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RESENHA

NASR, Seyyed Hossein et al. (Eds.). The Study Quran: a new


translation and commentary. HarperOne: New York, 2015.
2048p.

Um Alcorão de referência para


muçulmanos e não-muçulmanos
FELIPE FREITAS DE SOUZA*

Objetivando suprir a lacuna acadêmico- Lumbard e Muhammad Rustom. Uma


editorial criada pela inexistência de uma das especificações de Nasr para a
edição comentada do Alcorão, seleção dos demais editores é de que
recentemente a HarperOne, braço todos os comentadores fossem
editorial da HarperCollins, publicou The muçulmanos (portanto, que todos
Study Quran: a new translation and aceitassem o Alcorão enquanto a
commentary. Sua recepção, tanto por Palavra de Deus), de modo que a obra é
não-muçulmanos quanto por não só um esforço editorial, mas um
muçulmanos, variou de reações que vão empenho de muçulmanos para
do entusiasmo ao desprezo. Em suas esclarecerem sobre o Islam.
mais de duas mil páginas, a equipe de
O esforço para a escrita do The Study
escritores apresenta uma edição de
Quran precisa ser dimensionado. A
estudo que contempla múltiplas
própria versão em inglês desse Alcorão
interpretações d’A Mensagem em um
é de uma qualidade ímpar: a equipe de
único tomo – iniciativa inédita nas
editores-tradutores é fluente em árabe e
línguas europeias. Considerando-se a
tiveram um trabalho de múltiplas mãos,
ausência de uma edição crítica
resultando em uma excelente versão.
semelhante, a obra resenhada é pioneira.
Esse expediente foi mobilizado em duas
O Editor Chefe dessa obra, o persa versões inglesas, como a Saheeh
Seyyed Hossein Nasr, tem uma ampla International ou o Quran: a reformist
produção acadêmica tanto no Irã quanto translation, mas predominam as versões
nos Estados Unidos, onde leciona na de autor único, como as de Pickthall e
George Washington University. Sua Yusuf Ali, em inglês e de Samir El
filiação ao perenialismo, ou Filosofia Hayek e Helmi Nasr, em português. Sua
Perene, decorre de seu discipulado com diferença perante todas essas edições
Frithjof Schuon, marcando a obra com está em cotejar nas observações
essa modalidade da Filosofia da algumas das demais traduções
Religião – o que desagradou alguns possíveis, oferecendo uma melhor
leitores pelo seu pressuposto da percepção da polissemia corânica.
“unidade transcendente” das religiões. Cada tafsīr (“exegese”) dos quarenta e
Na elaboração do livro, estiveram um estudiosos mobilizados representa
presentes os editores Caner K. Dagli, uma opinião tradicional no Islam, sendo
Maria Massi Dakake, Joseph E.B. estudiosos sunitas (maioria), xiitas e

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sufis. Tais interpretações, como a de Ibn panorama das diferentes discussões que
Kathir, chegam a ocupar dezenas de foram construídas nas comunidades
volumes e somente o esforço em muçulmanas. Referem-se à leitura do
sintetizar as observações de um único Alcorão, sua tradução, importância no
intérprete como esse já seria notável: as Islam, influência na língua árabe.
versões abridged (“resumidas”) são Também são discutidos os comentários
recorrentes no meio editorial. Já a sobre o Alcorão, fontes, escolas de
explanação a partir dessas pensamento, arte, historiografia, ética,
interpretações e a discussão delas frente trazendo uma apresentação profunda
ao texto da Revelação demonstra o que ultrapassa a mera introdução ao
porquê da obra ter demorado anos para tema. Tais ensaios poderiam compor um
ser executada. O volume documental livro a parte.
consultado é intimidador e encontra-se
em árabe. Além disso, o diálogo entre Os mapas ao final do livro ilustram
interpretações sunitas e xiitas, ocorrências que tangenciam a revelação
complementado pela citação de corânica, extra- e supra-textuais ao
tradições menores (como a zaidita, Alcorão. Ressaltamos que alguns dos
mutazilita e batinista), demonstra a mapas estão sem a devida escala e
complexidade da tarefa de interpretar o indicação do Norte geográfico,
Alcorão. Caso não tivéssemos um problemas esses que poderiam ser
Alcorão como este, o pesquisador facilmente solucionados. Todavia, são
haveria de se debruçar sobre importantes para visualizamos os
literalmente dezenas e dezenas de obras episódios na vida do Profeta
para poder consultar os comentários Muhammad e da primeira comunidade
compilados pela equipe de Nasr. de muçulmanos. Isso também é
inovador para um Alcorão, dado que as
Cada um de seus suwar (“capítulos”, pl. traduções (em inglês ou português)
de surah) tem uma introdução que citadas anteriormente não possuem
descreve os principais temas e mapas.
elementos no tocante à revelação
daquele capítulo. Esse é um Enquanto aspectos negativos dessa
procedimento relativamente incomum, obra, temos a ausência do texto em
dado que geralmente tais introduções árabe. As versões em outras línguas
estão relegadas às notas de rodapé, com costumam ter o texto em árabe em uma
comentários pontuais. Já nessa edição, coluna paralela à tradução, de modo que
as observações chegam a ocupar maior o estudante possa comparar com o
parte da mancha de texto, oferecendo ao original sem ter que recorrer a outro
leitor um extenso comentário livro. A única frase que ocorre em árabe
pormenorizado sobre a tradução, sobre em todos os capítulos (com a exceção
sua relação com outros trechos do do nono, Surah At-Tawbah) é a
Alcorão e a tradição interpretativa. Os basmallah, “Em nome de Deus, o
editores trouxeram então uma 42ª Clemente, o Misericordioso”. Além
interpretação nesse processo ao disso, a maioria dos intérpretes são
estabelecerem o diálogo entre tradições medievais, sendo somente um deles do
(tão) distintas. século XX: se por um lado isso
aproxima o leitor das obras mais
Não bastando as extensas referências, recorrentes no tocante a interpretação,
essa edição conta com quinze ensaios por outro afasta o leitor dos diferentes
após o texto do Alcorão, delineando um polos do debate contemporâneo no

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mundo islâmico sobre a exegese sua equipe deixam claro que o fazem a
corânica – com exceção da exegese do séculos, apesar dessas interpretações
grupo de Hossein Nasr, única do século serem negligenciadas. É comum, no
XXI que é apresentada. Entretanto, é Brasil, termos grupos de outras
mérito dos pesquisadores demonstrarem religiões, principalmente cristãs,
que essas interpretações, por mais criticando os muçulmanos. Todavia, o
antigas que sejam, não reclamam o arcabouço de discussões é ignorado,
“monopólio da leitura legítima”, o que como se a voz dos muçulmanos não
pode surpreender quem desconhece a merecesse ou precisasse ser ouvida
prática do diálogo religioso no Islam. O acerca de sua própria religião. O The
livro também não oferece a divisão Study Quran demonstra para o leitor,
tradicional em trinta ajza’ (“partes”, pl. independentemente de sua filiação
de juzʼ), retirando essa característica religiosa ou da ausência dela, que a
editorial comum ao Alcorão. Se o leitura literalista do Alcorão é praticada
medalhão que envolve a numeração de por uma minoria ínfima de muçulmanos
cada ayah (“versículo”) recebeu uma – cf. Em nome de Deus, de Karen
arte especial, como no original em Armstrong.
árabe, e a basmallah que precede cada
O The Study Quran não é então a
capítulo foi encomendada
palavra final sobre toda uma tradição,
especialmente para essa obra, não
uma interpretação total e totalitária, mas
teremos maiores semelhanças com a
uma versão do Alcorão que os
beleza do texto original em árabe que,
estudiosos do Islam fora do mundo
devido a suas idiossincrasias, é
islâmico, envoltos em um ambiente
colocado como “intraduzível”.
acadêmico secular e laico, poderão
Feitas essas considerações, o livro considerar enquanto material de
difunde uma concepção referência fundamental. Tanto o
importantíssima: a de que existem pesquisador quanto o muçulmano, ou
interpretações internas no Islam que ainda o muçulmano-pesquisador,
devem ser consideradas. Ressalta-se poderão se beneficiar de sua
isso porque a critica que se realiza aos abordagem.
muçulmanos e aos povos orientais
acaba por silenciar essas vozes. Os
muçulmanos seriam capazes de Recebido em 2016-10-07
Publicado em 2016-12-06
interpretar seu próprio texto sagrado,
como os orientalistas pretendem? Nasr e

*
FELIPE FREITAS DE SOUZA é
Mestre em Educação Tecnológica pelo Centro
Federal de Educação Tecnológica de Minas
Gerais; aluno no Instituto Latino Americano de
Estudos Islâmicos e membro do Núcleo de
Acadêmicos Islâmicos (NAI).

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