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Diário

da Pandemia
o olhar dos historiadores

Dominichi Miranda de Sá
Gisele Sanglard
Gilberto Hochman
Kaori Kodama
organizadores

São Paulo, 2020


HUCITEC EDITORA
© Direitos autorais, 2020, da organização de
Dominichi Miranda de Sá, Gisele Sanglard,
Gilberto Hochman & Kaori Kodama
© Direitos de publicação reservados por
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04110-020 São Paulo, SP.
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CIP-Brasil. Catalogação na Publicação


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
D529
Diário da pandemia : o olhar dos historiadores / organização Dominichi Mi-
randa de Sá... [et al.]. – 1. ed. – São Paulo : Hucitec, 2020.
382 p. ; 21 cm.
Inclui índice
ISBN 978-65-86039-36-8
1. Covid-19 (Doenças) – Aspectos sociais. 2. Epidemias – Aspectos sociais. I.
Sá, Dominichi Miranda de.
20-66276 CDD: 303.485
CDU: 316.4:(616.98:578.834)
Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária – CRB-7/6439
Sumário

Apresentação ............................................................................. 7

Introdução, os organizadores ................................................... 9

1. Lavar as mãos e descolonizar o futuro ................................ 19


Denise Bernuzzi de Sant’Anna

2. O coronavírus e o desafio da prevenção ............................... 36


Luiz Alves Araújo Neto

3. Ciência, saúde e doenças emergentes: uma história sem
fim ............................................................................................... 45
Luiz Antonio Teixeira & Luiz Alves Araújo Neto

4. O laboratório e a urgência de mover o mundo .................... 53
Simone Petraglia Kropf

5. Empirismo: marco zero ........................................................ 62


Lorraine Daston

Sumário [ 3 ]
6. A pandemia de coronavírus e o Antropoceno ..................... 66
André Felipe Cândido da Silva & Gabriel Lopes

7. Combate às epidemias: inspirações e ações .......................... 73


Gisele Sanglard & Renato Gama-Rosa

8. Otra primavera silenciosa ................................................... 78


Donald Worster

9. Narrar la pandemia de Covid-19: historia, incertidum-


bres, vaticinios ........................................................................... 91
Diego Armus

10. A história da saúde indígena no Brasil e os desafios da


pandemia de Covid-19 ............................................................. 111
Carolina Arouca G. de Brito

11. Epidemias, saúde pública e federalismo, reload


(1918/2020) ............................................................................... 121
Gilberto Hochman

12. O aumento da violência contra a mulher na pandemia


de Covid-19: um problema histórico ..................................... 126
Eliza Toledo

13. A pandemia de Covid-19: história, política e biologia ... 131


Ricardo Waizbort

14. A pandemia incide no ano mais importante da história


da humanidade. Serão as próximas zoonoses gestadas no
Brasil? ......................................................................................... 140
Luiz Marques

15. Elos entre passado e presente: a gripe espanhola no sul


do Brasil e a pandemia de Covid-19 ....................................... 160
Daiane Rossi

16. Entre o medo e o enfrentamento das epidemias: uma 168


reflexão motivada pela Covid-19 ............................................
Dilene Raimundo do Nascimento

[ 4 ] Sumário
17. O acesso à água e os excluídos da prevenção à Covid-19 176
Ingrid Fonseca Casazza

18. Covid-19: o que é o novo normal? Ou o que deveria ser? 185


Iris Borowy

19. Vírus, humanos, saberes, epidemias: construção social


do quê? ....................................................................................... 201
Jean-Paul Gaudillière, Frédéric Keck & Anne Rasmussen

20. Eventos de transformação disruptiva .............................. 214


Zoltán Boldizsár Simon

21. O SARS-CoV-2 como agente da história ......................... 222


Robert Wegner

22. Reflexões insones em noites pandêmicas ........................ 226


Fernando Pires-Alves

23. Condições de vida e vulnerabilidades nas epidemias:


do cólera no século XIX à Covid-19 ....................................... 232
Kaori Kodama & Tânia Salgado Pimenta

24. A cultura da sobrevivência, as epidemias e a história na


América Latina ......................................................................... 242
Marcos Cueto

25. A origem da cloroquina: uma história acidentada ........... 255


André Felipe Cândido da Silva

26. Os 120 anos da Fiocruz em meio a uma pandemia ........ 271


Simone Petraglia Kropf & Dominichi Miranda de Sá

27. O Sistema Único de Saúde e o desafio da Covid-19 ......... 282


Carlos Henrique Paiva, Luiz Antonio Teixeira & Fernando
Pires-Alves

28. A Covid-19 em favelas: vulnerabilidades sociais e auto-


-organização em Manguinhos ................................................. 287
Tania Maria Fernandes & André Lima

Sumário [ 5 ]
29. Troco uma máscara por alimento: fome e pobreza na
Covid-19 .................................................................................... 299
Rômulo de Paula Andrade

30. Quando as doenças viram números: as estatísticas da


Covid-19 .................................................................................... 308
Thayanne Lopes de Oliveira

31. A Fiocruz em dois tempos: nas pandemias da gripe es-


panhola e da Covid-19 ............................................................. 320
Lorenna Ribeiro Zem El-Dine & Vanessa Pereira da Silva e Mello

32. A Covid-19 e a relação entre humanos e animais: zoo-


noses e zooterapias ................................................................... 331
Rodrigo Ramos Lima

33. Trabalhadores da saúde em pandemias: 1918 e 2020 ..... 343


Renilson Beraldo

34. Acerca de pandemias, ciencia y vacunas en Argentina ... 358


Adrián Carbonetti

35. Carro passa, ônibus fica: a Covid-19 e as desigualdades 364


históricas no verão amazônico ................................................
Érico Silva Muniz

Sobre os autores ........................................................................ 371

[ 6 ] Sumário
23.
Condições de vida
e vulnerabilidades nas epidemias:
do cólera no século XIX à Covid-19
Kaori Kodama
Tânia Salgado Pimenta

Rio de Janeiro, 19 de maio de 2020

É comum ouvirmos dizer que as epidemias, quando acon­


tecem, não escolhem credo, raça, idade ou classe social.
Repete-se ainda que elas não respeitam fronteiras. Epidemias
nos fazem lembrar da impotência diante de um mal soberano,
que, por longos períodos da história, foi visto por distintas re-
ligiões como castigo divino, despontando como um dos nossos
grandes medos coletivos, na avaliação de Jean Delumeau.
As respostas às epidemias e a capacidade individual ou
coletiva de se proteger contra sua devastação, no entanto, va-
riam, revelando diferenças na capacidade de a elas resistir. A

[ 232 ] Kodama & Pimenta :: Rio de Janeiro, 19 de maio de 2020


fuga e a busca por isolamento, por exemplo, foram respostas
constantes diante das epidemias. Desse modo, era clara a van-
tagem das classes abastadas, o que foi muitas vezes notado no
passado.
Em A jornal of the plague year, um relato referente à epi-
demia de peste bubônica ocorrida em 1665, Daniel Defoe afir-
mou que os mais ricos se refugiavam e se abrigavam fora da
Londres pestilenta, pois eram desobrigados dos serviços e ne-
gócios. Defoe escrevia sobre uma epidemia ocorrida quase 60
anos antes, mas falava também de outra, que vivenciou em seus
próprios dias, quando Marselha, em 1721, tornou-se palco des-
se grande flagelo. Ele notava que, na cidade, os que trabalha-
vam no comércio, os empregados braçais e os desempregados
nas ruas estavam entre os mais penalizados.
Outra situação em que as epidemias se mostram com
força, implicando grande desvantagem para uma dada popula-
ção, é quando essa não teve contato prévio com a doença, como
nos acontece agora na pandemia de Covid-19. Nas Américas, a
irrupção da varíola resultou na dizimação de indígenas, e o fato
de as bexigas os afetarem particularmente foi utilizado  tanto
para a justificativa da escravização de africanos, que eram tidos
como mais resistentes a essa doença, como, por vezes, como
arma biológica contra os índios. O certo é que tanto a varíola
como a gripe e a malária devastaram terrivelmente as popula-
ções ameríndias (Crosby, 1993; Alencastro, 2000). 
Apontar quem eram os mais afetados em situações epi-
dêmicas recaiu invariavelmente nos diversos estigmas sobre os
quais se construíram as relações de poder e hierarquias ema-
nadas da própria estrutura de uma sociedade. São eles os mar-
ginalizados. Se houve doenças consideradas como de “ricos”,
como a gota, nas epidemias como as de peste, tifo ou cólera, au-
toridades e médicos notavam que os grupos que mais sofriam
em situações de calamidade — e, não menos relevante, os que

Condições de vida e vulnerabilidades nas epidemias... [ 233 ]


também eram vistos como culpados por seu ­espraiamento —
eram escravos, imigrantes, pobres, pretos, indígenas e mendigos.
A percepção de que sempre havia grupos que eram mais
prejudicados com uma epidemia foi algo frequente, mas aten-
tar para seu caráter social é fruto em particular do século XIX,
quando, como afirmou George Rosen, a medicina passava a se
constituir como “ciência social” com a organização dos Esta-
dos nacionais (Rosen, 1947). No caso brasileiro, um sistema
de saúde universal é conquista recente, imensas dificuldades
e tragédias no decorrer da nossa história foram resultantes da
persistência das desigualdades sociais e raciais.
Como exemplo, tomemos aqui as primeiras grandes epi-
demias do século XIX no Brasil. Apesar dos registros constan-
tes de ondas epidêmicas desde o início da colonização — em
relatos sobre a varíola além de outras “febres” incluindo a febre
amarela no século XVII —, foi com o crescimento dos espaços
urbanos e das interações comerciais durante o século XIX no
Brasil que cidades como Salvador, Belém, Porto Alegre, Recife
e Rio de Janeiro passaram a enfrentar ondas mais frequentes e
devastadoras de epidemias globais. Entre 1849 e 1856, além das
frequentes epidemias de “febres” e de varíola que coalharam
naquele século, a febre amarela e o cólera chegaram a diversas
províncias do país. 
José Pereira Rego, o barão do Lavradio, que foi membro
da Junta de Higiene Pública do Rio de Janeiro e se tornou di-
retor da instituição na década de 1870, afirmou que o cólera,
em 1855, havia se limitado, no geral, a atacar “os pretos, os ho-
mens de cor” e que praticamente acabara com os mendigos da
cidade (Rego, 1872). Tais tragédias humanas, tão frequentes ao
longo do tempo, não pareciam escandalizar na capital do Im-
pério, sendo aceitas como uma fatalidade ou como uma atitude
perante a morte que se poderia chamar de “domesticada”, para
usarmos a expressão de Philippe Ariès.

[ 234 ] Kodama & Pimenta :: Rio de Janeiro, 19 de maio de 2020


Em 1850, quando a febre amarela ceifou dezenas de mi-
lhares de vidas na então monarquia brasileira, muitos médicos
notaram que imigrantes europeus, como os  portugueses que
aportavam nas cidades do Rio de Janeiro, eram especialmente
afetados, enquanto que africanos e seus descendentes não mor-
reriam nas mesmas proporções. Nessa ocasião, para debelar o
caos sanitário instaurado, o governo imperial criou a Junta de
Higiene Pública, que pretendia centralizar as questões sobre
saúde pública, organizando os serviços de saúde e de assistên-
cia oferecida à população. 
A febre amarela passou a ser encarada pelos encarrega-
dos da administração pública e pelos agentes médicos como
especialmente maléfica para os europeus, prejudicando as polí-
ticas imigratórias e as ideais de branqueamento de projetos po-
líticos europeizantes. Alguns médicos brasileiros defendiam a
existência de uma associação entre a chegada da doença e o trá-
fico atlântico de escravos. Construiu-se, dessa forma, mais um
argumento para aqueles que defendiam o fim do tráfico, cuja
proibição aconteceu de fato em 1850 (Chalhoub, 1996).
Por sua vez, a epidemia de cólera foi um verdadeiro mas-
sacre para os escravos, com muito mais ênfase para os que ha-
viam nascido em solo africano. A chegada da terceira pande-
mia mundial de cólera, que fora a primeira registrada no Brasil,
afetou enormemente toda a população, mas os marginalizados,
incluindo estrangeiros imigrantes, escravos e afrodescendentes
em geral sofreram mais das calamidades geradas pela doença.
Emblematicamente, seu início, registrado em Belém, foi asso-
ciado a uma embarcação de imigrantes vindos do Porto doen-
tes. No Rio de Janeiro, a primeira vítima identificada foi um
escravo.
Segundo relatório de Rego, a doença teria matado 4.828
pessoas em toda a cidade do Rio de Janeiro, incluindo fregue-
sias mais distantes, quando a população da corte não excedia
250 mil habitantes. Em estudo anterior, verificamos que mais

Condições de vida e vulnerabilidades nas epidemias... [ 235 ]


da metade dos mortos por cólera enterrados no principal ce-
mitério da cidade, o São Francisco Xavier, eram escravos (Ko-
dama, Pimenta, Bastos & Bellido, 2012). De todas as mortes
por cólera na cidade, incluindo todos os nascidos no Brasil e
outros estrangeiros livres ou escravos, quase a metade (47,4%)
era de pessoas nascidas na África. E se você fosse um africano,
suas chances de morrer de cólera eram de quase 60% durante
essa epidemia. A alta mortalidade de afrodescendentes era tão
evidente à época que, em Recife, muitos suspeitavam que as
autoridades e os médicos utilizaram a epidemia de cólera como
instrumento para branquear a população (Farias, 2012; Coo-
per, 1986).
Os médicos do período já apontavam maior ­suscetibilidade
dos escravizados ao cólera. Além do clima quente e úmido e
das variações atmosféricas, listavam as habitações em lugares
baixos, mal arejados, pouco espaçosos e de alta aglomeração.
Alimentação precária, maus-tratos e falta de asseio também
eram citados. Frisava-se, portanto, as péssimas condições de
vida dessa população.
Foram estes aspectos do cotidiano escravo que a historia-
dora Mary Karasch ressaltou em sua obra A vida dos escravos
no Rio de Janeiro (1808-1850) para apontar a importância das
condições de vida para a história da saúde escrava. Ao dialogar,
em fins da década de 1970, com uma historiografia que tratava
da escravidão em termos estruturais, Karasch pesquisou regis-
tros de sepultamentos de escravos, além de escritos médicos, e
mostrou que o descaso, traduzido em moradia, roupas, alimen-
tação e cuidados médicos inadequados, contribuíam mais para
a alta mortalidade dessa população do que os castigos cruéis.
O excesso de trabalho também era ruim para a saúde des-
sas pessoas e, em muitos casos, fatal. Uma cozinheira, além de
preparar as refeições de seus senhores e desempenhar outras
atividades domésticas, ainda poderia ter de vender alimentos
nas ruas. Trabalhavam até sete dias por semana, começando o

[ 236 ] Kodama & Pimenta :: Rio de Janeiro, 19 de maio de 2020


dia antes do alvorecer e terminando após escurecer (Karasch,
2000). Além da falta de descanso, o tipo de ocupação exporia
a determinadas doenças, como a tuberculose, a ancilostomíase
e o tétano.
Durante o cólera, as comorbidades certamente tive-
ram importante influência na alta mortalidade de escravos e
afrodescendentes. Não era raro encontrar nos registros de
óbito,  como  causa mortis,  mais de uma doença, como tuber-
culose e febre tifoide. As ocupações mais afetadas eram as de
lavadeiras, pescadores, trabalhadores do comércio e de ofícios
­manuais, em sua maior parte exercidas por afrodescendentes
(David, 1996). No Rio de Janeiro, os africanos livres emprega-
dos nas obras públicas, os escravos que carregavam os dejetos
das residências para os atirarem ao mar, chamados de “tigres”
por causa das manchas esbranquiçadas e ácidas que os excre-
mentos desenhavam em seus dorsos, morreram como moscas.
O cólera varreu um enorme contingente no Brasil em
pouco mais de um ano, e ondas da epidemia perduraram até a
década de 1860, como no Ceará, em 1862. No Rio de Janeiro,
essa pandemia durou de julho de 1855 a junho de 1856, e outra
onda epidêmica veio em 1867, a partir da Guerra do Paraguai.
Os relatórios oficiais do período apontavam que mais de 150
mil pessoas morreram na primeira epidemia em todo o país,
mas ressaltavam também que haveria considerável subnotifi-
cação. Segundo outros estudos posteriores, houve mais de 200
mil vítimas (Cooper, 1986). Dessas, foram africanos e seus des-
cendentes os mais afetados. As condições de vida e de trabalho
evidenciam o descaso com que eram tratados, antes e depois do
tráfico atlântico. Pois, se antes havia a possibilidade de reposi-
ção de mão de obra relativamente barata, depois, ao longo da
segunda metade do século XIX, as elites procuravam recompor
a força de trabalho por meio do tráfico interprovincial e da imi-
gração europeia.

Condições de vida e vulnerabilidades nas epidemias... [ 237 ]


A identificação do descaso no passado ajuda a iluminar
o descaso no presente. Os mais vulneráveis à Covid-19 são
aqueles que ocupam as piores posições sociais e econômicas
na nossa sociedade. Os números da pandemia atual no Brasil
“reforçam mais uma vez que a causa de mais negros morrerem
pela Covid-19 está nas questões socioeconômicas, como sanea­
mento básico precário, insegurança alimentar e dificuldade de
acesso à assistência médica, que aumentam o risco de adoecer
e morrer” (Abrasco, 2020).
A primeira vítima da Covid-19 no Estado do Rio de Ja-
neiro foi uma empregada doméstica infectada pela patroa que
voltara havia pouco tempo das férias na Itália. Nosso presente
não está descolado do passado: trata-se de um dado eloquente
sobre a persistência das desigualdades social e racial que temos
de enfrentar. O Ministério da Saúde divulgou em 10 de abril
que a Covid-19 tem sido mais letal entre negros do que entre
brancos. Um de cada quatro internados pela doença com Sín-
drome Respiratória Aguda Grave (23,1%) são pretos ou pardos.
Mas entre os que chegam a óbito, eles representam um terço do
total (32,8%), enquanto que brancos são 73,9 % dos internados
e representam 64,5% dos mortos.
Mas além de apontarmos as condições de vida, outras
discussões sobre as vulnerabilidades foram necessárias para
suplantarmos o círculo vicioso do processo de estigmatização
das vítimas. Foi preciso outras lutas, geradas a partir de no-
vas situa­ções epidêmicas, como a da Aids, para que as percep-
ções sociais sobre os mais vulneráveis mudassem, passando-se
a combater mais fortemente os estigmas (Monteiro & Vilella,
2013). Nessa doença — inicialmente identificada por sua “ori-
gem” africana, e depois, como mal que teria por alvo homosse-
xuais masculinos e usuários de drogas injetáveis — a inclusão
das vítimas e de diferentes atores no processo de seu conheci-
mento foi crucial para a guinada sobre a questão dos direitos.

[ 238 ] Kodama & Pimenta :: Rio de Janeiro, 19 de maio de 2020


Uma doença epidêmica pode não escolher classe social
ou cor para atingir, mas ela não afeta a todos da mesma ma-
neira. É certo que se o novo vírus teve por porta de entrada
no país as camadas mais ricas, a fatalidade será ainda maior
para quem não tem acesso à moradia, à água e ao esgoto e para
todos os que precisam enfrentar horas em transportes coleti-
vos para trabalhar. Os novos vulneráveis, além dos idosos e dos
portadores de comorbidades, são, em proporções catastróficas,
os que dependem de empregos precarizados, os que fazem ser-
viços de entrega por aplicativo, os moradores de regiões sem
saneamento — problema que atinge metade da população bra-
sileira —, e todos aqueles que não terão condições de realizar
o distanciamento social agora exigido. A parcela majoritária
deles são de afrodescendentes.
Luiz Eduardo Batista, do Instituto da Saúde da Secretaria
de Saúde do Estado de São Paulo e membro do grupo de tra-
balho sobre racismo e saúde da Abrasco, disse: “Com 20 dias
desde o primeiro óbito, termos 32% das mortes entre pessoas
negras indica que o isolamento social não retardou a chegada
do coronavírus nas periferias como esperávamos. [...] A epi-
demia começou com uma elite, majoritariamente branca, mas
que tem sua cozinheira, sua faxineira, seus cuidadores, majori-
tariamente negros”.
As condições de vida, como apontou Mary Karasch sobre
a população escrava na cidade do Rio de Janeiro, nos alertam
sobre como as vulnerabilidades implicaram uma ampla gama
de fatores que incidiram nos corpos escravos, urdindo na vida
cotidiana uma estrutura social de violência e de poder, uma
base econômica e também variadas dinâmicas biológicas. Se
outras reflexões diante da nossa convivência com as epidemias
tornaram-se fundamentais para que as vulnerabilidades dei-
xassem de ser naturalmente associadas aos processos de estig-
matização e marginalização, é preciso ainda que a sociedade
consiga rever suas desigualdades históricas.

Condições de vida e vulnerabilidades nas epidemias... [ 239 ]


Para saber mais

ALENCASTRO, L. F. O trato dos viventes. Formação do Brasil no


Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 
ABRASCO. <https://www.abrasco.org.br/site/noticias/especial-co
ronavirus/a-populacao-negra-e-o-direito-a-saude-risco-de-
-negros-morrerem-por-covid-19-e-62-maior-se-compara-
do-aos-brancos/47741/>. 6 mai. 2020. 
FOLHA DE S.PAULO. Coronavírus  é mais letal entre negros no
Brasil, apontam dados da Saúde. Fernanda Mena. 10. abr.
2020. 
CHALHOUB, S. Cidade febril – cortiços e epidemias na Corte Im-
perial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 
COOPER, D. B. The new “Black Death”: cholera in Brazil, 1855-
1856. Social Science History, vol. 10, n.º 4 (winter), 1986, pp.
467-88. 
CROSBY, A. W. Imperialismo ecológico – a expansão biológica da
Europa, 900-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 
DAVID, O. O inimigo invisível – epidemia de cólera na Bahia no
século XIX. Salvador: EDUFBA; Sarah Letras, 1996. 
DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente (1300-1800). 2.ª ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
FARIAS, R. G. Pai Manoel, o curandeiro africano, e a medicina
no Pernambuco imperial. História, Ciências, Saúde – Man-
guinhos, Rio de Janeiro, vol. 19, supl., dez. 2012, pp. 215-23. 
KARASCH, M. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 
KODAMA, K. et al. Mortalidade escrava durante a epidemia de
cólera no Rio de Janeiro (1855-1856): uma análise prelimi-
nar. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro,
vol. 19, supl., dez. 2012, pp. 59-79.
MONTEIRO, S. & VILELLA, W. (orgs). Estigma e saúde. Rio de
Janeiro: Ed. Fiocruz, 2013.
REGO, J. P.  Esboço histórico das epidemias que tem grassado na
cidade do Rio  de Janeiro desde 1830 a 1870.  Rio de Janei-
ro: Typographia Nacional, 1872. 

[ 240 ] Kodama & Pimenta :: Rio de Janeiro, 19 de maio de 2020


ROSEN, G. What is Social Medicine? A Genetic Analysis of the
Concept. Bulletin of the History of Medicine 21, n.º 5, 1947, pp.
674-733. Disponível em: <www.jstor.org/stable/44441189>.
Acesso em 11 mai. 2020. 

:::

Publicado originalmente na série Especial Covid-19 do Departamento


de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo
Cruz/Fiocruz. Disponível em: <http://coc.fiocruz.br/index.php/pt/to-
das-as-noticias/1768-especial-covid-19-o-olhar-dos-historiadores-das-
-fiocruz.html#.XzWTNehKg2z>.

Condições de vida e vulnerabilidades nas epidemias... [ 241 ]

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