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ECG Completo.

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O ECG Normal
CAPÍTULO

José Nunes de Alencar Neto


4
INTRODUÇÃO IDENTIFICAÇÃO DO PACIENTE
E CONFIGURAÇÕES DO
A interpretação de um ECG por um ELETROCARDIÓGRAFO
examinador experiente é feita compa-
rando aquele exame com a memória Tudo começa pelo básico. Identi-
fotográfica e com o conhecimento que fique o paciente, seu sexo e idade.
possui de outros ECGs normais e anor- Veremos nos próximos capítulos que
mais que já foram vistos. No início da isso pode ser crucial para uma correta
caminhada, é comum que se faça ne- análise do exame, pois os valores de
cessário o uso de guias, livros curtos, referência de alguns achados podem
resumos, manuais de plantão, aplica- mudar.
tivos e outros materiais que nos traga Sobre o eletrocardiógrafo, o leitor
a recordação dos padrões normais e deve relembrar tudo que leu no ca-
anormais. pítulo anterior. Está configurado em
Justamente na fase em que ganha- N e 25 mm/s? Seus filtros estão ade-
mos experiência, é comum ficar fasci- quados? E mais: fique atento à possí-
nado ou assustado com um determi- vel presença de artefatos que serão
nado achado (por exemplo, a primeira vistos com detalhes no capítulo 5.
vez que um leitor pouco experiente Houve troca de eletrodos ou outro
diagnostica um bloqueio divisional artefato que impossibilita a correta
anterossuperior ou como quando um análise do ECG?
examinador com experiência média
acha que viu uma onda épsilon) e isso RITMO E FREQUÊNCIA
pode levar ao erro diagnóstico por CARDÍACA
subestimar outros achados. A melhor
maneira de evitar isso é sistematizan- O próximo passo é olhar para o
do a análise do ECG. Isso deve ser feito ECG e identificar o ritmo do pacien-
por todos, independentemente do ní- te. Isso pode ser realizado através da
vel de conhecimento sobre o assunto. seguinte análise: as ondas e com-
Este capítulo fará a análise sistemática plexos sempre vêm em intervalos
por você. Cada tópico a seguir será um iguais? Pode ser necessário um com-
passo a ser realizado para que o ECG seja passo ou que você desenhe numa fo-
avaliado por completo. Vamos começar. lha à parte dois traços denotando a

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CAPÍTULO 4

distância entre duas ondas P ou dois Figura 1 - Ativação atrial iniciando pelas
complexos QRS e a partir daí obser- forças atriais direitas (AD) e terminando

var se essas distâncias se mantêm pela esquerda (AE).

constantes.
O ritmo cardíaco pode ser sinusal,
ectópico ou arrítmico. O ritmo sinusal
será visto neste capítulo. O ectópico e
o arrítmico serão discutidos na seção
2 deste livro. Antes de começarmos
essa avaliação, devemos lembrar um
pouco da eletrofisiologia cardíaca,
vista no capítulo 2. O estímulo elétri-
co cardíaco, em condições normais, é
gerado no nó sinoatrial ou nó sinusal,
uma estrutura anatômica localizada
O vetor resultante está descrito em VR, apontando para inferior e
no teto do átrio direito. O caminho para esquerda. Como o vetor muda de direção a cada momento da
percorrido por ele será despolarizar despolarização atrial, é possível também imaginar o a alça que a
as células atriais circunvizinhas, de- despolarização desenha no plano frontal, com os sucessivos múltiplos
pois ganhar os feixes internodais (que vetores instantâneos.
não são exatamente feixes, como dis-
cutimos naquele capítulo) até chegar
ao nó atrioventricular, uma estrutu-
ra mais inferior e mais à esquerda, e equivocadamente descritas como um
sofrer uma “pausa” em seu processo. feixe, que são responsáveis por trans-
Nesse momento, o estímulo está ten- mitir o estímulo através do septo inte-
tando vencer a baixa velocidade de ratrial para o átrio esquerdo. Quando
condução dessa região (Figura 1). Bachmann está lesado, o estímulo será
O importante do parágrafo an- conduzido através da fossa oval ou
terior foi demonstrar para você o do seio coronário (veremos isso com
vetor da onda P no plano frontal (a mais detalhes no capítulo 6). Mas o in-
onda desenhada pela ativação atrial teressante é perceber que a segunda
nas derivações dos membros): ela porção da onda P é determinada justa-
vai do teto para uma região mais mente pela ativação do átrio esquerdo.
inferior e mais à esquerda. O vetor Como o átrio esquerdo é ativado de
da onda P, portanto, apontará para cima para baixo e de frente para trás
derivações mais à esquerda (D1) e (é uma estrutura mais posterior que o
inferiores (D2 e aVF), sendo positivo átrio direito, em contato direto com o
nessas derivações. esôfago), o vetor de ativação do átrio
Além dos feixes internodais, exis- esquerdo apontará de cima para baixo
tem também as células de Bachmann, e de frente para trás. Portanto, outra

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O ECG NORMAL

Figura 2

Entenda a figura antes de passar adiante. À esquerda, temos os vetores do átrio direito (AD) e do átrio esquerdo (AE). A soma dos dois vetores (VR) aponta
para inferior e para a esquerda no plano frontal, mais especificamente em direção a D2. D2, portanto, terá a maior amplitude, D1 e aVF também serão
positivas. D3 geralmente é positiva. aVR está quase diametralmente oposta ao vetor, portanto negativa. À direita, temos o vetor no plano horizontal,
portanto, nas derivações precordiais. Perceba que a ativação final (VR) realizada pelo AE traz o vetor para negativo na sua segunda porção, em V1. Adaptado
de Gertsch.

derivação a que o leitor precisa ficar A ausência de onda P no ECG pode


atento é V1, que visualiza justamente o significar o diagnóstico de fibrilação
diâmetro anteroposterior do paciente: atrial, ondas P de formatos distintos ou
em V1 a onda P tem um formato “plus- em dentes de serra podem significar
-minus” (ou seja, primeiro positiva, de- taquicardias atriais multifocais e flut-
pois negativa) ou apenas “minus” (caso ters atriais, arritmias que serão porme-
o nós sinusal seja uma estrutura muito norizadas nos capítulos 16 e 17.
anterior naquele coração). A frequência sinusal normal tem
Resumindo, a onda P precisa ser posi- seus limites entre 50-100 batimentos
tiva em D1, D2 e aVF, plus-minus ou mi- por minuto. O cálculo dessa frequên-
nus em V1. D3 pode ser plus ou plus-minus cia deve ser feito em todos os ECGs
e aVL pode ser plus, minus ou minus-plus. avaliados e são diversas as maneiras
Se tudo isso for respeitado, teremos um com que isso pode ser alcançado. A
ritmo sinusal na imensa maioria dos casos mais fidedigna é dividir 1500 pelo
(Figura 2). Um diagnóstico diferencial raro, número de quadradinhos entre uma
mas importante, mesmo quando tudo é onda P ou um complexo QRS e outro.
respeitado é o ritmo atrial para-sinusal do A razão do número “1500” é bastante
átrio direito ou atrial de veia pulmonar su- fácil: em um ECG com velocidade de
perior direita, no átrio esquerdo, estruturas 25 mm/s, um segundo será gravado
muito próximas e que, portanto, podem em 1500 quadradinhos. Então 1500/X
produzir vetor muito semelhante. = frequência cardíaca.

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CAPÍTULO 4

Outra maneira é a “regra dos qua- Se o ritmo for irregular, esses cálcu-
dradões”. Cada quadradão possui 5 los não poderão ser realizados. A ma-
quadradinhos, então, 1500/5 = 300. neira de estimar a frequência é calcular
1500/10 = 150. 1500/15 = 100. Por aí a média de batimentos em 6 segundos
vai. Sabendo dessa regra, você pode e multiplicar por 10. Para isso, conte 30
inferir de maneira menos fidedigna a quadradões (30 x 200 ms = 6 segundos)
frequência (Figura 3). e multiplique a quantidade de bati-
mentos encontrados por 10 (Figura 4).

Figura 3 - Pela regra dos “quadradões”, a frequência cardíaca desse paciente estará entre
100 e 75. Para saber com exatidão, dividir 1500/19 = 79.

Figura 4 - Cálculo da frequência cardíaca quando ritmo for irregular. Contar 30 quadradões (6
segundos) e multiplicar o número de batimentos por 10.

A ONDA P de, é determinada pela ativação do


átrio direito; e a sua segunda meta-
O ritmo da onda P denota a ati- de é determinada pela ativação do
vidade sinusal ou ectópica do co- átrio esquerdo. Na porção média da
ração. Já a morfologia e duração da onda P, existe uma sobreposição de
onda P denotam a morfologia dos atividades – o átrio direito está tendo
átrios. Como vimos nos parágrafos suas últimas fases da despolarização
anteriores, o início da onda P, mais enquanto o átrio esquerdo está ape-
especificamente sua primeira meta- nas começando (Figura 5).

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O ECG NORMAL

Figura 5 - A onda P é gerada pela ativação dos dois átrios. Na figura, está representada a
atuação de cada átrio na geração dessa onda. Perceba que a primeira metade é comandada
pelo átrio direito, enquanto o átrio esquerdo ganha importância na segunda metade. Na
porção central da onda, temos as últimas células do átrio direito e as primeiras células do
átrio esquerdo despolarizando-se.

A onda P precisa ser avaliada em sua dessa onda podem denotar atrasos de
amplitude, pois aumentos podem deno- condução. Adianto aqui uma importan-
tar sobrecargas atriais. Em D2 a onda P te divergência entre este livro e as ideias
não pode ultrapassar 2,5 mm de am- desse autor que vos fala para a literatura
plitude (dois quadradinhos e meio), pois já escrita. Repito: o alargamento da onda
mais que isso seria sinal de sobrecarga P denota atraso da condução intra ou
atrial direita. Em V1 a onda P não pode inter-atrial, que pode ou não ser secun-
ultrapassar 1,5 mm de amplitude em dário a uma sobrecarga atrial direita ou
sua porção positiva e 1 mm de ampli- esquerda. Esse assunto será discutido no
tude em sua porção negativa (Figura capítulo 6. A onda P não pode exceder
6), o que denotaria sobrecarga atrial di- 100 ms de duração (dois quadradinhos
reita e esquerda respectivamente. e meio)
A onda P também precisa ser avalia- Leia o resumo sobre a onda P na Ta-
da em sua duração, pois alargamentos bela 1.

Figura 6 - Onda p normal em D2: positiva, com > 2,5 mm de amplitude e 2,5 quadradinhos de
duração.

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CAPÍTULO 4

Tabela 1 - Características normais da onda P.

Despolarização atrial primeiro direita,


Significado
depois esquerda

De cima para baixo, da direita para esquerda,


Vetor porção inicial de trás para frene e porção final
de frente para trás.

Positiva em D1, D2 e aVF. Plus-minus ou minus em


Formato
V1.

Duração Até 100 ms (dois quadradinhos e meio).

INTERVALO PQ lo elétrico obrigatoriamente precisa


passar por essa pausa para chegar
O intervalo PQ (ou PR) normal aos ventrículos e dar início ao com-
vai de 121 a 200 ms, ou seja, > 3 e plexo QRS. Portanto, é esperado que
≤ 5 “quadradinhos” (ou um “quadra- todos possuam um intervalo PQ nos
dão”). É medido do começo da onda limites já citados.
P até com o começo do complexo A redução do intervalo PQ pode,
QRS, tomando como base a deriva- então, significar que há um defeito
ção em que este parecer maior. Às no esqueleto fibroso que está permi-
vezes, é necessário medir o começo tindo a passagem do estímulo elétri-
da P em uma derivação, pois naquela co do átrio para o ventrículo, uma via
se inicia alguns milissegundos antes, acessória, causador da Síndrome de
e o começo do QRS em outra, exa- Wolff-Parkinson-White, um feixe de
tamente aquela em que também se James, causador da extinta Síndro-
inicia sutilmente antes. me de Lown-Ganong-Levine (ambas
O intervalo PQ é o silêncio elé- descritas no capítulo 19) ou uma va-
trico produzido pela passagem do riante do normal.
estímulo elétrico pelas células tran- O alargamento do intervalo PQ
sicionais e pelas poucas junções co- para além de 200 ms pode significar
municantes do nó atrioventricular bloqueio atrioventricular de 1º grau
(AV). Como, em situações normais, (capítulo 6), encontrado em doenças
todos temos um esqueleto fibroso do nó AV e também em indivíduos
que separa completamente as célu- normais: 8% dos homens e 12% das
las atriais das miocárdicas, o estímu- mulheres (1,2).

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O ECG NORMAL

O COMPLEXO QRS Com relação à sua duração, o com-


plexo dura normalmente menos que
Representa a despolarização dos 100 ms, e não deve ultrapassar 120
ventrículos. Na sua abordagem siste- ms (três quadradinhos), indicando um
mática do ECG, é necessário que se ve- atraso na condução dos ventrículos,
rifique seu formato, sua duração, sua seja por uma doença miocárdica ou,
amplitude e seu eixo. mais frequentemente, por bloqueio de
Na análise do formato, o leitor precisa ramo.
avaliar qual o formato do complexo QRS: Com relação à sua amplitude, o
se qRs, rS, etc. Uma forma muito simples, complexo deve ter pelo menos 5 mm
porém, bastante útil para aqueles que em pelo menos uma derivação do
trabalham muito raramente com o ECG plano frontal e 8 mm em pelo menos
e não têm acesso a consultas rápidas é a uma derivação do plano horizontal.
dica a seguir: existem dois padrões ele- Valores abaixo disso são definidos
trocardiográficos básicos mais comuns como "baixa voltagem". A amplitude
em um ECG e podem ser usados para di- máxima depende de critérios que serão
ferenciar um exame normal de um anor- descritos e discutidos no capítulo 7.
mal. A figura 7 exemplifica esses padrões O cálculo do seu eixo é motivo de
e dá a dica preciosa. terror para os alunos da graduação
desde os primeiros semestres da Uni-
Figura 7 - Dica preciosa. Dois complexos QRS
versidade. E, como muitos assuntos
que exemplificam as principais morfologias abordados naquela época, tem seu
encontradas em um ECG. valor. Para falar sobre o eixo cardíaco,
demonstraremos como o ventrículo se
despolariza e como são formados os
clássicos três vetores cardíacos – 1, 2 e
3, ou mais basicamente chamados de
Q, R e S.
Foi um elegantíssimo estudo de
Durrer publicado em 1970 que revo-
lucionou o conhecimento da comuni-
dade médica. Utilizando agulhas com
O complexo da esquerda é tipicamente encontrado em D1, aVF, V4 e V5, microeletrodos em corações humanos
enquanto o complexo da direita é tipicamente encontrado em V1 e V2. Se post-mortem, Durrer definiu a despola-
os passos dessa dica forem desrespeitados em um determinado exame, rização ventricular esquerda e direita
você provavelmente tem um ECG anormal. Claro, essa é uma simplificação conforme será descrito adiante:
extrema do método, mas pode servir aos mais inexperientes e a quem tem Nos primeiros 5 ms do início da
pouco contato com o ECG.
despolarização ventricular, três áreas
são ativadas: uma área para-septal
anterior próxima ao músculo papilar

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CAPÍTULO 4

anterior (região da divisão anteros- (com maior massa e amplitude de ve-


superior), uma área no centro da face tor) e direita e início da parede livre do
esquerda do septo, uma área póste- VE. Após cerca de 10-20 do início até
ro-septal a um terço da distância do 40-50 ms, a segunda fase da despola-
ápice para a base. Essas áreas crescem rização leva em consideração a parede
e se tornam confluentes nos primeiros livre do VE e do VD e a transmissão da
20 ms. A esse ponto, grande parte do onda de despolarização para o epi-
septo e da parede livre já despolariza- cárdio. E a última fase (após 50 ms do
ram. Até 40 ms todo o endocárdio ven- início, durando até os 70 ms) denota a
tricular esquerdo já estará despolariza- despolarização das porções basais de
do. O ventrículo direito começa a sua ambos os ventrículos. Essas três fases
despolarização em torno de 5 a 10 ms formam três vetores.
após o ventrículo esquerdo, inician- O primeiro vetor (0 – 20 ms) que
do a sua ativação no músculo papilar representa basicamente o septo endo-
anterior e indo em direção ao septo e cárdico e o início da parede livre apon-
parede livre, chegando às últimas por- ta da esquerda para a direita e para a
ções (área sub-pulmonar e posteroba- frente. Esse vetor é basicamente cha-
sal) (3) (Figura 8). mado de onda Q, mas essa facilitação
Perceba que a ativação mais inicial acaba se tornando um equívoco, pois
(primeiros 20 ms) denota septo inter- em V1 na verdade temos uma onda r.
ventricular em suas faces esquerda Veja, como o vetor aponta de trás para

Figura 8 - Representação original do artigo de Durrer sobre a ativação ventricular


esquerda e direita.

A ativação vai seguindo a sequência rosa-vermelho claro, escuro, laranja, amarelo, verde e azul. Perceba que o estímulo nasce no septo endocárdico em
direção às paredes livres de ambos ventrículos e ao epicárdio (3).

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O ECG NORMAL

frente, e V1 é uma derivação que en- Figura 9 - Vetor cardíaco no plano frontal
xerga o eixo antero-posterior, nada apontando para inferior e esquerda

mais fácil de compreender que aqui


teremos um vetor positivo. Em V6, por
outro lado, sim temos uma onda Q, visto
que é uma derivação quase oposta a V1.
O vetor 2 (21 – 50 ms) representa o
restante das paredes livres do VE (com
maior força e magnitude) e do VD, as-
sim como a transição do estímulo para
as regiões epicárdicas. Esse vetor se
direciona da direita para a esquerda,
e de cima para baixo. Representa a
maior parte do complexo QRS e é ba-
sicamente chamada de R, mas sofre do
mesmo problema já citado no pará-
grafo anterior – em aVR, por exemplo,
O ciclo de Cabrera é dividido em
esse vetor determina uma onda S.
quatro quadrantes. O quadrante nú-
O vetor 3 (51 – 70 ms) representa as
mero 1 é aquele que está entre D1 (0º)
porções basais, e se direciona de infe-
e aVF (+ 90º), ou seja, normal. O segun-
rior para superior, um pouco para di-
do quadrante está entre D1 (0º) e - aVF
reita e posterior. É, de maneira genera-
(- 90º) e pode ser normal até – 30º, mas
lizada, chamada de “S”, mas representa
a partir daí chamamos esse desvio de
o pequeno r final em aVR.
“desvio de eixo para esquerda”. O ter-
Como o vetor 2 representa a maior
ceiro quadrante é a chamada “terra
magnitude de área cardíaca despolari-
de ninguém” ou "extrema direita", pois
zada, sua representação eletrocardio-
poucas e graves enfermidades desviam
gráfica será mais ampla e importante
o eixo cardíaco para estas posições en-
na análise do exame. Como dissemos,
tre - aVF (- 90º) e - D1 (+ 180º). O quarto
esse vetor, em situações normais,
quadrante está entre aVF (+ 90º) e -D1
aponta da direita para esquerda
(+ 180º) e quando o eixo cardíaco está
e de superior para inferior. O eixo
situado naquele local, chamamos a si-
cardíaco é representado basicamente
tuação de “desvio de eixo para a direita).
pelo vetor 2. Posicionado o vetor 2 no
Veja a figura 10 para entender.
ciclo de Cabrera (plano Frontal), obte-
O leitor atento percebeu que D1
mos a Figura 9.
e aVF são os limites dos quadrantes.
O vetor resultante da atividade ven-
Então, para um cálculo básico, o do
tricular deve se situar entre – 30º e +
quadrante em que o eixo se encontra,
90º no círculo de Cabrera. Ou seja, en-
basta olhar para D1 e aVF. D1 positivo,
tre aVL e aVF.

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CAPÍTULO 4

Figura 10 - Quadrantes do ciclo de Cabrera. Para o cálculo exato do vetor re-


sultante e do eixo cardíaco, o exami-
nador deverá observar os complexos
QRS do plano frontal (ou seja, D1, D2,
D3, aVR, aVL, aVF) e seguir um passo a
passo simples (4):
1. Qual(is) derivação(ões) pos-
sui(em) um complexo isodifásico? (ou
seja, a onda R é de mesmo tamanho da
onda S) – essa pergunta se faz impor-
tante porque complexos isodifásicos
determinam que o vetor está perpen-
dicular (ou seja, a 90º graus, caso você
aVF positivo: quadrante normal; D1 tenha faltado a aula de geometria)
positivo e aVF negativo: possível des- àquela derivação.
vio para esquerda (normal até – 30º); 2. Qual(is) derivação(ões) possui(em)
D1 negativo e aVF positivo: desvio do complexos QRS de maior amplitude (seja
eixo para direita; D1 negativo e aVF ne- positivo ou negativo, mas não isodifási-
gativo: quarto quadrante (Tabela 2). co)? – essa pergunta se faz importante

Tabela 2 - Cálculo do quadrante elétrico do vetor resultante cardíaco.

D1 aVF Quadrante Eixo

Positivo Positivo Normal (0 a + 90º)

Possível desvio para


Positivo Negativo
esquerda (0 a - 90º)

Desvio para direita (+


Negativo Positivo
90º a + 180º)

“Terra de ninguém” (-
Negativo Negativo
90º a + 180º)

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O ECG NORMAL

porque, como já vimos nos capítulos an- Algumas enfermidades alteram o eixo
teriores, o vetor cardíaco estará indo de cardíaco. A Figura 13 resume essas possi-
encontro àquela derivação caso seja mui- bilidades. A Tabela 3 resume as principais
to ampla positiva, e fugindo daquela de- características do complexo QRS normal.
rivação caso seja muito ampla negativa.
Figura 12 - Exemplo de ECG para cálculo de
3. Caso haja duas derivações igual-
eixo cardíaco.
mente amplas, o vetor estará entre elas.
Existe também uma maneira práti-
ca de inferir se o eixo está normal, mas
não calcular seu ângulo. Segue:
4. D1 e D2 são mais positivos que
negativos.
Veja exemplos nas Figuras 11 e 12.

Figura 11 - Exemplo de ECG para cálculo de


eixo cardíaco.

Qual derivação está isodifásica? aVR. O ângulo estará então em + 120


ou – 60º (os dois são perpendiculares a aVR). Qual derivação tem maior
amplitude? D3. O eixo, portanto, está em D3 (+ 120º).

Figura 13 - Diagnósticos diferenciais possí-


veis pelo cálculo do quadrante em que está
presente o eixo cardíaco.

Qual derivação está isodifásica? D2. O ângulo cardíaco estará, então, em


+ 150º ou -30º (perpendiculares a + 60º). Qual derivação tem maior
amplitude? aVL (- 30º), então o ângulo está a -30 graus. Perceba que as
amplitudes de D1 (positiva) e D3 (negativa) são similares, apontando para
algo que está entre D1 e – D3, mais uma vez aVL é a derivação escolhida.
Eixo -30º. BDAS: bloqueio divisional anterossuperior. BDPI: bloqueio divisional
póstero-inferior. HVD: hipertrofia ventricular direito; HVE = hipertrofia
ventricular esquerda.

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CAPÍTULO 4

Tabela 3 - Características normais do complexo QRS.

Significado Despolarização ventricular

Vetor principal De cima para baixo, da direita para esquerda

Eixo Entre – 30º e + 90º (D1 e D2 positivos).

Depende da derivação. Não pode ser menor que 5


Formato mm no plano frontal e 8 mm no plano horizontal.
Geralmente tem uma onda R que cresce de V1 a V5.

Duração Até 120 ms (três quadradinhos).

O SEGMENTO ST cardíaco visto no capítulo 2, a fase de


platô (Figura 14).
O fim do complexo QRS é chamado O segmento ST é, portanto, uma
“ponto J”. É no ponto J que se inicia o fase de silêncio elétrico, já que todas
segmento ST, indo até o início da onda as células miocárdicas estão em platô.
T. Representa o início da repolarização Quando as primeiras células começam
das células ventriculares e está rela- a se repolarizar, a onda T se inicia de
cionada à fase 2 do potencial de ação maneira gradual.

Figura 14 - Comparação temporal entre o ECG de superfície (acima) e o potencial de ação da


célula miocárdica (abaixo). Perceba que o segmento ST (do fim do QRS até o início da T) é
relacionado à fase 2 (platô) do potencial de ação e está ligada ao influxo de cálcio.

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O ECG NORMAL

Figura 15 - Medição do ponto J (ao fim do complexo QRS) demonstrando um ponto J elevado
em relação à linha de base (linha isoelétrica do intervalo PR). Se esse desnivelamento for
maior que 1 mm, é considerado anormal.

O normal é que o ponto J esteja ao cos que acontecem em fases diferen-


mesmo nível da linha de base do ECG tes pelas células endocárdicas, células
ou até 1 mm desnivelado para cima ou M e células epicárdicas. Na verdade, o
para baixo. A linha de base é a linha que acontece é que as primeiras célu-
isoelétrica do intervalo PR (Figura 15). las a serem repolarizadas são as célu-
A exceção à regra se faz nas deriva- las do epicárdio – e você lembra dos
ções V2 e V3, onde até 70% dos ECGs parágrafos anteriores que estas foram
podem conter um supradesnivela- as últimas células a despolarizarem.
mento do segmento ST de até 1,5 mm, Depois do epicárdio, o endocárdio
chegando até 4 mm e se prolongando repolariza e, por fim, as células M (6)
até V6 em algumas situações. Isso se (Figura 16).
dá por estimulação vagal e é mais pro- Veja bem: a onda T é nada menos
nunciado em homens jovens e atle- que a subtração (ou “cancelamento”)
tas (5). Este padrão era antigamente do potencial de ação do endocárdio,
chamado de “repolarização precoce”, do epicárdio e das células M.
termo que deve ser substituído por Para ser ainda mais exato, todo o
“supradesnivelamento inespecífico do ECG parece ser uma ciência de cance-
segmento ST” devido à síndrome de lamento (subtração) de potenciais de
repolarização precoce que tem acha- ação do coração. Primeiro o endocár-
dos diferentes e será discutida com dio despolariza fugindo do eletrodo
mais detalhes no capítulo 24. intracardíaco e gerando um eletrogra-
ma negativo (q), dando origem àque-
A ONDA T las q ou r iniciais em algumas deriva-
ções, dependendo se o eletrodo está
A onda T se inicia quando as pri- visualizando de frente ou por trás esse
meiras células começam a se repola- vetor. Depois vem a passagem trans-
rizar. A sua gênese é complexa e será mural e o passeio para a parede livre
resumida nas próximas linhas. Ela é musculosa indo de encontro ao ele-
uma representação eletrocardiográ- trodo extracardíaco, dando origem à
fica dos potenciais de ação miocárdi- onda R no ECG.

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CAPÍTULO 4

Figura 16 - Tempo em milissegundos, após uma estimulação atrial, em que ocorre a despola-
rização e a repolarização do endocárdio e do epicárdio ventricular (6).

O que acontece agora é similar Figura 17 - Exemplo anedótico que ajuda a


ao que ocorre no exemplo que vou entender o vetor da repolarização.

descrever: um carro vai andando em


direção a um homem parado no fim
de uma rua. Do ponto de vista desse
homem, o que pode ser visto são os
faróis brancos da parte dianteira do
carro (encare isso como o vetor positi-
vo). Esse carro chega perto do homem
e breca. Depois começa a dar ré. O que
o homem parado vê ainda são seus fa-
róis brancos, mas se afastando (o vetor
permanece positivo, mas se afasta do
homem). É assim que ocorre a repola- Na parte superior, um homem observa um carro se aproximando dele com
rização pelo fato de que as últimas cé- os faróis brancos dianteiros apontando em sua direção e ficando cada vez
lulas despolarizadas são as primeiras a mais próximos dos seus olhos. A ponta do vetor é representada por esses
repolarizarem (Figura 17). faróis, pois sugere a positividade. Na parte inferior, o carro se afasta de ré,
Quando o epicárdio inicia sua repo- mas segue apontando seus faróis brancos dianteiros para o homem, dessa
larização, ele reduz as forças positivas vez deixando-os cada vez mais longe, ficando o vetor positivo cada vez me-
que “olhavam” para o eletrodo extra- nor, mas ainda positivo. É isso que ocorre com o potencial de ação da célula
cardíaco (homem no final da rua), mas miocárdica e é o fato de que o epicárdio repolariza primeiro que faz com
ainda deixa células endocárdicas des- que esse exemplo seja adequado.

polarizadas, portanto, fazendo a onda


T “subir” no ECG – afinal o cancelamen-
to de forças positivas só ocorreu em

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ECG Completo.indb 78 26/08/2019 09:26:37


O ECG NORMAL

um dos locais. Essa subida da onda T Agora imagine o que ocorre quan-
persiste até o momento em que o en- do o endocárdio, por um motivo de
docárdio começa a também se repo- isquemia, repolariza primeiro. O ve-
larizar, quando as forças positivas que tor positivo vai ser direcionado agora
estavam “sobrando” no endocárdio para o eletrodo intracardíaco, sentido
acabam desaparecendo, começando a oposto ao eletrodo extracardíaco. No
porção descendente da T e trazendo-a nosso exemplo do homem no fim de
para a linha de base. Depois disso, ain- uma rua, ele vai enxergar as luzes ver-
da as células M persistem repolarizan- melhas da traseira do carro (ou seja, a
do, mas sem uma importante interfe- cauda do vetor) se aproximando dele.
rência eletrocardiográfica (Figura 18). Por isso, em isquemia, o segmento ST
e/ou a onda T são negativas.
Figura 18 - A repolarização ventricular é um Dessa anedota, podemos obter al-
cancelamento dos potenciais de ação do gumas conclusões importantes, preste
endocárdio, epicárdio e células M. atenção:

1. Uma despolarização que vai de


encontro a um eletrodo gera uma
onda positiva.
2. Uma repolarização indo em sen-
tido oposto a um eletrodo gera uma
onda positiva.
3. As ondas T são usualmente posi-
tivas na maioria das derivações porque
as últimas células a despolarizarem são
as primeiras a repolarizarem (Figura 19).

As alterações secundárias à isquemia


serão vistas com detalhes no capítulo 12.
A onda T normal é concordante
com o QRS e assimétrica.
a: epicárdio já iniciou sua repolarização ficando menos positivo, enquanto a
positividade do endocárdio permanece mais importante, isso faz com que INTERVALO QT
a onda T comece a crescer. b: o epicárdio inteiro já repolarizou. A T agora
começa a perder a positividade à medida que as últimas células do endo- É a representação gráfica da dura-
cárdio também repolarizam, até chegar à linha de base. c: o endocárdio ção dos potenciais de ação de todas as
inteiro repolarizou, trazendo a onda T para a linha de base. d: as células M células cardíacas durante um batimen-
são as últimas a se repolarizarem. to cardíaco, visto que se vai do início
do complexo QRS até o fim da onda T,
englobando também o segmento ST.

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ECG Completo.indb 79 26/08/2019 09:26:37


CAPÍTULO 4

Seus valores de normalidade variam a onda U e frequências cardíacas mais


de acordo com o sexo e idade. E a sua elevadas, que sobrepõem a onda P à
medição é motivo de muitas dúvidas, onda U. Desse modo, convencionou-se
que vamos solucionar agora. medir apenas o intervalo QT, mesmo
Dúvida número 1: em qual deriva- que você veja a onda U. Isso não impe-
ção medir? Historicamente o intervalo de, porém, que você avalie a morfologia
QT se mede em D2, visto que desde e duração da U, visto que há síndromes,
o trabalho seminal de Bazett, foi usa- como a de Andersen-Tawil, que atuam ali.
do D2. Nossa recomendação é que se Dúvida número 3: se eu não meço
meça também em V3-V5, consideran- a U, como saber onde terminou a onda
do o maior resultado (7). T e começou a onda U? A forma mais
Dúvida número 2: e a onda U? aceita é considerar o intervalo PR
Ela será detalhada no próximo tópico, como linha de base, depois visualizar a
mas já adianto que faz parte da repo- porção final da onda T e desenhar uma
larização do miocárdio, então, deveria linha tangente. Onde essas duas linhas
sim ser medida. Porém, existem difi- se cruzarem, temos o final da onda T.
culdades como filtros que escondem Veja um exemplo na Figura 20.

Figura 19 - Demonstração mais exata do que ocorre na repolarização cardíaca. Na parte


superior, a seta cheia demonstra a despolarização indo de encontro a um eletrodo extracar-
díaco e dando origem à onda R do ECG. As setas tracejadas demonstram o coração repola-
rizando em sentido oposto. Como vimos na regra número 2 do texto e como explicado nos
parágrafos anteriores, uma repolarização indo em sentido oposto a um eletrodo gera uma
onda positiva, por isso a onda T é positiva na maior parte das derivações do ECG. Na parte
inferior da figura, verificamos a relação temporal dos potenciais de ação epicárdicos e endo-
cárdicos. É quando o epicárdio começa a repolarizar e o endocárdio permanece despolariza-
do que a onda T cresce sua positividade. Quando também o endocárdio repolariza, a onda T
tem sua porção negativa, voltando à linha de base.

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O ECG NORMAL

Figura 20 - Medição correta do intervalo QT quando uma onda U está presente.

Apesar da onda U também significar repolarização miocárdica, foi convencionado que ela não será medida. O correto é desenhar uma linha na tangente da
porção final da onda T e outra linha na linha de base do ECG (correspondente ao intervalo PR). O ponto de encontro entre essas duas linhas será o fim da onda T.

Dúvida número 4: já ouvi falar mais elevadas que 100 por minuto,
que o intervalo deve ser corrigido pela mas também falha nas bradicardias
frequência cardíaca. Sim. Você ouviu (9). Framingham (10) e Hodges (11)
correto. O intervalo deve ser corrigido são métodos mais recentes que usam
pela frequência cardíaca porque os ca- fórmulas lineares de correção, ao invés
nais responsáveis pela repolarização de raízes quadradas ou cúbicas. As fór-
do potencial de ação (vide capítulo 2) mulas, que você usará um smartphone
têm sua abertura modificada pela fre- para calcular, estão descritas na Figu-
quência cardíaca, alterando assim sua ra 21. As fórmulas lineares, Hodges e
duração. Mas como corrigir? A primei- Framingham, são mais reprodutíveis
ra fórmula foi proposta por Bazett, e é a frequências cardíacas mais variadas
até hoje a mais utilizada (8) e envolve (12) e são aconselhadas pelo autor.
uma raiz quadrada para seu cálculo Para pacientes com bloqueio de ramo
– o autor recomenda o uso de calcu- esquerdo, a recomendação é que se
ladoras em smartphones. A fórmula subtraia 50% do valor do QRS da con-
de Bazett, no entanto, demonstrou-se ta total do intervalo QT (13). Em casos
falha nas frequências cardíacas fora de ritmos cardíacos irregulares, como
da faixa de 60-100 batimentos por mi- no caso da fibrilação atrial, a fórmula
nuto. A fórmula de Fridericia, também de Fridericia parece ser a que possui
proposta em 1920, e que envolve uma melhor correlação em comparação a
raiz cúbica em seu cálculo revelou-se Bazett e Framingham (Hodges não foi
mais acurada a frequências cardíacas comparado) (14).

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CAPÍTULO 4

Figura 21 - Fórmulas para correção do inter- je, (2) repolarização tardia de músculos
valo QT de acordo com a frequência cardíaca. papilares, (3) forças eletromecânicas e
(4) repolarização de células M (17).
O intervalo entre o fim da onda T
e o ápice da onda U é usualmente de
100 ms, sem relação com a frequên-
cia cardíaca. Sua distinção da onda T
pode ser difícil, especialmente quando
a onda T é bífida ou mesmo em casos
em que há fusão da onda T com a onda
U. Algumas manobras podem ser usa-
das para diferenciá-las: a distância de
100 ms já citada e a correlação tempo-
ral que essa onda possui com a segun-
HR = heart rate (frequência cardíaca em batimentos por minuto); RR = da bulha cardíaca.
intervalo de uma onda R para outra em milissegundos. As características de normalidade
da onda U são: possuem a mesma
polaridade da onda T. Dura em tor-
Dúvida número 5: qual o valor no de 170 ms (± 30 ms) em adultos
normal do intervalo QT? O leitor deve e tem uma amplitude de até 25% da
ter em mente que não há um valor es- amplitude da onda T. Sua morfologia
tabelecido na literatura. Há uma inter- é definida como uma porção ascen-
secção de intervalos QTs de indivíduos dente rápida e uma porção descen-
doentes e sadios (15). Os valores acima dente lenta (o oposto do que ocorre
e abaixo do percentil 2,5 para norma- com a onda T).
lidade do intervalo QT são considera- A onda U é frequentemente negli-
dos pontos de corte: acima de 450 ms genciada na análise do ECG, mas sinais
para homens e 460 ms para mulhe- como inversão de onda U são de imen-
res (16). Valores abaixo de 350 ms para sa importância clínica, podendo estar
homens e 360 ms para mulheres são presente em até 20% dos ECGs isquê-
considerados anormais. Veremos mais micos.
detalhes sobre as Síndromes do QT As características normais de cada
longo e curto no capítulo 24. onda, intervalo ou segmento visto até
aqui serão resumidas na Tabela 4.
ONDA U

Está presente em 25% dos ECGs.


Possui um significado ainda indefinido.
Postula-se que pode se tratar da (1) re-
polarização tardia de fibras de Purkin-

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O ECG NORMAL

Tabela 4

Item Duração (ms) Amplitude (mm) Eixo médio


Até 2,5 em D2 e 1,5 em Entre 0º e 90º (positivo
Onda P Até 100
V1. em D1, D2 e aVF).

Intervalo PR 120 a 200

> 5 em qualquer deriva-


ção do plano frontal e > Entre – 30º e + 90º (Posi-
Complexo QRS Até 120
8 em qualquer derivação tivo em D1 e D2).
do plano horizontal.

Até 450 em homens e


Intervalo QT
460 em mulheres

Desnível de até 1 mm
Segmento ST (V2 e V3 dependem do
sexo e idade).

Acompanha o eixo do
Onda T
QRS.

Onda U Até 200 ms Até 25% da onda T. Acompanha o eixo da T.

VARIANTES DA NORMALIDADE Padrão de bloqueio de ramo di-


reito de primeiro grau: a presença
Achados variados de um padrão rSr’ em V1 é um acha-
do frequente em indivíduos jovens.
Padrão QIII: a presença de uma O achado de um r’ < r é crucial para o
onda Q em D3 isolada pode ser nor- estabelecimento de uma variante da
malmente encontrada em alguns indi- normalidade. Caso o r’> r, ainda assim
víduos. a variante da normalidade é a primeira
Padrão QSV1/V2: a ausência de onda hipótese, mas doenças do ventrículo
R nessas derivações é uma variante direito precisam ser descartadas.
do normal, não sendo diagnóstico de
infarto anterosseptal na maioria dos Rotações do coração
casos (18). Algumas vezes está rela-
cionada ao posicionamento alto (no O coração pode “estar rodado” tri-
segundo espaço intercostal) de ele- dimensionalmente no tórax de um pa-
trodos. ciente.

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CAPÍTULO 4

Uma pessoa mais longilínea pode nesses indivíduos, em V2, a onda R já


ter um coração verticalizado com o é maior que a onda S. Pode ocorrer em
eixo mais próximo de + 90º que de 0º. até 10% das crianças, mas em apenas
A aVL nessas situações pode até ter P e 1% dos adultos. Até os 8 anos de ida-
QRS negativos. de, o coração da criança é tipicamente
Um coração horizontalizado é visto rodado anti-horário, com um R>S já
em pessoas obesas e tem seu eixo di- em V1, padrão que pode persistir até
recionado para próximo de - 20º, mas a adolescência. O diagnóstico dife-
não ultrapassando – 30º (Figura 22). rencial se faz com zona inativa lateral,
miocardiopatia hipertrófica e pré-exci-
Figura 22 - Corações com eixos verticalizados
tação ventricular por uma via acessó-
(longilíneos), intermediários e horizontais
ria.
(obesos). É importante enfatizar que algumas
vezes as rotações horária e anti-horária
podem ser causadas pelo simples arte-
fato de posicionamento errado de ele-
trodos fora do espaço intercostal em
que devem estar posicionados.

Variações de acordo com o sexo

As amplitudes do QRS em deriva-


ções do plano horizontal tendem a ser
menores em mulheres, possivelmente
Uma rotação horária do coração
por influência do tecido adiposo e da
em seu eixo ocorre quando a “zona de
mama (19). Em mulheres, a onda T ten-
transição” (guarde esse conceito, pois
de a ser invertida em V1 e pode ser in-
será muito usado nesse livro), ou seja, a
vertida até V3. Também nas mulheres,
derivação do plano horizontal em que
em derivações inferiores pode haver
a onda R passa a ser maior que a onda
alguma alteração do segmento ST. Mu-
S, é desviada para derivações mais à
lheres também possuem um intervalo
esquerda. Esse padrão é também cha-
PR e um complexo QRS sensivelmente
mado de “progressão lenta de R nas
mais curtos que o dos homens.
precordiais” e pode estar presente
em situações de normalidade, nos blo-
Variações de acordo com a raça
queios divisionais e nas zonas inativas
por infarto do miocárdio prévio.
Na rotação anti-horária ocorre o Pessoas da raça negra podem apre-
oposto: a transição ocorre já em V2: sentar inversão de onda T em V1-V3,

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O ECG NORMAL

especialmente as mulheres (20). Na


raça chinesa, a inversão de T isolada
em V3 também é vista com prevalên-
cia de até 10% (21).

Variações de acordo com a idade

O fator que mais influencia o ECG


é a idade, considerando desde o re-
cém-nascido até o idoso. O ECG de
recém-nascido e da pediatria no geral
será analisado no capítulo 28. As maio-
res diferenças do idoso em relação ao
adulto são: (1) menor amplitude e du-
ração do complexo QRS e maior inter-
valo PR.

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CAPÍTULO 4

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