Canadá, Chile, Equador, Colômbia, Alemanha e Israel já
fizeram alterações legislativas do tipo. Essa é, inclusive, uma recomendação do relatório do Painel de Alto Nível do secretário-geral das Nações Unidas, me disse Jorge Bermudez, médico e chefe do Departamento de Política de Medicamentos e Assistência Farmacêutica da Fundação Oswaldo Cruz. Mas só agora, depois de um ano de pandemia, é que o Brasil começa a avançar nesse debate. O primeiro PL, o da Câmara, foi apresentado no dia 2 de abril de 2020, quando ainda achávamos que a quarentena duraria 40 dias e só 84 pessoas tinham morrido. E ali ficou. Enquanto o projeto pairava sobre a mesa de algum burocrata e as tratativas para a vacina esbarravam na incompetência e no descaso do governo federal, a indústria farmacêutica começou a se mexer. Três associações que representam as empresas enviaram ofícios ao ex- presidente da Câmara, Rodrigo Maia, se manifestando contra o projeto de lei. A argumentação da indústria repete a fórmula de outros debates sobre acesso ao conhecimento. Diz que a quebra de patentes não facilitará o acesso aos remédios, que dará insegurança jurídica e que comprometerá a ciência e a inovação no Brasil – resultando, em um cenário extremo, na fuga desse setor do país. Dramático. A Associação Brasileira de Propriedade Intelectual afirmou que o argumento de que a quebra de patentes facilitaria o acesso “carece de veracidade”, porque “não existe nesse momento de pandemia nenhuma inovação em se tratando de insumos farmacêuticos ativos” e que o “licenciamento compulsório não promove a transferência do conhecimento para acelerar a produção”. A Interfarma, Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa, argumenta na mesma linha: diz que a justificativa para o projeto de lei “baseia-se numa suposição”, porque a maior parte dos possíveis tratamentos para a covid-19 “está associada a moléculas antigas e, portanto, não estariam sujeitos à proteção por patente”. Mas vai além: diz que a patente é um mecanismo necessário para “criar incentivos econômicos para pesquisa e desenvolvimento de novos tratamentos”. O cenário seria catastrófico: “projetos de lei como os aqui mencionados resultam em um risco de desestimular, não somente o setor de fármacos, mas outros setores produtivos, que também possuem pedidos de patentes no Brasil. Caso o país dê indícios de não respeitar a proteção à inovação, haverá fuga de grandes investimentos em pesquisa e inovação”. “É uma premissa falsa”, me disse Bermudez, comentando a argumentação das farmacêuticas. Para ele, é preciso diferenciar custo e preço dos produtos. “Cada vez mais os preços elevados das tecnologias mais novas não representam recuperação de custos em pesquisa e desenvolvimento, mas recuperação de outros investimentos. As patentes representam monopólios que permitem arbitrar preços elevados, muitas vezes abusivos”. Além disso, foi dinheiro público que financiou boa parte das vacinas. Três exemplos: o governo dos EUA financiou a vacina BioNtech/Pfizer com uma injeção de US$ 550 milhões. Já a Moderna recebeu US$ 955 milhões. E a Oxford/AstraZeneca, mais de US$ 1,2 bilhão do governo do Reino Unido. Seria justo que dinheiro público financiasse conhecimento público, né? Mas não. Essa injeção de grana vai garantir muito lucro para as farmacêuticas e para seus financiadores, sobretudo fundos de investimento e milionários capitalistas. No caso da vacina de Oxford, por exemplo, só 6% dos lucros ficarão com a universidade. O retorno financeiro é uma questão de tempo: as farmacêuticas já prometeram aos investidores que o preço das vacinas deve subir em um futuro próximo.