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EXEMPLARES
de
IRMÃOS
CARTUXOS
ilustradas
com quadros do
Irmão Miguel Guedes de Sousa
restaurador de Scala Coeli em 1960
BEATO GUILHERME
3 de Janeiro
Originário de Navarra, este bom Irmão revelou, desde tenra idade, dons
excelentes e um gosto pronunciado pela piedade. Admirava-se nele uma grande
pureza de alma e um amor muito terno para com a Augusta Mãe de Deus.
Enquanto criança, a sua candura angélica conquistou-lhe a afeição de todos. Mais
tarde as suas qualidades sólidas e o seu carácter já formado granjearam-lhe a
estima dos homens sérios.
Depois de ter terminado o seu curso de medicina, fixou-se na qualidade de
cirurgião no hospital de Saragoça a fim de aí dar regularmente consultas gratuitas.
Do exercício da caridade, o nosso jovem doutor passou, com mais zelo ainda, à
contemplação das coisas divinas. A sua fé crescia de uma forma maravilhosa.
Mas só o pensar nos perigos que corria a sua virtude no meio de mundo
lançou-o em cruéis angústias. Querendo a todo o preço salvar a sua alma, deixou
bruscamente o seu país e retirou-se para a cartuxa de Val-de-Cristo, no reino de
Valença. Bem longe, como se vê, da sua família e das suas relações; mas por outro
lado mais perto de Deus.
A sua primeira educação, o posto que tinha ocupado na sociedade, o
prestígio ligado ao seu nome, tudo devia, assim parece, abrir-lhe a porta do
claustro e a entrada do santuário. Mas ele não se tinha jamais fixado na ideia de
ser padre. A grandeza das obrigações do sacerdócio paralisavam-no de medo.
Felicíssimo seria ele de viver a vida mais humilde dos conversos. Abriu-se
lealmente com o prior. Este, tocado pela sua franqueza assim como pela sua
generosidade, acolheu-o com solicitude e deu-lhe o santo hábito (1592).
O ano seguinte, o querido Irmão pronunciou os seus votos, no dia da
Imaculada Conceição, comovido até às lágrimas da coincidência que lhe permitia
de se abandonar de corpo e alma entre as mãos da Virgem sem mácula. Nada
saberia exprimir o amor que ele tinha a Maria. Nome bendito que tinha
constantemente nos lábios. O pensamento da Rainha do céu não o deixava por
assim dizer. As suas meditações, as suas leituras, as suas orações jaculatórias
tinham todas por objecto as grandezas e as misericórdias da Mãe de Deus. Quem
poderia dizer quantas Ave Marias em vinte e quatro horas ele desfiava? Com que
piedosos transportes ele cantava o Tota pulchra es, em louvor da Imaculada!
Todas as vezes que o seu ofício de enfermeiro o chamava ao claustro,
parava diante da porta do capítulo, por cima da qual se achava uma estátua da
Santa Virgem. Lá ele dava livre curso à sua piedade filial, sem negligenciar, no
entanto, os deveres da sua obediência. Estes piedosos colóquios repetiam-se tão
frequentemente que bastantes anos depois deles, o pavimento tinha ainda a marca
dos seus joelhos.
Será de espantar, que esta boa Mãe cumule o seu devoto servidor de favores
quase inauditos? Ele deve, em particular, à sua especial protecção o nunca ter
conhecido as lutas profundamente humilhantes que são apanágio de todo o filho de
Adão, e de deixar esta terra de exílio com a inocência do seu baptismo.
Uma noite em que o santo homem estava em oração na cela do prior, D.
João Bellot, a Mãe de Deus apareceu-lhe; mas Ela não dirigiu a palavra senão ao
Irmão converso, e isto por três vezes. O boato espalhou-se logo na comunidade sem
espantar ninguém. No entanto todos repararam que longe de se envaidecer com
esta atenção delicada de Maria, aquele que tinha sido objecto de tal graça, a partir
de aí, tornou-se marcadamente mais humilde. Era com uma perfeita sinceridade
que ele se proclamava o mais miserável dos homens e o último dos pecadores.
Como enfermeiro, o Irmão João foi admirável de dedicação e de paciência.
Ele afrontava todas as fatigas e todos os perigos, sempre que se tratava de
procurar um alivio ou uma consolação a um dos seus irmãos. Os dons do espírito e
do coração que lhe tinham granjeado tantas simpatias no hospital de Saragoça, ele
empregou-os com não menos zelo, junto aos doentes de Val-de-Cristo. Por isso,
como lhe estavam afeiçoados!
Era com efeito, às orações do santo, mais que à ciência do doutor, que a voz
pública atribuía as curas efectuadas pelos seus cuidados.
Um cartuxo de uma cartuxa vizinha (Porta Coeli) encontrava-se nas
últimas, os seus confrades em desespero pediam ao prior para fazer vir Oloberri,
cujo nome era conhecido nos quatro cantos do reino. Este acorre, dirige-se à cela
do moribundo, e com um sorriso nos lábios: «Coragem, venerável Padre, diz ele.
Recuperareis a saúde. - Pensais vós isso? Respondeu o doente com uma voz meio
apagada. O meu estômago recusa todo o alimento. - Não importa, rebate o
enfermeiro. Dizei-me. que vos agradaria tomar neste momento? - Aquilo que vos
aprouver. «Imediatamente o Irmão preparou uma sopa à qual junta um calmante.
Apenas o doente a tomou, experimenta uma melhora muito sensível. No dia
seguinte estava de pé e retomava a vida comum.
O eco destas curas maravilhosas, ao mesmo tempo que decuplicava o
número das consultas, merecia ao seu piedoso autor o reconhecimento de todo o
país. A humildade do nosso taumaturgo, impressionava mais do que saberíamos
dizer. Ele bem que tentou mudar este estado de coisas. Tão logo não usava senão
medicamentos vulgares sobre a propriedade dos quais era impossível se enganar.
Tão logo sob o pretexto de não molestar a delicadeza de um doente, de suavizar o
amargor de um remédio, ele alterava os ingredientes, persuadido que seriam
menos eficazes. Vãs combinações! Os pacientes curavam-se com e contra tudo.
O sinal da cruz, traçado pela mão do santo converso sobre um órgão ou um
membro sofredor, retirava instantaneamente a dor, por mais aguda que fosse.
Frequentemente, antes que o doente abrisse a boca, o enfermeiro assinalava a
parte do corpo dolorida e expunha os sintomas da afecção que ele padecia. Mais
ainda, iluminado de uma luz sobrenatural, acontecia-lhe penetrar nas profundezas
da alma e de desvelar as misérias mais íntimas.
A reputação do homem de Deus crescia de ano para ano. Bastantes vezes ele
tentou subtrair-se a esta multidão de importunos. Sabiam que ele era de uma
extrema solicitude. Cada um usava e abusava. As pessoas que o tinham consultado
levavam para contar, maravilhas. «É um santo, diziam de todas as partes; um
santo que lê nas consciências e que nos dá concelhos de alto gabarito».
Mas depois de quarenta e oito anos de profissão, forçoso foi ao velho
enfermeiro parar na prática do seu zelo. Uma dolorosa doença, teve-o, um ano
inteiro, colado ao leito. Ele que tinha executado, como que a brincar, tantas curas
notáveis, teve que se resignar ao martírio da impotência, martírio crucificante
para um homem que desenvolveu uma tão grande actividade. Este martírio, ele
suportou-o com essa calma, essa resignação piedosa que ele sabia tão
discretamente inspirar aos moribundos.
Pouco tempo antes de expirar, o homem de Deus foi favorecido com uma
visão. Um religioso falecido há alguns dias, apareceu-lhe, apressando-o a
acompanhá-lo na glória. Imediatamente o bom Irmão entoa o Nunc dimitis, e a sua
alma, rompendo a última ligação que o prendia à terra, tomou voo e foi repousar
em Deus dos trabalhos do exílio. Estávamos nos começos do ano de 1641.
18 de Janeiro
30 de Janeiro
Silêncio !
5 de fevereiro
Irmãos no coro
19 de Fevereiro
Irmãos no refeitório
26 de Março
13 de Abril
14 de abril
Oração no trabalho
15 de abril
Irmão hortelão
24 de abril
Este bom Irmão era professo da Grande Cartuxa, tendo renovado os seus
votos em Scala Dei, logo que chegou ali como hóspede.
Foi um homem de grande virtude, um santo em toda a acepção da palavra.
Não é por acaso, que nós consignamos aqui esta nota, em seu louvor. Ela não tem
nada de exagerado. Dois ou três factos o provarão.
Um dia em que ele se dirigia à casa de baixo, um bando de demónios, sob a
forma de crianças alegres, acorrem ao seu encontro, gritando com toda a força:
«Oh! o santo, o santo! Venham ver o santo.» Chegado à cela, o bom Irmão tomou
uma corrente de ferro e, flagelou-se até sangrar. Os santos! Eis os que fazem os
santos. Receita infalível contra a soberba.
Quando estava encarregado da obediência da cozinha, ele tinha o costume
de se escapar, cada manhã, durante a missa conventual. Aonde acorria ele? Ia à
igreja, ao som do sino do Sanctus, para aí adorar a divina Eucaristia nas mãos do
sacerdote. Não podendo aperceber-se do altar da porta do coro dos Irmãos onde se
mantinha ajoelhado, foi mais de uma vez elevado pelos anjos.
Certo dia em que o trabalho o retinha na cozinha, prostrou-se no momento
da consagração e viu distintamente a santa hóstia sobre o altar.
A sua morte foi daquelas que todo o religioso pode invejar. Ela chegou no
dia 24 de abril de 1439.
Irmãos agricultores
2 de maio
Este bom Irmão tinha atingido a idade de noventa anos, e contava sessenta
anos de profissão, quando adormeceu no sono dos justos.
Tinha nascido em 1563 em Villa, nos arredores de Noyon, de pais
mediocremente fornecidos de riquezas da terra, mas liberalmente avantajados do
lado da virtude. Esta boa gente era temente a Deus, amavam-no com todo o seu
coração e serviam-no com todas as suas forças. Há algum tesouro comparável a
este!
A sua educação foi a de um filho do povo. Mas no que diz respeito à
inteligência e à piedade, não cedia a ninguém.
Admitido por volta dos trinta anos, na cartuxa de Noyon, deixava entrever,
desde o primeiro dia, o que se podia esperar dele. Simples como uma criança, de
uma candura angélica, de uma regularidade exemplar, de uma rectidão sem
desvios, de um carácter sólido, se bem que um pouco rude, caminhava na via do
bem com um passo atento, guiado em tudo pelo sentimento do dever.
De um outro ponto de vista, o bom Irmão possuía qualidades extremamente
preciosas. A par da ciência infusa da economia doméstica, a não menos notável, de
se lembrar de todos os detalhes, fazia a admiração de todos. O que entrava no seu
espírito, não saía mais. Tinha no mesmo grau, a memória dos homens e das coisas.
O activo e o passivo da casa, as rendas da propriedade, a questão do gado, o
ordenado dos criados, o salário dos trabalhadores, as compras e vendas, tudo
estava matematicamente classificado na sua memória. Ele abordava estes assuntos
tão difíceis, com a precisão e segurança dum homem, que não tem senão uma
obediência a gerir. Chamavam-lhe por brincadeira, o registo vivo do mosteiro.
Com efeito, ele estava sempre em situação de responder, em qualquer altura ás
perguntas e às dúvidas que lhe apresentavam os oficiais. Jamais o bom Irmão era
apanhado desprevenido. Não que ele ficasse vaidoso. Antes se espantava de se ver
abordado de dez lados ao mesmo tempo, tanto as dificuldades lhe pareciam pouco
sérias.
O que, com efeito realçava as suas qualidades naturais e lhes dobrava o
valor eram a sua grande simplicidade, a sua bonomia sorridente, a sua igualdade
de humor, a unção comunicativa que respirava a sua piedade.
Nele, uma devoção sobrepujava tudo o resto: o santo rosário. Exceptuadas
as horas do dia em que trabalhava com um utensílio na mão, encontravam-no
invariavelmente armado do terço. A Ave Maria era por assim dizer, a sua única
oração. Quando ele não falava com os homens, conversava com a Santíssima
Virgem, dedilhando a sua coroa. E isto, sem respeitos humanos, à vista e com o
conhecimento da comunidade, operários e criados. A tal ponto que a maior parte
não ousava tirá-lo destes colóquios. Mas ele suspendia-os sem esforço, desde que o
dever o chamava a uma obediência ou a uma oficina.
Não são geralmente os bons religiosos que receiam os Padres visitadores. Na
ocasião da sua passagem, cada um pode perguntar o que lhe reserva o escrutínio, e
deve preparar-se a receber as censuras e as correcções que lhe são infligidas pelos
delegados do capítulo geral. Se bem que a sua conduta fosse em tudo
irrepreensível, o pobre Irmão Lhommel tremia em todos os seus membros e
chorava grossas lágrimas, quando respondia às perguntas dos veneráveis Padres.
Os mais ricos em dons espirituais são os mais conscientes da sua pobreza. Possuem
os méritos sem o saber.
O santo ancião suportou, no fim da sua carreira, horríveis sofrimentos;
suportou-os com a calma inalterável que foi um dos seus traços salientes desta
simpática figura. Sentindo o aproximar-se da crise suprema, recebeu os
sacramentos e dispôs-se às últimas orações. Logo, começou a agonia; durou doze
longas horas. Apertando o seu crucifixo com uma mão, e na outra a imagem da
rainha do céu, o moribundo entrou num encantamento delicioso, prelúdio do
êxtase eterno. (24 de março de 1653)
.
Irmãos no espairecimento
10 de maio
Justo de nome, ele foi-o também de facto. Ele viu o dia em Espanha. Os seus
pais eram pobres cultivadores, privados de dons de fortuna, mas ricos de bens do
céu. Deus, que se compraz em exaltar os humildes, lançou sobre ele, um olhar de
predilecção. Dócil aos ensinamentos e exemplos da sua família, o pequeno fez-se
notar pela sua modéstia e pela sua piedade. Ocupado no pastoreio dos rebanhos,
passava os dias nos campos e entregava-se à oração, antes de lhe conhecer os
segredos.
Coisa curiosa, a cartuxa de Porta Coeli, situada a uma boa jornada da lá,
falava-lhe ao coração. Cada vez que ele pensava nisso ou ouvia pronunciar o seu
nome, ele experimentava um movimento indefensível. Empurrado pela curiosidade
ou, para melhor dizer, por um toque da graça, ele dirige o seu gado nessa direcção,
sem se preocupar grandemente nas angustias que vai causar as pais. Ele chega à
hora de matinas, sobre os muros do mosteiro. O som do sino encanta-o e atrai-o.
Depois de ter confiado o seu rebanho a um companheiro, ele chama o porteiro.
«Deixai-me, diz ele deixai-me entrar. - O que é que vos traz a esta hora? - Eu quero
ver, eu quero entender o que se passa aqui.» O jovem pastor assiste ao ofício e sai
transformado.
Pouco tempo depois, volta e pede o santo hábito. Deram-lhe e viram logo de
imediato que o bom Irmão é da raça destas almas simples que vão direitos a Deus e
não recuam nunca em presença do dever. acham-se os últimos de todos, nunca se
queixam, acham ao contrário que a sua pobre pessoa é alvo de demasiadas
atenções. Duma obediência perfeita, passa de um trabalho a outro, ao menor sinal
dos superiores e aplica-se em toda a parte com o mesmo entusiasmo. tendo-se
tornado muito hábil como ferreiro, devia-lhe ter custado mais de uma vez mudar
esta obediência por uma outra pela qual ele não sentia nem aptidão nem gosto. A
forja, o jardim, o trabalho da terra, etc, tudo lhe era indiferente. Menos os
humildes contam para eles próprios, mais Deus se ocupa deles e, encontrando-os
suaves e maleáveis, mortos a tudo, faz com eles grandes coisas.
No seguimento de uma imprudência, o bom Irmão contraiu uma doença
grave que o conduziu prematuramente ao repouso eterno. A sua morte teve lugar
no dia 4 de setembro de 1528.
Irmão pastor
17 de maio
Irmão sapateiro
21 maio
Postulante
26 de maio
14 de junho
Navarra foi a sua pátria de origem. Dócil às lições que recebeu sob o tecto
paterno, a criança mostrava, apesar da vivacidade da idade, um natural feliz, uma
grande inocência e um atractivo marcado pela piedade. Animado, desde muito
cedo pelo desejo por penetrar os segredos das ciências, apaixonou-se pelas
matemáticas. Empregado, como contabilista nos escritórios da marinha em
Madrid, atraiu a estima dos seus chefes, tanto pela regularidade do seu serviço
como pelo encanto do seu trato. Coisa bastante rara neste meio, ele tirava do seu
salário o que ele chamava a parte dos pobres.
Mas esta situação, se bem que honorífica e lucrativa, não respondia em
absoluto às necessidades inatas do seu coração. Dominado pelo pensamento da
vida religiosa, colocou-se esta questão: «O que é que vale mais o mundo ou o
claustro?» questão importuna, que ele não pode abafar e à qual ele não quer
responder. A luta foi longa. É preciso espantar-se? Há sem dúvida o apelo de Deus
e o atractivo da vocação. mas é uma rude prova, para um homem maduro de
deixar sem transição os seus hábitos, e de se vergar às exigências duma regra no
entusiasmo do seu vigésimo ano. Entretanto a voz do Espírito Santo não cessava
de retinir nos seus ouvidos: «Tudo passa. Só eu permaneço. Porquê regatear tanto
tempo? è preciso ser meu custe o que custar.» Num instante, por um desses golpes
familiares à graça, Villanueva, sente-se mais abrasado de amor, desgostoso como
nunca do século, aspirando à solidão, ao silêncio, à pobreza monástica.
Admitido como aspirante na cartuxa de Sevilha, recebe o hábito e faz a
profissão solene, a 6 de janeiro de 1620. Raramente uma transformação foi mais
repentina e também mais completa. Encarregado da cozinha, – da todas as
obediências a mais escravizante e, aquela que oferece a um principiante, mais
ocasiões de mostrar o que valerá mais tarde – o bom Irmão torna-se
irreconhecível. Ele tão vivo, tão enfatuado da sua pequena pessoa; ele, que pegava
fogo ao mais pequeno choque, que não suportava a mais pequena contradição , não
o deixa transparecer o menor sinal de impaciência. Vêmo-lo sempre igual, calmo,
moderado, quase até à frieza. À primeira vista, dir-se-ia de mármore. Em relação
aos seus ajudantes, – sabe-se como por vezes são activos nesta obediência – ele é
cheio de atenções, dum tacto requintado, nem uma queixa assoma aos seus lábios.
E, no entanto, é lhe forçoso algumas vezes, elevar a voz. A hora regulamentar
aproxima-se; uma inadvertência ampliada por um mal entendido, vai lançar a
confusão na comunidade, gerar descontentamento. O cozinheiro vigia, despacha-se
calmamente e, com um hábil golpe de mão, consegue pôr tudo em ordem. Toda a
gente nota a atitude do querido Irmão na presença dos religiosos, dos padres
sobretudo. Bem diferente da de certos conversos que se esquecem algumas vezes
deste ponto, ele não perde nunca de vista o carácter sagrado de que estão
investidos e que os torna superiores aos anjos. Ele é de manhã à noite conduzido
por puro espírito de fé, vivendo em Deus, com Deus, por Deus. O segredo de
encontrar Deus tanto numa cozinha, como no oratório ou ao pé do tabernáculo, é
de levar por toda a parte muito amor.
Para reparar as longas horas que o trabalho lhe roubam à oração, o Irmão
João prejudica o seu sono e crê bem fazê-lo. As almas simples deixam-se penetrar
dificilmente deste principio elementar: Trabalhar, é rezar. Como, sem isso,
praticar a palavra do Salvador no Evangelho: É necessário rezar sem interrupção?
O intrépido converso não perde nenhuma ocasião de praticar a penitência.
Ardendo de sede, recusa-se toda a espécie refrescamento. No que diz respeito ao
alimento, ele toma apenas o estritamente necessário. Ele traz de ordinário um
cilício eriçado com pontas de aço. De que atenções ele envolve os doentes! Com que
cuidado, com que delicadeza, ele prepara os seus pequenos nadas, de que se goza
um pobre enfermo retido numa cela! Falaremos dos seus actos heróicos de
caridade! Ele atira-se um dia aos pés dum religioso atingido numa perna por uma
úlcera purulenta. Lambe as suas chagas sanguinolentas, e engole sem hesitar este
terrível vírus.
O santo Irmão edificou a comunidade até ao fim da sua vida. Prevenido do
dia, senão mesmo da hora da sua morte, ele dispôs todas as coisas com a sua calma
habitual e a sua admirável piedade, de forma que se encontrasse pronto a
responder ao apelo do soberano juiz. Tinha a idade de sessenta anos, quando
trocou o exílio pela pátria. (18 de maio 1654).
Hábito antigo de Donato
16 de junho
Donato
18 de junho
Silêncio !
19 de Junho
Donato
15 de julho
Postulante
20 de Julho
Ir. Sapateiro
2 de agosto
PROFESSO DE MIRAFLORES
Contemplando a Criação
3 de setembro
Noviço
14 de setembro
Irmão idoso
3 de outubro
6 de outubro
Irmão cozinheiro
21 de outubro
O IRMÃO MARTINEZ
PROFESSO DO PAULAR
Irmão tractorista
28 de outubro
1 de novembro
É uma vida extremamente curiosa a deste bom Irmão que se apagou com a
idade de noventa e dois anos., sob o humilde hábito de donato.
Veio ao mundo na vila de Teruel, por volta do ano de 1346. A família do seu
pai e a de sua mãe nascida em 1346. A família de seu pai e a de sua mãe – Pérez de
seu nome – figuravam entre as mais distinguidas do país. Das três crianças que
nasceram desta união, as duas primeiras conseguiram pelo trabalho uma situação
deveras bastante honrada. O último penetrou, ele também, mas num meio onde,
normalmente, não se colhe palmas de celebridade. Antes de o ver a trabalhar sob
as librés religiosas, acompanhá-lo-emos a través das mil e uma peripécias da sua
original carreira.
A sua primeira educação, dirigida para o bem, sob o controle dos pais e
com o concurso de hábeis mestres, não deixou ninguém a desejar. Dotado, de
resto, de dons requintados, e de adjectivos que dão tanto encanto à juventude, a
criança tornou-se um adolescente de grande distinção, destinada a ter mais tarde
um papel importante na sociedade.
O seu pai introduziu na corte, onde ele mesmo tinha as suas entradas, e
apresentou-o ao rei de Aragão, Pedro IV, persuadido que lhe abria das honras.
Francisco ganhou logo de início, o favor do monarca que o nomeou primeiro
camareiro do seu filho mais novo. Há morte do soberano, o herdeiro da coroa teve
de expedir um corpo da armada na Sicília para abafar um começo de insurreição.
Ele colocou o seu irmão à cabeça das tropas, mas conservou perto de si o brilhante
escudeiro ao qual ele confiou a educação do seu filho mais velho ainda criança.
Missão delicada para um jovem de dezasseis anos apenas!
Inteiramente entregue à sua tarefa, o mestre cultivou o espírito e o coração
do seu aluno com uma competência e uma maturidade surpreendentes., o que lhe
valeu mais de uma vez os encorajamentos dos príncipes e o colocou bastante em
evidência. Estas duas existências acabaram mesmo por não fazer senão uma, de tal
maneira tinham pontos de contacto. Os dias eram partilhados entre a vida de
família e lições do preceptor. A estas últimas no entanto cabia a melhor parte. À
noite, os seus quartos eram contíguos.
Ora, uma manhã, contrariamente ao seu hábito a criança não responde ao
chamamento. Surpreendido e nada escutar, Aranda penetra no apartamento e
encontra um cadáver ainda quente. A emoção é indescritível e passou de boca em
boca aos bairros mais afastados da capital. Procederam imediatamente a um
inquérito. Os habitantes do palácio sofreram um interrogatório minucioso;
Aranda especialmente foi apertado com perguntas. Apesar de tudo, esta morte
trágica permanece envolvida de mistério. Entretanto o jovem é preso e, se bem que
nenhuma suspeita fundada caísse sobre ele, foi encarcerado na cidadela de
Morella. Dura escola que o devia colocar um dia na possessão do soberano bem!
Dura escola, dizemos nós! Com efeito, pode-se conceber uma reviravolta
mais inesperada e completa? Ontem no cume das distinções; hoje, no último
degrau da escala social! Sentado ontem à mesa dum rei; atirado hoje para o fundo
de uma masmorra! Ontem, adulado pela massa dos favoritos; hoje, colocado na
fileira dos celerados! Em que direcção tende a sorte dum homem! Para que tende a
sua ruína moral! Haveria aqui, para um espírito versado nas coisas da fé, matéria
de reflexão.
Profundamente abatido, mas resignado, – consciente da sua inocência, – o
nosso prisioneiro adora, sem compreender, as vias da Providência e beija a mão
que lhe bate. «Ah! se diz ele, o mundo é feito assim mesmo! Promete muito. Que dá
ele, afinal? A sorte sorria-me. A minha família orgulhosa mostrava-me o futuro
sob as mais belas cores. Quantos dos meus amigos invejavam a minha situação! E
eis este belo edifício desmoronado de alto a baixo! Em que me vou tornar? Só vós o
sabeis, Senhor; isso me basta. Abandono-me de corpo e alma aos vossos
impenetráveis desígnios. Tudo o que posso prometer, – faço o juramento. – é que,
se vós me dais a liberdade, o mundo não contará mais comigo entre os seus
adoradores. Irei encerrar-me num claustro.»
Entretanto, o rei morreu subitamente, de um acidente de caça (1395). Por
falta de herdeiro directo, o seu irmão mais novo, Martinho, outrora, aluno de
Aranda, subiu ao trono. Mas, como estava retido em Sicília, Dona Maria, sua
esposa, foi proclamada rainha de Aragão. Reconhecida pelos serviços prestados,
em tempos, pelo escudeiro de Teruel, ela quebrou as suas cadeias e o nomeia
membro do conselho privado: dupla iniciativa que recebe inteira aprovação do
soberano. A reparação era completa, tanto mais que era necessária. À primeira
hora, – hora de excitação, – tinha-se compreendido esta encarceração preventiva.
Depois da conclusão do inquérito, era mais que inexplicável. Assim, a libertação do
prisioneiro foi um alivio para todas as consciências.
Reabilitado na opinião e reintegrado na corte, Aranda não vai perder de
vista as sensatas reflexões que lhe sugeriu a sua estadia em Morella? Agora que a
fortuna lhe sorri, o mundo não lhe aparece, sem dúvida, sob tão sombrias cores. E,
de facto, uma voz diz-lhe — esta voz do mundo que dá invariavelmente a mesma
nota: «Cortar a tua carreira, lançares-te no desconhecido, deixar o certo pelo
incerto, é uma loucura. Já pensastes nisso? E se os cartuxos te rejeitam; ou se, uma
vez admitido, não aguentas esse regime, como será a tua situação? A corte
evidentemente te estará fechada.»
Aranda é demasiado sério, e viu a sociedade demasiado perto, para cair na
armadilha. Um cavalheiro não têm duas palavras e, quando é a Deus que deu a
sua, esta palavra é duplamente sagrada. Por essa altura, dirigiu-se a Barcelona
onde lhe chamam os negócios da família. Cheio do grande projecto que ele
alimenta, entra um dia numa igreja, aproxima-se duma capela dedicada a Santa
Ana e as mãos apoiadas sobre o altar, renova o juramento de romper com a corte e
de ir encerrar-se à cartuxa de Porta Coeli para passar o resto dos seus dias sob o
hábito de donato. Isto acontecia em 1396.
Pouco tempo depois, escreve ao prior desta casa, suplicando-lhe de o
receber como o último dos seus filhos. Para conseguir a bênção do céu sobre o seu
pedido, comprometeu-se a construir inteiramente à sua custa um claustro e sete
celas. Estas celas seriam mobiladas por ele e providas do material necessário ás
ocupações dos seus habitantes. Mais ainda, uma renda anual de cinquenta escudos
de oro, que seria entregue, perto do Natal, nas mãos do prior, e dirigida às
necessidades mais urgentes do mosteiro. A resposta não se fez esperar; era
inteiramente afirmativa.
«Creio bem, dirá o leitor estranho às coisas da religião. Haverá um só
convento que não abra todas as suas portas a um candidato munido de tais peças?»
Aí está uma lenda que entretêm o mundo dos romancistas. Mas nós não
escrevemos para esse público de vista curta. Passemos. Bem sabem, os nossos
religiosos que se, segundo os nossos estatutos, está proibido ao prior, sob severas
penas, de exigir seja o que seja dum postulante, não lhe está interdito, no entanto,
de aceitar um donativo de mão a mão. Voltemos ao nosso gentil-homem.
Fixado o seu futuro, restava-lhe despedir-se dos soberanos. É, segundo ele, o
lado delicado da questão. O rei e a rainha tomando conhecimento desta notícia,
não podem evitar um movimento de surpresa misturado de tristeza. depois de
trinta e dois anos que este bravo Aranda entrou para a corte, todos os príncipes lhe
votara uma afeição quase fraternal; todos se fizeram à ideia de o ver acabar no
meio deles. Nenhum está mais emudecido que o soberano. Não é sob os olhos e, por
assim dizer, na escola do seu preceptor, que cresceu e recolheu as lições aonde se
inspira todos os dias na gestão dos interesses do país? Também quantas objecções,
quantos afectuosos reparos caiem desses dois corações partidos e se confundem no
meio dum dilúvio de lágrimas! E ele respondeu com uma voz entrecortada de
soluços: «O afecto ás vossas augustas pessoas, foi-me concedido desde há muito
tempo. O que eu aí fui buscar de força moral, no decurso do meu frequente
cativeiro, só Deus o sabe. A vossa desolação testemunha a sinceridade da vossa
amizade; os vossos gemidos comovem-me até ao fundo da alma. Só Deus o sabe.
Quereis então que resista ao chamamento da graça? Tudo me indica para a vida
do claustro. Separando-me de vós, eu estou certo, tanto quanto se pode estar, de
cumprir um dever de consciência. Se o sacrifício que estou pensando fazer fosse
obra da minha vontade, não o faria certamente. Mas, estai descansados, a
separação não é esquecimento. Ao contrário, quanto mais pertencemos a Deus,
mais pertencemos àqueles que amamos cá em baixo. Lá todo entregue às minhas
santas ocupações, eu vos trarei, mais ainda em meu coração. Longe das vaidades
do mundo, estranho aos negócios, não cessarei de rezar pela conservação de Vossas
Majestades e pela prosperidade do reino, — o que eu tenho de mais caro, neste
mundo.»
As coisas devem, cremos nós, ter-se passado mais ou menos assim. O que
renunciamos a traduzir, é a emoção que explodiu de uma parte e de outra no
momento onde, com o adeus final se trocaram os últimos olhares cheios de
lágrimas.
Aranda tinha cinquenta e dois anos, quando franqueou a entrada da Porta-
do-Céu. Para ele, era penetrar no vestíbulo do paraíso. Chegado ao porto,
expande-se em termos comovidos e exclamou: «Que acções de graças não tenho eu
de vos dar, Senhor, por me terdes introduzido nesta santa morada! É então ao pé
do vosso tabernáculo que os meus dias vão decorrer, daqui em diante. É suficiente,
para reconhecer este favor, de fazer Vos a oferenda da minha pobre pessoa sob o
jugo da regra da São Bruno? Porque lamentaria eu aquilo que deixei? Tudo isso
não é nada em comparação daquilo que encontrei, ó meu Deus.»
Ele tinha, recordamo-lo, pedido expressamente de permanecer na classe dos
donatos, quer dizer entre os menores da casa. Sem falar do claustro ao qual ele
nunca jamais ousou pertencer, ele afastou para longe a ideia de se juntar aos
conversos. A doação pura e simples era o seu sonho. As suas aspirações as mais
intimas não se levantavam mais alto. Trabalhador da última hora, ele queria viver
ignorado, apesar de que a sua experiência de vida, a sua educação, os seus
conhecimentos o tornavam apto a todos os cargos. A Providência reservava-lhe
cruéis desilusões.
A condição de donatos difere em muitos pontos do estado de converso.
Estes, com efeito, graças à profissão, são verdadeiros religiosos, enquanto que os
outros não o serão jamais. Segue-se, que a formação destes últimos não reclama
nem os mesmos cuidados nem a mesma profundidade espiritual. Entretanto todo o
candidato à doação é submetido a uma prova de um ano. Durante estes doze
meses, que podem ser prorrogados , à vontade do prior, o noviço donato
experimenta de algum modo as suas forças psíquicas e morais. Iniciado pouco a
pouco na vida comum, ele está brevemente em condições de ver se esta existência
responde aos seus gostos, às suas necessidades e os superiores, de seu lado, são
chamados a pronunciar-se com conhecimento de causa por, ou contra a sua
admissão. Paralelamente a este trabalho, o noviço persegue um outro mais
importante. Feito já mestra nas ciências humanas, deve aprender o a b c do
catecismo religioso, saber que o estado e o hábito não nos santificam em nada, se
não nos aplicamos a adquirir uma grande humildade de espírito, um amor sincero
de abjecção, uma perfeita renúncia à nossa própria vontade, mesmo nas acções
santas.
O nosso aspirante teve a boa sorte de cair nas mãos de um homem famoso,
cujo nome saiu mais de uma vez da nossa pena. Queremos falar de Bonifácio
Ferrer. Entrado também ele nesta casa, à idade de quarenta e um anos, acabava
ele de pronunciar os seus votos, quando o nosso futuro donato debutou como
postulante. Antes de tomar o governo de Porta Coeli, para de lá passar à Grande
Cartuxa, o novo professo foi encarregado, além da gestão do temporal, da direcção
dos Irmãos.
Não o seguiremos no exercício desta função, do qual seria supérfluo fazer
ressaltar a sua importância. Nos bastará dizer que, logo que foi investido do
hábito, Francisco Aranda entregou-se de todo o coração ao trabalho, sem nunca
transigir; ele que não gostava nem dos meio termos, nem da lentidão. «Falai, meu
venerável Padre, diz ele, sem considerar quem eu sou, nem donde venho. Estou
preparado para sofrer. Habituado que estava a seguir os meus caprichos e a fazer,
pouco mais ou menos a minha vontade, vai-me, assim o penso custar muito. Que
importa o sofrimento a uma alma que coloca em Deus, os cuidados do seu futuro!
Pedi-me pois tudo que vos agradar. Com o socorro da graça, encontrar me eis
dócil como uma criança.»
Ele cumpriu a palavra. A extrema pureza das suas intenções, a delicadeza
da sua consciência, o cuidado com que ele vigia toda a sua conduta, aquele
recolhimento habitual e, tão profundo que não pode, sem esforço, distrair o seu
espírito da meditação da manhã, essa generosidade constante em presença do
sacrifício, este amor de Deus que tende sem cessar a uma união mais íntima, tais
são os traços desta viril figura. O tempo não fará mais que realçar isso. Um noviço
não podia oferecer melhores garantias. Portanto foi admitido à doação sem a mais
pequena sombra de dificuldade.
A partir desse dia, o bom Irmão passou por uma série de incidentes
bastante curiosos, de que teríamos o direito de nos espantar, se não soubéssemos
que ele nunca se afastou, do controle da obediência. Eis, de resto, as grandes linhas
do programa, ao qual, ele teve de se sujeitar e isto segundo as instruções formais
que lhe enviou o Reverendo Padre, Guillaume de Raynaud e que foram
confirmadas rapidamente, depois por Bonifácio Ferrer. Ainda que donato,
ocupava uma cela no claustro, com a faculdade de sair, de tempos a tempos, para
prestar ajuda aos conversos. Ele seguia os religiosos do coro, e cantava, em dias de
festa, a primeira lição. Afim de qu pudesse seguir exactamente as cerimónias,
tinha-se adaptado um capuz ao seu fato — apêndice que não existia então para os
conversos. No refeitório, onde ele estava misturado com os religiosos, . ele lia, na
sua vez. Admitido às deliberações capitulares, tinha direito de voto. Enfim, não era
excluído nem das recreações nem do passeio semanal. Este conjunto, como se vê,
constituía uma espécie de vida mista, em relação à vida dos religiosos de coro e à
dos conversos: existência singular, é preciso confessar, mas querida e regulada, até
aos menores detalhes, pela autoridade superiora.
De qualquer maneira, por muito vastos que fossem os seus privilégios, o
querido Irmão não era religioso. Faltava-lhe aquilo sem o qual a alma não pode
tornar-se, a «coisa» do Senhor, a sua propriedade autêntica; absoluta; faltava-lhe o
selo da profissão. Este favor inesperado veio brevemente colocar fim, não só
precisamente às suas inspirações íntimas, mas ao que ele teria desejado, se tivesse
sonhado com outra coisa que a doação pura e simples. A cerimónia teve lugar,
como é costume, durante a missa conventual.
Apesar de tudo, nada mudou, nem o seu nome, nem o seu título. Apenas,
não foi designado mais que, por esta denominação geral: o donato, como se ele
fosse o único na casa. Por toda a parte, de resto, chamavam-no o donato de Porta
Coeli; porque, — apressamo-nos a dizê-lo, ele adquiriu, em pouco tempo, uma
grande notoriedade nas províncias da ordem. Como foi isso? Vamos dizê-lo tão
sucintamente quanto possível.
Os tempos eram difíceis nos primeiros anos do século XV. A Igreja dividida
pelo cisma atravessava uma das crises mais agudas da sua história. Havia então
dois Papas, tendo cada um os seus partidários, o de Roma e o de Avinhão. As
ordens religiosas não podiam menos que seguir o Pontífice reconhecido pela
respectiva nacionalidade. Os cartuxos lançados na corrente agruparam-se eles
também sob a obediência dum ou doutro, segundo eram franceses ou espanhóis,
alemães ou italianos.
Bonifácio Ferrer, absolutamente devotado a Bento XIII, já antes da sua
entrada em Porta Coeli, permaneceu-lhe fiel depois da sua elevação ao priorado da
Grande Cartuxa. O soberano Pontífice, que o sabia hábil jurisconsulto e religioso
de marca, chamou-o para perto de si e fê-lo seu conselheiro íntimo, não o deixando
senão de tempos a tempos voltar ao seu lugar. O Reverendo Padre teria tudo
sacrificado para retomar o caminho do deserto, mas foi-lhe forçoso obedecer e
prolongar a sua estadia em Avinhão.
Não contente de reter no seu palácio o Padre Geral em pessoa, Bento XIII
ordenou-lhe que mandasse chamar, imediatamente, o célebre Aranda,
Acrescentemos que este último era pessoalmente conhecido do papa. No tempo em
que ele vivia na corte de Aragão, ele tinha sido enviado em missão extraordinária
junto do Vigário de Jesus Cristo. Ele tinha manifestado, nessa circunstância, tanta
ciência jurídica e um talento tão ponderado, que Bento quis tê-lo debaixo de mão,
tanto mais que, ele tinha sabido, de Bonifácio Ferrer, os detalhes mais edificantes,
sobre os começos do querido Irmão na carreira monástica.
Este, na recepção da mensagem pontifícia experimentou um movimento de
surpresa. «Como, disse ele, o Santo Padre digna-se ainda de se lembrar do seu
pobre servidor! E, agora ele que me sabe encerrado numa cartuxa, não teme
tornar a lançar-me em pleno mar político , onde , ai de mim! experimentei mais de
um naufrágio. — Basta de recriminações, meu bom Irmão, disse-lhe o prior. Em
presença de uma ordem vinda de tão alto, vós deveis vos inclinar e tomar hoje
mesmo o caminho de França. Deus esteja convosco! Eu vos abençoo; parti.» O
Irmão afastou-se do berço da sua vida religiosa, com o coração oprimido, pronto
no entanto a todos os sacrífícios, mesmo ao de morrer longe da cela.
Apenas chegado ao palácio dos papas. foi conduzido aos aposentos de Bento
XIII, que lhe fez o melhor acolhimento, e dissimulou, com grande esforço um
sorriso à vista daquele estranho hábito. Uma verdadeira intimidade se estabeleceu
entre eles, bem cedo o novo diplomata foi iniciado nos menores segredos do
conflito aberto já há bastante tempo. O humilde donato, homem de palavra,
comportou-se naquelas circunstâncias com a admirável habilidade, que o
distinguia: inteiramente entregue a Deus, durante os exercícios espirituais, todo
entregue também, quando era necessário, à questão pendente.
O tempo que não lhe reclamavam as sessões do conselho, ele o entregava á
oração e ao estudo. Diremos nós quanto Bonifácio Ferrer e ele foram felizes de se
reencontrar? Que não era, ai! na solidão! Que horas deliciosas o pai e o filho
passaram juntos, falando tanto das vantagens da vida contemplativa e de Porta
Coeli, tanto das tristezas do momento, da desordem das suas existências, decididos
no entanto um e outro a respeitar até ao fim a vontade do representante de Jesus
Cristo na pessoa de Bento XIII.
Estava-se em 1407. As negociações ainda que levadas de ambas as partes
com entusiasmo, não chegavam à união tão impacientemente esperada por todo o
mundo católico. Aranda estava em Avinhão já à alguns anos, suspirando pela cela,
perguntando-se a si mesmo se não devia renunciar a tudo para sempre, quando
foi subitamente chamado a Espanha. O rei de Aragão caminha a passos largos
para o seu fim, e vai morrer sem filhos. Desejoso de cortar a direito as intrigas dos
ambiciosos que se disputam já a coroa, desprezando os interesses da nação, ele
pensa em designar o homem da sua escolha, um sucessor que responda ao mesmo
tempo às esperanças do país. Mas, fora por medo, fora por escrúpulo, tendo por
outro lado questões mais graves a examinar, ele juntou em volta do seu leito de
morte os seus melhores conselheiros, entre os quais ele lamenta vivamente de não
contar o seu fiel Aranda. Não está ele em Porta Coeli! Um expresso o iria aí
buscar. Deverá pedir ao papa para se separar dele? O papa dificilmente o
permitirá. Faz-se ao menos uma tentativa, e alguns dias depois, o Irmão chega a
Barcelona, mesmo a tempo de fazer ao doente uma simples pergunta e prepará-lo
para deixar o mundo. «Senhor, diz ele, Vossa Majestade entende, quero crê-lo,
cortar a dificuldade em boa e rigorosa justiça, ou, noutros termos, assinalar à
atenção dos eleitores o candidato o mais próximo pelo sangue, da família real. —
Tal é o meu pensamento, tal é a minha vontade, responde o moribundo. — Nós a
respeitaremos, Senhor; vós podeis acreditar no vosso dedicado servidor.»
Após o que, o humilde religioso aborda o terreno da consciência. Sem ser
qualificado para exercer este género de ministério, ele fala ao rei do nada da vida
presente e das maravilhas do outro mundo, com um acento de fé que faz correr
bastantes lágrimas. É a linguagem autorizada dum homem antigamente possuidor
de uma fortunas das mais invejáveis, e morto, há doze anos, a todas as coisas de cá
de baixo. O moribundo presta um ouvido atento a estas graves considerações e,
depois de ter recebido os últimos sacramentos com pleno conhecimento, adormece
confiante sobre o coração do Rei dos reis.
Assim que, voltaram das exéquias os confidentes do defunto, acharam-se na
obrigação, de cumprir as suas últimas vontades. Reuniram os três parlamentos de
Aragão, de Valência e da Catalunha, composto de arcebispos, bispos e de dos
grandes de cada reino. Estes, depois de longos debates, nomeiam, em escrutínio
secreto, nove deputados que eles investem de plenos poderes com efeito de
proclamar o sucessor ao trono.
Fazer a história deste acto solene nos levaria demasiado longe. Será
suficiente dizer que, entre estes nove comissários, figuram Dom Bonifácio Ferrer
pelo reino de Valência, e Francisco de Aranda por Aragão. Foi dito, numa notícia
precedente, que o Reverendo Padre era, com o acordo de Bento XIII, retirado em
Espanha e que o capítulo geral tinha sido presidido por ele em Vale de Cristo.
Ora, nós lemos na carta deste capítulo uma nota mais ou menos assim: «Em
consideração do zelo que desenvolve Dom (sic) Francisco de Aranda ao serviço do
papado e da nossa ordem, os celebrantes dirão de sua intenção uma missa do
Espírito Santo com a oração Pretende; os não celebrantes recitarão os sete salmos
penitenciais, e os conversos trinta vezes o Pater noster e a Ave Maria.
Os delegados do parlamento, justamente orgulhosos do seu mandato,
muniram-se de todas as garantias convenientes a afastar, a sombra, de qualquer
suspeita. Quase se diria um conclave. Acrescentemos, em sua honra, que a oração
desempenhou um grande papel durante estas deliberações. Ao fim de oito dias, o
infante de Castela, Dom Fernando, foi nomeado rei de Aragão, com a unanimidade
dos sufrágios. Haviam cinco pretendentes. reconheceu-se, no país, que a honra
desta solução verdadeiramente inesperada vinha em grande parte do pobre monge,
cujo talento diplomático era proverbial. O Infante de Castela dirigiu-lhe as suas
felicitações e, em testemunho da sua simpatia, levou-o a Saragoça no dia em que
ele fez a sua entrada solene nesta cidade (1413).
Quase de imediato, o rei e o donato se dirigiram a Morella onde os esperava
Bento XIII, vindo expressamente para se avistar com o soberano sobre as medidas
a tomar com vista a pôr fim ao cisma. No seguimento desta íntima conferência, o
papa foi presidir o concilio de Perpignan, acompanhado do seu infatigável
secretário. De lá voltaram ao reino das Duas Secílias, onde se mantiveram até ao
começo do ano de 1417.
É então que o querido donado se atreve, uma última vez, a pedir repouso.
Os anos, — contava-os cerca de setenta e dois, — as austeridades de ordem
praticadas com um rigor perseverante, diversas enfermidades incuráveis
tornavam-lhe o trabalho difícil, as viagens mais penosas ainda. Bento XIII,
aceitando estas razões permite-lhe regressar à solidão, impondo-lhe assim mesmo,
em nome da obediência, a obrigação de usar alimentos gordos.
Para compreender a felicidade do humilde religioso, é preciso ter vivido
aquela vida agitada, diametralmente oposta á do claustro. Deixemo-lo nas alegrias
da cela e acrescentemos que este ano de 1417 viu restabelecer-se a união com a
eleição de Martinho VIII feita e promulgada pelo concílio de Constança.
O Irmão, assim que teve conhecimento do fim destas laboriosas disputas,
submeteu-se com rapidez ao papa legitimo. Não se esperava menos dele. Bem mais,
ele escreveu ao pontífice uma carta muito firme, pela qual ele o exortava a desistir
e reconhecer o novo bispo de Roma. Bento não querendo ouvir nada, o velho
donato insistiu. Razões, orações, lágrimas, tudo foi inútil.
O venerável septuagenário não saiu mais da casa durante os últimos vinte
anos da sua vida. Excelente preparação para a morte esta! Que felicidade para
todos os que foram buscar junto dele seja um conselho, seja uma palavra de
encorajamento! De uma bondade infatigável, sempre acessível, ele respondia aos
seculares que se desculpavam por perturbar os seus exercícios: «Mas, não, vós não
me interrompeis mais do que habitualmente; eu nunca deixo de rezar.»
efectivamente, a caridade, obrigando-o a dispersar-se, não interrompia a sua união
com Deus.
Sem ser director titulado, — uma vez que não quis nunca receber as santas
ordens, — ele lia muito, e a sua memória permaneceu fiel até ao fim, ele juntou um
verdadeiro tesouro que, apesar da sua humildade, enriquecia a sua conversação.
Ele redigia, durante o descanso prolongado, um bom numero de tratados
espirituais todos impregnados de unção e de sentido prático.
Noviço
20 de novembro
Irmão regando
30 de novembro
16 de dezembro
Este bom Irmão não foi um letrado, no verdadeiro sentido da palavra. Para
quê, de resto, lhe teria servido possuir vastos conhecimentos? O converso, aplicado
uma parte do dia ao trabalho material, estaria embaraçado nos seus movimentos
por um conjunto de conhecimentos puramente científico. Isto não quer dizer que
uma modesta soma de conhecimentos seja inútil. Todos os dias, alguns dos nossos
Irmãos tiram um excelente partido da cultura intelectual que trouxeram para o
claustro. Esses no entanto, farão bem, em não procurarem de modo algum tirarem
disso vantagem, porque estariam expostos a irem por caminho errado.
Mas há uma ciência que não está proibida a ninguém, é a ciência dos santos.
O mais ignorante dos homens pode pretende-la tanto como um mestre em teologia.
Somente que isti seja sob o controle de uma sábia direcção, porque, aqui ainda, é
fácil de se extraviar.
Por este ponto de vista, Judoque de Migrode ressaltava pelo comum. O
Espírito Santo tinha-lhe ensinado menos a penetrar os segredos da alta
espiritualidade do que a humilhar-se em todas as ocasiões. Desde a sua entrada na
cartuxa, mostrou-se irrepreensível , simples e dócil como uma criança de um dia.
Cheio de zelo pelo seu progresso, aspirava às graças mais excelentes e fez rápidos
progressos nas sendas espirituais. Era tão pobre, desta pobreza canonizada no
Evangelho, que não somente não teve jamais o mínimo apego às coisas supérfluas,
mas ele estimava-se feliz por lhe faltar o necessário. Ele tirava partido de tudo, de
trapos de roupa e tecido, com uma habilidade que não deixaria mal um alfaiate de
profissão.
Depois disto, é necessário falar das aptidões que o querido Irmão empregou
nas diferentes obediências por onde ele passou sucessivamente? Entendido nos
trabalhos, apto para todos os ofícios, ele tinha o dom de se prodigalizar, de estar
por assim dizer em toda a parte ao mesmo tempo, sem nunca se precipitar. Quem
quer que tivesse necessidade de um conselho, dum auxílio de mão, encontrava-o
solícito, sempre sorridente, feliz de dar prazer, guardando invariavelmente, no
meio deste vai e vêm contínuo, a lembrança da presença de Deus. Enquanto os seus
braços trabalhavam, o seu espírito ocupava-se do estudo da perfeição.
Ele teria ido bem longe neste caminho, se tivesse tido uma longa carreira.
Mas, esgotado antes do tempo pelo cansaço e mais ainda pelo fogo do amor divino,
baixou insensivelmente sem se desligar do seu Tudo. «Ah! dizia ele, eu teria
querido dar a Deus a minha vida pouco a pouco, em pormenor; ele não me deu
tempo. Que o seu santo nome seja bendito!» Apagou-se nestas piedosas disposições,
no vigésimo quarto dia de fevereiro do ano 1612.
A comunidade guardou muito tempo a recordação deste simples fim, tão
resoluto e tão confiante.
Bto Guilherme
Acabou-se de se realizar este trabalho
na Cartuxa de Scala Coeli
no dia 6 de agosto de 2008,
festa da Transfiguração do Senhor.