O Irmão Roger pede ao Vigário licença para assistir
à sepultura. à hora combinada, transportam-no para a igreja. De imediato, ouve
uma voz que lhe diz: «não é aqui; é à beira do túmulo do prior, que tu recuperarás
o uso dos teus membros.» Apenas entrado no cemitério, alguma coisa estranha se
passou nele. Sente-se aliviado, levanta-se e caminha sem ajuda de ninguém.
Na véspera da sua morte, depois de ter recebido com pleno conhecimento o
viático e a extrema-unção, Pedro Roger vê o céu aberto e apercebe-se de Dom
Gravel revestido de paramentos sacerdotais, assistido por dois santos conversos
falecidos no ano anterior. Todos os três avançam para ele e convidam-no a
acompanhá-los, à mansão dos eleitos. O moribundo dá parte da visão à
comunidade e ao vigário que preside a cerimónia, pois ele acha-se no dever de
seguir o seu bem-amado Pai. O demónio tentou em vão perturbar esta cena
comovente. Alguns instantes depois, o servidor de Deus tomava confiante o
caminho da pátria. (24 fevereiro de 1626)

Postulante

26 de maio

O IRMÃO SÁNCHEZ COTÁN


PROFESSO DE GRANADA

Sánchez Cotán, nasceu, nos arredores de Granada, de pais obscuros, mas de


uma probidade perfeita e de uma fé a toda a prova. Prevenido de graças insignes,
manifestou, desde a mais tenra infância, um atractivo marcado pela oração. Com
os anos, admirou a todos pela sua modéstia e as suas virtudes precoces. Viam-no
procurar a solidão, exercitar-se mesmo nas mais rigorosas austeridades.
Aptidões surpreendentes para a pintura, tendo-se manifestado nele muito
cedo, os seus pais, apesar dos seus módicos rendimentos, lançaram-no no caminho
das belas artes. Ele foi verdadeiramente bem sucedido. Mas, longe de o inebriar, o
sucesso inspirou-lhe pouco a pouco um desgosto profundo pelas vaidades da terra.
Deus só e ele! Deus, com os seus atributos infinitos; ele, com as suas inumeráveis
misérias! Pode-se imaginar, para um artista cristão, um quadro moral mais útil a
estudar, mais fecundo de ensinamentos! Ele contempla-o à vontade, descobre
aspectos novos, e conclui dizendo: «Tudo é vaidade, excepto servir e amar a Deus.»
Cheio destes grandes pensamentos, ele partiu a sua paleta, deitando ao fogo os seus
pincéis, e foi-se fechar na cartuxa de Granada, para aí revestir o hábito de
converso.
Já tinha passado os quarenta; mas trazia – detalhe a ser notado – uma
alma rica de frescura adornada ainda da inocência baptismal. A graça, que o tinha
defendido, desde o seio de sua mãe, tinha-o visivelmente sustentado, através das
tormentas da juventude e os escolhos da sua profissão.
O valente cristão, entregou-se ao bom Deus sem reserva. Disso todos se
convenceram. a sua atitude humilde e reservada, o seu respeito em relação aos
superiores, a sua deferência para com os seus confrades, a sua diligente obediência,
o tom moderado da sua conversação e esquecimento de si mesmo, tudo dava à sua
pessoa um estilo à parte. Os modo completamente, sob o hábito grosseiro do
monge. Sobre as ruínas do velho homem, elevou-se o homem novo, cheio de
generosidade, impregnado de fé, ardendo em zelo, desejoso de responder na
medida das suas forças, ao chamamento do alto. A sua profissão solene, teve lugar,
em 8 de setembro de 1604. A partir deste dia, o Irmão Cotán tornou-se um tipo de
regularidade. Mostrou-se duma agilidade espantosa, passando indiferentemente do
jardim à cozinha, do campo á rouparia, da hospedaria. Ele veio para a religião
para sofrer; Ele esperava ter de suportar umas provas, bastantes sérias. Ficou
agradavelmente surpreendido, de encontrar um bem-estar relativo. Quando lhe
falavam nos rigores da regra, ele afirmava simplesmente não os conhecer.
Tal era o bom Irmão: intrépido no trabalho, desgastando-se mais que
ninguém, e entretanto sempre humilde, sempre alegre, sempre calmo. O seu ar
sorridente dilatava os corações. Cada um admirava a sua reserva. Apto para todo
o serviço, ele conhecia, até aos mais pequenos detalhes das obediências. Mas,
homem do dever, nunca saía do seu papel, fazendo cada coisa no seu tempo, não
mudando de ocupação senão por ordem formal dos superiores. No momento em
que ele menos pensava, encarregavam-no de ornamentar o claustro de pinturas
murais. Os seus instintos rebelavam-se à voz da obediência, e o velho artista
consagrou os seus últimos anos a esta obra, que fez durante muito tempo a
admiração dos turistas e sobretudos dos entendidos. O sucesso não o envaideceu
em absoluto. Conservou intacto o seu amor pela observância. A humildade, a
prática da pobreza e da mortificação que permanecem até ao fim as suas virtudes
favoritas. Não dizemos nada da sua piedade, cujos progressos não abrandaram. A
doença, tomou depressa conta deste corpo minado pelas austeridades e trabalho. O
querido Irmão apagou-se em odor de santidade, no dia do nascimento da
Santíssima Virgem que ele tinha muito amado e lealmente servido (1627).
Hábito antigo de Converso

14 de junho

O IRMÃO JOÃO DE VILLANUEVA


PROFESSO DE SEVILHA

Navarra foi a sua pátria de origem. Dócil às lições que recebeu sob o tecto
paterno, a criança mostrava, apesar da vivacidade da idade, um natural feliz, uma
grande inocência e um atractivo marcado pela piedade. Animado, desde muito
cedo pelo desejo por penetrar os segredos das ciências, apaixonou-se pelas
matemáticas. Empregado, como contabilista nos escritórios da marinha em
Madrid, atraiu a estima dos seus chefes, tanto pela regularidade do seu serviço
como pelo encanto do seu trato. Coisa bastante rara neste meio, ele tirava do seu
salário o que ele chamava a parte dos pobres.
Mas esta situação, se bem que honorífica e lucrativa, não respondia em
absoluto às necessidades inatas do seu coração. Dominado pelo pensamento da
vida religiosa, colocou-se esta questão: «O que é que vale mais o mundo ou o
claustro?» questão importuna, que ele não pode abafar e à qual ele não quer
responder. A luta foi longa. É preciso espantar-se? Há sem dúvida o apelo de Deus
e o atractivo da vocação. mas é uma rude prova, para um homem maduro de
deixar sem transição os seus hábitos, e de se vergar às exigências duma regra no
entusiasmo do seu vigésimo ano. Entretanto a voz do Espírito Santo não cessava
de retinir nos seus ouvidos: «Tudo passa. Só eu permaneço. Porquê regatear tanto
tempo? è preciso ser meu custe o que custar.» Num instante, por um desses golpes
familiares à graça, Villanueva, sente-se mais abrasado de amor, desgostoso como
nunca do século, aspirando à solidão, ao silêncio, à pobreza monástica.
Admitido como aspirante na cartuxa de Sevilha, recebe o hábito e faz a
profissão solene, a 6 de janeiro de 1620. Raramente uma transformação foi mais
repentina e também mais completa. Encarregado da cozinha, – da todas as
obediências a mais escravizante e, aquela que oferece a um principiante, mais
ocasiões de mostrar o que valerá mais tarde – o bom Irmão torna-se
irreconhecível. Ele tão vivo, tão enfatuado da sua pequena pessoa; ele, que pegava
fogo ao mais pequeno choque, que não suportava a mais pequena contradição , não
o deixa transparecer o menor sinal de impaciência. Vêmo-lo sempre igual, calmo,
moderado, quase até à frieza. À primeira vista, dir-se-ia de mármore. Em relação
aos seus ajudantes, – sabe-se como por vezes são activos nesta obediência – ele é
cheio de atenções, dum tacto requintado, nem uma queixa assoma aos seus lábios.
E, no entanto, é lhe forçoso algumas vezes, elevar a voz. A hora regulamentar
aproxima-se; uma inadvertência ampliada por um mal entendido, vai lançar a
confusão na comunidade, gerar descontentamento. O cozinheiro vigia, despacha-se
calmamente e, com um hábil golpe de mão, consegue pôr tudo em ordem. Toda a
gente nota a atitude do querido Irmão na presença dos religiosos, dos padres
sobretudo. Bem diferente da de certos conversos que se esquecem algumas vezes
deste ponto, ele não perde nunca de vista o carácter sagrado de que estão
investidos e que os torna superiores aos anjos. Ele é de manhã à noite conduzido
por puro espírito de fé, vivendo em Deus, com Deus, por Deus. O segredo de
encontrar Deus tanto numa cozinha, como no oratório ou ao pé do tabernáculo, é
de levar por toda a parte muito amor.
Para reparar as longas horas que o trabalho lhe roubam à oração, o Irmão
João prejudica o seu sono e crê bem fazê-lo. As almas simples deixam-se penetrar
dificilmente deste principio elementar: Trabalhar, é rezar. Como, sem isso,
praticar a palavra do Salvador no Evangelho: É necessário rezar sem interrupção?
O intrépido converso não perde nenhuma ocasião de praticar a penitência.
Ardendo de sede, recusa-se toda a espécie refrescamento. No que diz respeito ao
alimento, ele toma apenas o estritamente necessário. Ele traz de ordinário um
cilício eriçado com pontas de aço. De que atenções ele envolve os doentes! Com que
cuidado, com que delicadeza, ele prepara os seus pequenos nadas, de que se goza
um pobre enfermo retido numa cela! Falaremos dos seus actos heróicos de
caridade! Ele atira-se um dia aos pés dum religioso atingido numa perna por uma
úlcera purulenta. Lambe as suas chagas sanguinolentas, e engole sem hesitar este
terrível vírus.
O santo Irmão edificou a comunidade até ao fim da sua vida. Prevenido do
dia, senão mesmo da hora da sua morte, ele dispôs todas as coisas com a sua calma
habitual e a sua admirável piedade, de forma que se encontrasse pronto a
responder ao apelo do soberano juiz. Tinha a idade de sessenta anos, quando
trocou o exílio pela pátria. (18 de maio 1654).
Hábito antigo de Donato

16 de junho

O IRMÃO DOMINGOS MÍNGUEZ


PROFESSO DE PORTA COELI

Vindo de uma família de agricultores, pobres de bens deste mundo, e


obscuros aos olhos dos homens, Domingos Mínguez elevou-se, pelos caminhos
duma condição modesta, a uma grande perfeição. O seu pai confiou-lhe a guarda
dos rebanhos. A criança cresce no meio do campo e dos bosques, sem saber
demasiado quem é Deus, mas ruminando em si próprio sobre as maravilhas da
criação e perguntando-se: Quem fez tudo isto?
O Espírito Santo falava-lhe ao coração. Um vivo atractivo pelo estado
religioso não tarda a coroar os seus anos passados, longe do mundo, na inocência e
pobreza. O jovem Mínguez responde ingenuamente a este primeiro impulso do
alto, sem bem entrever onde ele iria parar, deixando ao bom Deus o cuidado de lhe
imprimir uma direcção. A graça faz a sua obra lentamente. Logo que o jovem
chega à idade de ganhar a sua vida, os seus pais colocam-no como doméstico na
cartuxa de Porta Coeli. «Não é o caminho que leva à fortuna, dirão eles, é aquele
que leva seguramente ao paraíso. o Nosso filho estará lá em mãos seguras e em boa
escola.» E o jovem pastor, tomou lugar entre os servidores da casa. De resto, era
um rapaz robusto de alta estatura, rijo diante da fatiga, não recuando nunca
diante do trabalho. Tudo isto com uma simplicidade infantil, duma obediência
cega, duma piedade simples e discreta.
A semente da vocação depositada em tão boa terra desenvolveu-se
rapidamente. Dócil à voz do céu, que se torna cada dia mais distinta, Mínguez
solicita timidamente o favor de ser admitido à prova como postulante. Este favor,
não se pode de boa fé recusar. Tudo fala nele: o seu exterior composto, a sua
linguagem cheia de bonomia, o seu excelente espírito, a candidez do seu rosto.
Puro, inocente, foi-o toda a sua vida. O seu confessor o dirá mais tarde. O prior,
todo feliz de possuir um sujeito tão recomendável, dá-lhe o santo hábito na vigília
da Imaculada Conceição (1572).
Como trabalhador, o Irmão Domingos permaneceu o que era. Impossível,
neste aspecto, exigir mais. Bastante a par das questões de agricultura, melhorou a
propriedade e fez plantações de oliveira, com a ajuda das quais realizou bonitos
benefícios. Não falaremos da sua competência no que diz respeito ao gado. Neste
terreno, tinha-se tornado mestre há muito tempo.
Uma característica o distinguia moralmente. Era de uma benevolência,
duma bondade de alma sem concorrente; um fundo de piedade que se estendia até
aos animais. Desgostar um confrade, tratar com rudeza um criado, molestar um
pobre animal! Não se rebaixava nunca a isso.
Também, gozava ele, na região de uma fama merecida de doçura e de
paciência. Religiosos, conversos, domésticos, operários, todos o veneravam
profundamente, tão bem que, para o distinguir dum outro Irmão com o mesmo
nome, chamavam-no Domingos «o santo». O prior, grande admirador, ele
também, desta excelente pessoa, veio a dizer um dia: «Quando a morte nos levar o
bom Irmão Mínguez, perderemos uma das colunas da casa.»
Se bem que todo o filho de São Bruno seja instintivamente devoto servidor
de Maria, nós nos reprovaríamos de deixar na sombra a ternura filial do nosso
converso pela augusta Mãe de Deus. Quanto ele se sentia feliz de pertencer a uma
ordem, onde o culto da rainha do céu é particularmente exaltado! Com que unção
recitava aquela longa séries de Ave Maria, de que se compõem o Ofício dos nossos
Irmãos!
Maria, não ficou porém em falta, com o querido Domingos. apareceu-lhe
diversas vezes. Era de uma e outra parte, uma efusão amorosa, difícil de descrever.
Por certo, o santo homem nunca falou deste comércio íntimo com o céu. mas
tendo-se distraído, um dia, a ponto de dar a entender que a sua cela era
frequentemente inundada de claridades extraordinárias, um confrade pressionou-
o com questões tão insinuantes, que o levou a fazer o seguinte relato: « Estava eu
uma noite numa desolação deprimente. Quase no desespero, suplico à Santíssima
Virgem que tenha piedade de mim. Um pouco mais tarde, quando estava no
oratório, sem luz, vejo-me envolvido por fogos celestes. Dir-se-ia um belo nascer
do sol. Repentinamente aparece Maria, o rosto sorridente, o olhar ternamente
dirigido ao seu indigno servidor. No mesmo instante, as nuvens de tristeza se
evaporam, o meu coração abre-se à alegria, e a minha pobre alma serenada dá
graças à sua insigne bemfeitora.» Vermelho de confusão, sufocado, banhado de
lágrimas, o pobre Irmão, interrompe vinte vezes a sua comovente narração. «E
sobretudo, acrescenta ele, com uma vivacidade penetrante, e sobretudo não conteis
isto a ninguém, Eu não o permitirei.»
O servo de Deus contava quarenta e cinco anos de profissão, quando uma
forte febre o colou à cama. Ele não tinha senão sessenta e três anos; mas o trabalho
e as austeridades tinham prematuramente minado a sua robusta constituição.
Sentindo as forças diminuir e vendo que lhe chegava o fim, pediu os últimos
sacramentos e recebe-os com um fervor admirável. Detalhe edificante, que faz
ressaltar a delicadeza da sua consciência. Durante a cerimónia, chama o
procurador e murmura algumas palavras em voz baixa: sem dúvida, um última
confissão confidencial. Ele crê-se gravemente culpável, porque na noite precedente,
num acesso de febre, ele tombou e partiu com um pé um copo cheio de água que
tinham colocado à altura da sua cama. Cheio de remorsos, ele não quer entrar na
eternidade, com a alma carregada desse peso.
Depois disto, o pensamento de Deus e do céu, absorve-o inteiramente. O
olhar fixo sobre o crucifixo, permanece abismado numa contemplação profunda;
dir-se-ia que entrevê como que um raio das luzes celestes. Começa a agonia; o
moribundo entrega-se às últimas orações. Foi pronunciando os dois nomes de
Jesus e Maria, que ele adormeceu na paz do Senhor. Estava-se no nono dia de
setembro do ano de 1609.
A notícia da sua morte provocou uma explosão de pêsames juntamente com
demonstrações públicas de veneração. Todos proclamavam a sua santidade e
partilhavam as sua roupas como verdadeiras relíquias.

Donato
18 de junho

O IRMÃO BENIGNO SCARSELLA


PROFESSO DE BOLONHA
Benigno Scarsella tinha origem numa família recomendável de Bolonha. O
seu pai e a sua mãe, cristãos robustos, aplicaram-se a cultivar no coração dos seus
filhos os germes preciosos que aí tinham sido depositados pelo baptismo, e –
digamo-lo para sua glória – foram tão bem sucedidos, que a bandeira da fé não
sofreu nele o menor eclipse.
Chegado o momento de orientar o seu futuro, o jovem, desdenhando as
riquezas que devia possuir um dia, não hesitou escolher entre Deus e o mundo.
Entrou na cartuxa de Bolonha, para começar aí o seu noviciado, resolvido a
perseverar com e contra tudo. Mas, desde o começo esbarrou contra um obstáculo
inesperado, o mais sério, sem dúvida; aquele que para e faz recuar tantas almas, às
quais, no entanto, Deus parecia ter dado, uma atracção sobrenatural e, aptidões
pronunciadas para a vida contemplativa. Nós queremos falar da solidão. Não
podendo mais aguentar, o nosso noviço, deixou o claustro no fim de algumas
semanas.
Profundamente desolado do seu falhanço, mas sempre ligado à família de
São Bruno, ele solicitou o favor de ser admitido entre os Irmãos conversos. Estes
com efeito, ainda que chamados, como os religiosos de coro, aos supremos gozos da
piedade, não estão sempre da posse da parte de Maria, sentada aos pés do divino
mestre. São as Martas da casa, se assim se pode dizer. A sua vida essencialmente
activa está, na verdade, temperada por exercícios espirituais, pelo oficio divino e
pelas vigílias. Mas, à excepção das horas relativamente pouco numerosas que
passam na sua cela, não há alguma que pouca solidão para eles. Além disso, a
grande lei do silêncio – esta característica da nossa ordem – se bem que
estritamente obrigatória para todos, sofre em favor dos conversos mais de uma
excepção, uma vez que, desde o momento em que eles trabalham juntos, é lhes
permitido de se ocuparem com coisas que têm a ver, não só, com a sua obediência,
mas também de assuntos piedosos, para a edificação comum. O jovem Scarcella
tomou fileira entre os Irmãos e trabalhou então na cozinha.
Neste meio, o ex-noviço sentiu-se mais à vontade e, visto a sua admiração
pela ordem dos cartuxos, desejoso por outro lado de responder à chamada do alto,
ele submeteu-se sem esforço a esses pequenos detalhes para os quais a sua primeira
educação não o tinha absolutamente preparado. Fazendo tábua rasa da nobreza da
sua origem e do seu passado, mantêm-se humildemente no seu lugar, que era por
toda a parte o último. Cumprir o seu dever, a cada hora, tal foi sua divisa. A
obediência, a morte ao seu próprio juízo, foi a sua bússola. O toque do relógio, tão
impertinente por vezes, era para ele a voz de Deus.
Por sua iniciativa, nunca teria falado dos conhecimentos adquiridos antes
da sua entrada na cartuxa. Não pode infelizmente defender-se. Imediatamente
após os seus votos, o prior encarregou-o de explicar aos Irmãos as cerimónias
litúrgicas, da missa em particular, segundo o texto dos estatutos: tudo
acompanhado de reflexões práticas sobre a maneira de fazer tudo precisamente,
mesmo as mais pequenas coisas. Este papel, para dizer a verdade, não era senão a
tarefa dum Irmão mestre, como nós o chamamos. É preciso ressaltar que Benigno
Scarcella, com a sua bagagem clássica, elevava-se por cima do comum. Havia aí –
não se pode dissimular – qualquer coisa de irregular. Um homem de tempera
menos sólida teria saído por ventura do seu caminho. Mas o querido Irmão
caminhava tão boamente, tão simplesmente, que parecia não ter consciência da
importância do seu oficio.
Colocado fora de combate pela idade e doenças, conservou até ao fim esta
fisionomia pura e serena que agradava à vista. Para não sair do caminho do dever,
onde tinha caminhado sempre com um passo tão resoluto, ia e vinha pelos pátios e
jardim, tendo numa mão o seu ponteiro e trazendo na outra, uma pequena cesta
cheia de silvas e madeira mortas que guardava para o inverno. O servidor de Deus
teve o pressentimento da sua libertação. Quanto, nesse momento, ele se achava
feliz de ter tudo deixado para servir a Jesus Cristo crucificado! Tocava o céu. No
dia 18 de Junho (1663), depois de ter recebido o viático e as unções supremas, o
bom Irmão entregou a sua alma ao seu criador, na paz e fidelidade que lhe tinha
guardado até ao seu último dia.

Silêncio !
19 de Junho

O IRMÃO ANTÓNIO JACQUINOT


PROFESSO DE MONT-DIEU

Era originário de Vitry em Perthois, vila da diocese de Châlons. Os seus


pais, de condição modesta, puseram-no ao serviço dum administrador do Duque de
Nevers, cujo nome era famoso na região. Naturalmente inclinado ao bem e
desejoso de conservar o tesouro da sua fé , o jovem não conseguiu conciliar, neste
meio os seus deveres de estado com os direitos não menos sagrados da consciência.
Digamos já em seguida que um movimento secreto o impulsionava a subir mais
alto. Ele não sonhava nada menos que com a vida solitária e contemplativa. A
família de S. Bruno, que ele apenas conhecia era o seu ideal. Ele não o escondia.
Entre os seus companheiros de serviço, alguns começaram a sorrir das suas
pretensões; e outros declararam-lhe francamente que esse regime estava para além
das suas forças. Todos colocavam em dúvida a perseverança neste caminho.
Nenhum, no entanto, se atreveu a pôr a ridículo o seu projecto, tanto era sincera e
profunda a estima pela sua virtude. Surpreendiam-no ás vezes ajoelhado, em
qualquer canto da casa. Em vão tentava mudar de lugar; cada um sabia a que
ater-se a este respeito. Bom para com todos, serviçal, paciente, espiava as ocasiões
de se tornar útil. de uma caridade exemplar e de uma reserva a toda a prova,
nunca se lhe ouviu proferir uma palavra que fosse um pouco ofensiva ou
deslocada.
Longe de o desanimarem, as reflexões dos seus companheiros e a oposição
de Duret – era o nome do administrador, – não fizeram senão acelerar a execução
do seu propósito. «Estas austeridades, dizia ele, não me travam.» Não havia
nenhuma, com efeito, com a qual ele não estivesse familiarizado desde à bastante
tempo. Pouco depois, o jovem Jacquinot tomou o caminho de Monte de Deus, onde
ele fez profissão a 22 de julho de 1606.
Ter-se-ia encontrado dificilmente uma humildade mais sincera, um espírito
de penitência levado tão longe, um fervor mais constante, uma vida mais interior.
Este converso, simples como uma criança, não vivia senão do sobrenatural e no
sobrenatural. No entanto sabia dobra-se às circunstâncias e fazer-se tudo para
todos, com uma igualdade de ânimo surpreendente. Era assim que ele enfrentava
de frente os assuntos de Mont-Dieu, a peixaria de Bairon, os trabalhos de
Charleville onde se erguia um mosteiro, e milhares de outros detalhes absorventes.
O bom Irmão possuía num alto grau as qualidades mais raras, para não dizer as
mais opostas: a vivacidade e a paciência, uma ardor irresistível e uma constância
imperturbável, uma doçura angélica com um tom de autoridade que o fazia mestre
de tudo. Parecia nascido para comandar, tão facilmente mandava.
Os homens colocados sob as suas ordens rendiam justiça à sua lealdade e
admiravam ao mesmo tempo a sua virtude. Sempre o encontravam abordável, sem
prevenções, sempre dono de si próprio! Calmo para com as pessoas, o servidor de
Deus era-o também, por assim dizer, para com os acontecimentos, que ele recebia
sempre com uma admirável serenidade. É talvez o aspecto marcante desta
expressiva fisionomia. O seu espírito de fé levava-o facilmente a uma perfeita
conformidade com a vontade de Deus. estabelecido nesta base inabalável, estava de
antemão resignado a tudo.
As suas conversas respiravam tanto encanto que os operários não se
cansavam de ouvi-lo. Ele mesmo não perdia nenhuma ocasião de lhes dizer uma
boa palavra, de lhes lembrar as grandes verdade da religião, o preço do trabalho, a
excelência do seu estado, as promessas da vida futura. Tinha uma maneira própria
de pronunciar o nome de Jesus, que impunha aos menos devotos. Nem um se
permitiu de o taxar de exagerada a piedade do bom Irmão.
O sucesso não fez senão estimular o seu zelo. Mais ele dava, mais queria
dar. Daí a sua diligência em procurar as conversas piedosas: tirava sempre daí
algum proveito, com esta segunda intenção de lançar esta boa semente na terra. Ao
ver a atenção que ele prestava aos homens capazes do instruir, tê-lo-íamos tomado
por um jovem noviço acabado de se iniciar nos princípios da vida religiosa. Ele lia
pouco, sobretudo durante a semana; era suficiente para ele cumprir os exercícios
de regra e recitar os seus ofícios.
Uma outra dominante da sua piedade foi a sua ternura pela Santíssima
Virgem.

Donato

15 de julho

O IRMÃO PEDRO GEINOZ


DONATO DE LA VALSAINTE

Pedro Geinoz, suíço de origem, exercia a modesta profissão de carpinteiro


no vale de la Gruyère. Homem recto, carácter suave , natureza aberta, cristão sem
medo, era daqueles que nunca transigem com a consciência. Habitando a algumas
horas de la Valsainte, ia, como se diz, passar os seus domingos com os «bons
Padres». De cada vez que lá ia trazia algumas impressões estranhas. Eram os
primeiros toques da graça. Ele não suspeitava para já; mas não deixava de escutar.
A voz do alto tornava-se cada dia mais distinta, e ele captava-a como: «Não é na
Valsainte que Deus te chama, como já chamou vários dos teus camaradas? Se tal é
a sua vontade, recusarás tu segui-la?» Em breve a dúvida já não era possível,
Geinoz partiu de novo para a cartuxa, com a intenção bem firme de não tornar a
voltar.
Ele recebeu o santo hábito e fez a doação com um admirável entusiasmo e
um visível contentamento. Ele se distinguiu-se rapidamente por um conjunto de
qualidades raras e um fundo de virtudes pouco comuns.
Como instrução, ele não possuía senão a pequena formação dos jovens da
sua condição. O Deus das ciências encarregou-se ele mesmo de a completar. Em
pouco tempo, o bom Irmão adquiriu conhecimentos prodigiosos, de que ele não
sabia nem a primeira palavra alguns meses antes. Dir-se-ia, ao ouvi-lo, um doutor
da Sorbonne. Que admiração na escola de um tal mestre! Ele, na sua simplicidade,
parecia ser a coisa o mais natural.
Ele não mudou nada dos seus hábitos. Testemunha-o o facto seguinte.
Atingido por uma doença que o fazia sofrer muito, ele pediu ao coadjutor que lhe
indicasse um paliativo eficaz. «Ah! diz ele, se eu pudesse ao menos dedicar-me a
qualquer ocupação, tornar-me útil ! – Em que pensais, Irmão Pedro? Ainda
tendes fé? Em vez de perder tempo a lamentar-vos ide-vos atirar as pés de menino
Jesus, e conjurai-o de bons modos a curar-vos. « O pobre homem não pediu mais
nada. Foi-se prostrar diante do sacrário e com uma voz cheia de lágrimas: «Senhor
Jesus, Dom coadjuteur diz que eu já não tenho fé. Para lhe provar o contrário, ides
restituir-me a saúde. sem a qual, não serei mais que uma boca inútil.» E Pedro
Geinoz levanta-se curado.
Morreu jovem ainda, esmagado por um objecto de madeira (29 de
novembro de 1642)

Postulante
20 de Julho

O IRMÃO JORGE VEDRINA


PROFESSO DE BOLONHA

Nativo de Reggio, vila da Lombardia, Jorge Vedrina trabalha há muito


tempo como pedreiro, na cartuxa de Bolonha. Habitualmente em contacto com os
bons Irmãos, dos quais estava em situação de observar os menores movimentos, ele
pôs-se a reflectir. Considerando por um lado, as vantagens da vida do claustro, e
por outro os perigos sem número que corre a virtude no mundo, ele conjurou ao
prior de o receber entre o nome dos seus filhos.
Este, totalmente feliz por esta conquista da graça, acolhe-o de braços
abertos. A atitude até agora tão firme e tão cristã do aspirante, era, a não duvidar,
indicativa de uma vocação mais nobre. Depois de ter franqueado arduamente as
provas do noviciado, fez a profissão no dia 26 de julho de 1594. Confiaram-lhe a
obediência da cozinha, onde tinha debutado como ajudante, durante o seu
postulantado.
Cheio de desprezo por si mesmo, considerava-se muito sinceramente o
último de todos. Referindo-se ao lar paterno, onde reinava a mais rigorosa
frugalidade, encontrava-se favorecido como um rico proprietário, Hospedado
como um príncipe, feliz como um rei. Cheio de deferência pelas pessoas dos
superiores, correspondia às suas ordens com uma escrupulosa exactidão. Com uma
palavra da parte deles, ele se teria atirado de cabeça ao fogo ou à água. Dum salto,
o santo homem tinha chegado à obediência no terceiro grau. A obediência que
procura a causa de uma ordem é demasiado curiosa. Não lhe é permitido ter olhos,
se não é para se dar conta do que lhe falta.
No meio deste vai e vem, que provoca a obediência da cozinha, o querido
Irmão guardava total domínio de si mesmo. Modesto, sempre sorridente, unido
visivelmente a Deus em tudo e por tudo, era cheio de atenções para os seus
subordinados, dissimulando a suas falsas manobras, quando não causavam
nenhum prejuízo à comunidade, sacudindo a sua apatia pela sua actividade
constante, juntando às suas ordens, ou uma boa palavra, ou uma reflexão piedosa,
uma oração jaculatória: tudo coisas próprias para manter os principiantes
aplicados ao rude trabalho das mãos.
Jorge Vedrina, testemunhou a mesma benevolência para com os operários
que o ajudarão mais tarde na vinha e nas granjas. Ele tinha o dom de os instruir e
de os edificar, sem os cansar. Não sabendo nem ler nem escrever, ele gostava de
ouvir a Vida dos santos. A sua memória ricamente apetrechada, fornecia-lhe uma
quantidade de traços edificantes, com os quais temperava as suas conversas, com
um acento de piedade notável. Uma destas granjas estava situada a oito milhas do
mosteiro. Todos os sábados, tanto de verão como de Inverno, o Irmão Jorge ia,
segundo o costume, à casa de cima , carregado de frutos, de ovos, de queijo, de
vinho, etc... Na noite de domingo, ele descia transportando as suas pequenas
provisões para a semana inteira. O seu rosto brilhando de suor, resplandecia de
felicidade. Dedicar-se ao serviço da comunidade, obsequiar os seus irmãos,
socorrer o seu próximo, era toda a sua vida, era toda a sua felicidade.
Chegou o momento em que o intrépido operário teve de parar, arruinado
pela idade e doença. A comunidade habituada a vê-lo sempre triunfar dos seus
achaques, graças a sua indomável energia, não quis crer ainda num fim próximo.
Ele mesmo não pensava estar tão próximo do termo. Bem cedo a ilusão não foi
mais possível. Não se podia deixar de admirar a calma e a força d' alma do
moribundo. No meio das dores as mais agudas, nem uma queixa, nem um
movimento de impaciência mesmo involuntário.
Recebeu os sacramentos e respondeu às orações com tanta unção, que
emudeceu a assistência até às lágrimas.
Enfim, no décimo terceiro dia de março do ano de 1628, o servidor de Deus
entra nessa feliz morada onde não habita o pecado: a morada da felicidade sem
fim e da eterna paz

Ir. Sapateiro

2 de agosto

O IRMÃO MARTIN RAMOS DE BALBAS

PROFESSO DE MIRAFLORES

Este bom Irmão professo de Miraflores, passou quarenta e dois anos na


ordem e deu, do principio ao fim, exemplo das mais belas virtudes. A obediência
foi talvez aquela que cultivou com mais cuidado; aquela também que lhe
proporcionou mais gozos espirituais.
Convencido que o apego à vontade própria é o grande obstáculo às
operações da graça, não poupava nada ao pouco que pudesse dominar do eu. No
dia em que ele transpôs a entrada do mosteiro, entregou-se de corpo e alma nas
mãos do Prior. Desta entrega nunca se arrependeu. Via-se na forma com que ele se
prodigalizava no serviço da comunidade. Numa palavra, ao sinal do procurador,
dum simples chefe de obediência, ele corria ao trabalho, sem nunca calcular
esforços. Quanto mais ele se dava, mais queria dar. Os seus melhores dias eram
aqueles onde se podia sacrificar mais.
Esta abnegação tornou-se por vezes o seu tormento. Já se sabe que o
demónio se disfarça, em certas horas, em anjo de luz e que o amor próprio é
extremamente subtil. Ensinavam-lhe que o velho homem torna a aparecer sempre
por qualquer lado, mesmo depois do holocausto da profissão. Tudo isso punha o
pobre Irmão em vivas angústias. Sem falar dessas rapinas que indignavam o
coração de Deus, e o só pensamento de uma infidelidade voluntária transtornava-o.
À menor dúvida que se elevava no seu espírito, ia-se prostrar aos pés dos
superiores. Alguns estimaram que nisto era mais admirável que imitável. «Porquê
então, dirão eles, esta tensão constante? Quem não vê que ela conduz
infalivelmente ao escrúpulo e pode ter as mais tristes consequências?» O que quer
que seja, esta delicadeza é verdadeiramente bela e digna de elogio. Quisesse Deus
que os superiores não tivessem nunca que reprimir outros excessos!
Com a idade vieram as doenças. Cinco ou seis anos antes da sua morte, uma
paralisia tirou-lhe o uso das suas pernas. Não podia mais andar sem apoio. Em
vingança, ficava de joelhos, horas inteiras sem sentir a menor fatiga. Cada manhã,
ouvia várias missas nesta posição. Era um estimulante para a sua piedade. Até ao
fim, foi participante assíduo dos ofícios conventuais. A vista deste pobre doente, de
rosto sempre sorridente, o coração estreitamente unido a Deus, consolava e
edificava. Podia-se ver reviver um desses anacoretas de que conhecemos as
virtudes heróicas.
Chegado ao fim do seu caminho, o valente operário recebeu o seu salário e
foi gozar do repouso eterno. (23 de setembro de 1600).

Contemplando a Criação
3 de setembro

O IRMÃO JOÃO ODE


PROFESSO DA GRANDE CARTUXA.

Cinquenta anos de vida religiosa, marcados pelo cunho de uma invariável


pontualidade e dum trabalho incessante, fizeram deste bom Irmão um tipo notável,
digno de ser proposto como modelo.
Era professo de Monte de Deus e não pensava minimamente em sair de lá,
quando se viu chamado à Grande Cartuxa onde renovou, segundo o costume, os
seus votos de religião. O Reverendo Padre, Don Pedro Roux (1494-1503), tendo
ouvido falar das aptidões do Irmão Ode, quis dar-se conta do partido que daí
poderia tirar. Encarregou-o de abrir o caminho de S. Lourenço ao mosteiro. A
empresa não era então sem dificuldades nem perigos. O nosso engenheiro triunfou
de uns e outros e encontrou esta estrada tão frequentada que foi melhorada em
1855. Ainda se vê agora na montanha numerosos vestígios do antigo traçado.
O grande mérito do corajoso converso, não é o de ter levado a bom termo
esta grande exploração, mas de ter ficado, no meio deste brouhaha, absolutamente
senhor das suas potências interiores. A razão é de que ele estava inspirado e guiado
em tudo por um admirável espírito de fé e de lembrança habitual da presença de
Deus.
Depois de meio século desta vida regular e edificante, o Irmão Ode
adormeceu piedosamente no Senhor, feliz de muito se ter gasto pela sua família
religiosa, mais feliz ainda de se ir descansar ao céu.
A sua morte chegou a 12 de janeiro de 1509. Alguns meses mais tarde, o
capítulo geral inseriu na carta uma nota de louvor.

Noviço
14 de setembro

O IRMÃO GARCIA GONZÁLEZ


PROFESSO DO PAULAR,

Garcia González nasceu a Colmenar de Orcia, vila do reino de Toledo.


Era uma dessas almas generosas que entram com impetuosidade nas
práticas da vida cristã, que aí andam sem relaxamento e tendem aos mais altos
cumes do sacrifício
Considerando as máximas do mundo á luz da fé, ele se sente tomado por um
desgosto insuperável pelas coisas do tempo e não suspira senão por Deus.
Insensivelmente a sua piedade se torna mais esclarecida, a luta contra o carácter
mais firme; a alma numa palavra começa a viver uma vida toda sobrenatural. Por
isso não espantou ninguém, quando que mudou para a cartuxa do Paular para aí
revestir o hábito de converso. Estávamos em 1558.
Ele tinha um demasiado e elevado conceito da sua vocação para não
assegurar ou negligenciar o seu sucesso. Na base do seu edifício ele coloca, como
pedra angular, a pobreza envangélica. Que são, com efeito, ao pé dela, todos os
impérios do mundo, todas as riquezas da terra? Não é senão nestas condição que
ele poderá construir de uma forma sólida e durável, chamar-se filho de São Bruno
e discípulo de Jesus Cristo, o pobre por excelência.
Em si, não havia nada de supérfluo; o necessário mesmo faltava-lhe. Ele
não quis mudar da sua cela precisamente porque não encontrava nela tudo o que
precisava. Um mobiliário mais completo, mais roupa, um maior número de
utensílios ligaria com a profissão dum homem que, na realidade, é mais miserável,
o último dos mendigos? Este pode fazer o que bem lhe parecer do bocado de pão
que lhe dão; o religioso não é livre de o desviar do seu uso. O seu vestuário, por
mais gasto que estivesse, parecia-lhe sempre demasiado bom. «Encontrou-se
alguma vez um pobre bem vestido?»
Estas delicadezas serão talvez taxadas de miudezas, de bagatelas, de
exageros. Aqueles que sabem em que consiste a santidade não pensarão assim.
Nestas pequenas coisas, a alma testemunha ao mesmo tempo um grande amor por
Deus e um zelo reflectido pela perfeição.
No que diz respeito à obediência, ele não parava de dizer que nunca tinha
sentido a menor dificuldade em executar as ordens dum superior. Um sinal teria
sido suficiente para o fazer ir a pé e sem viático até ao fim do mundo. Ele
aconselhava aos seus irmãos de se abandonarem inteiramente aos desígnios da
Providência, afirmando que eles encontrariam neste abandono deles mesmos as
forças que faltam à natureza. «Não procureis, crede em mim, subtrair-vos a este
jugo abençoado. Submetei antes o vosso próprio juízo; obedecei com a alegria de
espírito e a prontidão da vontade. É o único meio de não vos extraviar.» A sua
conduta não era senão o comentário desta teoria.
Um facto provará como ele entendia a santa indiferença. O prior do Paular
recebeu um dia a ordem de destacar alguns religiosos do seu pessoal e de os enviar
à cartuxa de Granada onde se dispunham a inaugurar a vida comunitária. O
Irmão Garcia deve fazer parte desta pequena caravana. Esperando a hora da
separação, – detalhe de que não tem com que se preocupar, – ele persegue o seu
ritmo ordinário, rezando e trabalhando com uma calma espantosa. Ao sinal dado,
os viajantes juntam-se à entrada da casa, onde o prior vai abençoá-los uma última
vez. Um só falta à chamada, e é justamente o Irmão González. Procuram-no e não
o encontram nem na capela de família, nem na sua cela. Onde pode ele estar? Um
deles lembra-se de ir até à sua obediência e, encontra-o com o fato de trabalho. «
Em que pensa disse-lhe ele? Os confrades estão a ponto de perder a paciência. Vá à
sua cela e venha o mais depressa possível.» E o bom Irmão respondeu sem se
comover: «Eis aqui a chave da cela. Eu estou pronto. Onde está montada que me
está destinada?» E ele parte com esta estranha vestimenta. O trabalho manual
pode ser comparado a um sólido anel que fixa a ligeireza do espírito, deixando-lhe
livre a sua ascensão para Deus.
O ardente converso, ao qual consagramos esta noticia, tinha sempre
colocado em primeiro lugar na sua estima o conhecimento dos seus deveres
religiosos, que ele estudava humildemente e sem trégua na conduta do próximo,
sem fazer nenhum caso das suas próprias virtudes, embora elas fossem mais que
vulgares. Coisa rara entre os homens, ele não via em si mesmo mais que os
defeitos, nos outros as boas qualidades, e isso, não por uma razão de inveja, mas
por um motivo puro e louvável.
Toda a vida de Garcia Gonzáalez não tinha sido senão uma preparação
para a morte. Os seus quarenta e sete anos de profissão foram uma lição para
todos. Uma vez fortificado pelos sacramentos da Igreja, não desviou mais os seus
olhos do céu. Enfim, depois de para aí ter atirado os mais ardentes desejos do seu
coração, para aí enviou a a sua alma para se unir eternamente a Deus, o seu único
amor e seu fim supremo (18 de setembro 1606).

Irmão idoso
3 de outubro

O IRMÃO CRISTÓVÃO VARGA


PROFESSO DE VAL-DE-CRISTO

Admitido como postulante na cartuxa de Val-de-Cristo, no 1º de agosto de


1649, o Irmão Cristóvão fez a profissão no dia 15 de Agosto do ano seguinte. No
intervalo, passaram-se coisas cujo relato edificará o leitor.
Apto para todos os ofícios, fervoroso no trabalho, bom e serviçal, o jovem
postulante deu, sob este ponto de vista, completa satisfação aos superiores. Mas
havia o reverso da medalha. De um natural quente e exuberante, vivo como a
pólvora, Varga teria tido, noutro meio, um génio exaltado e batalhador. Mesmo
entre os conversos, pessoas pacíficas na sua maior parte, chegou mais de uma vez a
esquecer-se. Era o primeiro a lamentar-se disso, o que não impedia, de reincidir
logo no dia seguinte, quando não era no próprio dia.
Desencorajado à vista das suas fraquezas persistentes, atacado ao mesmo
tempo por tentações renitentes, fala de voltar ao mundo, persuadido que não está
feito para a vida religiosa. O seu director, Francisco Pallas intima-lhe formalmente
a ficar. O bom Varga, se bem que pouco sociável, possui, com uma vontade de
ferro, um coração de oiro. Não é o indício de uma vocação sobrenatural? Pallas,
pelo menos, disso ficou convencido, e porque lidava com um homem sincero, reteve
sem dificuldade o pobre noviço.
Compreendeu-se logo de seguida que ele estava no seu caminho. Possuía
por instinto o sentido religioso. A sua invariável exactidão, a suavidade da sua
obediência, o amor prático da pobreza, a sua devoção à santa Eucaristia, os rios de
águas que acompanhavam as suas comunhões, a nota dominante da sua piedade,
colocaram-no bem cedo no primeiro lugar entre os numerosos conversos de Val-
de-Cristo. No aspecto da mortificação e das penitências corporais, ele teria
provavelmente ido demasiado longe. A prudência do seu director retêm-no nos
limites da discrição.
Dir-se-ia aplicado exclusivamente ao trabalho da sua reforma, de tal modo
amava a oração e os detalhes da observância. Ao vê-lo, por outro lado, através da
casa, dócil a toda a ordem, feliz de prestar serviço, ter-se-ia talvez podido acusá-lo
de excesso de actividade. No dizer daqueles que o seguiram de mais perto, teria
sido difícil de equilibrar melhor os papéis de Marta e Maria. Que é isso senão a
perfeição?
Um acidente grave colocou-o antes da hora fora de combate. Esgotado em
alguns dias pelas hemorragias frequentes e violentos acessos de febre, acertou as
suas contas com Deus e colocou-se de seguida à disposição da sua vontade santa.
Havia em redor da sua pobre cama como que um reflexo da bem aventurada
eternidade. O bom Irmão aí entrou no primeiro dia de março do ano de 1656.
Irmão alfaiate

6 de outubro

O IRMÃO JOÃO DE LA ESPADA


PROFESSO DE JEREZ

Mais ainda que a necessidade de solidão, o amor do sofrimento levou este


jovem a deixar o mundo e a encerrar-se num claustro. «Lá, pelo menos, diz ele,
encontrarei certamente privações, o sacrifício sob uma ou outra forma.» É o que
determina a sua entrada em Jerez.
Era uma dessas almas simples às quais Nosso Senhor reserva graças
especiais. A sua piedade isenta de toda a afectação mundana tinha qualquer coisa
de angélica. Os seus começos, foram admiráveis de entusiasmo e de boa vontade.
Entregou-se totalmente ao puro amor de Jesus, para aí fazer o seu constante
estudo e o único fim da sua vida. «O meu único desejo, dizia ele ao Padre prior, é
tornar-me, não somente um santo, mas um grande santo. Como chegar lá? – É
preciso, meu filho, querê-lo e bem querer, não contentar-se com simples
aspirações, numa palavra, pagar com a sua pessoa. Na prática, haveria muito a
fazer, mas com a graça consegue-se tudo. Não vale nada ter as máximas do
Evangelho na boca, se não tendes ao mesmo tempo os pensamentos do Salvador no
vosso espírito, os seus afectos no vosso coração, os seus exemplos diante dos
olhos.»
Sob este enérgico impulso, o Irmão caminhava com um coração aberto, com
toda a simplicidade, escolhendo sempre o que havia de mais baixo e de mais
punível. «Eu não posso vê-lo, dizia um velho converso, sem me sentir levado ao
bem; o seu fervor eleva-se continuamente contra a minha lassidão.»
É no exercício desta vida humilde e escondida, que Deus vem impor-lhe o
sacrifício da impotência ferindo-o com um cancro na perna: mal horrível de ver,
que minou durante quatro anos no meio de inexprimíveis dores, e que consumiu o
seu sacrifício metendo-lhe o selo de uma angélica paciência. Feliz de ser associado
à Paixão, – era, lembramo-lo, o seu sonho à dezoito anos, – ele gostava de dizer:
«que os outros sejam elevados, estimados, aplaudidos, isso importa-me pouco; eu
não vejo, por minha conta, que Jesus e a sua cruz.» E agora: «É preciso fazer boa
cara ao sofrimento; sem o qual Deus não no o enviaria.» Desta teoria elementar à
prática, vai muitas vezes grande distância, tão difícil é a arte de sofrer. Esta
ciência, o nosso doente a possuía num grau eminente; conservou-a até ao fim.
Deitado na sua cama, sem poder se voltar nem para a direita nem para a
esquerda, a cabeça sobre uma pedra à laia de almofada, nas suas mãos o crucifixo
e o rosário, não se cansava de repetir a palavra de Jesus no jardim das oliveiras:
«Que seja feita a vossa vontade, ó meu Deus, e não a minha!»
Logo que o cirurgião falou-lhe de amputar a perna gangrenada para lhe
conservar a vida, o paciente contentou-se em responder: Da vida, à muito tempo
dela estou desprendido, mas porque terei mais uma ocasião de sofrer por amor de
Deus, podeis proceder à operação.» O homem da arte cortou sem piedade e,
contrariamente ao que se esperava, o doente expirou pouco depois. Cessou de
sofrer ao mesmo tempo que deixou de viver (7 de março 1663). Estava no seu
sexagésimo sexto ano.

Irmão cozinheiro

21 de outubro

O IRMÃO MARTINEZ
PROFESSO DO PAULAR

Francisco Martínez viu o dia num lugarejo vizinho da cartuxa do Paular. A


família era numerosa e os parentes viviam penosamente do seu trabalho. Por isso
ficaram felizes de confiar o seu filho, ao Procurador do mosteiro. Este, esperando
que ele chegasse à idade regulamentar, enviou-o a guardar gado.
O pastorinho tornou-se grande e misturou-se com o pessoal da casa. E como
aparecia sempre em todas as circunstâncias com uma agilidade admirável, de
alegre humor, e com isto piedoso como um anjo, deram-lhe o hábito da ordem e,
no ano seguinte , o de converso.
Apto para os diversos trabalhos, o bom Irmão fazia-os prontamente, com
inteligência e economia. Ele sabia tirar partido de tudo, desses mil nadas, deitados
inconsideradamente para o desperdício e que não são sempre sem valor. O
desperdício, o desbaratamento, como se diz, inspirava-lhe uma repulsão instintiva.
Pedreiro, carpinteiro, canteiro, pintor, vidraceiro, canalizador, iluminista de
talento, tinha-se tornado mestre em todos os ofícios. Estes homens são um
verdadeiro tesouro. Não se calcula os serviços que prestam, seja dirigindo os
operários, seja executando as reparações que, sem eles, trariam despesas
consideráveis.
O Irmão Martinez passou nesta vida o espaço de sessenta e quatro anos e
logo, no fim, as suas forças traíram-no, ficou para os seus confrades um amigo
seguro, um conselheiro devotado. Não se privavam de recorrer às luzes da sua
experiência. O espírito de fé, de que o santo homem estava possuído, mantinha-o
em guarda contra um escolho ao qual estão expostas as pessoas habituadas a
descer aos detalhes e ansiosas em tudo ver por elas mesmas. Muitas vezes o seu
espírito afoga-se no mar das preocupações quotidianas, e o seu coração por sua vez
enredado, perde insensivelmente o gosto das coisas de Deus.
Digamos em louvor deste digno Irmão que, apesar de tudo, não se deixou
jamais dominar pelas coisas do tempo. A atmosfera sobrenatural mantinha-o
sempre à altura da sua vocação. Ao anúncio de que a hora do repouso via tocar,
respondeu com a segurança do servo que vela esperando a chegada do seu senhor:
« Com a ajuda da vossa graça, Senhor, fiz valer o meu melhor aos modestos
talentos que vós me confiastes; vós não me recusareis, espero, a recompensa dos
meus humildes trabalhos.» E adormeceu no sono dos justos, no dia 5 de junho de
1628, à idade de oitenta anos.

Irmão tractorista
28 de outubro

O IRMÃO PEDRO NOGUEZ


PROFESSO DE VAL DE CRISTO

Este bom Irmão foi, perto de cinquenta anos, um destes servidores,


absolutamente íntegros que, chegados ao fim do seu caminho, podem-se orgulhar
de ter, com a ajuda de Deus, feito frutificar o talento do seu Senhor. E entretanto,
as ocasiões não lhe faltaram para transigir com o dever, de cometer dessas ligeiras
infracções de que o Salvador disse que conduzem infalivelmente ás faltas graves,
quando não, às catástrofes retumbantes. Assim como a alma atinge por degraus as
cimas da perfeição, assim também não é de um salto que se rebola nas piores
desordens.
Pedro Noguez, depois de ter feito as suas provas como factotum e religioso,
foi encarregado da vigilância e direcção dos moinhos situados a uma curta
distância do mosteiro. Missão delicada entre todas, será necessário dize-lo? Ter um
pé no claustro e outro no mundo, a cabeça entregue aos negócios e o coração
constantemente unido a Deus pela fina ponta da alma, aí está um cargo , ao qual, o
comum dos mortais, não saberiam corresponder, e que o querido Irmão ocupou
durante trinta anos, com um zelo acima de todo o elogio, com inteira satisfação dos
seus superiores e aplausos do público, muito exigente neste aspecto, todos o
sabemos.
Sem dúvida, um converso nestas condições não vive totalmente isolado da
comunidade. Fora os domingos e os dias de festa que o fazem lá voltar por vinte e
quatro horas, frequentes necessidades lá o reconduzem mas não mais de que
passagem. Geralmente, ele está só, assistido por alguns servidores cujas ideias, a
linguagem e os hábitos contrastam singularmente com a conduta de um homem,
ligado pelos votos de religião. E depois há este contacto perpétuo com os seculares
de toda a condição e de toda a idade, o qual não deixa de ser perigoso. Tão difícil é
a pessoa não se descontrolar, como fácil perder de vista o único necessário.
O espírito religioso superabundava nesta bela alma. No mundo como na
solidão, na acção como no repouso, no ruído da cidade como na calma dos
moinhos, ele guardava intacto a lembrança de Deus; mas o seu recolhimento estava
impregnado de boa graça. Não podíamos deixar de admirar a gravidade da sua
apresentação, a reserva da sua linguagem e, ao mesmo tempo, a nota de alegria
das suas relações com o seu pessoal. Na intimidade, era a vida de família. Para
estes homens assalariados, tinha entranhas de pai, velando pelas suas saúdes,
tomando sobretudo cuidado das almas. Que doce e fortificante escola aquela do
Irmão Noguez!
O piedoso converso sempre se tinha distinguido pela sua terna devoção
para com Maria e o seu culto pelas onze mil virgens.. Os trinta últimos anos da sua
vida, não passou um só dia sem se recomendar a estas valentes esposas de Cristo.
Qual era o objecto desta incessante oração? Nós seriamos levados a crer que foi
graça de uma boa morte. Este glorioso enxame, com efeito, veio assistir ao servidor
de Deus nos seus últimos momentos e escoltou-o até ao trono do soberano juíz, que
lhe entregou logo a coroa de justiça. (8 de setembro de 1591).
Irmão rezando o terço

1 de novembro

O IRMÃO FRANCISCO DE ARANDA


DONATO DE PORTA COELI

É uma vida extremamente curiosa a deste bom Irmão que se apagou com a
idade de noventa e dois anos., sob o humilde hábito de donato.
Veio ao mundo na vila de Teruel, por volta do ano de 1346. A família do seu
pai e a de sua mãe nascida em 1346. A família de seu pai e a de sua mãe – Pérez de
seu nome – figuravam entre as mais distinguidas do país. Das três crianças que
nasceram desta união, as duas primeiras conseguiram pelo trabalho uma situação
deveras bastante honrada. O último penetrou, ele também, mas num meio onde,
normalmente, não se colhe palmas de celebridade. Antes de o ver a trabalhar sob
as librés religiosas, acompanhá-lo-emos a través das mil e uma peripécias da sua
original carreira.
A sua primeira educação, dirigida para o bem, sob o controle dos pais e
com o concurso de hábeis mestres, não deixou ninguém a desejar. Dotado, de
resto, de dons requintados, e de adjectivos que dão tanto encanto à juventude, a
criança tornou-se um adolescente de grande distinção, destinada a ter mais tarde
um papel importante na sociedade.
O seu pai introduziu na corte, onde ele mesmo tinha as suas entradas, e
apresentou-o ao rei de Aragão, Pedro IV, persuadido que lhe abria das honras.
Francisco ganhou logo de início, o favor do monarca que o nomeou primeiro
camareiro do seu filho mais novo. Há morte do soberano, o herdeiro da coroa teve
de expedir um corpo da armada na Sicília para abafar um começo de insurreição.
Ele colocou o seu irmão à cabeça das tropas, mas conservou perto de si o brilhante
escudeiro ao qual ele confiou a educação do seu filho mais velho ainda criança.
Missão delicada para um jovem de dezasseis anos apenas!
Inteiramente entregue à sua tarefa, o mestre cultivou o espírito e o coração
do seu aluno com uma competência e uma maturidade surpreendentes., o que lhe
valeu mais de uma vez os encorajamentos dos príncipes e o colocou bastante em
evidência. Estas duas existências acabaram mesmo por não fazer senão uma, de tal
maneira tinham pontos de contacto. Os dias eram partilhados entre a vida de
família e lições do preceptor. A estas últimas no entanto cabia a melhor parte. À
noite, os seus quartos eram contíguos.
Ora, uma manhã, contrariamente ao seu hábito a criança não responde ao
chamamento. Surpreendido e nada escutar, Aranda penetra no apartamento e
encontra um cadáver ainda quente. A emoção é indescritível e passou de boca em
boca aos bairros mais afastados da capital. Procederam imediatamente a um
inquérito. Os habitantes do palácio sofreram um interrogatório minucioso;
Aranda especialmente foi apertado com perguntas. Apesar de tudo, esta morte
trágica permanece envolvida de mistério. Entretanto o jovem é preso e, se bem que
nenhuma suspeita fundada caísse sobre ele, foi encarcerado na cidadela de
Morella. Dura escola que o devia colocar um dia na possessão do soberano bem!
Dura escola, dizemos nós! Com efeito, pode-se conceber uma reviravolta
mais inesperada e completa? Ontem no cume das distinções; hoje, no último
degrau da escala social! Sentado ontem à mesa dum rei; atirado hoje para o fundo
de uma masmorra! Ontem, adulado pela massa dos favoritos; hoje, colocado na
fileira dos celerados! Em que direcção tende a sorte dum homem! Para que tende a
sua ruína moral! Haveria aqui, para um espírito versado nas coisas da fé, matéria
de reflexão.
Profundamente abatido, mas resignado, – consciente da sua inocência, – o
nosso prisioneiro adora, sem compreender, as vias da Providência e beija a mão
que lhe bate. «Ah! se diz ele, o mundo é feito assim mesmo! Promete muito. Que dá
ele, afinal? A sorte sorria-me. A minha família orgulhosa mostrava-me o futuro
sob as mais belas cores. Quantos dos meus amigos invejavam a minha situação! E
eis este belo edifício desmoronado de alto a baixo! Em que me vou tornar? Só vós o
sabeis, Senhor; isso me basta. Abandono-me de corpo e alma aos vossos
impenetráveis desígnios. Tudo o que posso prometer, – faço o juramento. – é que,
se vós me dais a liberdade, o mundo não contará mais comigo entre os seus
adoradores. Irei encerrar-me num claustro.»
Entretanto, o rei morreu subitamente, de um acidente de caça (1395). Por
falta de herdeiro directo, o seu irmão mais novo, Martinho, outrora, aluno de
Aranda, subiu ao trono. Mas, como estava retido em Sicília, Dona Maria, sua
esposa, foi proclamada rainha de Aragão. Reconhecida pelos serviços prestados,
em tempos, pelo escudeiro de Teruel, ela quebrou as suas cadeias e o nomeia
membro do conselho privado: dupla iniciativa que recebe inteira aprovação do
soberano. A reparação era completa, tanto mais que era necessária. À primeira
hora, – hora de excitação, – tinha-se compreendido esta encarceração preventiva.
Depois da conclusão do inquérito, era mais que inexplicável. Assim, a libertação do
prisioneiro foi um alivio para todas as consciências.
Reabilitado na opinião e reintegrado na corte, Aranda não vai perder de
vista as sensatas reflexões que lhe sugeriu a sua estadia em Morella? Agora que a
fortuna lhe sorri, o mundo não lhe aparece, sem dúvida, sob tão sombrias cores. E,
de facto, uma voz diz-lhe — esta voz do mundo que dá invariavelmente a mesma
nota: «Cortar a tua carreira, lançares-te no desconhecido, deixar o certo pelo
incerto, é uma loucura. Já pensastes nisso? E se os cartuxos te rejeitam; ou se, uma
vez admitido, não aguentas esse regime, como será a tua situação? A corte
evidentemente te estará fechada.»
Aranda é demasiado sério, e viu a sociedade demasiado perto, para cair na
armadilha. Um cavalheiro não têm duas palavras e, quando é a Deus que deu a
sua, esta palavra é duplamente sagrada. Por essa altura, dirigiu-se a Barcelona
onde lhe chamam os negócios da família. Cheio do grande projecto que ele
alimenta, entra um dia numa igreja, aproxima-se duma capela dedicada a Santa
Ana e as mãos apoiadas sobre o altar, renova o juramento de romper com a corte e
de ir encerrar-se à cartuxa de Porta Coeli para passar o resto dos seus dias sob o
hábito de donato. Isto acontecia em 1396.
Pouco tempo depois, escreve ao prior desta casa, suplicando-lhe de o
receber como o último dos seus filhos. Para conseguir a bênção do céu sobre o seu
pedido, comprometeu-se a construir inteiramente à sua custa um claustro e sete
celas. Estas celas seriam mobiladas por ele e providas do material necessário ás
ocupações dos seus habitantes. Mais ainda, uma renda anual de cinquenta escudos
de oro, que seria entregue, perto do Natal, nas mãos do prior, e dirigida às
necessidades mais urgentes do mosteiro. A resposta não se fez esperar; era
inteiramente afirmativa.
«Creio bem, dirá o leitor estranho às coisas da religião. Haverá um só
convento que não abra todas as suas portas a um candidato munido de tais peças?»
Aí está uma lenda que entretêm o mundo dos romancistas. Mas nós não
escrevemos para esse público de vista curta. Passemos. Bem sabem, os nossos
religiosos que se, segundo os nossos estatutos, está proibido ao prior, sob severas
penas, de exigir seja o que seja dum postulante, não lhe está interdito, no entanto,
de aceitar um donativo de mão a mão. Voltemos ao nosso gentil-homem.
Fixado o seu futuro, restava-lhe despedir-se dos soberanos. É, segundo ele, o
lado delicado da questão. O rei e a rainha tomando conhecimento desta notícia,
não podem evitar um movimento de surpresa misturado de tristeza. depois de
trinta e dois anos que este bravo Aranda entrou para a corte, todos os príncipes lhe
votara uma afeição quase fraternal; todos se fizeram à ideia de o ver acabar no
meio deles. Nenhum está mais emudecido que o soberano. Não é sob os olhos e, por
assim dizer, na escola do seu preceptor, que cresceu e recolheu as lições aonde se
inspira todos os dias na gestão dos interesses do país? Também quantas objecções,
quantos afectuosos reparos caiem desses dois corações partidos e se confundem no
meio dum dilúvio de lágrimas! E ele respondeu com uma voz entrecortada de
soluços: «O afecto ás vossas augustas pessoas, foi-me concedido desde há muito
tempo. O que eu aí fui buscar de força moral, no decurso do meu frequente
cativeiro, só Deus o sabe. A vossa desolação testemunha a sinceridade da vossa
amizade; os vossos gemidos comovem-me até ao fundo da alma. Só Deus o sabe.
Quereis então que resista ao chamamento da graça? Tudo me indica para a vida
do claustro. Separando-me de vós, eu estou certo, tanto quanto se pode estar, de
cumprir um dever de consciência. Se o sacrifício que estou pensando fazer fosse
obra da minha vontade, não o faria certamente. Mas, estai descansados, a
separação não é esquecimento. Ao contrário, quanto mais pertencemos a Deus,
mais pertencemos àqueles que amamos cá em baixo. Lá todo entregue às minhas
santas ocupações, eu vos trarei, mais ainda em meu coração. Longe das vaidades
do mundo, estranho aos negócios, não cessarei de rezar pela conservação de Vossas
Majestades e pela prosperidade do reino, — o que eu tenho de mais caro, neste
mundo.»
As coisas devem, cremos nós, ter-se passado mais ou menos assim. O que
renunciamos a traduzir, é a emoção que explodiu de uma parte e de outra no
momento onde, com o adeus final se trocaram os últimos olhares cheios de
lágrimas.
Aranda tinha cinquenta e dois anos, quando franqueou a entrada da Porta-
do-Céu. Para ele, era penetrar no vestíbulo do paraíso. Chegado ao porto,
expande-se em termos comovidos e exclamou: «Que acções de graças não tenho eu
de vos dar, Senhor, por me terdes introduzido nesta santa morada! É então ao pé
do vosso tabernáculo que os meus dias vão decorrer, daqui em diante. É suficiente,
para reconhecer este favor, de fazer Vos a oferenda da minha pobre pessoa sob o
jugo da regra da São Bruno? Porque lamentaria eu aquilo que deixei? Tudo isso
não é nada em comparação daquilo que encontrei, ó meu Deus.»
Ele tinha, recordamo-lo, pedido expressamente de permanecer na classe dos
donatos, quer dizer entre os menores da casa. Sem falar do claustro ao qual ele
nunca jamais ousou pertencer, ele afastou para longe a ideia de se juntar aos
conversos. A doação pura e simples era o seu sonho. As suas aspirações as mais
intimas não se levantavam mais alto. Trabalhador da última hora, ele queria viver
ignorado, apesar de que a sua experiência de vida, a sua educação, os seus
conhecimentos o tornavam apto a todos os cargos. A Providência reservava-lhe
cruéis desilusões.
A condição de donatos difere em muitos pontos do estado de converso.
Estes, com efeito, graças à profissão, são verdadeiros religiosos, enquanto que os
outros não o serão jamais. Segue-se, que a formação destes últimos não reclama
nem os mesmos cuidados nem a mesma profundidade espiritual. Entretanto todo o
candidato à doação é submetido a uma prova de um ano. Durante estes doze
meses, que podem ser prorrogados , à vontade do prior, o noviço donato
experimenta de algum modo as suas forças psíquicas e morais. Iniciado pouco a
pouco na vida comum, ele está brevemente em condições de ver se esta existência
responde aos seus gostos, às suas necessidades e os superiores, de seu lado, são
chamados a pronunciar-se com conhecimento de causa por, ou contra a sua
admissão. Paralelamente a este trabalho, o noviço persegue um outro mais
importante. Feito já mestra nas ciências humanas, deve aprender o a b c do
catecismo religioso, saber que o estado e o hábito não nos santificam em nada, se
não nos aplicamos a adquirir uma grande humildade de espírito, um amor sincero
de abjecção, uma perfeita renúncia à nossa própria vontade, mesmo nas acções
santas.
O nosso aspirante teve a boa sorte de cair nas mãos de um homem famoso,
cujo nome saiu mais de uma vez da nossa pena. Queremos falar de Bonifácio
Ferrer. Entrado também ele nesta casa, à idade de quarenta e um anos, acabava
ele de pronunciar os seus votos, quando o nosso futuro donato debutou como
postulante. Antes de tomar o governo de Porta Coeli, para de lá passar à Grande
Cartuxa, o novo professo foi encarregado, além da gestão do temporal, da direcção
dos Irmãos.
Não o seguiremos no exercício desta função, do qual seria supérfluo fazer
ressaltar a sua importância. Nos bastará dizer que, logo que foi investido do
hábito, Francisco Aranda entregou-se de todo o coração ao trabalho, sem nunca
transigir; ele que não gostava nem dos meio termos, nem da lentidão. «Falai, meu
venerável Padre, diz ele, sem considerar quem eu sou, nem donde venho. Estou
preparado para sofrer. Habituado que estava a seguir os meus caprichos e a fazer,
pouco mais ou menos a minha vontade, vai-me, assim o penso custar muito. Que
importa o sofrimento a uma alma que coloca em Deus, os cuidados do seu futuro!
Pedi-me pois tudo que vos agradar. Com o socorro da graça, encontrar me eis
dócil como uma criança.»
Ele cumpriu a palavra. A extrema pureza das suas intenções, a delicadeza
da sua consciência, o cuidado com que ele vigia toda a sua conduta, aquele
recolhimento habitual e, tão profundo que não pode, sem esforço, distrair o seu
espírito da meditação da manhã, essa generosidade constante em presença do
sacrifício, este amor de Deus que tende sem cessar a uma união mais íntima, tais
são os traços desta viril figura. O tempo não fará mais que realçar isso. Um noviço
não podia oferecer melhores garantias. Portanto foi admitido à doação sem a mais
pequena sombra de dificuldade.
A partir desse dia, o bom Irmão passou por uma série de incidentes
bastante curiosos, de que teríamos o direito de nos espantar, se não soubéssemos
que ele nunca se afastou, do controle da obediência. Eis, de resto, as grandes linhas
do programa, ao qual, ele teve de se sujeitar e isto segundo as instruções formais
que lhe enviou o Reverendo Padre, Guillaume de Raynaud e que foram
confirmadas rapidamente, depois por Bonifácio Ferrer. Ainda que donato,
ocupava uma cela no claustro, com a faculdade de sair, de tempos a tempos, para
prestar ajuda aos conversos. Ele seguia os religiosos do coro, e cantava, em dias de
festa, a primeira lição. Afim de qu pudesse seguir exactamente as cerimónias,
tinha-se adaptado um capuz ao seu fato — apêndice que não existia então para os
conversos. No refeitório, onde ele estava misturado com os religiosos, . ele lia, na
sua vez. Admitido às deliberações capitulares, tinha direito de voto. Enfim, não era
excluído nem das recreações nem do passeio semanal. Este conjunto, como se vê,
constituía uma espécie de vida mista, em relação à vida dos religiosos de coro e à
dos conversos: existência singular, é preciso confessar, mas querida e regulada, até
aos menores detalhes, pela autoridade superiora.
De qualquer maneira, por muito vastos que fossem os seus privilégios, o
querido Irmão não era religioso. Faltava-lhe aquilo sem o qual a alma não pode
tornar-se, a «coisa» do Senhor, a sua propriedade autêntica; absoluta; faltava-lhe o
selo da profissão. Este favor inesperado veio brevemente colocar fim, não só
precisamente às suas inspirações íntimas, mas ao que ele teria desejado, se tivesse
sonhado com outra coisa que a doação pura e simples. A cerimónia teve lugar,
como é costume, durante a missa conventual.
Apesar de tudo, nada mudou, nem o seu nome, nem o seu título. Apenas,
não foi designado mais que, por esta denominação geral: o donato, como se ele
fosse o único na casa. Por toda a parte, de resto, chamavam-no o donato de Porta
Coeli; porque, — apressamo-nos a dizê-lo, ele adquiriu, em pouco tempo, uma
grande notoriedade nas províncias da ordem. Como foi isso? Vamos dizê-lo tão
sucintamente quanto possível.
Os tempos eram difíceis nos primeiros anos do século XV. A Igreja dividida
pelo cisma atravessava uma das crises mais agudas da sua história. Havia então
dois Papas, tendo cada um os seus partidários, o de Roma e o de Avinhão. As
ordens religiosas não podiam menos que seguir o Pontífice reconhecido pela
respectiva nacionalidade. Os cartuxos lançados na corrente agruparam-se eles
também sob a obediência dum ou doutro, segundo eram franceses ou espanhóis,
alemães ou italianos.
Bonifácio Ferrer, absolutamente devotado a Bento XIII, já antes da sua
entrada em Porta Coeli, permaneceu-lhe fiel depois da sua elevação ao priorado da
Grande Cartuxa. O soberano Pontífice, que o sabia hábil jurisconsulto e religioso
de marca, chamou-o para perto de si e fê-lo seu conselheiro íntimo, não o deixando
senão de tempos a tempos voltar ao seu lugar. O Reverendo Padre teria tudo
sacrificado para retomar o caminho do deserto, mas foi-lhe forçoso obedecer e
prolongar a sua estadia em Avinhão.
Não contente de reter no seu palácio o Padre Geral em pessoa, Bento XIII
ordenou-lhe que mandasse chamar, imediatamente, o célebre Aranda,
Acrescentemos que este último era pessoalmente conhecido do papa. No tempo em
que ele vivia na corte de Aragão, ele tinha sido enviado em missão extraordinária
junto do Vigário de Jesus Cristo. Ele tinha manifestado, nessa circunstância, tanta
ciência jurídica e um talento tão ponderado, que Bento quis tê-lo debaixo de mão,
tanto mais que, ele tinha sabido, de Bonifácio Ferrer, os detalhes mais edificantes,
sobre os começos do querido Irmão na carreira monástica.
Este, na recepção da mensagem pontifícia experimentou um movimento de
surpresa. «Como, disse ele, o Santo Padre digna-se ainda de se lembrar do seu
pobre servidor! E, agora ele que me sabe encerrado numa cartuxa, não teme
tornar a lançar-me em pleno mar político , onde , ai de mim! experimentei mais de
um naufrágio. — Basta de recriminações, meu bom Irmão, disse-lhe o prior. Em
presença de uma ordem vinda de tão alto, vós deveis vos inclinar e tomar hoje
mesmo o caminho de França. Deus esteja convosco! Eu vos abençoo; parti.» O
Irmão afastou-se do berço da sua vida religiosa, com o coração oprimido, pronto
no entanto a todos os sacrífícios, mesmo ao de morrer longe da cela.
Apenas chegado ao palácio dos papas. foi conduzido aos aposentos de Bento
XIII, que lhe fez o melhor acolhimento, e dissimulou, com grande esforço um
sorriso à vista daquele estranho hábito. Uma verdadeira intimidade se estabeleceu
entre eles, bem cedo o novo diplomata foi iniciado nos menores segredos do
conflito aberto já há bastante tempo. O humilde donato, homem de palavra,
comportou-se naquelas circunstâncias com a admirável habilidade, que o
distinguia: inteiramente entregue a Deus, durante os exercícios espirituais, todo
entregue também, quando era necessário, à questão pendente.
O tempo que não lhe reclamavam as sessões do conselho, ele o entregava á
oração e ao estudo. Diremos nós quanto Bonifácio Ferrer e ele foram felizes de se
reencontrar? Que não era, ai! na solidão! Que horas deliciosas o pai e o filho
passaram juntos, falando tanto das vantagens da vida contemplativa e de Porta
Coeli, tanto das tristezas do momento, da desordem das suas existências, decididos
no entanto um e outro a respeitar até ao fim a vontade do representante de Jesus
Cristo na pessoa de Bento XIII.
Estava-se em 1407. As negociações ainda que levadas de ambas as partes
com entusiasmo, não chegavam à união tão impacientemente esperada por todo o
mundo católico. Aranda estava em Avinhão já à alguns anos, suspirando pela cela,
perguntando-se a si mesmo se não devia renunciar a tudo para sempre, quando
foi subitamente chamado a Espanha. O rei de Aragão caminha a passos largos
para o seu fim, e vai morrer sem filhos. Desejoso de cortar a direito as intrigas dos
ambiciosos que se disputam já a coroa, desprezando os interesses da nação, ele
pensa em designar o homem da sua escolha, um sucessor que responda ao mesmo
tempo às esperanças do país. Mas, fora por medo, fora por escrúpulo, tendo por
outro lado questões mais graves a examinar, ele juntou em volta do seu leito de
morte os seus melhores conselheiros, entre os quais ele lamenta vivamente de não
contar o seu fiel Aranda. Não está ele em Porta Coeli! Um expresso o iria aí
buscar. Deverá pedir ao papa para se separar dele? O papa dificilmente o
permitirá. Faz-se ao menos uma tentativa, e alguns dias depois, o Irmão chega a
Barcelona, mesmo a tempo de fazer ao doente uma simples pergunta e prepará-lo
para deixar o mundo. «Senhor, diz ele, Vossa Majestade entende, quero crê-lo,
cortar a dificuldade em boa e rigorosa justiça, ou, noutros termos, assinalar à
atenção dos eleitores o candidato o mais próximo pelo sangue, da família real. —
Tal é o meu pensamento, tal é a minha vontade, responde o moribundo. — Nós a
respeitaremos, Senhor; vós podeis acreditar no vosso dedicado servidor.»
Após o que, o humilde religioso aborda o terreno da consciência. Sem ser
qualificado para exercer este género de ministério, ele fala ao rei do nada da vida
presente e das maravilhas do outro mundo, com um acento de fé que faz correr
bastantes lágrimas. É a linguagem autorizada dum homem antigamente possuidor
de uma fortunas das mais invejáveis, e morto, há doze anos, a todas as coisas de cá
de baixo. O moribundo presta um ouvido atento a estas graves considerações e,
depois de ter recebido os últimos sacramentos com pleno conhecimento, adormece
confiante sobre o coração do Rei dos reis.
Assim que, voltaram das exéquias os confidentes do defunto, acharam-se na
obrigação, de cumprir as suas últimas vontades. Reuniram os três parlamentos de
Aragão, de Valência e da Catalunha, composto de arcebispos, bispos e de dos
grandes de cada reino. Estes, depois de longos debates, nomeiam, em escrutínio
secreto, nove deputados que eles investem de plenos poderes com efeito de
proclamar o sucessor ao trono.
Fazer a história deste acto solene nos levaria demasiado longe. Será
suficiente dizer que, entre estes nove comissários, figuram Dom Bonifácio Ferrer
pelo reino de Valência, e Francisco de Aranda por Aragão. Foi dito, numa notícia
precedente, que o Reverendo Padre era, com o acordo de Bento XIII, retirado em
Espanha e que o capítulo geral tinha sido presidido por ele em Vale de Cristo.
Ora, nós lemos na carta deste capítulo uma nota mais ou menos assim: «Em
consideração do zelo que desenvolve Dom (sic) Francisco de Aranda ao serviço do
papado e da nossa ordem, os celebrantes dirão de sua intenção uma missa do
Espírito Santo com a oração Pretende; os não celebrantes recitarão os sete salmos
penitenciais, e os conversos trinta vezes o Pater noster e a Ave Maria.
Os delegados do parlamento, justamente orgulhosos do seu mandato,
muniram-se de todas as garantias convenientes a afastar, a sombra, de qualquer
suspeita. Quase se diria um conclave. Acrescentemos, em sua honra, que a oração
desempenhou um grande papel durante estas deliberações. Ao fim de oito dias, o
infante de Castela, Dom Fernando, foi nomeado rei de Aragão, com a unanimidade
dos sufrágios. Haviam cinco pretendentes. reconheceu-se, no país, que a honra
desta solução verdadeiramente inesperada vinha em grande parte do pobre monge,
cujo talento diplomático era proverbial. O Infante de Castela dirigiu-lhe as suas
felicitações e, em testemunho da sua simpatia, levou-o a Saragoça no dia em que
ele fez a sua entrada solene nesta cidade (1413).
Quase de imediato, o rei e o donato se dirigiram a Morella onde os esperava
Bento XIII, vindo expressamente para se avistar com o soberano sobre as medidas
a tomar com vista a pôr fim ao cisma. No seguimento desta íntima conferência, o
papa foi presidir o concilio de Perpignan, acompanhado do seu infatigável
secretário. De lá voltaram ao reino das Duas Secílias, onde se mantiveram até ao
começo do ano de 1417.
É então que o querido donado se atreve, uma última vez, a pedir repouso.
Os anos, — contava-os cerca de setenta e dois, — as austeridades de ordem
praticadas com um rigor perseverante, diversas enfermidades incuráveis
tornavam-lhe o trabalho difícil, as viagens mais penosas ainda. Bento XIII,
aceitando estas razões permite-lhe regressar à solidão, impondo-lhe assim mesmo,
em nome da obediência, a obrigação de usar alimentos gordos.
Para compreender a felicidade do humilde religioso, é preciso ter vivido
aquela vida agitada, diametralmente oposta á do claustro. Deixemo-lo nas alegrias
da cela e acrescentemos que este ano de 1417 viu restabelecer-se a união com a
eleição de Martinho VIII feita e promulgada pelo concílio de Constança.
O Irmão, assim que teve conhecimento do fim destas laboriosas disputas,
submeteu-se com rapidez ao papa legitimo. Não se esperava menos dele. Bem mais,
ele escreveu ao pontífice uma carta muito firme, pela qual ele o exortava a desistir
e reconhecer o novo bispo de Roma. Bento não querendo ouvir nada, o velho
donato insistiu. Razões, orações, lágrimas, tudo foi inútil.
O venerável septuagenário não saiu mais da casa durante os últimos vinte
anos da sua vida. Excelente preparação para a morte esta! Que felicidade para
todos os que foram buscar junto dele seja um conselho, seja uma palavra de
encorajamento! De uma bondade infatigável, sempre acessível, ele respondia aos
seculares que se desculpavam por perturbar os seus exercícios: «Mas, não, vós não
me interrompeis mais do que habitualmente; eu nunca deixo de rezar.»
efectivamente, a caridade, obrigando-o a dispersar-se, não interrompia a sua união
com Deus.
Sem ser director titulado, — uma vez que não quis nunca receber as santas
ordens, — ele lia muito, e a sua memória permaneceu fiel até ao fim, ele juntou um
verdadeiro tesouro que, apesar da sua humildade, enriquecia a sua conversação.
Ele redigia, durante o descanso prolongado, um bom numero de tratados
espirituais todos impregnados de unção e de sentido prático.

Noviço
20 de novembro

O IRMÃO AGOSTINHO PÉREZ


DONATO DO PAULAR

Agostinho Perez entra em boa hora na cartuxa do Paular. de condição


modesta, cristão sólido, mestre nos trabalhos do campo, foi recebido sem
dificuldade. Não temos motivos para nos arrependermos da sua admissão. Desde o
princípio, os oficiais compreenderam que a casa teria nele um servidor piedoso e
devotado.
Os nossos Irmãos — todos o sabem, — está dividido em duas categorias. Há
duma parte, os conversos com os seus votos, por outra parte, os donatos, ligados
simplesmente por uma promessa moral. Os primeiros, que são religiosos na plena
acepção da palavra, dependem, como tal, directamente da santa sé. Os segundos
permanecem livres para deixar a ordem, assim como a ordem pode voltar atrás
com os seus compromissos. Apesar de tudo isto, tanto de um lado como do outro, a
rotura não deve efectuar-se senão por motivos graves. O joven Pérez preenchendo
as condições requeridas pelos nossos estatutos foi admitido à doação depois de um
ano de noviciado. Dado este primeiro passo, ele seguia o ritmo da comunidade,
associado mais frequentemente à vida dos conversos, partilhando os seus
principais exercícios, com menos algumas obrigações, como as do oficio , do jejum,
da abstinência hebdomadária, e sobretudo as que decorrem dos votos.
O querido Irmão Agostinho — é assim que passaremos a chamá-lo, —
adaptou-se sem problemas às exigências da sua nova condição. Resistente à fatiga,
não se queixava nunca. Frequentemente contrariado no mundo, mal tratado
mesmo pelos seus camaradas ou por mestres pouco delicados, sentia-se à vontade
na casa do bom Deus. Educado na rude escola da pobreza, teria corado de
vergonha de se queixar do regime alimentar; em nenhum lugar até aí se tinha
encontrado tão abundantemente provido. Os deveres da sua vida cristã, enfim,
onde eram eles melhor cumpridos e mais fielmente observados? Nada faltava à sua
felicidade. Lia-se na sua fisionomia sempre sorridente; o tom habitual da sua
conversa dizia-o não menos eloquentemente. Os seus confrades procuravam com
ciúme a sua companhia; para quem trabalhasse sob as suas ordens, era como se
estivesse mais próximo do céu. Que tesouro para o Paular!
Os cinco anos de doação, que, nalguns casos, podem ser abreviados,
prolongavam-se algumas vezes ao critério do prior, quando por exemplo, o sujeito
não oferece nenhumas garantias para o futuro. Pergunta-se se o donato chegado ao
fim deste período deve tomar lugar entre os conversos. Nada o obriga, por assim
dizer. É uma questão a resolver entre ele e os superiores.
O bom Irmão Pérez, de quem não dissemos senão bem, era, sem nenhuma
dúvida uma dessas almas escolhidas que Nosso Senhor convida a subir mais alto. O
padre Prior não esperaria certamente o termo regulamentar da sua doação para
lhe fazer entrever as graças insignes que lhe estavam destinadas pela Providência.
O seu confessor ter-lhe-á falado no mesmo sentido e dissipado os seus escrúpulos.
Um e outro esbarraram com uma recusa formal. Vãmente tentaram vencer as suas
repugnâncias, expondo-lhe as imensas vantagens da profissão religiosa. como
resposta, o humilde Irmão contentava-se em dizer que, não tendo mais nada a
desejar neste mundo, ele solicitava o favor de morrer sob o hábito de donato.
Insistir não teria servido para nada. O Prior, diferindo este piedoso desejo, não
julgou ir contra os caminhos de Deus, bem ao contrário. Resolvida esta questão, o
Irmão Agostinho continuou ao serviço da casa, sem medir nem as suas forças, nem
os seus gostos pessoais. Tínhamos nele um desses homens íntegros, aos quais tudo
podemos confiar, e que atravessando indemnes as situações mais delicadas, onde
falharia uma virtude comum. Justamente nesse momento, era preciso um destes
tipos de integridade numa granja do mosteiro, situada quase sobre os muros de
Madrid. O nosso valente donato, foi posto à cabeça desta obediência que não era
sem perigo. Aberta aos passantes dos dois sexos, invadida, em certos dias, por
vagas de curiosos e de indigentes, o pobre Irmão encontrava-se em contacto
permanente com os seculares, constrangido em ver e ouvir uma quantidade de
coisas pouco edificantes, obrigado como consequência em exercer uma vigilância
permanente, a fim de permanecer digno do seu estado.
Digamos em sua honra, que, durante uma trintena de anos, não cometeu o
mais pequeno desvio. E nisso não há nada que nos deva surpreender. Depois de se
ter instalado numa modesta cela contígua à granja, mostrou-se em tudo e sempre
escravo do dever, de uma igualdade imperturbável, reservado no seu porte e na
sua linguagem, um tanto frio em relação aos seculares, cheio de compaixão pelos
pobres, guardando no meio de vai e vem contínuo, o justo equilíbrio onde se
encontra a perfeição. Se os negócios chamavam-no à vila, não lhe dedicava
rigorosamente senão o tempo necessário, e voltava calmo, recolhido, não tendo
perdido um só instante a lembrança da presença de Deus. Diríamo-lo saindo de
uma Tebaida. Naturalmente causou admiração na cidade e ganhou as simpatias da
população. Coisa mais espantosa, os altos dignatários, as primeiras famílias da
capital, cheias de admiração por ele, gostavam de o visitar na granja, de tal modo a
sua vista os confortava. O rei e a rainha, tendo sabido maravilhas com respeito ao
bom Irmão, fizeram-no ir à corte e ficaram profundamente edificados com esta
entrevista. Estas marcas de estima deixavam-no numa perfeita indiferença.
Habituado a colocar Deus por em cima de tudo, a ver a acção da Providência até
nos menores incidentes da vida, ele seguia o seu caminho com o olhar da alma fixo
nos bens eternos. Porquê preocupar-se com outra coisa, quando temos Deus por
nós e trabalhamos por ele?
O Irmão Agostinho, desde que sentiu as suas forças diminuírem, pediu um
pouco de repouso para se preparar para a morte. Não o podíamos recusar-lhe. De
volta ao Paular, continuou a edificar a comunidade até ao dia em que subiu ao céu
(28 janeiro de 1636).

Irmão regando
30 de novembro

O IRMÃO JOÃO DE NEA


PROFESSO DE PORTA COELI.

De Nea descendia de uma das famílias mais antigas do reino de Aragão. Os


seus pais iniciaram-no na piedade e deram-lhe uma educação digna do seu
nascimento. O pai estando de serviço na corte, aí introduziu naturalmente o seu
filho. Este bom jovem, de aspecto simpático, de maneiras distinguidas, tinha
conquistado a estima do soberano, este ligou-o à sua pessoa com a ideia de lhe
oferecer mais tarde um lugar no seu conselho privado.
No dia em que entrou na intimidade do rei, De Nea viu afastar-se um dos
seus melhores amigos, Thomas Sarzana, filho de um médico de Lucques, em Itália,
com o qual estava ligado desde os bancos do colégio. Estes dois adolescentes,
embora de condição diferente, tinham moralmente mais de um traço semelhante,
especialmente o amor ao dever e uma inflexível tendência ao bem.
Acabados os seus estudos, Sarzana teve de retomar o caminho do seu país.
Foi de ambas as pastes um verdadeiro desgosto. No momento dos adeuses,
juraram fidelidade para a vida e para a morte. Além disso, comprometeram-se
solenemente a ajudarem-se no futuro no sentido de que, se um deles conseguir
vencer na vida, o outro provavelmente menos feliz beneficiaria da situação do
companheiro. A fim de cimentarem a sua união, eles assistem à missa e repartem
entre si a santa hóstia, partida de propósito pelo celebrante. Lágrimas abundantes
misturam-se aos últimos abraços, as mãos fecham-se e os dois amigos tomam cada
um o seu caminho.
Parece que de Nea não se recomporá desta violenta sacudidela. É bem
verdade, que o seu trabalho quotidiano arranca-lhe os negros pensamentos que o
acometem. Mas Deus envenena para ele a taça das alegrias humanas. O
infortunado jovem desprende-se pouco a pouco das afeições da terra. Aspirações
abrasadoras por um ideal misterioso consomem-no. Por todo lado a sua alma
sofre; Ele não sabe como explicar estas novas emoções.
Não seria necessário entretanto imaginar que, mesmo nos mais belos dias
dos seus vinte anos, de Nea foi vítima deste mundo no seio do qual ele era
aplaudido; ele tinha o coração demasiado nobre, o espírito demasiado elevado,
para vegetar miseravelmente nos antros dos prazeres sensíveis. Que a graça fale o
suficientemente alto para dominar este ruído da terra, pertence somente a Deus.
No mesmo instante, à claridade duma luz muito viva, as dúvidas se
dissipam e uma calma completa invade-o; a sua decisão está tomada. Fortificado
com a decisão do seu director , que não coloca mais em dúvida a sua vocação, o
jovem cortesão parte imprevistamente e vai solicitar ao prior de Porta Coeli a
admissão na casa. Estávamos no ano de 1413.
Ver um homem da sua qualidade descer ao nível dos conversos não é um
fenómeno assim tão raro que valha a pena comentá-lo. Mas mesmo sendo
relativamente vulgar, não deixa de ter o seu lado de originalidade e de edificação,
porque testemunha uma humildade profunda. esta virtude existia solidamente
ancorada na alma do postulante, que ele não experimentou nenhuma repugnância
em se manter por toda a parte no último lugar. Nada o espantou do que
normalmente desorienta, no princípio, naturezas quebradas pela fatiga e os
trabalhos manuais. Penetrado do espírito do seu estado, nunca fez alarde dos seus
conhecimentos nem do seu passado. À primeira vista, seria tomado por um simples
camponês ou um vulgar operário. Duas coisas entretanto o traíam: o fogo do seu
olhar e a pureza da sua dicção. Apesar dos seus esforços, ele não pode nunca
desfazer-se nem de um nem do outro,
Chegado ao fim da sua provação, o Irmão João — é assim que nós o
chamaremos, daqui em diante, — consagra-se ao Senhor com uma emoção fácil de
compreender. Considera-se o mais feliz dos homens e bendiz o céu de ter retirado
da vida atribulada que levava na corte. O hábito reanima o coração, e este coração
ama com tanto mais força que ama Deus, acima de tudo. Neste bom Irmão, o amor
transfigurou os afectos de família. Os nomes dos seus pais, dos soberanos, dos seus
amigos são relembrados fielmente nos seus memento, pois não há dia que não reze
por eles.
Os oficiais de Porta Coeli têm as vistas sobre este fervoroso converso. Mas,
para não o expor demasiado ao grande dia, o prior deixou-o durante alguns anos
no vai e vêm das obediências. Dizemos o vai e vêm, porque, à diferença dos Irmãos
cujas ocupações são naturalmente indicadas pelo seu primeiro estado de vida, o
novo acabado de chegar não estava em nenhuma parte com posto fixo. Este lugar,
que não agradaria a toda a gente, tem ao menos a vantagem de quebrar a vontade.
Para uma alma ávida de perfeição, esta vantagem não é sem preço.
Dom Francisco Maresme, grandemente edificado com o comportamento do
Irmão de Nea, nomeia-o procurador da casa. Apressemo-nos em juntar que este
título não comporta aqui nem a gestão do temporal, nem a direcção espiritual dos
conversos. Mas, por haver variados processos pendentes, e, para se sair com honra,
era preciso um homem que tivesse qualidade para defender os interesses de Porta
Coeli, sem ser acessível às influências de fora. Este legista, tinham-no na pessoa do
ex cortesão que o rei tinha em alta estima. De Nea tomou os negócios nas mãos e
dirigiu-os com tanta sagacidade, que obteve êxito sem grandes esforços de
dialéctica.
Este sucesso inesperado colocou o bom Irmão em evidência. Justamente, a
cartuxa de Montalegre, esperava uma mão firme que consolidasse os alicerces.
Esta casa, fundada há pouco e em condições deploráveis, ameaçava desabar antes
da sua completa conclusão. Depois de ter feito as suas primeiras provas em Porta
Coeli, o Irmão de Nea pareceu ser o instrumento fornecido pela Providência. Tal
foi, pelo menos, o sentimento do capítulo geral (1423) que o enviou munido de
instruções sobre este escaldante terreno. Isto não podia ser, compreende-se, senão
a título de vigilante e de controlador. Missão delicada e cheia de escolhos! Para ele
o principal era ode se ater estritamente às ordens vindas da Grande Cartuxa. Foi o
que ele fez com uma destreza espantosa,
E desde o início, o lugar primitivo foi abandonado como insuficiente e, em
certos aspectos, pouco salubre. Uma outra localização, com uma vista para o mar,
foi adoptada., esse precisamente onde Montalegre está assente hoje. O novo plano
tendo recebido a aprovação do Padre Geral, os trabalhos caminharam com ritmo
sob o impulso do Irmão João, tanto mais que os senhores da região, o rei, a rainha,
o próprio papa, tomaram a peito secundar a obra mestre do converso de Porta
Coeli.
No momento em que ele menos pensava, de Nea foi enviado a Roma, onde
se debatiam interesses graves no que diz respeito à sua casa de profissão. O nosso
jurisconsulto abordou estas questões abstractas com a sua competência habitual e
deixou a corte pontifical maravilhada com o seu saber, e mais ainda com o seu
saber e de sua atitude profundamente religiosa.
Que foi feito depois de uma vintena de anos, do jovem Sarzana?
Recordamos a estreita união dos nossos dois estudantes. Ele também tinha feito o
seu caminho, mas por uma via totalmente diferente. Comprometido com a
clericatura, tinha-se ligado à pessoa do Beato Nicolau Albergati, cardeal-arcebispo
de Bolonha, que lhe tinha confiado a gestão da sua renda e a direcção do seu
pessoal. É nesta situação honrosa que o encontrou o seu velho camarada de colégio.
Se eles ficaram felizes de se ver, advinha-se. Chamado pouco depois a receber a
sucessão do seu augusto mestre, o cônego Sarzana fez questão de honra de seguir
as tradições do santo cartuxo. Este, para o recompensar do seu zelo, aparece-lhe
um dia prediz-lhe que será papa, já não faltando muito tempo. Foi o que
aconteceu.
O arcebispo de Bolonha, eleito à morte de Eugénio IV, tomou o nome de
Nicolau V. Lembrando-se imediatamente do compromisso pronunciado junto aos
pés dos altares e cimentado pela comunhão, ele nomeou o converso de Porta Coeli
núncio do reino de Aragão (28 maio 1448), sem tomar em conta que este título era
incompatível com a sua profissão religiosa. Nesse tempo, tais anomalias não
espantavam ninguém, antes pelo contrário. Mas melhor ainda. A este primeiro
título, o soberano pontífice juntou o de Colector da Câmara apostólica. Era fazer
demasiada honra ao pobre recluso.
De Nea tinha entrado em Montalegre há já vários anos. Ele tinha levado a
sua obra a bom termo, apoiado pela confiança e encorajamentos do Francisco
Maresme, tornado Prior da Cartuxa em 1437. Ao humilde converso cabe sem
contestação a glória de ter elevado esta esplêndida casa que, no momento em que
escrevemos estas linhas, está em vias de se repovoar. Faça o céu que ela cresça em
número e em méritos!
No decorrer destas emocionantes peripécias, o santo religioso tinha chegado
a uma extrema velhice. Esta vida que causou tanto ruído vai-se extinguir na
primeira ocasião. Ele teve disso o pressentimento, e pôs-se em situação, de
comparecer diante do juiz dos vivos e dos mortos. Não há senão o tempo de lhe
administrar o santo viático e as últimas unções. Fortificado pela visita de Nosso
Senhor, a sua alma escapa-se sem esforço respondendo às orações da agonia. Era o
vigésimo nono dia de outubro do ano de 1459.

Irmão pintor (fotografia)


12 de dezembro

O IRMÃO HIPÓLITO RAYMOND


PROFESSO DO VALE-SÃO-PEDRO

A santidade de um humilde converso, quase ignorado, pesa na balança de


Deus tanta e algumas vezes mais que a santidade de uma personagem insigne e de
um sábio de marca.
O Irmão Raymond, que morreu a meados do século XVII, foi uma
personalidade à parte. Não certamente que ele ambicionasse ser alguém; mas a
popularidade veio até ele, como os metais vão ao íman.
Era, em toda acepção da palavra, um desses bons Israelitas, nos quais, no
dizer do Salvador, não nem malícia, nem sombra de disfarce. Entrado jovem em
Vale-de-S. Pedro, ele levou uma vida pura e edificante, não procurando que Deus
em todas as coisas. Tornado professo, tendeu com um redobrado ardor para a
perfeição, desconfiando sempre muito do extraordinário. Um religioso preocupado
consigo mesmo cai no ridículo e torna-se insuportável. Simplicidade, ainda e
sempre simplicidade!
Encarregado do cuidado dos doentes, o bom Irmão entrega-se sem
descanso. Onde há uma dor a tratar, ele oferece os seus serviços, sem calcular o
cansaço. Esta dedicação absoluta, realizada sem segundas intenções, torna-se o seu
carácter distintivo. Quando lhe confiarem mais tarde a guarda da porta com a
repartição das esmolas, ele se entregará com não menos zelo ao serviço dos pobres.
Os infelizes, os pequenos, os anciãos encontrá-lo-ão sempre pronto a os ouvir e a os
socorrer. No dia dos seus funerais, eles todos estavam lá, com lágrimas, dizendo à
sua maneira que eles tinham acabado de perder um verdadeiro amigo.
Onde o Irmão Raymond distribuía a mãos cheias o tesouro da sua caridade,
isso foi junto aos seus aspirantes, os donatos e os jovens professos entregues ao
cuidado da sua experiência e do seu zelo. Estas atribuições, se bem que diferiam
essencialmente das funções do mestre de noviços, pois não implicavam nem a
confissão nem a direcção, não são menos de uma importância capital. Isto é tão
verdade que, mesmo aqui nós podemos dizer: «Tanto vale o educador, tanto vale o
discípulo.» Os novos recrutas guardam invariavelmente a marca do molde onde
foram lançados. Que excelente impulso dará um Irmão mestre, ávido ele mesmo de
perfeição, se, para falar uma linguagem bem comum, ele não vê os seus
semelhantes senão através do peito sagrado do Salvador!
Tal foi o excelente converso de quem nós falamos. O espírito sobrenatural
superabundava nele; transparecia visivelmente nas suas palavras, nos seus actos,
até no seu exterior. «Quando me ocupo de bagatelas, dizia ele, retiro-me para o
fundo do meu coração, escutando o bastante para que ninguém se aperceba do
meu retiro.» Ele conservou a mesma atitude em Mont-Dieu, onde ele passou os
últimos anos da sua vida.
Desde sempre o bravo Raymond tinha-se distinguido por uma profunda
devoção a são José. Ora, uma capela, erigida há pouco em honra do esposo de
Maria, não esperava para ser aberta ao culto, senão uma bênção litúrgica. Ao
aproximar-se o 19 de março (1639), o Irmão Hipólito pergunta humildemente que
se acabasse com essa formalidade. Com efeito e segundo se crê, o prior abençoará
o oratório na vigília da festa e aí dirá a missa no dia seguinte.
Este por uma razão ou por outra, não julga conveniente, de fazer caso, do
pedido do Irmão. Depois, ele cede vencido pelas suas reiteradas instâncias. Tudo se
passa conforme ao programa.
No dia 18, o santuário é benzido e, a 19, de manhã o prior dispõe-se a subir
ao altar. Já, à excepção da casula, revestiu os seus paramentos; espera-se nada
mais os círios. É justamente o Irmão Raymond de que os deve trazer. Mas ele
tomou alguns minutos para se confessar no capítulo; o que o atrasou naturalmente.
Querendo ganhar o tempo perdido, força o passo e chega ofegante a meio caminho
da colina. Lá, ele para retomar folgo e, apenas sentado, dá o seu ultimo suspiro nos
braços de um converso que o prior inquieto vinha acabava de enviar ao seu
encontro. Em vão se tenta fazer voltar o calor a este corpo quebrantado. É
demasiado tarde. O celebrante, que tinha descido, recitou algumas orações e
remontou imediatamente para oferecer os santos mistérios pelo defunto.

Irmão pintor (fotografia)

16 de dezembro

O IRMÃO JUDOQUE DE MIGRODE


PROFESSO DE BRUXELAS.

Este bom Irmão não foi um letrado, no verdadeiro sentido da palavra. Para
quê, de resto, lhe teria servido possuir vastos conhecimentos? O converso, aplicado
uma parte do dia ao trabalho material, estaria embaraçado nos seus movimentos
por um conjunto de conhecimentos puramente científico. Isto não quer dizer que
uma modesta soma de conhecimentos seja inútil. Todos os dias, alguns dos nossos
Irmãos tiram um excelente partido da cultura intelectual que trouxeram para o
claustro. Esses no entanto, farão bem, em não procurarem de modo algum tirarem
disso vantagem, porque estariam expostos a irem por caminho errado.
Mas há uma ciência que não está proibida a ninguém, é a ciência dos santos.
O mais ignorante dos homens pode pretende-la tanto como um mestre em teologia.
Somente que isti seja sob o controle de uma sábia direcção, porque, aqui ainda, é
fácil de se extraviar.
Por este ponto de vista, Judoque de Migrode ressaltava pelo comum. O
Espírito Santo tinha-lhe ensinado menos a penetrar os segredos da alta
espiritualidade do que a humilhar-se em todas as ocasiões. Desde a sua entrada na
cartuxa, mostrou-se irrepreensível , simples e dócil como uma criança de um dia.
Cheio de zelo pelo seu progresso, aspirava às graças mais excelentes e fez rápidos
progressos nas sendas espirituais. Era tão pobre, desta pobreza canonizada no
Evangelho, que não somente não teve jamais o mínimo apego às coisas supérfluas,
mas ele estimava-se feliz por lhe faltar o necessário. Ele tirava partido de tudo, de
trapos de roupa e tecido, com uma habilidade que não deixaria mal um alfaiate de
profissão.
Depois disto, é necessário falar das aptidões que o querido Irmão empregou
nas diferentes obediências por onde ele passou sucessivamente? Entendido nos
trabalhos, apto para todos os ofícios, ele tinha o dom de se prodigalizar, de estar
por assim dizer em toda a parte ao mesmo tempo, sem nunca se precipitar. Quem
quer que tivesse necessidade de um conselho, dum auxílio de mão, encontrava-o
solícito, sempre sorridente, feliz de dar prazer, guardando invariavelmente, no
meio deste vai e vêm contínuo, a lembrança da presença de Deus. Enquanto os seus
braços trabalhavam, o seu espírito ocupava-se do estudo da perfeição.
Ele teria ido bem longe neste caminho, se tivesse tido uma longa carreira.
Mas, esgotado antes do tempo pelo cansaço e mais ainda pelo fogo do amor divino,
baixou insensivelmente sem se desligar do seu Tudo. «Ah! dizia ele, eu teria
querido dar a Deus a minha vida pouco a pouco, em pormenor; ele não me deu
tempo. Que o seu santo nome seja bendito!» Apagou-se nestas piedosas disposições,
no vigésimo quarto dia de fevereiro do ano 1612.
A comunidade guardou muito tempo a recordação deste simples fim, tão
resoluto e tão confiante.

Irmão pintor (fotografia)


20 de dezembro

O IRMÃO PEDRO HÉRON


PROFESSO DA GRANDE CARTUXA

Pedro Héron era o irmão do religioso deste apelido, morto na Grande


Cartuxa, sob o hábito de converso, a 13 de fevereiro de 1636.
A família abastada e profundamente crente morava em Paris. Deus,
introduzindo estas duas belas almas na via dos conselhos evangélicos,
recompensava as virtudes patriarcais deste lar onde a religião e os pobres estavam
em destaque. Sem desfrutar o que se chama uma fortuna, os pais possuíam um
certo haver, cuja melhor parte se esvaía diariamente, no meio dos indigentes do
bairro.
Enquanto que o pai estava entregue às suas ocupações para alimentar o seu
modesto pecúlio, a mãe fazia o oficio de uma Irmã da caridade. Os seus filhos
subiam com ela, aquelas escadas sujas, estreitas, confinadas a esses redutos mal
ventilados, onde jazem os deserdados do mundo em quem a fé saúda como
membros de Jesus Cristo. A recordação destas austeras lições nunca mais se
apagou da memória dos dois irmãos e susteve-os nas horas críticas da adolescência.
Entretanto, o mais velho partiu para a Grande Cartuxa onde encontrou,
como enfermeiro a ocasião de se entregar sem reservas, não somente aos religiosos
e aos empregados da casa, mas também a todos os doentes que procuravam os seus
conhecimentos farmacêuticos. O mais novo, tendo ficado em Paris gastava-se por
dois. Estava demasiadamente penetrado do espírito cristão, para não se sentir bem
entre os humildes da família humana. Todas as suas reservas se iam em esmolas. A
visita dos pobres e dos doentes ocupava uma parte do seu tempo. Um grande
número de boas obras escapava aos olhares da multidão; algumas entretanto — e
não das menos brilhantes — assinalavam o valente jovem à admiração pessoas
honestas.
Durante esse tempo, um trabalho operava-se no fundo da sua alma.
Atraído, ele também, pelo claustro, ia frequentemente à cartuxa. Essa atmosfera
vivificada repousava-o e retemperava o seu zelo. E mais, ele trazia numerosos
detalhes relativos ao regime dos conversos; os pais como é natural, deleitavam-se e
viviam, por assim dizer, a vida do seu bem amado trânsfuga.
Inflamado por estes piedosos relatos, pressionado além disso mais do que
nunca de se envolver nesta milícia onde o seu irmão faz excelente figura, Pedro
decide-se, a resolver tudo de uma vez . Mas previamente, vai consultar o seu prior.
Este não o impede, longe disso, de seguir o seu irmão mais velho. «Apenas, diz ele,
se me derdes ouvidos, ficarás no meio de nós. Os vossos pais envelhecem; não
aumentais o seu desgosto. Eles farão este sacrifício, disso não tenho dúvida. Mas
como ficarão consolados de vos saber à sua porta, de poder conversar convosco
sobre o passado e do querido ausente!»
O prior fazia-se, sem o saber, de intérprete do pai e da mãe. Estes, com
efeito, concordaram no mesmo sentido, logo que o seu filho falou de os deixar.
«Longe de nós o pensamento de vos disputar ao bom Deus! Muito felizes somos
nós de ver os nossos filhos chamados ao seu serviço! mas não é suficiente de ter
perdido o primeiro —pois nos o veremos mais neste mundo? Que o segundo, ao
menos, habite perto de nós!» E as lágrimas corriam abundantemente. «A vossa
desolação não me admira, responde ele. Eu sofro de vos ver sofrer. Se me decido a
afastar-me, é porque isso é do meu maior interesse. Ficando em Paris, quase no
meio da minha família, teria ainda um pé no mundo, e isso não é bom para um
principiante. Desde já, resignai-vos e suportai que eu vá me juntar ao meu irmão.
Só tenho a ganhar vivendo perto dele.»
O pai e a mãe apelando para a sua fé resignam-se, e o jovem aspirante toma
rapidamente o caminho da Grande Cartuxa. Dom Juste Perrot recebe-o com
bondade e augura um bom futuro. Muito parecidos nas feições, os dois irmãos
moralmente parecem saídos do mesmo molde. O mais novo vai então, seguir os
passos do mais velho. O Irmão Pedro será a reprodução exacta do Irmão Denys.
A rigor, o jovem, adornado de uma modesta cultura literária, teria sido
admitido entre os religiosos do claustro. No começo, o Reverendo Padre, tinha
pensado nisso. A oposição do candidato tirou-lhe toda a vontade de insistir.
O recém chegado mostrou-se, em tudo e por toda a parte o emulo do seu
irmão e, como ele, se bem que noutro terreno, encontra-se no ambiente onde
cresceu. Encarregado da porta, durante longos anos, está diariamente a distribuir
socorro em espécie e em bens, os quais nunca vão sem avisos próprios para
encorajar esta boa gente. Da forma como procede, é fácil de ver que não é mais
noviço na arte de fazer o bem.
O bom Irmão foi encarregado, durante trinta e oito anos, da fabricação do
pão do altar. A longo prazo, este trabalho estragou-lhe a vista e terminou mesmo
por lha tirar de todo. Ele suportou esta rude prova com uma admirável paciência.
A todos aqueles que lhe dirigiam uma palavra de simpatia, contentava-se em
responder, o sorriso nos lábios: «O santo nome do Senhor seja bendito! Que a
minha doença sela para sua glória! Não desejo outra coisa.» Um confrade
reprovava-lhe um dia, em termos amáveis, de ter continuado firme apesar da
fatiga dos seus olhos: «Vós deveríeis ter suspendido aquele serviço, desde a
aparição dos primeiros sintomas do mal. — Eu nunca teria feito isso, disse ele,
mesmo que tivesse a certeza de ficar cego. Eu não me queixo. Não ver a terra ajuda
a ver melhor o céu.»
Neste abandono completo nas mãos de Deus, a força e a alegria da sua vida,
o humilde converso juntava uma grande simplicidade. Apagou-se sem dores, em 25
de outubro de 1675.

Bto Guilherme
Acabou-se de se realizar este trabalho
na Cartuxa de Scala Coeli
no dia 6 de agosto de 2008,
festa da Transfiguração do Senhor.

São Bruno, por Frei Miguel

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