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Programa PET Saude Trajetoria 2009 2010
Programa PET Saude Trajetoria 2009 2010
ISSN 0103-1104
506 4 EDITORIAL • EDITORIAL
512 13 APRESENTAÇÃO • PRESENTATION
ARTIGOS ORIGINAIS • ORIGINAL ARTICLES
Pesquisa
514 Violência conjugal: elementos que favorecem o reconhecimento do agravo
Marital violence: factors that favor the recognition of appeal
Nadirlene Pereira Gomes, Talita Castro Santos Garcia, Clarissa da Rocha Conceição, Paula de Oliveira Sampaio,
Vanessa de Carvalho Almeida, Gilvânia Patrícia do Nascimento Paixão
Pesquisa
523 A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de
sua família
The women insertion in the labour market and its implications for the food habits of women and their families
Cristina Teixeira Lelis, Karla Maria Damiano Teixeira, Neuza Maria da Silva
Pesquisa
533 Sustentabilidade econômica das instituições de longa permanência para idosos
Economic sustainability of long-stay institutions for the elderly
Fátima de Souza Freire, Luiz Henrique de Mendonça, Abimael de Jesus Barros Costa
Pesquisa
544 Intersetorialidade: possibilidade de parcerias entre a Estratégia Saúde da Família e a Pastoral da Criança
Intersectoriality: possibility of partnerships between the Family Health Strategy and the Pastoral Care of the Child
Fabrine Costa Marques, Karine Suene Mendes Almeida Ribeiro, Warley Queiroz Santos
Pesquisa
554 Notas de participação do CEBES na organização da 8ª Conferência Nacional de Saúde: o papel da Revista Saúde
em Debate
Notes about the participation of CEBES in the organization of the 8th National Health Conference. The role of Revista Saúde em
Debate
Daniela Carvalho Sophia
Pesquisa
562 Práticas para a saúde: avaliação subjetiva de adolescentes
Practices for health: subjective evaluation of adolescents
Greice de Brito Souza, Simone Rennó Junqueira, Maria Ercilia de Araujo, Carlos Botazzo
Pesquisa
572 Participação Social e protagonismo em saúde mental: a insurgência de um coletivo
Social participation and protagonism in mental health: the rising of a collective
Diogo Faria Corrêa da Costa, Simone Mainieri Paulon
Pesquisa
583 A prática profissional nos Centros de Atenção Psicossocial II (CAPS II), na perspectiva dos profissionais de saúde
mental de Santa Catarina
Professional practice in Psychosocial Care Centers II (CAPS II) in the perspective of mental health professionals of Santa Catarina
Fernanda Martinhago, Walter Ferreira de Oliveira
Pesquisa
595 Práticas inclusivas extramuros de um Centro de Atenção Psicossocial: possibilidades inovadoras
Extramural inclusive practices of a Psychosocial Care Center: innovative opportunities
Elisângela Braga de Azevedo, Maria de Oliveira Ferreira Filha, Mayra Helen Menezes Araruna, Rafael Nicolau Carvalho, Renata
Cavalcanti Cordeiro, Vagna Cristina Leite da Silva
Pesquisa
606 Mudanças psicossociais no contexto familiar após a desospitalização do sujeito com transtornos mentais
Psychosocial alterations in family context after desospitalization of the individual with mental disorders
Aline Aparecida Costa, Érika Renata Trevisan
Relato de experiência
615 Percepções de coordenadores de unidades de saúde sobre a fitoterapia e outras práticas integrativas e
complementares
Perceptions of health unit coordinators on Phytotherapy and other integrative complementary practices
Dayane Cordeiro Machado, Silvia Beatriz Costa Czermainski, Edyane Cardoso Lopes
Revisão
624 Programas de intervenção nas escolas brasileiras: uma contribuição da escola para a educação em saúde
Intervention programs in Brazilian schools: a contribution of school to health education
Ahécio Kleber Araújo Brito, Francisca Islandia Cardoso da Silva, Nanci Maria de França
Revisão
633 Doação de órgãos: é preciso educar para avançar
Organ donation: you need to educate to advance
Taise Ribeiro Morais, Maricelma Ribeiro Morais
Revisão
640 A regulação em saúde: aspectos conceituais e operacionais
Health regulation: conceptual and operational aspects
Geisa Cristina Modesto Vilarins, Helena Eri Shimizu, Maria Margarita Urdaneta Gutierrez
Revisão
648 Etnia e gênero como variáveis sombra na saúde mental
Ethnicity and gender as variable shadow on mental health
Lucia Cristina dos Santos Rosa, Rosana Teresa Onocko Campos
Revisão
657 Autonomia do idoso e suas implicações éticas na assistência de enfermagem
Autonomy of the elderly and its ethical implications on nursing care
Juliana Xavier Pinheiro da Cunha, Jussiara Barros Oliveira, Valéria Alves da Silva Nery, Edite Lago da Silva Sena,
Rita Narriman Silva de Oliveira Boery, Sergio Donha Yarid
Revisão
665 Medical Savings Accounts: experiências internacionais no contexto adverso da individualização do risco
Medical Savings Accounts: international experiences in an adverse scenario of risk individualization
Pedro Paulo de Salles Dias Filho
Relato de Experiência
678 Programa PET-Saúde: trajetória 2009-2010, na Universidade de Brasília
PET-Health Program: 2009-2010 course at the University of Brasilia
Remulo Orlando Borges da Silva, Elioenai Dornelles Alves, Dandara Sampaio Leão de Carvalho, Diego Martins Mesquita
Ensaio
684 Falta um pacto na Saúde: elementos para a construção de um Pacto Ético-Político entre gestores e
trabalhadores do SUS
Lack of a Covenant in Health: elements for building a Political-Ethical Pact between managers and workers in the SUS
Geovani Gurgel Aciole
Ensaio
695 Encontro terapêutico ou processo-metamorfose: desafio dos serviços territoriais e comunitários
Therapeutic encounter or process-metamorphosis: the challenge of territorial and community services
Fernando Sfair Kinker
EDITORIAL • EDITORIAL
Editorial
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EDITORIAL • EDITORIAL
gestor público dessa área deve ser assumido no sentido de garantir o acesso univer-
sal e igualitário para todos, por meio de um sistema descentralizado, regionalmente
organizado e com controle social.
Esse sistema – idealmente projetado – se fundamenta em uma concepção
ampliada de saúde, entendendo que o processo de adoecimento ocorre a partir
das condições concretas de existência das pessoas, ou seja, das condições de vida,
de trabalho, de lazer, de moradia, alimentação, educação, transporte e de acesso
aos bens e serviços de saúde. Assim, para promover e prevenir os agravos à saúde,
é necessária uma ação Intersetorial em que o ponto de partida até possa ser uma
necessidade do setor de saúde, mas as ações não necessariamente se limitem a ele.
Logo, o compromisso com a solução dos problemas de saúde do município não é
só da secretaria de saúde, mas de toda a gestão municipal.
No Brasil, segundo dados do IBGE, 75% dos municípios têm até 20 mil
habitantes, onde residem 20% da população brasileira (33,9 milhões de pessoas).
A maior concentração se encontra em onze municípios, com mais de 1 milhão de
habitantes (29 milhões de pessoas residem nessas grandes cidades, ou seja, 14% da
população brasileira). Nesse meio estão os outros 25% dos municípios e 66% da
população.
Para organizar um sistema de saúde para essa população, residente em mu-
nicípios com tais características, criaram-se as regiões de saúde que devem ser or-
ganizadas de forma a atender a todas as necessidades de saúde da população (das
menos às mais complexas). Tal fato implica, para os gestores da saúde, níveis de
responsabilidade crescentes, de acordo com o porte do município e o seu papel
na composição dessas regiões. Mas, mais que isso, requer dos gestores um grau de
solidariedade que ultrapassa o ‘individualismo municipal’, competitivo, para se
compreender como parte integrante de uma rede de atenção que visa a melhorar a
vida de todo brasileiro.
Essa visão solidária entre municípios, estados e governo federal é fundamental
para a realização do SUS, mas ainda está por ser construída, não só no setor saúde,
mas em toda a sociedade brasileira, marcada pela lógica capitalista e pela suprema-
cia do individualismo sobre o coletivo.
A lógica de mercado, que orienta as sociedades capitalistas, como a nossa, na
qual a busca por lucro não encontra limites, também viceja no campo da saúde
brasileira, ameaçando o Sistema Único de Saúde devido ao poder crescente do
setor privado sobre o setor público.
Aos novos gestores municipais, lembramos o compromisso ético com a me-
lhoria da saúde de toda a população, ao menor custo possível, já que estão ad-
ministrando recursos públicos. Isso exige a organização e a defesa de um sistema
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EDITORIAL • EDITORIAL
A Diretoria Nacional
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EDITORIAL • EDITORIAL
Editorial
F rom the creation of the Unified Health System (Sistema Único de Saúde —
SUS) in 1988, the city administration now has key role in health care to the
population. If before the SUS few municipalities had health departments, now we
can say we have 5565 offices whose managers have a responsibility to ensure the
right to health, as expressed in the Brazilian Constitution.
It is in this level of public management that the demands for health care are
presented by population, and it is this level of management, supported by state
and federal governments, should ensure provision and access to health services, ac-
cording to the needs of that . This assignment is one of the most complex that the
city administration owns in the field of public policy. In that sense, administrative,
organizational and human resources structures of local health departments should
have priority in the municipal scope if indeed one wants to meet the constitutional
precepts in this area.
The starting point of municipal managers should be the establishment of a
team technically prepared to consider the health of the municipality. This is parti-
cularly important when we know that the choice of secretaries is not usually given
on technical but political basis. This characteristic of the policy of the Brazilian
government has been one of the barriers to the advancement of SUS. The latest
National Health Conferences recommend that SUS managers positions should be
occupied by competent and committed professionals as well as members of the he-
alth career. CEBES has underscored the importance that health is not a bargaining
chip policy in the composition of governments and that, from this perspective, is
allied to the need for qualification and commitment as a prerequisite for managers.
The knowledge and ownership of the functioning of the Brazilian health sys-
tem are tasks too difficult to grasp in a short space of time, both by the complexity
of the demands of health and by the legislation governing the sector. Hence, there
is the need for managers to lean on teams that can give continuity to policies and
programs under way, and who are able to plan and implement changes based on
clear objectives to where we want to go with the Brazilian health sector. The goal-
image of SUS is expressed in the Constitution through its principles and guide-
lines, i.e. the commitment of every public manager in this area must be taken to
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EDITORIAL • EDITORIAL
ensure universal and equal access for all, through a system decentralized, regionally
organized and under social control.
This system - ideally designed - is based on a broad concept of health, by
understanding that the disease process that occurs from the concrete conditions
of existence of the people, ie., living conditions, work, leisure, housing, food, edu-
cation, transport and access to goods and health services. Thus, to promote and
prevent health problems, Intersectoral action is required, in which the starting
point may even be a necessity of health sector, but the actions are not necessarily
limited to it. Therefore, commitment to solve health problems of the municipality
should not be attributed only to the health department, but to the entire munici-
pal management as a whole.
In Brazil, according to IBGE data, 75% of municipalities have up to 20 thou-
sand inhabitants, where 20% of the population (33.9 million people) reside. The
largest concentration is in eleven cities with over 1 million inhabitants (29 million
people live in these cities, i.e. 14% of the population). In between are the other
25% of municipalities and 66% of the population.
To organize a health care system for this population living in cities with such
characteristics, were created health regions that should be organized in order to
meet all the health needs of the population (from least to most complex). This
fact implies, for health managers, increasing levels of responsibility, according to
the size of the city and its role in the composition of those regions. But more than
that, managers are required to have a degree of solidarity that goes beyond the
competitive ‘municipal individualism’, in order to be understood as integral part
of a network of care that aims to improve the life of every Brazilian
This vision of solidarity among municipalities, states and the federal gover-
nment is critical to the accomplishment of the SUS. However it is yet to be built,
not only in the health sector, but in all of Brazilian society, marked by capitalist
logic and supremacy of individualism over the collective .
The market logic that drives capitalist societies, like ours, in which the quest
for profit finds no limits, also thrives in brazilian health, threatening the SUS due
to the rising power of the private sector over the public sector.
To the new municipal managers, we remember the ethical commitment to
improving the health of the whole population at the lowest possible cost, since they
are managing public resources. This requires the organization and defense of an
independent public health system, and is opposed to any mechanism to facilitate
profitability in the healthcare field.
In this sense, the municipal health councils have important role in exercising
social control over the actions of the State, represented in municipal management.
However we must remember, in this case too, that the ethical commitment to the
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EDITORIAL • EDITORIAL
defense of the public SUS should override any personal or corporate interest or of
specific groups, represented by the different segments that make up the boards of
health.
We know it will not be easy for new managers to handle expectations and
interests of the different groups that make up society, but we expect that thousands
of secretaries of health, who will take office on January 1, 2013, to assume, in fact,
commitment to guarantee the right to health.
CEBES welcomes the new health managers. To those who already militate in
this field and defend the public SUS, equal for all Brazilians, certainly we will be
joined in the struggles ahead.
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APRESENTAÇÃO • PRESENTATION
Apresentação
Paulo Amarante
Editor Científico
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APRESENTAÇÃO • PRESENTATION
Presentation
W e have reached the end of the year 2012 certain that Saúde em Debate met
its goal of publishing what is most important and current on scientific pro-
duction and policy in the field of public health. The periodicity, which changed
from four-month period to quarterly since the previous year, was rigorously main-
tained and this enabled the magazine to reach regularly to subscribers, that fact,
coupled with the expansion and qualification of the Editorial Board and the Body
of Reviewers, was also possible to publish more articles by number. The number of
articles published in the year increased significantly due to these measures.
On the other hand, 2012 was also a year quite significant for CEBES as a
whole, either by its participation in events of national and international scope,
either by its permanent political involvement in the National Health Council and
other forums for public engagement, and yet by the implementation and conso-
lidation of the Training and Citizenship Project for SUS, developed from coo-
peration between the Open University of SUS (Universidade Aberta do SUS —
UNA-SUS) and CEBES whose supporters are OPAS and the Ministry of Health.
The courses offered in various big cities with the support and participation of its
regional centers gave rise to ten e-books that will be available on the website of
CEBES and UNA-SUS.
Within the scope of events, noteworthy highlights to the participation of
CEBES at the People’s Summit, which happened with the Rio +20 Conference, for
which a special issue of Journal Saúde em Debate was released, with articles from re-
cognized experts on the subject Health and Environment, and yet its participation
in the Congress of the XII Latin American Social Medicine and Collective Health.
Continuing the proposal of the covers in this year, based on the principle that
health is culture, culture is health, each one of the covers mentions an expression
of popular manifestations of culture. This number reminds us of the multicolored
marbles, so common in childhood games and play all over Brazil...
Happy reading!
Paulo Amarante
Scientific Editor
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 513-513, out./dez. 2012 513
ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
Nadirlene Pereira Gomes1, Talita Castro Santos Garcia2, Clarissa da Rocha Conceição3,
Paula de Oliveira Sampaio4, Vanessa de Carvalho Almeida5, Gilvânia Patrícia do Nascimento Paixão6
1
Doutora em Enfermagem pela Escola
de Enfermagem da Universidade Federal
RESUMO Estudo qualitativo, com objetivo de apontar elementos que favoreçam o recon-
da Bahia (EEUFBA) – Salvador (BA), Brasil.
Professora Adjunta da EEUFBA – Salvador
hecimento da violência conjugal como agravo à saúde das mulheres. Realizaram-se entre-
(BA), Brasil.
nadirlenegomes@hotmail.com
vista e Análise Temática. O estudo revelou que, além das manifestações visíveis decorren-
2
Especialista em Saúde da Família pela
tes da agressão física, a violência conjugal guarda relação com o aborto provocado e com
Secretaria de Saúde do Estado da Bahia
(SESAB) – Salvador (BA), Brasil. Técnica
aspectos da saúde mental, tal como a depressão. Os profissionais de saúde suspeitam de
Sanitarista da Diretoria de Gestão do Trabalho
e Educação na Saúde da Secretaria de Saúde violência doméstica diante das sequelas físicas, o que permeia a formação tecnicista de va-
do Estado da Bahia (DGTES/SESAB) – Salvador
(BA), Brasil. lorização dos aspectos clínicos. Faz-se necessário espaço de discussão sobre a temática da
talygarcia@yahoo.com.br
violência doméstica contra a mulher e sobre as questões de gênero durante a formação.
3
Graduada em Enfermagem pela Escola de
Enfermagem da Universidade Federal da
Bahia (EEUFBA) – Salvador (BA), Brasil.
PALAVRAS CHAVE: Violência doméstica; Profissionais da saúde; Qualificação profissional.
calirocha@gmail.com
4
Especialista em Enfermagem em
Emergência pela Atualiza cursos - Salvador
(BA), Brasil. ABSTRACT Qualitative study aiming to point out elements that favor the recognition of ma-
pou_sampaio@yahoo.com.br
rital violence as injury to women’s health. We conducted interviews and thematic analysis to
5
Enfermeira pela Escola de Enfermagem da
Universidade Federal da Bahia (EEUFBA) – organize the raw material. The study revealed that besides the visible manifestations resulting
Salvador (BA), Brasil.
vanessacarvalho87@yahoo.com.br from physical assault, domestic violence is related to the abortion and mental health aspects,
6
Mestranda em Enfermagem pela Escola such as depression. Health workers suspected of domestic violence injuries on physical sequelae,
de Enfermagem da Universidade Federal
da Bahia (EEUFBA) – Salvador (BA), Brasil. which permeates the technical education to clinical recovery. It is necessary space for discussion
Professora Auxiliar da Universidade Estadual
da Bahia (UNEB) – Salvador (BA), Brasil. on the topic of domestic violence against women and on gender issues during training.
gilvania.paixao@gmail.com
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GOMES, N.P.; GARCIA, T.C.S.; CONCEIÇÃO, C.R.; SAMPAIO, P.O.; ALMEIDA, V.C.; PAIXÃO, G.P.N. • Violência conjugal: elementos que favorecem o reconhecimento do
agravo
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 514-522, out./dez. 2012 515
GOMES, N.P.; GARCIA, T.C.S.; CONCEIÇÃO, C.R.; SAMPAIO, P.O.; ALMEIDA, V.C.; PAIXÃO, G.P.N. • Violência conjugal: elementos que favorecem o reconhecimento do
agravo
um problema de saúde pública, uma vez que afeta não Considerando as repercussões da violência con-
só as vítimas, mas também traz implicações para toda jugal para o setor da saúde e a importância dos pro-
a sociedade. fissionais na identificação desse agravo, no sentido
Pesquisa realizada com mulheres atendidas nas de prevenir e enfrentar a problemática, o presente
clínicas de dor do Rio de Janeiro, que referem dores estudo tem como objetivo apontar elementos que
sem causa palpável, detectou que mais de 90% das favoreçam o reconhecimento da violência conjugal
clientes atendidas tinham sofrido ou continuavam como agravo à saúde das mulheres.
sofrendo violência dentro de casa, sendo que 43% ti-
nham sofrido ou sofriam especificamente a violência
sexual (DOMINGUES; MACHADO, 2011). Métodos
Estudos revelam que mulheres em situação de vio-
lência conjugal apresentam maior chance de realizarem O estudo foi realizado em serviços que integram a
aborto ou de terem crianças com baixo peso ao nascer Rede de Atenção a Pessoas em Situação de Violên-
(LOURENÇO, 2006; DINIZ et al, 2009). Estudo re- cia na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Colabora-
alizado com 906 laudos médico-legais de pessoas com ram com o estudo, sete serviços: Centro de Orien-
queixa de violência mostrou que as mulheres em situ- tação Familiar (COF), Centro de Referência Loreta
ação de violência conjugal são mais vitimizadas, quase Valadares (CRLV), 2 hospitais de urgência e emer-
sempre apresentando ferimento na boca ou na região gência, 01 maternidade e 02 unidades de saúde de
mandibular (FARIA, 2006). pronto atendimento. O COF é uma entidade civil
A vivência de violência doméstica traz prejuízos com fins não econômicos, existente em todo o Bra-
nas esferas do desenvolvimento físico e psicológico. sil, com missão de prestar serviço social, psicológi-
Mulheres em situação de violência referem hipertensão co e terapêutico para ajudar famílias em situação de
arterial, estresse, depressão, ansiedade, compulsão, per- vulnerabilidade, sobretudo no sentido de favorecer
da ou aumento excessivo de peso, aborto, entre outros as relações interpessoais entre os casais. O CRLV é
danos físicos e psicológicos. Nesse contexto, a vivência um centro de referência na Bahia, que oferece aten-
de violência desencadeia vários problemas de saúde e re- dimento jurídico, psicológico e social para mulheres
presenta uma ameaça à vida (GUEDES; SILVA; FON- em situação de violência e atenção pedagógica aos
SECA, 2009; DINIZ et al, 2009). Assim, independen- filhos das usuárias. No caso das instituições de saúde,
temente do espaço de saúde, os serviços de saúde são as mesmas integram serviços de pronto atendimento
locais estratégicos para a identificação de mulheres em e ambulatorial que compõem a esfera pública, priva-
vivência de violência. da e filantrópica. A escolha desses estabelecimentos
Gomes (2009), entretanto, sinaliza para o des- se justifica por se tratar de locais que contemplam
preparo do profissional, que muitas vezes não sabe ou tanto o nível ambulatorial como emergência e urgên-
não direciona sua escuta e seu olhar para diagnosticar cia, e que, portanto, encontram-se em posição estra-
uma situação de violência. A autora refere que os pro- tégica para identificação dos casos de violência.
fissionais, inclusive das unidades de emergência, pouco A aproximação com esses serviços foi viabiliza-
relacionam os problemas que levam as mulheres aos ser- da pelo apoio do Fórum de Combate à Violência,
viços de saúde com a situação de violência. Necessário que auxiliou no processo de identificação e contato
se faz um cuidado em saúde que garanta o atendimento com as instituições. Os serviços foram contatados
integral à mulher em situação de violência doméstica, quando foram esclarecidos os objetivos e a relevân-
o que requer investigação do agravo, cuidado prestado cia do estudo, e solicitada a permissão para a coleta
técnica e legalmente e encaminhamentos para outros de dados. Os sujeitos, escolhidos de forma aleatória,
serviços da rede de atenção à mulher em situação de foram convidados a colaborar com o estudo. Partici-
violência. param dele 12 profissionais, sendo 02 psicólogos, 06
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GOMES, N.P.; GARCIA, T.C.S.; CONCEIÇÃO, C.R.; SAMPAIO, P.O.; ALMEIDA, V.C.; PAIXÃO, G.P.N. • Violência conjugal: elementos que favorecem o reconhecimento do
agravo
enfermeiros, 02 assistentes sociais, 01 fisioterapeuta implicações para a saúde mental e reprodutiva das
e 01 médico. mulheres.
Como técnica de coleta de dados, optou-se
pela entrevista, realizada após aprovação do proje-
to pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Associando problemas de saúde à vivência
Santo Antônio, sob nº 31/07. Aos sujeitos também de violência doméstica pela mulher
foram esclarecidos os objetivos e a relevância do es-
tudo, além de aspectos éticos, conforme preconiza Muitos são os problemas de saúde que podem guar-
a Resolução 196/96 (BRASIL, 1996), e solicitada dar relação com a violência doméstica. Necessário se
assinatura do Termo de Consentimento Livre e faz que os profissionais investiguem tal associação. O
Esclarecido. estudo mostrou que o reconhecimento da vivência
Elegeu-se como técnica de análise dos dados de violência pela mulher pode se dar por meio de
a Análise Temática. Essa técnica permite encontrar, sinais e sintomas relacionados a lesões físicas, proble-
pela sua presença no discurso, o núcleo de significa- mas psicológicos ou por comprometimento da saúde
ção que se mostra no texto, ou seja, o tema. A ope- reprodutiva.
racionalização da análise temática se desdobra em
três etapas, descritas por Bardin (2009): pré-análise; Olhar para as marcas físicas
exploração do material; tratamento dos resultados, As falas dos profissionais que atuam nos espaços da
inferência e interpretação. Após a leitura flutuante e saúde sugerem que o agravo é reconhecido quando
o contato exaustivo com o conteúdo das respostas, associado às marcas visíveis que as mulheres apresen-
foram encontradas categorias que nortearam o pro- tam, sendo sugestivas de violência:
cesso de sistematização, interpretação e análise de
dados. São elas: Problemas de saúde e a vivência de Domingo agora teve um caso. Eram nítidos
violência doméstica pela mulher; Formação profis- dois hematomas e edema. A gente logo pen-
sional que contemple a violência doméstica. sou em alergia, mas desconfiamos de agressão
devido ao hematoma palpebral [...].(E3 Enf.
Centro de Saúde).
Resultados
[...] traumas em face, hematomas pelo corpo,
O estudo mostrou que os profissionais reconhecem especialmente, em membros, dores abdomi-
que a violência doméstica, sobretudo a conjugal, re- nais [...]. Desconfiei porque os tipos de lesões
percute na saúde da mulher. Como elementos que não condiziam com o acidente que a pessoa
favorecem tal reconhecimento, o estudo sinaliza relata ter sofrido. (E10 Enf. Hospital).
para a necessidade de associação dos problemas de
saúde com a violência doméstica e, portanto, de in- Nota-se, ainda, que as experiências profissionais
vestigação do fenômeno. Aponta-se, ainda, para a lhes dão respaldo para essa identificação e os colo-
necessidade de mudanças nos currículos de forma- cam em posição estratégica para a suspeita e a inves-
ção em saúde. tigação do episódio de violência sofrido, ainda que
Os profissionais dos serviços de saúde entrevis- as informações sobre a situação não sejam descritas
tados vinculam a violência doméstica às lesões físi- claramente.
cas, enquanto os demais, possivelmente por atuarem
em espaços que trabalham especificamente a questão [...] tem a lesão [...] mas também falta coe-
da violência doméstica, apresentam um olhar mais rência do problema de saúde com a história
abrangente acerca do fenômeno, contemplando as apresentada. (E1 Enf. Centro de Saúde).
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 514-522, out./dez. 2012 517
GOMES, N.P.; GARCIA, T.C.S.; CONCEIÇÃO, C.R.; SAMPAIO, P.O.; ALMEIDA, V.C.; PAIXÃO, G.P.N. • Violência conjugal: elementos que favorecem o reconhecimento do
agravo
Na verdade, não foi ela quem falou que o ma- sugestivos da vivência de violência doméstica pela mu-
chucado na barriga foi o namorado. A gente lher, sinalizando para um comprometimento da saúde
percebeu pela situação. Depois, ela confirmou. mental da mesma:
(E11 Enf. Maternidade).
Alguns problemas têm relação direta com a vio-
As falas trazidas pela categoria de enfermagem dei- lência [...]. A mulher que tem depressão e ideia
xam clara a violência doméstica como pano de fundo suicida [...]. Alguns atendimentos são bastan-
para a busca do serviço e nos permitem compreender a te difíceis. Chocantes! De me deixar, às vezes,
importância dos profissionais no processo de identifica- muito abalada mesmo! De pensar “Como uma
ção da violência conjugal. situação dessa é possível? (E6 Psic. CRLV).
Vale destacar que os profissionais das categorias de
enfermagem e médica referiram direcionar os casos de Chama atenção que, com base nas falas dos pro-
violência identificados para o serviço social. No entan- fissionais de saúde entrevistados (enfermeiras e médi-
to, sabe-se que, por não estar diretamente em contato co), esses sinais e sintomas de ordem psicológica não
com os usuários, a assistente social recebe apenas os ca- venham sendo associados à vivência de violência.
sos de violência encaminhados, o que reforça a impor- Vale referir que não só as profissionais do CRLV,
tância de um olhar para além dos aspectos físicos por mas a profissional do COF também reconhece a violên-
parte das categorias de enfermagem e médica. cia para além dos traumas físicos, demonstrando uma
compreensão mais ampla da violência, o que possivel-
Olhar para a saúde reprodutiva mente está associado ao olhar diferenciado para essas
Embora os profissionais que atuam nos serviços de saú- questões. Vejamos os depoimentos:
de não tenham sinalizado para a associação da violência
doméstica com a saúde reprodutiva, os profissionais do [...] Quando elas chegam ao nosso atendimen-
CRLV demonstraram uma compreensão de que a vio- to, não nos trazem diretamente a questão da
lência encontra-se associada ao aborto provocado, con- violência. Elas vêm por conta de outras ques-
forme ilustra o seguinte depoimento: tões[...]. Muitos casos de depressão [...]. Ela ia
falando das queixas dela, da tristeza dela [...].
O aborto também está bastante associado ao Quando a gente vai fazer a investigação, a gen-
evento da violência: ‘Eu abortei porque não te vê em qual contexto que estas mulheres estão
quero ter aquele filho, naquela hora, com aque- vivendo, e aí a gente descobre que tem casos
le homem’. (E6 Psic. CRLV). de violência. Eu entendo a realidade dela: ela
não trabalha, ela vive na casa que pertence ao
Percebe-se, pois, que a violência interfere no pro- esposo. É como se pensasse ‘Não tem mais jeito,
cesso de saúde reprodutiva das mulheres, de modo que eu já sofro essa violência’, como se fosse natura-
o setor saúde representa lócus privilegiado para identi- lizando mesmo. (E12 Psic. COF).
ficação dessas situações. A investigação de tal agravo é
essencial para a definição do plano de cuidado direcio- É um sofrimento diário, mas com muito des-
nado à mulher, e requer do profissional atendimento conhecimento também por parte dela [...].
técnico e também encaminhamento, considerando as Quando elas chegam no serviço é uma desco-
demandas apresentadas. berta a cada atendimento [...]do que não é
natural [...] do que não é normal [...] do que
Olhar para a saúde mental eu não posso passar [...] do que eu não preciso
Problemas relacionados à saúde mental foram apon- passar. Mas, no seu discurso, você percebe que
tados pelos entrevistados como sinais e sintomas ela naturaliza aquilo. (E7 Ass. Soc. CRLV).
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GOMES, N.P.; GARCIA, T.C.S.; CONCEIÇÃO, C.R.; SAMPAIO, P.O.; ALMEIDA, V.C.; PAIXÃO, G.P.N. • Violência conjugal: elementos que favorecem o reconhecimento do
agravo
Eu acho que quem está de fora, às vezes, não O profissional médico, ele não é formado para
conhece o drama dessas mulheres. Para quem co- isso [...] não tem essa formação. A gente tem
nhece, normalmente, percebe. (E6 Psic. CRLV). uma matéria, psicologia médica, mas eu acho
que não é um semestre ou dois dessa matéria
As falas das profissionais desses serviços sinalizam que vai fazer com que você seja sensibilizado
para uma percepção da violência doméstica enquanto um para essas questões. (E8 Méd. Hospital).
fenômeno complexo, o que viabiliza o reconhecimento
de mulheres inseridas nesse contexto, independentemen- A gente percebe hoje como foi difícil se apro-
te do cenário: sala de aula, interação em comunidades, ximar da temática por conta da questão do
relações com amigos e família, espaço da atenção básica trabalho [...]. Muitas coisas do nosso próprio
ou unidades de emergências, visitas domiciliares etc. discurso tiveram que ser desconstruído [...]
Chama atenção que essa compreensão não se deu um discurso machista e aquilo foi sendo que-
durante a formação, sendo buscada por conta da atuação brado [...] quantas dificuldades para se apro-
em serviço específico de atenção a mulheres em situação ximar disso com um outro olhar[...]. Não ter
de violência. Os discursos sinalizam para um atendimen- esse olhar é um dificultador muito grande. Eu
to diferenciado, com um olhar atento e uma escuta ativa, acho que tinha que ter uma cadeira voltada
confirmando a relevância de tal espaço para o fortaleci- realmente para estar estudando as questões
mento das mulheres no sentido de anular a violência que de gênero [...] estar estudando todas as ques-
permeia a relação conjugal. tões relacionadas à violência. (E7 Ass. Soc.
CRLV).
Formação profissional que contemple a Sob essa perspectiva, é imperativa uma transfor-
violência doméstica mação do modelo de formação dos profissionais, dire-
cionando seus currículos para a interface social e possi-
O olhar que possibilita o reconhecimento da vivên- bilitando espaços que discutam a violência, sobretudo
cia de violência doméstica pela mulher ancora-se na a violência doméstica contra a mulher, uma vez que
compreensão acerca da complexidade do fenômeno. as universidades possuem papel importantíssimo na
As falas apontam para a necessidade de que se insti- produção de conhecimentos relevantes, na formação
guem as discussões sobre questões de gênero no pro- de profissionais adequados às necessidades sociais, na
cesso de formação dos profissionais de serviços que prestação de serviços oportunos e de qualidade, com-
recebem ou possam vir a receber mulheres que viven- partilhando de uma política de saúde voltada para as
ciam a violência conjugal, não se restringindo àque- necessidades da maioria da população.
les específicos da atenção a pessoas em situação de
violência. Os depoimentos a seguir permitem ilustrar
tal situação: Discussão
Na faculdade, vê muito pouco sobre o tema. O estudo deixa claro que, além de danos físicos, a vio-
(E11 Enf. Maternidade). lência compromete a saúde reprodutiva e mental das
mulheres. No entanto, diante de um evento traumá-
Eu acho que na graduação poderia ter uma tico com sequelas físicas, os profissionais de saúde en-
disciplina do currículo mínimo que abordas- trevistados suspeitam de violência doméstica, mas não
se as questões das políticas públicas, e que, mencionam outros sinais além das lesões visíveis, visão
a partir destas, fosse inserido a questão da essa que permeia a formação tecnicista de valorização
mulher. (E6 Psic. CRLV). dos aspectos clínicos.
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GOMES, N.P.; GARCIA, T.C.S.; CONCEIÇÃO, C.R.; SAMPAIO, P.O.; ALMEIDA, V.C.; PAIXÃO, G.P.N. • Violência conjugal: elementos que favorecem o reconhecimento do
agravo
Na área da saúde, foi marcante a excessiva espe- sentimentos de impotência, tristeza e angústia
cialização técnica, com enfoque funcionalista, e a assis- (CORREA; LABRONICI; TRIGUEIRO, 2009).
tência curativa fundamentada na observação de sinais Percebe-se, assim, a importância de um melhor
e sintomas de quadros clínicos (ARCOS et al, 2007). preparo profissional para a identificação da violência
Dessa forma, os profissionais de saúde não questionam doméstica como causa primária ou pano de fundo para
a mulher vítima de violência a respeito da origem dos a busca pelo serviço, como também para lidar com a
ferimentos, voltando-se apenas para a assistência cura- problemática. O estudo revelou que a formação acadê-
tiva medicamentosa. mico-profissional não contempla a temática violência
A limitação às evidências físicas por parte dos doméstica, tampouco aspectos relacionados à constru-
profissionais de saúde direciona para uma assistência ção social da desigualdade de gênero, o que guarda re-
fragmentada, visto que o grupo de mulheres com lesão lação com a dificuldade de reconhecimento do agravo.
física revela uma pequena parcela de um problema mui- Assim sendo, é fundamental que as universida-
to mais complexo (GOMES, 2009). Nesse contexto, des possibilitem aos discentes espaços que favoreçam
Vieira, Perdona e Santos (2011) referem que os profis- a compreensão acerca da complexidade da violência
sionais devem estar preparados e, principalmente, aten- contra a mulher e ações no sentido de desconstruir as
tos para identificar o fenômeno, que nem sempre deixa concepções machistas ancoradas na desigualdade de gê-
marcas visíveis. nero, responsáveis pela não identificação da violência
Com relação à saúde reprodutiva, estudos têm evi- doméstica como elemento que faz adoecer as mulheres
denciado que a violência contra a mulher encontra-se e pelos julgamentos que se mostram na relação inter-
associada a dores pélvicas crônicas, DST/AIDS e doen- pessoal durante a assistência. Situação que leva à reviti-
ças pélvicas inflamatórias, gravidez indesejada e aborto mização pela violência institucional (GOMES, 2009).
(BAPTISTE, 2007). Corroborando, Diniz et al (2009) A Lei 11340, inclusive, já preconiza a inclusão de con-
acreditam que a vivência de violência conjugal guarda teúdos relativos à equidade de gênero e ao problema
relação com o aborto provocado. Em seu estudo, das da violência doméstica e familiar contra a mulher em
147 mulheres com esse histórico, 27,9% declararam ter todos os níveis de ensino (BRASIL, 2006).
sofrido violência conjugal, sendo que 67% afirmaram Considerando que os profissionais de saúde, por
que a decisão de abortar decorreu por conta da violên- muitas vezes, representam a única chance de ajuda para
cia sofrida. mulheres em situação de violência, torna-se essencial o
No que tange ao sofrimento psíquico, os sintomas desenvolvimento da escuta qualificada e do olhar trei-
psicológicos frequentemente encontrados incluem in- nado para identificar e notificar os possíveis casos de
sônia, pesadelos, falta de concentração, irritabilidade, violência doméstica (SALIBA et al, 2007). É um traba-
falta de apetite e até o aparecimento de problemas men- lho que requer do profissional um olhar diferenciado,
tais sérios, como a depressão. Pesquisas revelam que a atento aos sinais e sintomas apresentados, sejam eles fí-
vivência de violência doméstica é um importante fator sicos ou psicológicos, que sinalizem, por exemplo, para
de risco para a depressão, inclusive em mulheres que episódios de violência conjugal. Daí, a importância de
sofrem agressões durante a gestação (AUDI et al, 2008). uma assistência sob a perspectiva da integralidade, a
Vale salientar que a violência doméstica, além de qual visa compreender o indivíduo nos seus aspectos
trazer repercussões amplas para as vítimas, sobretudo físicos, psicológicos e sociais.
sob o aspecto psicológico, também compromete a saú- Pesquisa realizada com profissionais que atendem
de mental dos profissionais, especialmente daqueles mulheres vítimas de violência sexual mostrou que o
que lidam diariamente com as histórias de violência acolhimento é um fator essencial para uma assistên-
e compartilham da dor das mulheres. Os profis- cia humanizada e individualizada, assim como é fun-
sionais necessitam lidar com sua própria angústia damental para estabelecer vínculo e proporcionar um
diante das limitações humanas, experimentando ambiente favorável às usuárias (REIS et al, 2010). Nesse
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GOMES, N.P.; GARCIA, T.C.S.; CONCEIÇÃO, C.R.; SAMPAIO, P.O.; ALMEIDA, V.C.; PAIXÃO, G.P.N. • Violência conjugal: elementos que favorecem o reconhecimento do
agravo
contexto, humanizar implica solidariedade para com a que perpasse os aspectos clínicos, considerando as es-
dor do outro, a fim de alcançar um modelo de cuidado pecificidades desse tipo de violência.
que vá além da objetividade do tratamento de lesões e O estudo também sinaliza para a necessidade de
que seja capaz de estabelecer uma relação de respeito uma formação profissional que favoreça a identifica-
e confiança que permita o processo de acolhimento e ção da violência doméstica. Acredita-se que a compre-
fortalecimento. ensão da complexidade da violência doméstica contra
a mulher possibilitará a identificação de um maior nú-
mero de mulheres em situação de violência e a adoção
Considerações Finais de condutas mais adequadas às suas demandas, o que,
por sua vez, requer articulação intersetorial com ser-
O estudo revelou que, além das manifestações visíveis, viços de outras áreas, como os centros de referência às
decorrentes da agressão física, a violência conjugal guar- mulheres em situação de violência doméstica.
da relação com o aborto provocado e com aspectos da Este estudo poderá contribuir para a melhoria
saúde mental, tal como a depressão. Por esses e outros da qualidade da atenção a mulheres em situação de
problemas de saúde desencadeados na mulher, os servi- violência, uma vez que traz elementos relacionados à
ços de saúde constituem-se porta de entrada para os ca- dificuldade de identificação de tais casos nos espaços
sos de violência doméstica, sendo essencial a investiga- da saúde e à necessidade de se repensar o processo de
ção de tal associação a fim de garantir um atendimento formação.
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ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
Cristina Teixeira Lelis1, Karla Maria Damiano Teixeira2, Neuza Maria da Silva3
1
Mestre em Economia Doméstica pela
Universidade Federal de Viçosa (UFV) – Viçosa
RESUMO Este estudo analisou os hábitos alimentares de mulheres inseridas no merca-
(MG), Brasil.
crisecd@yahoo.com.br
do de trabalho formal e de suas famílias. A pesquisa foi realizada na cidade de Viçosa/
2
Doutora em Ecologia Humana e Familiar
MG. A amostra foi de 101 mulheres. Os dados foram obtidos através de uma entrevista
pela Michigan State University – Michigan
(MI), Estados Unidos. Professora Associada do
fundamentada em um roteiro semiestruturado. O estudo permite concluir que qualquer
Departamento de Economia Doméstica da
UFV – Viçosa (MG), Brasil.
mudança na família, tal como a atividade remunerada exercida pela mulher, produz um
kdamiano@ufv.br
remanejamento de funções. Os hábitos alimentares, apesar de sofrerem influência da ativi-
3
Doutora em Economia da Família e do
Consumidor pela Purdue University – West dade remunerada exercida pela mulher, não são totalmente diferenciados dos hábitos das
Laffayette (IN), Estados Unidos. Professora
Associada do Departamento de Economia donas de casa quando se analisa a inserção feminina no mercado de trabalho.
Doméstica da UFV – Viçosa (MG), Brasil.
neuzams@ufv.br
PALAVRAS CHAVE: Mulheres, Trabalho feminino, Hábitos alimentares.
ABSTRACT The study analyzed the eating habits of women included in the formal labor mar-
ket and their families. The survey was conducted in Viçosa, Minas Gerais, using a sample of 101
women. Data were collected through a semi-structured interview. It was concluded that any
change in the family, as for example the paid activity performed by the wife, produces a redistri-
bution of the functions. Eating habits, despite being influenced by the paid activity performed
by women, are not fully differentiated from the habits of housewives when it is regarded the
inclusion of women in the labor market.
KEYWORDS: Women; Working women; Eating habits.
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 523-532, out./dez. 2012 523
LELIS, C.T.; TEIXEIRA, C.M.D.; SILVA, N.M. • A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família
1
Custo de oportunidade refere-se ao valor estimado que o indivíduo ou a família deixa de ganhar quando decide usar determinado recurso para um fim específico. O custo
está associado às satisfações ou insatisfações (resultados) procedentes dos bens que poderiam ter sido escolhidos. Em outras palavras, o indivíduo avalia se o fato de usar um
recurso para determinado fim irá lhe proporcionar maior ou menor satisfação do que se o recurso fosse utilizado para outro desígnio ou fosse substituído por outro recurso.
Este conceito está relacionado com o princípio de substituição ou de troca dos recursos (DAMIANO TEIXEIRA, 2005, p. 72).
524 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 523-532, out./dez. 2012
LELIS, C.T.; TEIXEIRA, C.M.D.; SILVA, N.M. • A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família
no respectivo consumo calórico e no consumo dos analisado utilizando-se o Software for Qualitative Data
micronutrientes. Analysis (MAXqda).
Os dados foram analisados por meio da análise
de conteúdo. As categorias analíticas foram: perfil so-
Metodologia cioeconômico das mulheres e de suas famílias, sendo
estudadas as variáveis: idade da entrevistada; estado ci-
Esta pesquisa, exploratório-descritiva, utilizou-se da vil; escolaridade; número de horas de trabalho por dia;
abordagem qualitativa e foi realizada na cidade Viçosa/ renda em salários mínimos; e hábitos alimentares, que
MG, que pertence à Zona da Mata Mineira, localizada buscaram identificar as mudanças ocorridas nos hábitos
a uma distância de 225 km da capital, Belo Horizonte, alimentares com a inserção das mulheres no mercado
e com uma população total estimada de 72.244 habi- de trabalho, os tipos de alimentos consumidos pelas fa-
tantes (IBGE, 2010). É uma cidade universitária e sua mílias, o local onde realizavam as refeições, a situação
economia está centrada em torno da Universidade Fe- da inserção no mercado de trabalho e o preparo das re-
deral de Viçosa (UFV) e do comércio local. feições e a diferença das refeições de final de semana e
O universo do presente estudo foi constituído por durante a semana.
mulheres que trabalhavam nos diferentes setores ocupa-
cionais da UFV. A amostra foi composta por mulheres
no estágio intermediário do ciclo de vida, ou seja, em Perfil socioeconômico das mulheres inse-
cujas famílias havia presença de crianças a partir de 0 ridas no mercado de trabalho e de suas
ano de idade e adolescentes de até 18 anos. No processo famílias
de obtenção dos dados das mulheres inseridas no mer-
cado de trabalho, procurou-se a Pró-Reitoria de Gestão As entrevistadas tinham entre 27 e 58 anos, com ida-
de Pessoas da UFV para identificar as possíveis partici- de média de 41,7 anos e média de 1,8 filhos. Quanto
pantes da pesquisa. Assim, calculou-se o tamanho da ao estado civil, a maioria era casada (75,5%); seguido
amostra, utilizando a fórmula para populações finitas, por união consensual (9,9%); solteiras (6,9%); sepa-
considerando um erro de 0,5%, e encontrou-se que radas (3.9%); divorciadas (2,9%); e outros (0,9%).
a amostra ideal seria composta por 56 docentes e 74 Quanto à escolaridade, 50,5% das entrevista-
técnicas administrativas. Através da técnica do sorteio, das possuíam pós-graduação Stricto Sensu, 24,8%
procuraram-se as mulheres em seus departamentos e/ haviam concluído o ensino superior, 11,9% haviam
ou setores, explicando-lhes a pesquisa e indagando se concluído pós-graduação Lato Sensu, 6,0% possuíam
se interessavam em participar. Durante o processo de ensino médio completo, 3,9% estavam com ensino
contato com as mulheres, algumas delas não quiseram superior em andamento, 1,9% com pós graduação
ou não puderam participar da pesquisa. Desse modo, Stricto Sensu em andamento, e 1,0% possuía curso
totalizou-se 40 docentes e 61 técnicas administrativas técnico. De acordo com o IBGE (2008), maiores ní-
entrevistadas. veis de escolaridade garantem melhores oportunida-
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética des de inserção qualificada no mercado de trabalho.
em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Fe- E, ainda, as mulheres brasileiras vêm se sobressaindo
deral de Viçosa, sob o registro n° 0152/2010. em relação aos homens, sobretudo nas áreas urbanas
A coleta de dados foi realizada utilizando-se a en- do País, onde apresentam, em média, um ano a mais
trevista fundamentada em um roteiro semiestruturado, de estudo que os homens.
tendo sido aplicada do mês de março ao de agosto de No que tange à renda familiar, essa variou
2011, e gravada com a permissão das participantes. As de R$1.800,00 a R$20.000,00, e a média foi de
entrevistas foram transcritas, preservando-se o ano- R$7.415,84. Com relação ao número de horas de
nimato das participantes, e o texto foi codificado e trabalho remunerado, 84,2% das mulheres disseram
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 523-532, out./dez. 2012 525
LELIS, C.T.; TEIXEIRA, C.M.D.; SILVA, N.M. • A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família
trabalhar 8 horas diárias; 7,9%, 10 horas/dia; 5,9%, 6 Então, com a inserção no mercado de trabalho
horas diárias; 1,0%, 9 horas/dia; e 1,0%, 14 horas/dia. a gente tem menos tempo pra cuidar da ali-
mentação. Então, mudou o hábito sim. Em
muitos casos, a gente come coisas mais rápidas,
Trabalho remunerado da mulher e suas con- finais de semana, pelo cansaço. (docente, 45
sequências para os hábitos alimentares anos, pós doutora).
De interesse para o estudo foi saber se a inserção femi- Segundo Aquino e Philippi (2002), além da esta-
nina no mercado de trabalho ocasionou mudança nos bilidade econômica, outros fatores, como o trabalho da
hábitos alimentares da própria mulher e de sua família. mulher fora do lar, maior praticidade, rapidez, durabi-
No que se refere às técnicas administrativas, 63,9% afir- lidade e boa aceitação do produto, vêm contribuindo
maram que os hábitos foram alterados. Para 8,2% das cada vez mais para a introdução e manutenção de ali-
mulheres que afirmaram que não houve alteração nos mentos nos hábitos da família, dentre eles os industria-
hábitos alimentares devido à sua inserção no mercado lizados. Essa questão estava muito presente nas falas das
de trabalho, outros fatores contribuíram para altera- entrevistadas, conforme exemplificado a seguir:
ções, como o nascimento dos filhos; a presença de fi-
lhos adolescentes que trazem novos hábitos de consumo Eu acho que, no meu caso, justamente por cau-
para a família; e questões de saúde. Para as docentes, sa do pouco tempo, às vezes o corre-corre, você
52,5% disseram que os hábitos foram alterados, sendo não se alimenta direito. Come besteira durante
que 12,5% das que relataram que não houve alteração o expediente todinho, na hora de almoçar, você
devido à sua inserção no mercado de trabalho afirma- não almoça. No meu caso pessoal. (técnica ad-
ram que a alteração aconteceu devido à sua idade, a pro- ministrativa, 37 anos, superior completo).
blemas de saúde e à presença de filhos.
Para aquelas que relataram alterações nos hábitos Ah! Houve, a gente passa a comer mais por-
alimentares em decorrência da sua inserção no mercado caria. A gente passou a comprar refrigerante
de trabalho, a principal modificação foi a realização de pra filho, coisa que antes era suco natural. A
refeições mais rápidas, com substituição de refeições por gente passou a comprar mais produto indus-
lanches. Nas seguintes falas, pode-se perceber a altera- trializado. Eu lembro da época que eu fazia
ção no hábito alimentar pessoal relatado pelas mulheres: hambúrguer dentro de uma lata de óleo. Hoje
você compra hambúrguer pronto. Então, assim,
A gente come mais lanche, uma comida mais você tem poder aquisitivo, você vai comprar io-
rápida. Acho que passa a comer mais fora, gurte. Eu fazia coalhada em casa, que durava
comida pré-preparada. Acho que isso mudou. 1 semana, com copinho de iogurte natural. En-
(técnica administrativa, 44 anos, superior tão, com certeza, mudou muito. (docente, 40
completo). anos, doutora).
Almoçamos fora, então já mudou. E, como eu Sdrali (2005), citado por Schlindwein (2006),
saio de casa na hora do almoço, e só chego 9 e refere-se que a entrada das mulheres no mercado de tra-
pouca da noite, então tem que ser coisas práti- balho está relacionada com uma crescente autonomia e
cas pra ele poder fazer, pra ele comer. (técnica habilidade de tomar decisões. Desse modo, a participa-
administrativa, 45 anos, superior completo). ção da mulher no mercado de trabalho possui um papel
significativo no gasto com alimentação.
Pela questão do tempo. O tempo que a gente Constatou-se que para algumas entrevistadas,
destina pra preparar, pra cortar os alimentos. a mudança ocorrida nos hábitos alimentares estava
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LELIS, C.T.; TEIXEIRA, C.M.D.; SILVA, N.M. • A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família
relacionada com a renda adquirida com o trabalho, o De acordo com Ribeiro et al. (2011), mudanças
que aumentou a possibilidade de investir em alimen- no perfil de alimentos ingeridos vêm ocorrendo nos pa-
tação. Porém, esse investimento, muitas vezes, estava íses em desenvolvimento, com a crescente substituição
relacionado à quantidade de alimentos que podiam dos alimentos ricos em fibras, vitaminas e minerais, por
ser adquiridos e não à preocupação com a qualidade produtos industrializados. O jantar vem sendo substi-
nutricional dos mesmos, como pode ser verificado em tuído pelo lanche, pois está ocorrendo uma redução do
alguns relatos: consumo de alimentos que habitualmente compõem as
principais refeições dos brasileiros, bem como o cres-
Ah, modificou! Hoje vai mais salgadinho, cimento do consumo do pão francês. Essas transfor-
enlatado, refrigerante, e antes não tinha isso. mações geram a formação de novos padrões dietéticos,
Era só o basicão mesmo. Até o financeiro tam- podendo gerar diversas carências nutricionais.
bém, né? Não é só o tempo. No entrar no mer- Para outras entrevistadas, sua inserção no mercado
cado de trabalho, as coisas vão facilitando, né? de trabalho permitiu que houvesse melhoria na quali-
(técnica administrativa, 44 anos, superior dade dos hábitos alimentares, principalmente no que se
completo). refere à rotina e à qualidade dos alimentos consumidos,
como apontado a seguir:
[...] Eu passei a ter acesso a produtos que não
tinha condições de comprar, né? (técnica ad- É, na verdade melhorou. Porque na época de
ministrativa, 38 anos, mestre). estudante, a gente passa uma fase meio atra-
palhada de alimentação, né? Come na hora
[...] pode ter melhorado pelo poder aquisitivo errada, porque tem prova. E, hoje em dia,
né? poder se alimentar de outras coisas, mas não, a gente tem hora certa pra tomar café.
quantitativamente, qualitativamente não. Eu Almoço todos os dias na mesma hora, jantar
sempre tive uma alimentação que considero sempre na mesma hora, tenho uma rotina, e
muito saudável, então, assim, o trabalho pode não sai dela... (docente, 45 anos, doutora).
ter influenciado de forma quantitativa, mas
não qualitativa. (técnica administrativa, 50 Melhorou. Porque a gente passa a ter conhe-
anos, superior completo). cimento. Então, melhorou em termos nutri-
cionais. Maior ingestão de fruta, iogurte. Eu
A refeição noturna foi apontada como uma das passei a dar mais importância pra ter mais ver-
modificações na alimentação com a inserção no merca- dura, mais nutricional mesmo. (técnica admi-
do de trabalho, conforme ilustrado pelas seguintes falas: nistrativa, 51 anos, superior completo).
A gente não faz janta em casa, né? Ás vezes Outro fator importante observado foi que as en-
faz alguma coisa diferente, mais é lanche mes- trevistadas disseram que ocorreu alteração nos hábi-
mo. E a gente tinha o hábito de jantar. Tudo tos alimentares, mas não em razão de sua inserção no
direitinho. Chega em casa cansada, nem quer mercado de trabalho, e sim devido ao nascimento dos
saber… (técnica administrativa, 27 anos, su- filhos, às preocupações com o processo de envelheci-
perior completo) mento e com sua saúde. Com relação ao nascimento
dos filhos, as entrevistadas relataram a preocupação de
Modificou pra pior, mas mais à noite. Durante transmitir exemplos de uma boa alimentação. Eps-
o dia, a alimentação continua normal. (téc- tein et al. (2001), citado por Rossi, Moreira e Rauen.
nica administrativa, 41 anos, pós-graduação (2008), estudando 27 crianças, com idades entre 6 e
lato sensu) 11 anos, e 27 pais, verificaram que a diminuição da
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LELIS, C.T.; TEIXEIRA, C.M.D.; SILVA, N.M. • A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família
ingestão alimentar de gordura e açúcar pelas crianças coisa muito dinâmica. (docente, 53 anos,
pode ser obtida por mudanças dos hábitos alimentares doutora).
dos pais. Além disso, a melhoria do hábito alimentar
dos pais pode estender-se a todos os outros membros da No que se refere ao processo de envelhecimento,
família. Nas falas seguintes, nota-se a alteração após o algumas entrevistadas relataram a preocupação em evi-
nascimento dos filhos: tar ou reduzir a quantidade ingerida de determinado
alimento, a fim de permanecerem saudáveis duran-
Não por causa do trabalho, por causa da crian- te as diferentes etapas de seu ciclo de vida, conforme
ça. Porque o trabalho, na realidade, se a crian- mencionado:
ça não existisse, desde que eu comecei a traba-
lhar, a gente come muito fora, almoça fora, não [...] porque depois de uma faixa etária, por
tem hábito de tomar café em casa, toma café exemplo, a que eu estou hoje, aí há uma mu-
na rua. Mas aí eu conjuguei o trabalho com dança que eu acho que é muito mais por uma
a criança, pra te falar esta mudança, né? A questão de idade mesmo do que pela minha
criança que alterou propriamente. O trabalho, inserção no mercado. Você muda a sua alimen-
não consigo te dizer o que pode ter alterado. tação. Você já não come arroz, por exemplo,
(técnica administrativa, 30 anos, superior você come muito menos, mesmo uma fritura ou
completo). uma comida mais pesada, a carne, por exem-
plo. Eu já não tenho tanto apetite para carne.
Mudou depois que a minha filha nasceu. Antes (docente, 47 anos, doutora).
eu comia muita coisa assim pronta e comia de
qualquer jeito, qualquer coisa, às vezes almo- Entre aquelas mulheres que disseram que o hábito
çava, às vezes não almoçava, às vezes jantava, alimentar não foi alterado com a entrada no mercado
às vezes não jantava também. A minha vida de trabalho, observou-se que os motivos estavam rela-
era muito irregular né. (docente, 43 anos, pós cionados à presença de empregadas domésticas, reserva
doutora). de um tempo para preparar a alimentação e residir pró-
ximo dos pais. Algumas falas ilustram essas questões.
Quanto à preocupação com a saúde, o principal
motivador foi a disponibilidade de informações e a fa- Porque eu gosto de cozinhar, gosto que as coisas
cilidade de acesso a elas. Neste sentido, as entrevistadas sejam feitas em casa, então, sempre foi assim.
alteraram seus hábitos alimentares a fim de terem uma Apesar de eu trabalhar fora, eu arranjo um
alimentação saudável, conforme relatos a seguir: tempinho pra deixar alguma coisa pronta, um
bolo, uma coisa assim, mais natural. Acho que
Eu não acredito que seja por causa da inserção não modificou não. A gente não come muito
no mercado de trabalho não. Acho que os há- fora, mais em casa mesmo. (técnica adminis-
bitos mudam sim, mas na medida que a gente trativa, 39 anos, mestre).
se preocupa mais com a alimentação. Acho que
a idade leva a isso. A disponibilidade mudou Não, porque desde quando eu comecei a traba-
muito da época. A disponibilidade de alimen- lhar, eu coloquei uma ajudante dentro de casa,
tos, a variedade, a diversidade, muito diferente então ela ficou responsável pela preparação do
da época.(...) Esta quantidade de informação almoço e tudo. Então a rotina que a gente ti-
a respeito de determinados tipos de alimentos. nha, a gente continuou mantendo. Então não
Isso a todo momento é novidade, a gente acaba atrapalhou não. (técnica administrativa, 36
incluindo. Então, muda. Eu acho que é uma anos, mestre).
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LELIS, C.T.; TEIXEIRA, C.M.D.; SILVA, N.M. • A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família
O estabelecimento de redes de apoio, sejam elas mulheres com alto grau de instrução e que, portanto,
formais ou informais, permite ou facilita que ati- tinham acesso a informações sobre alimentação.
vidades do cotidiano familiar, como o preparo das Os alimentos industrializados têm recebido
refeições, não sejam modificadas quando a mulher atenção dos consumidores, que passaram a adotá-los
ingressa no mercado de trabalho. devido, principalmente, à sua praticidade. Confor-
me Fonseca et al. (2011), o comensal moderno está
familiarizado com a produção industrial e tem apre-
O Consumo de alimentos pelas mulheres e ciado sua regularidade e conforto de uso. Além disso,
suas famílias o alimento industrializado apresenta status de mo-
dernidade. Nos depoimentos que seguem, podemos
Com relação aos itens do consumo alimentar dos observar essas informações:
quais as famílias faziam uso, constatou-se que 100%
das famílias das técnicas administrativas e 97,5% das Justamente pela praticidade de fazer. Rela-
docentes faziam uso de pelo menos um tipo de ali- cionado à questão do trabalho, a correria,
mento industrializado, como iogurte, biscoito, suco que é mais fácil de fazer, você acaba pe-
de caixinha, enlatados e refrigerante. Algumas falas gando o que é mais industrializado, que é
ilustram essa questão: mais prático pra fazer, imediato também.
(técnica administrativa, 37 anos, superior
Suco de caixinha não muito, mas o resto dos completo).
industrializados: tudo. Minha filha ama.
(...) Eu sou apaixonada por refrigerante. É a praticidade. Mesmo quando eu tenho
(técnica administrativa, 51 anos, superior tempo pra fazer as coisas, se eu tenho indus-
completo). trializado, ele é mais prático, ele me convém
mais. A gente não é mais tão paciente quan-
Milho verde, massa de tomate. Estas coisas to era a mãe da gente. (docente, 49 anos,
normais. Não somos muito fã assim de mui- doutora).
ta coisa enlatada não. Tem biscoito de polvi-
lho, ou biscoito água e sal, biscoito maria. E Além do consumo de alimentos industrializa-
aqueles nuggtes, eles (filhos) gostam também. dos, fazer as refeições fora de casa virou uma neces-
Aqueles salgadinhos de frango, pão de queijo. sidade da sociedade contemporânea (FONSECA et
Este tipo de coisa. (técnica administrativa, al., 2011). Dessa forma, outro item do consumo ali-
38 anos, superior completo). mentar analisado foi a alimentação realizada fora do
domicílio, uma vez que a Pesquisa de Orçamentos
É importante ressaltar a contradição presente Familiares (2008/09) revelou que as famílias estão
em alguns depoimentos: ao mesmo tempo em que gastando mais com alimentação fora de casa do que
procuram ter um discurso que demonstre uma pre- gastavam na pesquisa realizada em 2002/03.
ocupação em ter uma alimentação saudável, contro- Assim, constatou-se que 90% das famílias de
lando o consumo de determinados alimentos duran- mulheres docentes e 65,6% das famílias de técnicas
te a semana ou afirmando que prepararam alimentos administrativas faziam as refeições fora do domicílio.
naturais, principalmente sucos, o consumo de ali- Consideraram-se, nesse caso, todas as pessoas que
mentos industrializados foi muito expressivo nas realizavam refeições fora de casa, independente da
falas. O relato de tal preocupação talvez tenha sido frequência.
em decorrência daquilo que elas achavam que a pes- Analisando famílias nas quais pelo menos um
quisadora esperava ouvir, principalmente por serem dos membros fazia as refeições fora de casa durante
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LELIS, C.T.; TEIXEIRA, C.M.D.; SILVA, N.M. • A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família
os dias da semana, 26,2% das famílias de mulheres inventar. (técnica administrativa, 37 anos,
técnicas administrativas e 20% das docentes realiza- superior completo).
vam as refeições fora do domicílio.
Enquanto 70% das docentes realizavam de 1 a 6 Porque você acaba comendo uma coisa mais
refeições por mês fora de casa, esse percentual era de elaborada. Uma coisa que demore mais tempo
39,4% para as técnicas administrativas, sendo observa- pra fazer, você dispõe de mais tempo pra aqui-
do que essas refeições eram realizadas, na maioria das lo, né? (técnica administrativa, 52 anos, su-
vezes, nos finais de semana. perior incompleto).
Os principais motivos relacionados para almoça-
rem fora de casa, principalmente nos finais de semana, Porque eu faço, porque a gente faz junto. Por-
foram a falta da empregada doméstica nesse período, que a gente faz mais devagar. Ou porque a gen-
preguiça e lazer. te resolve ir lá no restaurante x, pra comer fora.
Do total das famílias pesquisadas, 75,2% (76 fa- Porque a mamãe deixa tomar refrigerante. A
mílias) realizavam refeições fora de casa. Dessas famí- mamãe deixa comer batata frita, coisa que du-
lias, 72,4% (55 famílias) o faziam em locais que serviam rante a semana nem passa pela cozinha. Então,
comida do tipo fast-food, principalmente o self-service. é diferente sim. Bem diferente. (docente, 39
Jomori et al. (2008) comentam que o restaurante anos, doutora).
por peso, ou self-service, tem sido muito frequentado
por brasileiros. Nele, o comensal escolhe o que deseja É importante ressaltar que o preparo das refeições
consumir, pagando valor referente ao peso do que foi durante os finais de semana é considerado um momen-
colocado em seu prato. Nesse sistema, há uma oferta to de lazer, de união da família e de sair da rotina. En-
ampla de opções de preparações alimentares, delegando quanto, para umas, era o momento em que se poderia
uma certa autonomia ao comensal para escolher. incrementar a alimentação fazendo pratos mais elabo-
rados, para outras, as refeições de final de semana eram
mais simples, principalmente devido à falta de empre-
Rotina do preparo e realização de refeições gada doméstica ou à necessidade de ter mais tempo
para as mulheres e suas famílias livre.
Além disso, para cerca de 23,8% das mulheres, a
Das 101 mulheres entrevistadas, 90,1% disseram que alimentação era pior aos finais de semana devido a falta
as refeições de final de semana eram diferentes das re- de horários estabelecidos para a realização das mesmas,
feições de durante a semana, e 9,9% disseram que não assim como ao valor nutricional dos alimentos ingeri-
eram diferentes. Entre as razões da diferença, estavam: dos. As falas seguintes ilustram essa questão:
comer várias vezes ao dia, maior tempo de preparo das
refeições, variedade de alimentos preparados, consu- São diferentes pra pior. Porque eu estando em
mo de alimentos diferentes dos consumidos durante casa, a gente acaba comendo de forma mais
a semana, momento de reunir a família, preparo de desregulada, comendo toda hora, né? Então é
refeições rápidas e simples. Os seguintes depoimentos pra pior. (técnica administrativa, 38 anos,
exemplificam: mestre).
Tem mais tempo pra preparar. Tem aquele mo- Em termos de qualidade nutritiva, elas são
mento pra fazer as refeições. Os próprios me- piores, risos. Porque final de semana você quer
ninos já falam, ‘comida hoje tá melhor, comi- fazer uma carne, faz uma coisa diferente. Du-
da hoje tá boa’. Faz mais variedade, você tem rante a semana, a coisa funciona direitinho,
um pouquinho mais de tempo pra fazer, pra final de semana tudo errado. A gente faz uma
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LELIS, C.T.; TEIXEIRA, C.M.D.; SILVA, N.M. • A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família
coisa mais gordurosa um pouquinho. Às vezes, querer flexibilizar o tipo de alimento e se ‘desobri-
as refeições de final de semana são piores em gar’ do cumprimento de horários como uma forma,
termos de qualidade de saúde. (docente, 33 talvez, de amenizar o cansaço e o estresse gerado pelo
anos, doutora). cumprimento de suas obrigações.
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LELIS, C.T.; TEIXEIRA, C.M.D.; SILVA, N.M. • A inserção feminina no mercado de trabalho e suas implicações para os hábitos alimentares da mulher e de sua família
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Suporte financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas
Gerais (FAPEMIG)
Conflito de interesse: inexistente
532 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 523-532, out./dez. 2012
ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
Fátima de Souza Freire¹, Luiz Henrique de Mendonça², Abimael de Jesus Barros Costa³
1
Doutora em Economia pela Université
des Sciences Sociales de Toulouse I -
RESUMO O objetivo do trabalho é verificar a forma de sustentabilidade econômica e o
Toulouse, França. Professora Associada do
Departamento de Ciências Contábeis e
valor do custo de permanência de um idoso nas Instituições de Longa Permanência para
Atuárias da Universidade de Brasília (UnB) –
Brasília (DF), Brasil.
Idosos – ILPIs. Foram coletadas informações das despesas e receitas de quatro instituições,
ffreire@unb.br
por meio da aplicação de um questionário e de entrevista, em maio de 2011. O resultado
Bacharel em Ciências Contábeis pela
da pesquisa mostra que há uma insuficiência de recursos destinados às instituições, sendo
2
ABSTRACT The purpose of this study is to verify the form of economic sustainability and the
cost of staying of an elderly in Long Stay Institutions for Aged People. Information about income
and expenditure of four institutions were collected through a questionnaire and interview in
May 2011. The research result shows that there is a failure of resources destined for the institu-
tions where the main source of revenue comes from philanthropic donations from the commu-
nity, with the support of volunteer service. The government resources represent a nonsignificant
portion because for every elderly person in reasonable physical condition the government pas-
ses R$ 6.71, while for the disabled the value reaches R$ 7.81.
KEYWORDS: Aging; Elderly; Quality of Life.
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 533-543, out./dez. 2012 533
FREIRE, F.S.; MENDONÇA, L.H.; COSTA, A.J.B. • Sustentabilidade econômica das instituições de longa permanência para idosos
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FREIRE, F.S.; MENDONÇA, L.H.; COSTA, A.J.B. • Sustentabilidade econômica das instituições de longa permanência para idosos
não aborda seres humanos, não é necessário aval do de atividades próprias, como a venda de produtos e
comitê de ética para a pesquisa em tela. serviços, como de diferentes parceiros (MCKINSEY,
Além da introdução, o trabalho está dividido em 2006).
mais quatro seções. Na seção 2, discute-se o concei- Dois conceitos ainda precisam ser esclarecidos:
to de sustentabilidade econômica das entidades sem ‘sustentável’ e ‘sustentado’. Pode-se entender que uma
fins lucrativos, bem como a necessidade de políticas entidade é sustentável quando ela está apta ou passível
públicas para as ILPIs. A seção 3 apresenta a meto- de sustentação, enquanto uma entidade sustentada é
dologia utilizada para a coleta de dados e a definição aquela que já tem garantida sua sustentação.
de informações necessárias para a obtenção de valores Uma das formas de se alcançar a sustentabilida-
de gastos, custos e despesas das instituições. Na seção de é fazê-la por meio de recursos do governo. E, para
4, é apresentado o resultado da pesquisa com as seis tanto, faz-se necessário criar políticas públicas. Não
instituições localizadas no DF. Por fim, na seção 5, são existe uma única (nem a melhor) definição para o que
apresentadas as considerações mediante os resultados seja política pública. Mead (1995 apud HOCHMAN;
obtidos. ARRETCHE; MARQUE, 2008) define política públi-
ca como um campo dentro do estudo da política que
analisa o governo à luz de grandes questões públicas.
Sustentabilidade e políticas públicas Para Lynn (1980 apud HOCHMAN; ARRETCHE;
MARQUE, 2008), significa um conjunto de ações do
A palavra sustentabilidade vem do latim sustinere, que governo que irá produzir efeitos específicos.
significa manter vivo ou defender; já o conceito está A política pública de atenção ao idoso, consagrada
relacionado com a continuidade das entidades nos na Constituição Federal de 1988, se relaciona com o
mais diversos aspectos econômicos, sociais e ambien- desenvolvimento socioeconômico e cultural, bem como
tais. A sustentabilidade é considerada, atualmente, com a ação reivindicatória dos movimentos sociais.
como sinônimo de desenvolvimento, incluindo as se- Segundo Caramaro e Pasinato (2004, p.253), ape-
guintes dimensões: econômica, social, cultural, físico- sar de o envelhecimento populacional ser amplamente
territorial e ambiental, político-institucional, científi- reconhecido como uma das principais conquistas so-
co-tecnológica e também espiritual (LOURES, 2009). ciais do século XX, reconhece-se também que traz gran-
O termo também se relaciona com emergência, des desafios para as políticas públicas.
com desenvolver o capital humano e social capaz de Em janeiro de 1994, foi criada a Política Nacional
construir habilidades de autorregulação em sistemas do Idoso, com normas para garantir os direitos sociais
complexos. Sustentabilidade é a capacidade de sus- do idoso, criando condições para promover sua auto-
tentar ou suportar algo exigido nas mais diversas con- nomia, integração e participação efetiva na sociedade
dições. Pode ser entendida como parte de um processo de pessoas maiores de sessenta anos de idade, conforme
de permanência. artigos 1º e 2º da Lei nº 8.842, de 4 de janeiro de 1994.
Muitas entidades de caráter filantrópico ainda A Política Nacional do Idoso objetiva criar con-
possuem a visão de que elas precisam de recurso do dições para promover a longevidade com qualidade de
Estado e da comunidade para se manterem vivas, mas vida, colocando em prática ações voltadas não apenas
esse conceito tem mudado ultimamente (YUNUS, para os que estão velhos, mas também para aqueles que
2008). As organizações de sociedade civil dependem vão envelhecer, além de listar as competências das várias
de doações do governo e de agências de cooperação áreas e de seus respectivos órgãos. A implantação des-
internacional, mas têm diversificado a sua base de sus- sa lei estimulou a articulação dos ministérios setoriais
tentabilidade. É possível ver que algumas entidades já para o lançamento, em 1997, de um Plano de Ação
incluem princípios de negócios em suas estratégias, Governamental para Integração da Política Nacional
obtendo fontes mistas de recursos provenientes tanto do Idoso. Os órgãos que compõem esse plano são os
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FREIRE, F.S.; MENDONÇA, L.H.; COSTA, A.J.B. • Sustentabilidade econômica das instituições de longa permanência para idosos
Ministérios da Previdência e Assistência Social, da Edu- Por definição, segundo o manual de funciona-
cação, da Justiça, da Cultura, do Trabalho e Emprego, mento da Sociedade Brasileira de Geriatria e Geron-
da Saúde, do Esporte, do Turismo, dos Transportes e do tologia (SBGG), Seção São Paulo, Biênio 2002/2003,
Planejamento, Orçamento e Gestão. atualmente, as ILPIs são estabelecidas para atendi-
Em outubro de 2003, foi instituído o Estatuto do mento integral institucionalizado em cuidados presta-
Idoso, destinado a regular os direitos das pessoas com dos a pessoas de 60 anos de idade ou mais, dependen-
idade igual ou superior a 60 anos (artigo 1º). O mesmo tes ou independentes, que não dispõem de condições
determina que os idosos gozem de todos os direitos ine- para permanecer com familiares ou em seu domicílio.
rentes à pessoa humana, além de garantir proteção, faci- Devido ao grau de importância das ILPIs para a socie-
lidade e privilégios condizentes com a idade (artigo 2º). dade, a seguir será apresentado o estudo realizado nas
Não há consenso, no Brasil, sobre o que seja uma entidades localizadas no Distrito Federal.
Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI).
Sua origem está ligada aos asilos, que constituem a mo-
dalidade mais antiga de atendimento ao idoso fora do Método
convívio familiar. Estes eram inicialmente dirigidos à
população carente, que necessitava de abrigo. Por isso, Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, visto
muitas instituições brasileiras se autodenominam abri- que tem como principal objetivo proporcionar infor-
gos (CARAMAGO, 2008). mações mais detalhadas sobre o assunto investigado,
A internação do idoso em uma instituição de lon- e que pretende orientar a formulação de novos obje-
ga permanência é uma alternativa em certas situações, tivos acerca do funcionamento das ILPIs no Distrito
quando se verificam a necessidade de reabilitação, a Federal. Cabe ressaltar que, além das ILPIs, existem
ausência temporária do cuidador domiciliar, os está- ainda outras instituições de atendimento ao idoso,
gios terminais de patologias e a dependência elevada tais como centros de convivência e associações.
(CHAIMOWICZ, 1999). Justifica-se o estudo nessa região porque a par-
Hoje, as ILPIs devem estar adaptadas e regulamen- ticipação da população acima de 60 anos de idade
tadas perante as leis para manter um padrão mínimo de passou de 4,01% do total de habitantes, em 1990,
funcionamento. A Agência Nacional de Vigilância Sani- para 5,35%, em 2000 (IBGE, 2000). Projeções do
tária (ANVISA) estabelece normas a serem aplicadas em IBGE e da Companhia de Planejamento do Distri-
todas as ILPIs, governamentais ou não, sem fins lucrati- to Federal (COMPANHIA DE PLANEJAMENTO
vos ou privadas, destinadas à moradia coletiva para pes- DO DISTRITO FEDERAL, 2009) mostraram que
soas de 60 anos de idade ou mais, com ou sem suporte a participação passará de 7,69%, em 2010, para qua-
familiar, que atendam pessoas idosas com variações de se 15% do total da população em 2030. Dados do
dependência, ou seja, aquelas que requerem o auxílio de Conselho dos Direitos do Idoso do Distrito Federal
outras ou de equipamentos especiais para a realização (CONSELHO DOS DIREITOS DO IDOSO DO
das atividades da vida diária (ANVISA, 2005). DISTRITO FEDERAL, 2009) relatam que, dos 177
Sem dúvida, é inquestionável a importância de mil idosos existentes no DF, 24% recebem até um
que o idoso viva no âmbito familiar e na comunidade. salário mínimo; 19,4%, entre 1 a 2 salários; 46,4%,
Entretanto, nem todos os idosos nem todas as famí- acima de 2 salários; e 10,2% estão incluídos em ou-
lias reúnem as condições para manter o idoso em casa. tras classes de rendimento mensal. Vale frisar que
Quando não há essa possibilidade, entram em cena as 47,5% dos idosos do DF são aposentados e muitos
Instituições de Longa Permanência para Idosos, tradi- contribuem com mais de 50% a 90% no rendimento
cionalmente conhecidas como asilos, casas de repouso, mensal domiciliar.
clínicas de repouso, lares dos velhinhos e outras tantas Assim, busca-se verificar, na prática, e de forma
nomenclaturas. estruturada, a situação financeira das casas onde os
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idosos são abrigados, conhecendo-se melhor as fontes de b) Gasto Total no Ano t (GT t), que é o resultado
recursos e os seus principais gastos. da multiplicação da Quantidade de Idosos
As instituições pesquisadas foram escolhidas com Atendidos no Ano t (QIA t) pelo Gasto Médio
base em um levantamento feito pelo Conselho dos di- (GM).
reitos do idoso do Distrito Federal (2009), apresentando
dez ILPIs localizadas no Distrito Federal. Em seguida, os
gestores das instituições foram contatados, mas apenas
seis se propuseram a participar da pesquisa.
Um questionário foi elaborado em quatro partes. A c) Proporção de Idosos Atendidos nas ILPIs (PII),
saber: (i) entidade: os principais dados, elencando as ati- que é o resultado da divisão da Quantidade de
vidades desenvolvidas, o tempo de existência, o número Idosos Atendidos (QIA) pela População Total de
de funcionários e o número de voluntários; (ii) perfil dos Idosos (PTI).
idosos: quantidade e gênero dos idosos; (iii) fontes de
recursos: tipo de fontes de recursos; (iv) gastos: demons-
tração das principais despesas da instituição. Uma limi-
tação ocorreu no levantamento dos gastos com fraldas
geriátricas, alimentos, produtos de limpeza ou itens de d) Quantidade de Idosos Atendidos no Ano t
qualquer outra natureza que não tenham sido adquiri- (QIA t), que é o resultado da multiplicação da
dos com dinheiro, pois dificultou a mensuração acurada Proporção de Idosos Atendidos nas ILPIs (PII)
das despesas da instituição, podendo, ainda, não estar pela População Total de Idosos no Ano t (PTI t).
contemplados na consolidação dos dados. Para tanto, foi
realizada uma entrevista com os gestores a fim de conhe-
cer as principais dificuldades enfrentadas na gestão das
instituições. A aplicação do questionário e da entrevista
foi realizada no mês de maio de 2011, contendo infor- Foram estabelecidos os seguintes passos: (i) elen-
mações relativas às receitas, aos custos e às despesas das car quais são as principais fontes de recurso nas ILPIs
instituições do mês de abril do corrente ano. filantrópicas e não filantrópicas; (ii) calcular quanto as
Os dados da população atual e futura de idosos fo- ILPIs filantrópicas e não filantrópicas gastam por mês
ram obtidos do relatório do IBGE de 2010, subsidiando e quais são as principais despesas; (iii) identificar quais
a projeção do volume de recursos que será necessário para são os tipos de serviços prestados aos idosos; (iv) reali-
manter a população de idosos nas instituições pesquisa- zar uma projeção dos gastos para os próximos 20 anos.
das nos próximos anos. Após coletados os dados e projetados os gastos, receitas
Foi necessário utilizar as seguintes fórmulas para o e despesas, foram realizadas as análises das informações
cálculo do número de idosos, dos recursos financeiros e das entidades. O estudo não foi submetido a um comitê
dos gastos necessários às instituições estudadas nos pró- de ética em pesquisa, visto que trata somente de um
ximos anos: levantamento de informações a respeito da sustentabili-
dade econômica das ILPIs. Na próxima seção, apresen-
a) Gasto Médio (GM), que é o resultado da di-
taremos os resultados da investigação.
visão do Gasto Total Anual (GTA), projetado a
partir de informações mensais, pela Quantidade
de Idosos Atendidos (QIA).
Resultados
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FREIRE, F.S.; MENDONÇA, L.H.; COSTA, A.J.B. • Sustentabilidade econômica das instituições de longa permanência para idosos
instituições analisadas, quatro são filantrópicas e apenas qualificada para saber lidar com os problemas biológi-
duas possuem finalidade lucrativa. cos do envelhecimento.
Grande parte do controle do ingresso de idosos Os profissionais responsáveis por cuidar de ido-
nas institições filantrópicas é feita pelo Centro de Re- sos devem ter conhecimentos para lidar com patolo-
ferência Especializado de Assistência Social (CREAS). gias ou limitações que necessitem de atenção especial.
Quando é informado pela instituição credenciada o Doenças, dificuldade de fala, idosos acamados, terapia
surgimento de vagas, é feita uma seleção dos idosos de medicamentosa, dietas e exercícios físicos são exem-
acordo com o perfil, levando-se em conta aspectos fi- plos de cuidados e conhecimentos em que os profissio-
nanceiros, de saúde e da região em que a família reside. nais devem se especilializar. Essas dificuldades podem
Atualmente, 61% dos idosos abrigados nas ILPIs ser reduzidas a partir da realização de capacitações
são mulheres e 39% são homens, de um total de 242 destinadas aos cuidadores para que eles possam pres-
idosos contemplados pela análise. Um estudo com ido- tar um atendimento mais efetivo e integral aos idosos.
sos de instituições asilares do município de Natal/RN Dessa forma, o profissional vai desempenhar suas fun-
demonstra perfil semelhante ao do Distrito Federal, ções com mais entusiasmo e segurança, dispondo de
onde mais de 58% dos pesquisados eram do sexo femi- informações básicas para o seu trabalho (COLOMÉ
nino (DAVIM et al, 2004). et al, 2011).
Com relação aos serviços oferecidos pelas ILPIs, Nas ILPIs privadas, a mensalidade que contem-
constatou-se que todas as instituições oferecem aten- pla a oferta de serviços para se hospedar um idoso
dimento médico, enfermagem e atividade lúdica. Dos pode chegar a um valor que oscila entre R$ 2.000,00
outros serviços prestados, a atividade cultural está pre- e R$ 3.500,00, dependendo do grau de saúde, do tipo
sente em cinco instituições, a de terapia ocupacional em de quarto e dos cuidados especiais requeridos. Em ou-
quatro, a de fisioterapia e de alongamento em três e a de tras instituições do DF, o valor da mensalidade pode
psicologia em apenas duas. chegar a R$ 8.000,00.
Para cada idoso, existe uma média de 2,29 aten- Já nas instituições filantrópicas, o governo esta-
dentes, dos quais, 0,82 está empregado e 1,47 traba- belece a forma de participação, que não poderá ex-
lha como voluntário, fazendo algum tipo de ativida- ceder 70% de qualquer benefício previdenciário ou
de ou prestando ajuda sem qualquer tipo de retorno de assistência social recebido pelo idoso. É bom frisar
financeiro. que a Constituição Federal e a Lei nº 8.742, de 7 de
Quando se trata da força de trabalho, enquanto dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência So-
não há voluntários prestando serviços nas instituições cial), asseguram ao cidadão brasileiro um benefício de
privadas, 70% das equipes de instituições filantrópicas prestação contínua no valor de um salário mínimo,
são compostas por voluntários. Isso demonstra a im- pago por mês às pessoas com mais de 65 anos que não
portância que a comunidade dá à prestação de serviços podem garantir sua sobrevivência por conta própria
à população de idosos do DF, principalmente na reali- ou com o apoio da família. Logo, se o idoso receber
zação de atividades lúdicas, de terapia ocupacional e de um salário mínimo de R$ 545,00, deverá repassar para
fisioterapia. No entanto, as instituições, às vezes, ficam as entidades até R$ 381,50.
dependentes de ações isoladas de um pequeno grupo de Quanto a fontes de recursos, a maior parcela de
pessoas, pois não há uma garantia de que tais serviços contribuição para a manutenção das seis ILPIs pro-
serão contínuos. Vale frisar que nas instituições filantró- vém de mensalidades pagas pelos idosos ou por suas
picas existe menos de um empregado (0,77) por idoso, famílias, atingindo 46% da arrecadação total, em de-
e que nas não filantrópicas esse número é de mais de um corrência da mensalidade cobrada pelas instituições
(1,02). Por outro lado, existem quase dois (1,80) vo- particulares. Em seguida, 23% das receitas são prove-
luntários para cada idoso nas instituições filantrópicas. nientes da contribuição beneficiária paga pelos idosos
Há necessidade urgente de preparação de mão de obra mantidos nas instituições filantrópicas (ver tabela 1).
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FREIRE, F.S.; MENDONÇA, L.H.; COSTA, A.J.B. • Sustentabilidade econômica das instituições de longa permanência para idosos
Tabela 1. Fontes de recursos das entidades filantrópicas e não filantrópicas, Brasília (2011)
R$ % R$ % R$ %
Além dessas receitas, advindas das mensalida- beneficiária, do financiamento público e de outras fon-
des ou dos recursos previdenciários, o governo parti- tes, que representam mais de 55% do total arrecadado.
cipa com 12% através de convênios, repassando um Vale destacar que, enquanto 45,4% das insti-
valor diário à instituição de R$ 6,71 para cada idoso tuições no Brasil oferecem atividades que geram renda
independente e de R$ 7,81 para cada idoso depen- (IPEA, 2011), nas instituições estudadas do Distrito
dente. Somente as ILPIs cadastradas nos CREAS Federal não há nenhuma fonte própria de recursos pro-
poderão obter os recursos do Governo do Distrito venientes de serviços ou mercadorias gerados por elas,
Federal (GDF). Doações em dinheiro pela comu- demonstrando total dependência de recursos governa-
nidade para as instituições filantrópicas representam mentais, dos asilados ou da comunidade.
11%, e outras fontes de recursos 7%. Em se tratando de gastos (ver tabela 2), a parce-
As filantrópicas dependem 43% da contribui- la mais significativa, 56%, refere-se ao pagamento de
ção beneficiária dos idosos, 22% de recursos do pessoal, incluindo médicos, enfermeiros e funcionários
Governo do Distrito Federal, via convênios, 22% dedicados à manutenção da instituição. Os gastos com
de doações em dinheiro e 13% de outras fontes de manutenção, incluindo aluguel, água, luz, telefone e
renda. materiais de limpeza representam quase 18% do total.
Comparando com pesquisa realizada em âmbi- Embora boa parte dos alimentos ofertados aos idosos
to nacional, referente à composição percentual do seja proveniente de doações (cujo montante não está
financiamento das instituições de longa permanên- incluído no compute do trabalho), 15% dos gastos são
cia por natureza, de 2007 a 2009 (IPEA, 2011), as destinados à compra de gêneros alimentícios. As fral-
fontes de financiamento no país são praticamente as das geriátricas representam 9% das despesas (além das
mesmas, seguindo em uma mesma proporção. Ob- doações não computadas), enquanto 2% referem-se a
serva-se que as instituições privadas são mantidas pe- medicamentos. As instituições normalmente não são
los residentes, chegando a quase 100% das receitas, responsáveis pela aquisição de remédios, ficando esse
enquanto as filantrópicas dependem da contribuição gasto a cargo do idoso e de seus familiares.
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 533-543, out./dez. 2012 539
FREIRE, F.S.; MENDONÇA, L.H.; COSTA, A.J.B. • Sustentabilidade econômica das instituições de longa permanência para idosos
R$ % R$ % R$ %
Pessoal
150.100,00 59,78% 45.000,00 46,15% 195.100,00 55,97%
540 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 533-543, out./dez. 2012
FREIRE, F.S.; MENDONÇA, L.H.; COSTA, A.J.B. • Sustentabilidade econômica das instituições de longa permanência para idosos
Tabela 3. Projeção da quantidade de idosos atendidos e recursos necessários para as ILPIs até 2030
Total de idosos no DF
197.613 254.288 314.482 262.662 484.043
Repasse de convênio do
1.080.199,94 1.389.996,36 1.719.031,36 1.435.775,87 2.645.897,43
governo em R$
Participação beneficiária
2.060.416,81 2.651.334,95 3.278.949,56 2.738.656,65 5.046.891,18
do idoso em R$
Doações da comunidade
3.522.510,91 4.532.750,97 5.605.727,71 4.682.037,09 8.628.219,86
em R$
O comportamento das despesas, bem como o re- para idosos em termos de composição da habitação
passe do governo, a parcela pagas dos idosos, as doações e de padrões de moradia; à natureza e ao impacto de
em dinheiro e a participação da comunidade podem ser modifica¬ções no lar, como realocação e design de uni-
observados na tabela 3, cabendo destacar que a tendên- dades para idosos com demência ou outros cenários
cia de crescimento presente em todo período é invertida especializados, bem como cuidados ao lugar do enve-
de 2020 para 2025, tendo em vista a queda de 10,40% lhecimento em uma ampla perspectiva social e política
para 8,30% na projeção do percentual de idosos no DF (TOMASINI, 2005).
em relação à população total (IBGE, 2011).
Os gastos anuais por idoso nas ILPIs tenderão a
crescer bem mais que os recursos repassados pelo gover- Considerações finais
no, pela comunidade e os oriundos das mensalidades
pagas pelos idosos, demonstrando que a participação Com os resultados apresentados, o governo e a socieda-
dos voluntários e as doações da sociedade continuarão de passam a ter informações mais detalhadas dos gastos
tendo um papel importante para a manutenção dessas ocorridos, bem como sobre a relevância do papel social
entidades. Mas, para que as ILPIs possam atender à das ILPIs, podendo, ainda, adotar estratégias e políticas
demanda crescente de idosos, serão necessários novos públicas para a manutenção e a melhoria da qualidade
investimentos. Pesquisas na área da gerontologia, que de vida das pessoas envolvidas.
trata especificamente da otimização das relações entre Os dados coletados por instituição, bem como sua
idosos e seus contextos sócio-espaciais, alertam para os consolidação, revelam que os recursos dos idosos (até
cuidados que devem ser dados às condições de moradia 70% de aposentadoria) somados aos governamentais
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 533-543, out./dez. 2012 541
FREIRE, F.S.; MENDONÇA, L.H.; COSTA, A.J.B. • Sustentabilidade econômica das instituições de longa permanência para idosos
são insuficientes para a manutenção das ILPIs de caráter Políticas educacionais quanto à formação de
filantrópico, ficando clara uma dependência da sociedade, mão de obra qualificada devem ser aventadas, pois
quer de doação em dinheiro, fraldas geriátricas ou alimen- há pessoas idosas no Brasil sujeitas à violência dos
tos, quer de trabalho voluntário. mais variados tipos, que vão desde insultos até cár-
Considerada a projeção do número de idosos e a cere privado (CONSELHO DOS DIREITOS DO
projeção dos gastos até 2030, não há como manter as en- IDOSO DO DISTRITO FEDERAL, 2009), fato
tidades sem a ajuda da sociedade, pois o governo contribui esse causado pela falta de pessoas preparadas para
com menos de um quarto do montante de recursos dessas lidar com os problemas causados na velhice. Gastos
instituições, o que é insuficiente para custear os medica- com capacitação de atendentes, cuidadores, médi-
mentos e a alimentação dos idosos atendidos. cos e enfermeiros deverão ser intensificados, acar-
Diante dessa dependência, os gestores buscam da retando mudanças nas planilhas de custos das en-
sociedade ajuda e recursos financeiros para a manutenção tidades. Haverá necessidade, também, de políticas
das instituições, o que demonstra ser um grande problema de capacitação de novos especialistas que possam
de sustentabilidade econômica, uma vez que o número de ofertar serviços de qualidade para uma faixa de ha-
idosos irá aumentar, o número de componentes das famí- bitantes carente de cuidados psicológicos e sociais.
lias diminuir, e o número de cuidadores mulheres tenderá Além do repasse de recursos governamentais,
também a reduzir. poderá o governo conceder incentivos fiscais às
Isso poderá ser modificado se houver um novo di- pessoas físicas e jurídicas, possibilitando maior
recionamento das políticas públicas voltadas para essa po- aporte nas receitas das instituições filantrópicas,
pulação, pois as ações de estímulo a doações em forma de uma vez que já existem incentivos dessa natureza
dinheiro atualmente são insuficientes em relação às fontes voltados para crianças e adolescentes, como a cul-
de recursos obtidas pelas ILPIs. Em alguns casos, exigên- tura, a atividade audiovisual e o desporto. Com
cias da Agência Nacional de Vigilância Sanitária quanto às relação às ILPIs particulares, as mensalidades pagas
condições de oferta de serviços dificultam a existência de pelos idosos se mostraram suficientes para a manu-
novas entidades. Há casas e abrigos não contemplados na tenção dos serviços ofertados, embora os gastos com
pesquisa funcionando de forma irregular, sem condições medicamentos e com planos de saúde fiquem a car-
necessárias para a obtenção de recursos do governo. go dos beneficiados.
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Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 533-543, out./dez. 2012 543
ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
Fabrine Costa Marques1, Karine Suene Mendes Almeida Ribeiro2, Warley Queiroz Santos3
1
Pós-Graduanda em Gestão de Serviços
e Sistemas em Saúde pela Universidade
RESUMO Trata-se de estudo descritivo/qualitativo, com o objetivo de conhecer a perce-
Estadual de Montes Claros (UEMC) – Montes
Claros (MG), Brasil.
pção dos enfermeiros com relação à parceria com a pastoral da criança. Para coleta de da-
brine87@hotmail.com
dos, utilizou-se entrevista semiestruturada e os dados foram analisados através da análise
Mestre em Enfermagem pelas Faculdades
do discurso. A percepção foi considerada relevante ante a viabilidade do acompanhamen-
2
544 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 544-553, out./dez. 2012
MARQUES, F.C.; RIBEIRO, K.S.M.A.; SANTOS, W.Q. • Intersetorialidade: possibilidade de parcerias entre a Estratégia Saúde da Família e a Pastoral da Criança
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 544-553, out./dez. 2012 545
MARQUES, F.C.; RIBEIRO, K.S.M.A.; SANTOS, W.Q. • Intersetorialidade: possibilidade de parcerias entre a Estratégia Saúde da Família e a Pastoral da Criança
ou motivam, podendo, dessa forma, instigá-los a uma Após aprovação da pesquisa pelo Comitê de Éti-
maior reflexão sobre o tema posto e, consequentemen- ca em Pesquisa da FUNORTE (Faculdades Unidas do
te, à implementação dessa prática em seu território, Norte de Minas), sob o parecer 0364/09, foram agen-
na busca de um melhor acompanhamento da saúde dadas as entrevistas por telefone. As mesmas foram re-
das crianças, seja na prevenção ou no tratamento de alizadas em ambiente reservado, no local de trabalho
doenças. dos entrevistados. Esses concordaram em assinar, em
duas vias, o Termo de Consentimento Livre e Escla-
recido, atendendo às recomendações da Resolução nº
Metodologia 196/96 sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Foi-
lhes assegurado o sigilo das informações fornecidas e
O presente estudo trata-se de uma pesquisa descriti- seu anonimato, já que foram identificados por nomes
va e qualitativa. Essa é caracterizada, segundo Minayo de guerreiros. Para fins de fidedignidade e transcrição
(2006), por ser um método: na íntegra das falas, foi solicitada a autorização para
gravar a entrevista em MP4, entretanto, nem todos
[...] que se aplica ao estudo da história, das re- autorizaram.
lações, das representações, das crenças, das per- Utilizou-se a técnica de Análise do Discurso, que
cepções e das opiniões, produtos das interpreta- tem como objetivo
ções que os humanos fazem a respeito de como
vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, realizar uma reflexão geral sobre as condições
sentem e pensam. (MINAYO, 2006, p.57). de produção e apreensão da significação de
textos produzidos nos mais diferentes campos:
Foram considerados sujeitos da pesquisa os religioso, filosófico, jurídico e sócio-político.
Enfermeiros responsáveis técnicos pelas oito unida- (MINAYO, 2006, p. 211).
des de Estratégia Saúde da Família pertencentes ao
Pólo Delfino Magalhães, no município de Montes Consoante a autora, na Análise de Discurso, o
Claros/MG, em um total de oito enfermeiros, repre- texto é abordado como unidade complexa de signifi-
sentados através da amostragem intencional. cações, enquanto o discurso é a linguagem em intera-
Para o levantamento e a construção dos dados ção. Orlandi (1996) defende a construção da Análise de
foi utilizada a técnica de entrevista semiestrutura- Discurso não como uma alternativa para a linguística,
da, com duração média de trinta minutos. Triviños ciência que explica a linguagem verbal humana, mas
(1992, p. 146) privilegia a como uma proposta crítica, a qual procura justamente
problematizar as formas de reflexão estabelecidas.
entrevista semi-estruturada porque esta, ao A análise dos dados qualitativos foi realizada em
mesmo tempo que valoriza a presença do dois momentos: primeiro, a ordenação dos dados; em
investigador, oferece todas as perspectivas seguida, a classificação dos mesmos. Os temas identifi-
possíveis para que o informante alcance a cados foram agrupados por afinidade e organizados em
liberdade e a espontaneidade necessárias, cinco categorias.
enriquecendo a investigação.
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MARQUES, F.C.; RIBEIRO, K.S.M.A.; SANTOS, W.Q. • Intersetorialidade: possibilidade de parcerias entre a Estratégia Saúde da Família e a Pastoral da Criança
feminino. Esse dado reflete de forma expressiva a Percepção dos enfermeiros com relação à
feminização da força de trabalho em Enfermagem, parceria entre a ESF e a Pastoral da Criança
o que, para as autoras Lopes e Leal (2005, p.109),
ocorre devido aos aspectos sócio-históricos dessa pro- Os profissionais entrevistados consideraram de gran-
fissão. Para elas, a enfermagem nasce como um ser- de importância a ação intersetorial entre a Pastoral da
viço organizado de instituições religiosas “associado Criança e a ESF, sendo essa opinião incorporada na
à figura da mulher-mãe que desde sempre foi curan- maioria dos discursos, como no da seguinte fala:
deira e detentora de um saber informal de práticas
de saúde, transmitido de mulher para mulher”, im- Na minha opinião, penso que é muito impor-
pondo à profissão, por longo período, exercício ins- tante, porque o trabalho da Pastoral é muito
titucional exclusivo e ou majoritariamente feminino consolidado e tem uma excelente adesão da po-
e caritativo. pulação para todos os eventos e ações que eles fa-
Com relação à faixa etária, 62,5% estão com zem. [...] só vem a acrescentar o nosso trabalho.
menos de 29 anos de idade e 37,5% entre os 30 e (William Wallace).
34 anos.
É importante destacar a formação complemen- Em duas falas, percebe-se a importância da parce-
tar dos enfermeiros das Estratégias de Saúde da Fa- ria relacionada, de maneira restrita, ao acompanhamen-
mília da Macro-região Delfino Magalhães. A maioria to das crianças. Já em outra, o entrevistado faz menção
dos entrevistados possui Residência Multiprofissional à complexidade do trabalho oferecido pela Pastoral, que
em Saúde da Família ou ainda é residente. Ademais, também inclui o acompanhamento do idoso.
dois daqueles possuem Mestrado Profissionalizante
em Ciências da Saúde. Desse modo, verifica-se que, A parceria, ela é importante, uma vez que a
a despeito de não ser considerado um requisito, os gente soma esforços no acompanhamento de
profissionais daquelas ESFs detêm qualificação acima crianças. (Hércules).
da exigida para o desempenho de sua função.
Analisando o tempo dos entrevistados no cargo, Acho extremamente importante a parceria
verificou-se que todos não se enquadram em um dos para facilitar o acompanhamento às crianças
critérios de exclusão, que é possuir experiência em da área. (She-Ha).
Unidade de Saúde da Família inferior a um ano. À
exceção de 03 (três), os quais exercem a função há Eu acho importante. A gente trabalha com
mais de cinco anos, a maioria a exerce há 2 (dois) faixa etária parecidas. Eles (a Pastoral) traba-
anos. lham com a criança, a gente também trabalha
Entre os oito entrevistados, metade possui outra com a criança, eles trabalham com o idoso, a
ocupação: três trabalham como enfermeiros em um gente também. É de suma importância, é um
Hospital Universitário e um exerce a docência. Em- trabalho complementar ao nosso e que, quan-
bora a Estratégia Saúde da Família estabeleça, através do funciona direito, é excelente, sem dúvidas.
da Portaria nº648/GM, de 28 de março de 2006, “o (Máximus).
cumprimento de horário integral – jornada de 40 ho-
ras semanais – de todos os profissionais nas equipes Outro entrevistado revela não ter uma opinião
de saúde da família” (BRASIL, 2007, p. 23), tal fato bem formada, devido ao fato de sua ESF não ter uma
não lhes exclui o direito ao acúmulo remunerado de efetiva participação com a Pastoral. Todavia, na fala
cargo público, quando houver compatibilidade de seguinte, ele ressalta a seriedade da parceria, uma vez
horários, conforme a Constituição, em seu artigo 37, que o “desenvolvimento de ações intersetoriais, inte-
inciso XVI, alínea b e c (BRASIL, 2010). grando projetos sociais e setores afins, voltados para a
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Uma das estratégias é convidar a Pastoral para coisa relevante, porque eles (Pastoral) precisam
participar de algumas atividades aqui na Uni- também de estar com o cartão em dia, e a gen-
dade, principalmente relacionadas à criança e te também faz esse acompanhamento, aí eles
à mulher, especialmente à gestante, para poder (Pastoral) acabam falando. (Máximus).
estimular a própria educação permanente da
Pastoral, porque eles têm a capacitação deles.
[...] convidar para o processo educativo [...] Fatores que dificultam a parceria entre a ESF
toda vez que tem um tema novo, que é interes- e a Pastoral da Criança
sante, que é importante o agente (ACS) saber;
então a gente convida o pessoal da Pastoral; eles Um dos fatores dificultadores do processo intersetorial
vêm; eles têm uma boa aderência. (Mulher entre a ESF e a Pastoral da Criança, mencionado pelos
Maravilha). entrevistados, foi a divisão territorial. O que é constata-
do na fala seguinte:
Outras estratégias utilizadas foram os processos
de referência e contrarreferência, como as mencionadas A gente não tem como concretizar (a parceria)
nos discursos a seguir. porque, na verdade, com a segmentação do ter-
ritório, que é longilíneo, fica complicado a gen-
[...] eles (líderes da Pastoral) estão sempre em te tentar concretizar a parceria com algumas
contato para saberem quem foi a criança que das Pastorais, porque quem é do [...] (bairro
pesou, quem foi a criança que não pesou. Eles que faz parte da área de abrangência), aí a
nos procuram também para saber questões de gente deveria concretizar (a parceria) lá, mas
alguns dados relacionados às crianças que estão lá é um pedaço só. Então é muito segmentado
em baixo peso, e vice-versa. Existe comunica- mesmo, o território é igual a uma colcha de re-
ção sim. [...] quando a criança está na faixa talho. E aí a gente escolhe uma Pastoral, uma
etária que é prioritária fazer a puericultura, a outra microárea fica muito distante para parti-
gente faz, mas quando não é, eu solicito para cipar, então fica muito ruim. Até pela questão
continuar pesando na Pastoral e na chamada de não ter nenhuma Igreja Católica em nosso
nutricional aqui. (William Wallace). território, apesar de estar próximo. [...] pela
questão territorial não é muito viável. (Power
[...] meio que indiretamente, a gente está fa- Rangers).
zendo um trabalho, mas não tem parceria
estabelecida, assim de estar encaminhando os De fato, a dificuldade em implementar a parceria
casos, de eles estarem recebendo como contrar- com a Pastoral da Criança ocorre porque essa “ [...] se
referência, a gente não tem isso. Mas sempre organiza em vários níveis de coordenação, aproveitan-
quando eu tenho uma criança em dificulda- do a estrutura da Igreja Católica, formada por dioceses,
de, eu aconselho a procurar (a Pastoral) por paróquias e comunidades” (PASTORAL DA CRIAN-
causa dos complementos alimentares, também ÇA, 2007, p. 299), diferentemente da delimitação evi-
por causa dos medicamentos; eu gosto muito denciada nas ESFs, a qual é definida por um Segmento
do xarope oferecido pela Pastoral; [...] o ´Leite Territorial. Esse é conceituado na Portaria nº 750, de
pela Vida´, ele é passado (pela Pastoral). [...] 10 de outubro de 2006, como sendo:
Então, quando eu tenho criança, eu tenho ido-
so, eu os encaminho, peço que eles (Pastoral) [...] um conjunto de áreas contíguas que pode
passam complemento, e eles (Pastoral) não en- corresponder à delimitação de um Distrito Sa-
caminham para cá. Mas quando tem alguma nitário, de uma Zona de Informação do IBGE
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A dificuldade que a gente tem é porque, agora, [...] o que motiva é porque é um acom-
uma das pessoas que está à frente dessa Pastoral panhamento até mais intensivo, o agente
teve um desentendimento com a antiga equipe (ACS) passa uma vez e a Pastoral vai e passa
e a gente herdou isso. (Máximus). mais uma vez. Na pesagem, os dois veem essa
criança novamente... (Hércules).
No momento, devido a problemas de relaciona-
mento, não há uma parceria. Mas há intenção Eu acredito o que possa estar motivando essa
da ESF em iniciar a parceria. Um dos mem- parceria seria mesmo o acompanhamento das
bros que fazia parte da Pastoral da Criança ti- crianças, o acompanhamento nutricional das
nha problema particular com a ESF, o que di- crianças. (Tempestade).
ficultava a parceria. Segundo informações, esse
membro não tem mais ligação com a Pastoral, A motivação é a questão da própria repercus-
sendo então uma das nossas prioridades iniciar são da Pastoral, porque o trabalho da Pas-
a parceria. (She-Ha). toral é muito bem feito, contínuo, e assim,
tem excelentes resultados. Então, assim, tudo
A dificuldade em implementar ações intersetoriais isso motiva a gente quando a gente sabe que
na Atenção Básica também é reconhecida em outros tem uma criança acompanhada, uma ges-
estudos. Giovanella et al. (2009) analisam que a inte- tante [...]; eu até me sinto assim, até mais
gração e a intersetorialidade são desafios nem sempre feliz pelo fato de ser mais um recurso para
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ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
1
Doutora em História das Ciências pela Casa
de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz
RESUMO O presente artigo é produto da tese ‘O CEBES e o movimento de reforma sani-
(COC/FIOCRUZ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. .
Pesquisadora da Coordenação de Museologia
tária: história, política e saúde pública (1970-1980)’ desenvolvida na Casa de Oswaldo Cruz.
do Museu de Astronomia e Ciências Afins
(CMU/MAST) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
A investigação tem como objetivo examinar a trajetória do Centro Brasileiro de Estudos
danielasophia@mast.br
da Saúde entre 1976 e 1986. Este artigo atém-se em abordar a participação do Centro na
8ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida no ano de 1986. A Revista foi escolhida como
fonte e objeto de estudo, procurando-se compreender seu papel na articulação entre os
pesquisadores e a agenda da saúde pública brasileira. A utilização da Revista Saúde em
Debate deu visibilidade a questões pertinentes à participação de seus membros na Refor-
ma sanitária. Nesse processo, foi possível observar que a criação desse periódico permitiu
uma discussão sobre outras formas de produzir e organizar informações sobre saúde na
instituição.
PALAVRAS CHAVE: História da Saúde Pública; Políticas de Saúde; Reforma Sanitária; CEBES.
ABSTRACT The present article is the product of the research ‘Cebes and Sanitary Reform Move-
ment: history, politics and public health (1970-1980)’ developed in Casa de Oswaldo Cruz. The
research analyzes the trajectory of the Brazilian Center for Health Studies (Centro Brasileiro de
Estudos da Saúde, CEBES) between 1976 and 1986. This article focus on the Center’s participa-
tion in the 8th National Health Conference, held in 1986. The Journal was chosen as the source
and object of study, seeking to understand its role in the interaction between researchers and
public health agenda in Brazil. The use of the Revista Saúde em Debate brought visibility to the
research questions relevant to the participation of members of the Center. In this process, it was
observed that the creation of this journal has allowed a discussion about other ways to produce
and organize information on health in the institution.
KEYWORDS: History of Public Health; Health policies; Health reform; CEBES.
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SOPHIA, D.C. • Notas de participação do CEBES na organização da 8ª Conferência Nacional de Saúde: o papel da Revista Saúde em Debate
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SOPHIA, D.C. • Notas de participação do CEBES na organização da 8ª Conferência Nacional de Saúde: o papel da Revista Saúde em Debate
e, dessa forma, imprimindo sua marca no processo de apresentação, discussão e aprovação do relatório fi-
de discussão que contemplasse a saúde como direito nal da 8ª Conferência, ocupando o cargo de assessor de
fundamental. Sérgio Arouca. Além disso, cabia a Eric a coordenação
A campanha pela reforma sanitária parece ter tido do comitê assessor, que teria como finalidade dar apoio
impacto significativo na formulação da política de saú- técnico, administrativo e político à comissão. Sob sua
de. As propostas defendidas pela entidade e veiculadas coordenação, o técnico da FIOCRUZ Ary Miranda de
na Saúde em Debate parecem ter ecoado nos diferentes Carvalho, que ocupava a segunda secretaria do CEBES,
grupos de trabalho da VIII Conferência e incutido a desempenharia o papel de assessor na mesma comissão.
noção – que aos poucos surgia – de que a saúde de- O economista Roberto Passos Nogueira, que ocupava
veria ser direito de todos e, portanto, universal, e de no CEBES o cargo de primeiro secretário, foi nomeado
responsabilidade do Estado. De fato, desde a organiza- relator da 8ª CNS. O segundo suplente na gestão de
ção do I Simpósio de Política de Saúde da Câmara dos Eric, o médico Nelson Rodrigues dos Santos, apresen-
Deputados, em 1979, passando pelos inúmeros eventos tou, no painel Financiamento do Setor Saúde, o deba-
realizados pelo CEBES ao longo do início dos anos 80, te intitulado Descentralização e municipalização. Por
os temas da reforma do sistema de saúde iam ganhando fim, o segundo vice-presidente, Darli Antônio Soares,
as páginas da revista e galgando os fóruns profissionais, foi nomeado relator do evento. Ressalta-se, também,
os Departamentos de Medicina Preventiva e as organi- a participação do tesoureiro do CEBES, Jorge Adria-
zações de classe. No entanto, o que essas ocorrências no Moreira Feitosa, como relator. Não há registro nos
mostram é uma identificação da Saúde em Debate com Anais sobre a participação dos membros da diretoria do
as discussões candentes do evento, lugar para onde seria CEBES Franscisco de Assis Machado e Tânia Celeste
levada a preocupação com o quadro sanitário brasileiro. Matos Nunes.
A partir de 1984, na esteira da discussão sobre a Além de membros da Diretoria Nacional,
realização da 8ª Conferência, os membros do Centro alguns integrantes dos Núcleos do CEBES também
passam a envolver-se na organização do evento, e o pe- participaram na Conferência como relatores. São eles:
riódico, por conseguinte, torna-se veículo de divulgação do Núcleo Regional de Uberlândia, Flávio Goulart;
de todo o processo. Muitos são os indícios de partici- de Brasília, Jorge Adriano Moreira Feitoza Sotero; de
pação e inserção de membros do Centro na 8ª Confe- Pernambuco, José Augusto Cabral de Barros; da Bahia,
rência Nacional de Saúde, o que explicaria, em parte, a Ubiratan Moreira de Souza; e, de Curitiba, Ziadir Cou-
grande semelhança encontrada entre os temas discuti- tinho. Do Núcleo de Londrina, participou o médico
dos por ocasião do evento e aqueles que foram outrora Luiz Cordoni Junior como debatedor no painel Finan-
abordados em Saúde em Debate, nos relatórios da enti- ciamento do setor saúde.
dade e nos inúmeros documentos e cartas enviadas por Destaca-se, ainda, a presença de membros da di-
sua Diretoria Nacional aos sócios. retoria no período 1976-1980, dentre eles: um dos fun-
A comissão organizadora, nomeada pelo então mi- dadores do Centro, David Capistrano Filho, nomeado
nistro da Saúde Carlos Corrêa de Menezes Sant’Anna,1 membro do Comitê assessor da 8ª CNS, também marcou
foi presidida pelo então presidente da Fiocruz Sérgio presença como assessor de Eric na apresentação das sínte-
Arouca, membro do CEBES. Sobre a composição da ses das pré-Conferências estaduais; o membro do conse-
referida comissão, é muito significativo destacar a pre- lho editorial do CEBES, em 1977, José Augusto Cabral
sença de 75% dos membros da Diretoria Nacional na de Barros, nomeado relator do evento; e o membro do
organização do evento. Entre eles, encontramos Eric conselho editorial do CEBES, em 1977, Ricardo Lafetá
Jenner Rosas – então presidente do Centro – na mesa Novaes, também nomeado relator da Conferência.
1
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 596, de 19 de agosto de 1985. Brasília: Ministério da Saúde, 1985.
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SOPHIA, D.C. • Notas de participação do CEBES na organização da 8ª Conferência Nacional de Saúde: o papel da Revista Saúde em Debate
Dentre os membros da Diretoria Nacional do Conferência. Dessa forma, o Centro ia marcando pre-
período 1980-1982, destacam-se: o ex-presidente do sença por meio da participação ativa de seus membros,
CEBES no período, Eleutério Rodrigues Neto, que seja na composição da comissão organizadora, seja na
proferiu a palestra ‘Reordenamento do Sistema Nacio- apresentação e no debate de propostas para debate nos
nal de Saúde’; as colaboradoras do Centro, Sarah Es- painéis.
corel e Herval Pina Ribeiro, nomeadas como relatoras Vários dos integrantes da Comissão Organizado-
do evento; o suplente do então presidente do CEBES, ra da 8ª Conferência, composta pelo presidente, vice,
Hésio Cordeiro que, no evento, participou como deba- relatores e assessores, foram autores de artigos na re-
tedor no painel ‘Reformulação do Sistema Nacional de vista Saúde em Debate, o que explica a continuidade
Saúde’, tendo apresentado palestra intitulada A parti- temática entre as questões abordadas no periódico e os
cipação de todos na construção do Sistema Unificado assuntos por eles discutidos. Abaixo, tabela contendo o
de Saúde; e, por fim, o colaborador do CEBES Sérgio número de artigos produzidos pelos participantes da 8ª
Arouca, que, como vimos, foi nomeado presidente da Conferência.
Expositores/trabalhos
18 12 76
apresentados
Total 93 37 157
Tal constatação nos remete à importância do CE- entidade, apontaria seus paradigmas e influenciaria de-
BES e da revista em todo o processo de debates que en- cisivamente na construção de sua mensagem.
volveu a mudança da política. É muito significativo que Um terceiro dado mostra a porosidade dos deba-
46% dos membros da comissão organizadora tenham tes ocorridos no evento às propostas defendidas pelo
publicado na Saúde em Debate. A ocorrência mostra Centro. Grande parte das instituições com as quais o
um alinhamento entre o conselho editorial e o perfil CEBES manteve um alinhamento no período esteve
dos membros da comissão do evento. É preciso lembrar presente no evento. Todas essas aparições iam mos-
que a publicação na Saúde em Debate estivera condicio- trando uma relação do Centro com as entidades que se
nada ao parecer do conselho, responsável pela seleção fizeram presentes na 8ª Conferência. Das instituições
do conteúdo que seria publicado e principalmente por com as quais o CEBES manteve contato, chama aten-
sua apresentação (intertítulos, notas, ilustrações). Além ção a relação estabelecida com o Partido do Movimento
disso, a despeito desses artigos, pode-se afirmar que Democrático Brasileiro, cuja representação no evento
também atendiam à linha editorial da revista, ou seja, mostrou-se muito ampla. Registra-se, no evento, o dis-
iam ao encontro de uma política predeterminada pelos curso do então presidente da República José Sarney,
editores que determina a lógica pela qual o CEBES en- eleito pelo PMDB; militante do partido desde o iní-
xergaria o mundo. Tal política indicaria os valores da cio dos anos 80, Raphael de Almeida Magalhães, então
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SOPHIA, D.C. • Notas de participação do CEBES na organização da 8ª Conferência Nacional de Saúde: o papel da Revista Saúde em Debate
ministro da Previdência Social, discursou na abertura da época, Sônia Maria Fleury Teixeira, era também mem-
Conferência. Além disso, destaca-se a presença do en- bro do CEBES. A ABRASCO aparece inúmeras vezes
tão presidente do PMDB, Ulisses Guimarães; do líder na revista, seja na divulgação de eventos conjuntos com
do governo Pimenta da Veiga – que, posteriormente, o Centro, seja em artigos contendo propostas de refor-
deixaria o partido para fundar o PSDB –; e do ministro mulação do setor, ou seja, em artigos que, de maneira
do Trabalho Almir Pazzianoto. Ora, o CEBES estaria geral, defendem a importância da democratização do
afinado, no período, com as discussões no âmbito inter- setor. Todas essas aparições iam mostrando o resultado
no do PMDB. É muito significativa a participação do da articulação entre o CEBES e as demais entidades do
ex-presidente do CEBES, Eleutério Rodrigues Neto, no setor, que estariam empenhadas em promover uma al-
Grupo de Trabalho do PMDB/Saúde da Assessoria Par- teração do quadro político e que teriam como bandeira
lamentar do PMDB/Saúde. Além disso, na 17ª edição a democratização do setor saúde.
da Saúde em Debate, foi muito significativa a publicação A relação entre o CEBES e as instituições parti-
das proposições do Grupo Saúde do Diretório Central cipantes da 8ª Conferência envolveu, ainda, parcerias
do PMDB/São Paulo. Há que se ressaltar, ainda, nos na organização de seminários, na participação em deba-
idos de 1979, o I Simpósio de Política de Saúde da Câ- tes, em trabalhos e assessoria técnica ou até mesmo em
mara dos Deputados – em cuja organização os mem- divulgação de artigos na revista Saúde em Debate. São
bros do Núcleo do Centro tiveram intensa participação. elas: Associação Médica Brasileira, Central Única dos
Outra instituição presente no evento e com a qual Trabalhadores, Confederação das Misericórdias do Bra-
o CEBES manteve contato foi a CNBB, entidade com sil, Confederação Nacional das Associações de Morado-
a qual, desde 1982, o CEBES mantém uma proximi- res, Confederação Nacional das Classes Trabalhadoras,
dade. Durante o evento, o padre Pedrinho Guareschi, Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, Confe-
representante da entidade na Conferência, foi debate- deração Nacional dos Trabalhadores na Agricultura,
dor na mesa intitulada Saúde como direito inerente à Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, Conselho
cidadania e à personalidade (BRASIL, 1987, p. 115). É Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde, Departa-
preciso lembrar da relação outrora estabelecida entre o mento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde
CEBES e a CNBB nas atividades relacionadas à promo- dos Ambientes de Trabalho, Federação das Associações
ção da chamada Campanha da Fraternidade, em 1981, de Moradores do Estado do Rio de Janeiro, Federação
quando a Conferência lança a campanha Saúde para to- das Indústrias do Estado de São Paulo, Federação Na-
dos. Na ocasião, o tema foi amplamente recebido pelos cional dos Médicos, Fundação Oswaldo Cruz e Insti-
membros do CEBES que participaram ativamente das tuto Brasileiro de Geografia e Estatística. Foi possível
atividades promovidas pela CNBB e que divulgaram identificar que o CEBES manteve – em maior ou me-
nas páginas da Saúde em Debate toda a movimentação nor grau – algum tipo de vínculo com todas as institui-
ocorrida em torno do tema. Membros do CEBES esti- ções acima listadas. O levantamento das instituições foi
veram presentes no Encontro Saúde para Todos, realiza- feito a partir das informações contidas no documento
do nos dias 30 e 31 de maio de 1981, na PUC-SP, pro- Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Foram lis-
movido pela Pastoral da Saúde da Cúria Metropolitana tadas as instituições presentes como apresentadoras ou
em parceria com o Sindicato dos Médicos de São Paulo debatedoras nos painéis temáticos.
e o CEBES, entre outras entidades ligadas à saúde. Por fim, o exame da edição de número 17, publi-
Mas talvez a maior parceria estabelecida no pe- cada dois meses antes do evento – que teve como ob-
ríodo tenha sido a aproximação do CEBES com a Asso- jetivo divulgar os documentos produzidos no período,
ciação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva. contendo propostas para mudanças na política –, diz-
Muito significativo que o Centro tenha sido represen- nos muito sobre a participação do CEBES na Confe-
tado na 8ª CNS pelo então presidente da ABRASCO, rência: das 10 instituições colaboradoras da edição de
Sebastião Loureiro. A vice-presidente da Associação na número 17,9 participaram como representantes da 8ª
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 554-561, out./dez. 2012 559
SOPHIA, D.C. • Notas de participação do CEBES na organização da 8ª Conferência Nacional de Saúde: o papel da Revista Saúde em Debate
Conferência, ou seja, 90% das entidades que apresen- Abaixo, tabela contendo a lista dos articulistas do nú-
taram artigos naquele fascículo estiveram presentes mero 17 da Revista Saúde em Debate, publicado em
no evento, debatendo e divulgando suas propostas. janeiro de 1986.
560 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 554-561, out./dez. 2012
SOPHIA, D.C. • Notas de participação do CEBES na organização da 8ª Conferência Nacional de Saúde: o papel da Revista Saúde em Debate
A participação dos membros do CEBES na 8ª Por fim, o CEBES se constituiu em um palco de in-
CNS contribuiu, de fato, para alavancar um movimen- tensos debates sobre os rumos das políticas sociais
to maior de mudanças na política de saúde, para pro- e o papel a ser desempenhado pelo Estado, repre-
mover um realinhamento do eixo das diretrizes para o sentando um grupo comprometido com a transição
setor, movimento que marcou as atividades do Centro, política e a consolidação de um sistema de governo
em geral, e da Revista Saúde em Debate, em particular. democrático.
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Dissertação (Doutorado em Historia das Ciências e da Saúde) –
Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2008.
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ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
Greice de Brito Souza1, Simone Rennó Junqueira2, Maria Ercilia de Araujo3, Carlos Botazzo4
1
Mestre em Ciências Odontológicas pela
Universidade de São Paulo (USP) – São Paulo
RESUMO Este trabalho verificou as percepções sobre a satisfação com a vida, o corpo e
(SP), Brasil.
greicebrito@hotmail.com
a saúde de adolescentes, cujas práticas se refletem na saúde bucal. Por meio de pesquisa
2
Doutora em Saúde Pública pela
qualitativa, jovens de Barueri/São Paulo foram entrevistados pela técnica do grupo focal.
Universidade de São Paulo (USP) – São Paulo
(SP), Brasil. Professora do Departamento
Seus discursos foram analisados pela análise de conteúdo. Os resultados indicam que a
de Odontologia Social da Faculdade de
Odontologia da Universidade de São Paulo
alimentação desses jovens é pouco balanceada; o cuidado com o corpo é sinônimo de
(USP) – São Paulo (SP), Brasil.
srj@usp.br banho e esportes, e a saúde bucal foi limitada à escovação; recorrem ao convênio pela
3
Livre-Docente pela Universidade de São demora do atendimento no posto de saúde. O conhecimento da percepção dos jovens
Paulo (USP) – São Paulo (SP), Brasil. Professora
Titular do Departamento de Odontologia sobre esses eixos pode contribuir para o aprimoramento das ações e do acesso aos meios
Social da Faculdade de Odontologia da
Universidade de São Paulo (USP) – São Paulo de prevenção, tratamento e manutenção da saúde bucal.
(SP), Brasil.
mercilia@usp.br
PALAVRAS CHAVE: Adolescente; Conhecimentos, atitudes e prática em saúde; Saúde bu-
4
Livre-Docente pela Universidade de São
Paulo (USP) – São Paulo (SP), Brasil. Professor cal; Pesquisa qualitativa.
do Departamento de Odontologia Social da
Faculdade de Odontologia da Universidade
de São Paulo (USP) – São Paulo (SP), Brasil.
botazzo@hotmail.com
ABSTRACT This study assessed the perceptions of satisfaction with life, body and health of
adolescents, whose practices are reflected in oral health. Through qualitative research, adoles-
cents in the city of Barueri/São Paulo were interviewed by the focus group technique. Their dis-
courses were analyzed using content analysis. The results reveal that those young people have
a poorly balanced feeding; the care of the body is seen as synonymous with bathing and sports
and oral hygiene care was limited to brushing; many reported use of the services of dental plan
due to the delays in health care units. Knowing the perception of young people on these axes
can contribute to the improvement of the shares and access to means of prevention, treatment
and maintenance of oral health.
KEYWORDS: Adolescents; Knowledge, attitudes and practice; Oral health; Qualitative research.
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SOUZA, G.B.; JUNQUEIRA, S.R.; ARAUJO, M.E.; BOTAZZO, C. • Práticas para a saúde: avaliação subjetiva de adolescentes
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SOUZA, G.B.; JUNQUEIRA, S.R.; ARAUJO, M.E.; BOTAZZO, C. • Práticas para a saúde: avaliação subjetiva de adolescentes
universo dos adolescentes poderem ser descritos segun- gravidez precoce, a manifestação de distúrbios alimen-
do o ponto de vista dos sujeitos do estudo. tares (por vezes, com a realização excessiva de dietas) e
Para a coleta do material, optou-se por entrevistas o uso de álcool e drogas são situações comuns na vida
por meio do grupo focal. Foram formados dois grupos, dos adolescentes, podendo comprometer o seu estado
divididos por sexo, entre alunos do primeiro ano do nutricional (MAHAN; ESCOTT-STUMP, 2002).
ensino médio de uma escola municipal da cidade de Ba- Segundo Fisberg et al. (2000), os principais pro-
rueri, situada no noroeste da Região Metropolitana de blemas detectados na alimentação dos adolescentes são:
São Paulo. Os alunos foram escolhidos aleatoriamente
a) Omissão de refeições, principalmente o café da
pela coordenação da escola. O grupo feminino possuía
manhã, o que pode levar a um menor rendimento
12 meninas, entre 14 e 15 anos de idade, e o grupo
escolar.
masculino foi composto por 9 meninos, entre 14 e 17
anos. Isso pode ser observado na fala das meninas, como
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em mostram os exemplos:
Pesquisa da Faculdade de Odontologia da Universidade
de São Paulo (Protocolo 93/2009). Os pais dos adoles- Na minha casa, dia de semana, eu não almoço,
centes assinaram o Termo de Consentimento Livre e eu só janto. Gosto mais de comer bala, doce,
Esclarecido. Todavia, foram expostos aos participantes bala praticamente todo o dia. Chocolate eu
os objetivos do estudo. Eles foram informados de que a também gosto de comer. [...] (indivíduo 9).
conversa seria gravada para facilitar a posterior transcri-
ção, mas que não seriam identificados, sendo garantida Eu sou magra já, não tem. Quando eu pego
a confidencialidade das falas. para comer eu mando ver, como um monte,
As entrevistas, realizadas em dezembro de 2010, mas também quando eu não quero comer eu
duraram, em média, duas horas cada. Foram realizadas não como. Hoje to o dia todo sem comer nada e
na própria escola, sem a presença de professores, em to sem fome nenhuma.(indivíduo 4).
uma sala ampla, onde foi possível montar uma roda, o
que facilitou a comunicação corporal e visual. Lá em casa tem bastante besteira também.
O tratamento do material se deu pela técnica de Eu procuro cuidar do meu corpo, aí, às vezes,
análise de conteúdo, proposta por Bardin (2009), por eu não janto porque eu sei que engorda. Eu
meio da qual, pela interpretação dos conteúdos das en- treino lutas marciais, aí já não janto porque
trevistas gravadas, identificam-se unidades de sentido/ emagreço no treino, eu perco a fome no treino.
expressões chaves, que se constituíram em categorias de (indivíduo 5).
análise.
b) Substituição das principais refeições (almoço e
jantar) por lanches, principalmente quando esse é
Resultados e discussão o hábito familiar.
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SOUZA, G.B.; JUNQUEIRA, S.R.; ARAUJO, M.E.; BOTAZZO, C. • Práticas para a saúde: avaliação subjetiva de adolescentes
[...] Lá em casa, a única refeição que é certa é o e) Baixa ingestão de frutas e hortaliças. A dieta
almoço, a janta é se der vontade de comer. Não pouco balanceada foi comum entre os jovens.
tem dia para pedir lanche, pizz., Ontem foi pi-
zza, a gente pede sexta. (indivíduo 7). Ah, em casa a gente nunca se preocupou com
comida, essas coisas, tanto que minha mãe tem
c) Alta ingestão de refrigerantes, de aproximada- hérnia, eu também tenho pedra no rim, quan-
mente um litro por dia. Tal consumo foi conver- do a gente vê, ah, a gente quer, a gente come.
gente em ambos os sexos. Nunca teve isso. Eu odeio salada, nunca comi
salada, eu odeio salada, não tem nada de vege-
Almoço se não tem coca-cola não é almoço lá tal e essas coisas. E não tem horário, também,
em casa. Ninguém toma café. (indivíduo 7, para comer. (indivíduo 2, menina).
menina).
[...] Lá em casa, direto, meu pai aparece com
[...] Não tem nada para fazer, eu como. E fruta diferente [...] Nunca comi. (indivíduo 4,
tomo muito refrigerante, não bebo água. menino).
(indivíduo 2, menino).
[...] Maçã só pode comer quando está em casa,
d) Alimentos com alta densidade calórica, nor- porque quem usa aparelho é ruim, fica todo
malmente salgados fritos, bolachas recheadas, sujo o aparelho. (indivíduo 4, menino).
chocolate e alto consumo de balas, diariamen-
te. Esse item foi o mais frequente entre os jo- Mas observou-se que isso não foi unânime, e que
vens, independente do sexo. existiam famílias que estimulavam o consumo de frutas
e hortaliças:
Mas é porque na adolescência é só comer
besteira, batata frita, coca-cola, chocolate, Lá em casa é muita salada, muito legume,
a gente pega um dinheiro e vai direto com- muita coisa saudável. (indivíduo 1).
prar o quê? Chocolate. Você está triste, você
vai comer o quê? Chocolate. (indivíduo 4, Sabe-se que, durante o período mais acelerado de
menina). crescimento (pico de velocidade), os adolescentes con-
somem maiores quantidades de alimentos, caracteri-
[...] Gosto bastante de chocolate, doce, aqui na zando alta ingesta calórica; isso ficou mais evidente nas
escola mesmo, é bala o dia inteiro. (indivíduo falas dos meninos.
6, menina).
Eu como o dia inteiro se deixar. (indivíduo 5).
Mas a gente come muita besteira também. O
meu pai é um chocólatra da vida, bolacha, re- [...] Às vezes janto antecipado, depois janto de
frigerante, chiclete, bala, muito. (indivíduo 3, novo, de madrugada de novo. (indivíduo 2).
menina).
Comer de 3 em 3 minutos já é o bastante.
[...] Se tiver comida, eu como, depois, fico (indivíduo 1).
beliscando queijo, mortadela, presunto, di-
reto pão. [...] Como doce [...] todo o dia, Se o elevado consumo é ainda compensado pelo
quando chego da escola. (indivíduo 5, gasto de energia, eles, todavia, precisarão ser mais cui-
menino). dadosos com a frequência da alimentação quando o
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SOUZA, G.B.; JUNQUEIRA, S.R.; ARAUJO, M.E.; BOTAZZO, C. • Práticas para a saúde: avaliação subjetiva de adolescentes
crescimento tiver cessado. Por esse motivo, o hábito para os meninos e meninas que estão tornando-se ma-
de alimentar-se em excesso, adotado durante a ado- duros atentarem para banhos regulares e outros aspec-
lescência, pode finalmente contribuir para uma série tos de higiene e limpeza corporal, que incluem o uso
de doenças debilitantes, assim como para o sobrepeso de cremes e esmalte de unha, mesmo entre meninos. A
e a obesidade (MAHAN; ESCOTT-STUMP, 2002; limpeza corporal parece ter encontrado nos banhos o
SAITO, 2008). máximo da realização.
Houve convergência na maioria dos discursos, in-
dicando o excesso de ingestão de alimentos calóricos Cuidado com o corpo eu tenho bastante [...]
(carboidratos, açúcares e refrigerantes), pouco balan- Tomar banho, escovar os dentes. Eu tenho mui-
ceados e sem horários estabelecidos. Mas houve tam- ta espinha, mas passo um creme. (indivíduo 7,
bém aspectos divergentes, como o anunciado por duas menino).
jovens:
Eu, quando saio para a escola, tomo banho;
Na minha casa tem que almoçar e jantar todo quando volto da escola, tomo outro banho; de-
o dia. O meu pai é muito assim. Se a minha pois, às vezes, a molecada lá da rua me chama
mãe não fizer comida, ela já é preguiçosa, en- para jogar bola na rua, tiro um tampão do
tão tem que ter as refeições todas certinhas. dedo (risos), me ralo todo, ando de bicicleta. É
(indivíduo 3). isso. (indivíduo 1, menino).
Lá em casa é muita salada, muito legume, [...] tomo banho demais, se for ver, é 5, 6 ba-
muita coisa saudável. (indivíduo 1). nhos por dia. Muito calor, eu me sujo muito fá-
cil [...]. Antigamente, eu era mais fresquinho,
passava base na unha, hoje em dia, não tenho
Categoria 2: Os cuidados com o corpo nem unha mais. Passava creme. (indivíduo 6,
Crianças saudáveis entram na puberdade entre 9 e 16 menino).
anos. Puberdade não é sinônimo de adolescência; ao
contrário, puberdade refere-se aos aspectos biológicos Tomo banho 2 vezes, na hora que eu venho
das intensas transformações a que a criança estará sujeita, para a escola e na hora que eu chego também.
sendo, portanto, um componente da adolescência. A ida- (indivíduo 11, menina).
de exata em que se iniciam tais transformações depende
de fatores genericamente descritos como ‘sociais’, se em Na adolescência, a construção da identidade pes-
populações urbanas ou rurais etc.; outros fatores relevan- soal inclui necessariamente a relação com o próprio cor-
tes são a nutrição, a hereditariedade e o sexo. Em média, po; e essa relação se faz através da representação men-
os meninos entram na puberdade 2 anos mais tarde que tal que o jovem tem do seu corpo, ou seja, através de
as meninas. Nesse momento, as glândulas pituitárias e sua imagem corporal (FERRIANI et al., 2005). Como
o hipotálamo (glândulas endócrinas) começam a enviar parte do entendimento da construção da identidade e
novos hormônios que desencadeiam as alterações na pu- da imagem corporal, procurou-se saber como os jovens
berdade (SILVA; LEAL, 2008). ocupavam o tempo em seus horários livres. A prática de
As glândulas sudoríparas tornam-se mais ativas e o esportes emergiu associada aos cuidados com o corpo e
suor produzido tem um conteúdo levemente diferente não necessariamente apenas como opção de lazer.
de quando uma criança era pequena (começa a aparecer
mais de um odor). As glândulas de óleo tornam-se mais Jogo bola. Jogo vôlei. Jogo vídeo-game. Só. E
ativas e pode aparecer acne. Nesse momento, a importân- durmo. Acordo 11h, 10h, tomo banho e já ve-
cia da higiene pessoal torna-se latente, e é importante nho para a escola. (indivíduo 9, menino).
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SOUZA, G.B.; JUNQUEIRA, S.R.; ARAUJO, M.E.; BOTAZZO, C. • Práticas para a saúde: avaliação subjetiva de adolescentes
Fico em casa, quando a minha mãe vem com A limpeza bucal também está relacionada à preo-
meu cunhado, a gente sai, vai para a pescaria cupação dos jovens com a higiene pessoal, a sensação de
[...].(indivíduo 3, menino). frescor e o bom hálito (LISBÔA; ABEGG, 2006).
[...] fico até umas 19:30h na rua, quando Você sente que, homem pelo menos, não sei me-
volto, tomo outro banho. E eu fazia vôlei, não nina, homem se preocupa com a boca só por
faço mais por causa que eu tava na quadra, um motivo: menina. Só por isso! Me preocupo
aqui, jogando, o menino veio e pisou no meu com o bafo. Menina eu já não sei. (indivíduo
pé, quebrou o meu pé, agora tô fazendo tera- 4, menino).
pia no meu tendão.(indivíduo 3).
Eu escovo os dentes quando eu acordo, depois
Eu ando um pouco. Às vezes, eu vou até o que eu tomo café, para vir para a escola e para
ponto de ônibus, volto. (risos) Às vezes, eu jogo dormir. (indivíduo 8, menino).
bola, às vezes vôlei, às vezes eu brinco com a
minha cachorrinha. No sábado eu faço nata- Não se podem esquecer as propagandas existentes,
ção. E só. (indivíduo 1, menina). principalmente nas revistas, que, de uma forma indire-
ta, afirmam ser a aparência física responsável pela felici-
Eu gosto bastante de dançar também, eu dan- dade e pelo sucesso (THOMSEN et al., 2002).
ço. Eu adoro praticar esportes, adoro futebol, Valores culturais relacionados à estética e ao maior
adoro vôlei, adoro handebol, sempre estou jo- acesso à informação sobre saúde são mais evidentes nas
gando alguma coisa. (indivíduo 2, menina). classes sociais de maior poder aquisitivo, o que pode
justificar o fato de os adolescentes de escolas privadas
Jogo futebol. Não gosto de vôlei e basquete, citarem com maior frequência os dentes e os cabelos
só de futebol e handebol mesmo. Luto kung como muito importantes (CAMPOS; GUIMARÃES,
fu. Aí, quando acho que meu corpo tá saindo 2003; GRANVILLE-GARCIA et al., 2008). No entan-
de forma, já maneiro na comida, aí começo a to, os adolescentes do presente estudo, a despeito de
comer salada. (indivíduo 5, menina). serem de escolas públicas, manifestaram claramente as
mesmas preocupações.
Observou-se no discurso que os cuidados com O desejo de possuir uma boa aparência não é ape-
o corpo aparecem como uma demostração de um es- nas um sinal de vaidade próprio dessa fase. Nos serviços
banjar de saúde, e a grande maioria dos adolescentes, considerados de prestígio, ou onde há contato direto
independente do sexo, relatou fazer algum tipo de com o público, os funcionários devem possuir uma boa
exercício. estética dental (JENNY; PROSHEK, 1986). Na pes-
quisa, realizada por Elias et al. (2001), os adolescentes
evidenciaram a preocupação com uma boa saúde bucal
Categoria 3: A higiene bucal para a busca de empregos.
Sheiham (2004) advoga que a maioria dos jovens lim- O alerta para a compreensão dos adolescentes e
pa seus dentes com regularidade em razão de a esco- de suas necessidades é de suma importância, e os pro-
vação estar associada à boa aparência. Tal afirmação fissionais de saúde ou educação devem se esforçar na
aparece com clareza na fala abaixo: tentativa de estabelecer e manter abertos canais de co-
municação, influenciando positivamente suas agendas.
Eu sou apaixonada por um sorriso bem boni- Por outro lado, não é incomum adolescentes apre-
to. Acho lindo. Sorriso, para mim, é o cartão sentarem um comportamento negligente com relação
de visita. (indivíduo 1, menina). aos seus cuidados com a saúde. Portanto, esse período é
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SOUZA, G.B.; JUNQUEIRA, S.R.; ARAUJO, M.E.; BOTAZZO, C. • Práticas para a saúde: avaliação subjetiva de adolescentes
tido como de risco aumentado para o aparecimento de da frente). Eu quebrei com a flauta, eu tava
cárie dentária e outras afecções bucais, em decorrência tocando flauta, aí o cachorro veio e bateu na
do precário controle de placa, do menor cuidado com minha perna. Eu tava com a perna mole, bati,
a escovação e da maior ingestão de produtos açucara- bateu na parede a flauta e bateu na minha
dos (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1995; boca. (indivíduo 5).
TOMITA et al., 2001).
Não sinto dor de dente. Faz o maior tempão
Eu ainda acho que a gente tem consciência que eu não vou no dentista. (indivíduo 9,
sobre saúde bucal e higiene, é só preguiça. menina).
(indivíduo 4, menina).
Não sei. (risos) Nunca fui no dentista, nunca
O trauma dental foi abordado por vários jovens e procurei. Nunca senti dor, nada. (indivíduo
percebeu-se que, ao menos em virtude desses acidentes, 2, menina).
eles acessaram algum serviço odontológico. Poucos re-
lataram nunca ter ido ao cirurgião-dentista. O uso de Eu também nunca fui no dentista, nunca senti
aparelhos ortodônticos, citado nos discursos e confir- uma dor no dente. Escovo os dentes 3 vezes por
mado pelos entrevistadores, indica a crescente inserção dia, não consigo dormir sem escovar os dentes,
dessa especialidade, antes restrita às camadas sociais de nem tomar café da manhã. Eu considero a mi-
maior renda. nha higiene boa. (indivíduo 5, menina).
Quanto eu estava na 4ª série, quebrei meu Eu escovo os dentes só antes de vir para a escola
dente duas vezes. Esse dente aqui [mostra um e para dormir, não tenho o costume de escovar
dente da frente] quebrou. Uma vez, eu tava os dentes de manhã, tenho preguiça, não uso
andando de costas e um moleque me derrubou. fio dental, também tenho preguiça. [...]. Vou
Eu caí de boca. Outra vez, eu tava no banheiro ao dentista de vez em quanto, mas já fui mui-
da escola, tinha um moleque dentro do banhei- to, já tive cárie, já quebrei o dente, até hoje tá
ro, eu tranquei a porta e saí correndo. O mole- quebrado ainda, não vou. Só. (indivíduo 3,
que pulou a porta, saiu correndo e me deu um menina).
vôo. Eu caí e quebrei o mesmo dente, de novo
[...] O ruim do aparelho é a escovação. Com o Faz bastante tempo que eu não vou ao dentis-
aparelho, você não consegue escovar os dentes ta, mas não tenho nenhum problema no den-
direito. Não dá. Você tem que ficar uma meia te, dor nenhuma, não tenho medo de dentista.
hora para escovar os dentes. A escovação que (indivíduo 11, menina).
eu dou mais importância é na hora de dormir.
[...]. (indivíduo 5, menino). Pelos discursos, observa-se que a procura por
assistência odontológica é em boa parte direcionada
Quando eu tinha 7 ano,s eu tava brincando aos particulares ou ao convênio. Os serviços públicos
de amarelinha, aí uma menina, não foi a in- foram pouco procurados, seja pela disseminação dos
tenção dela, ela pegou e me empurrou, eu que- convênios, seja pela demora do agendamento no se-
brei 5 dentes daqui da frente. (indivíduo 3, tor público ou pela falta de necessidade, segundo suas
menino). percepções.
Eu quebrei um dente quando eu tinha 8 Não uso o posto de saúde, só vou em dentista
anos. Quebrei esse aqui, ó (mostra um dente particular. (indivíduo 1, menino).
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SOUZA, G.B.; JUNQUEIRA, S.R.; ARAUJO, M.E.; BOTAZZO, C. • Práticas para a saúde: avaliação subjetiva de adolescentes
Nunca fui num posto de saúde, é muito demo- marcar e fica dois a três meses esperando, aí
rado. (indivíduo 5, menino). você desiste. (indivíduo 2, menina).
Minha mãe marca tudo no postinho, para pre- O Quadro 1 traz uma síntese dos principais resul-
venir, mas a consulta demora muito. Você vai tados, estratificados por sexo.
Quadro 1. Principais resultados segundo as categorias de análise dos discursos dos adolescentes, estratificados por sexo,
Barueri, 2010
Omissão de refeições –
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SOUZA, G.B.; JUNQUEIRA, S.R.; ARAUJO, M.E.; BOTAZZO, C. • Práticas para a saúde: avaliação subjetiva de adolescentes
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Recebido para publicação em Junho/2011
Versão definitiva em Julho/2012
Suporte financeiro: não houve
Conflito de interesse: inexistente
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 562-571, out./dez. 2012 571
ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
1
Mestre em Psicologia Social e Institucional
pela Universidade Federal do Rio Grande
RESUMO Este artigo busca contribuir para a Reforma Psiquiátrica, propondo-se a analisar
do Sul (UFRGS) – Porto Alegre (RS), Brasil.
Professor do Curso de Psicologia da
um de seus atuais desafios: o exercício de protagonismo e participação social de usuários
Faculdade Integrada de Santa Maria (FISMA)
– Santa Maria (RS), Brasil.
em saúde mental. Para tanto, descreve uma pesquisa, sustentada metodologicamente na
diogofccosta@yahoo.com.br
cartografia, em espaços instituídos de participação, em um Centro de Atenção Psicossocial
2
Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia
de município da fronteira oeste do Rio Grande do Sul, onde foram utilizadas as seguin-
Universidade Católica de São Paulo (PUC-
SP) – São Paulo (SP), Brasil. Professora do tes ferramentas de pesquisa: observação participante, diário de campo e entrevistas com
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Social e Institucional da UFRGS – Porto Alegre gestores, trabalhadores e usuários. Entre seus resultados, o conceito de coletivo indicou a
(RS), Brasil.
simone.paulon@ufrgs.br potência de um novo arranjo participativo, capaz de dialogar com as noções de autono-
mia e protagonismo, constituindo-se enquanto plano existencial fértil para o exercício de
protagonizar em saúde mental.
PALAVRAS CHAVE: Saúde mental; Participação social; Políticas públicas.
ABSTRACT This article seeks to contribute to the Psychiatric Reform, aiming at the analysis
of one of its current challenges: the exercise of protagonism and social participation of mental
health users. For this, it describes a research, methodologically based on the cartography me-
thod, supported by established spaces of participation in a Psychosocial Attention Center of a
town in the western border of Rio Grande do Sul, using the following research tools: participant
observation, field diary and interviews with managers, workers and users. Among its findings,
the concept of collective indicated the power of a new participatory arrangement, capable of
dealing with the notions of autonomy and protagonism, which acts as a breeding ground for
the exercise of protagonism in mental health.
KEYWORDS: Mental health; Social participation; Public policies.
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COSTA, D.F.C.; PAULON, S.M. • Participação Social e protagonismo em saúde mental: a insurgência de um coletivo
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COSTA, D.F.C.; PAULON, S.M. • Participação Social e protagonismo em saúde mental: a insurgência de um coletivo
indica os fluxos, devires, intensidades, as formações do poderosa arma contra as amarras institucionais que en-
desejo no campo social. Não temos de um lado (molar) gessam a potência instituinte dos embates com o que se
manicômios e leis que encarceram e de outro (mole- julga a loucura em nossa sociedade. As possibilidades
cular) uma micropolítica libertária. O que temos são concretas para que uma participação protagonista se re-
jogos de forças múltiplas, relações de poder que produ- alize no cotidiano dos serviços substitutivos em saúde
zem modos de viver, desejos de clausura e de liberdade mental, entretanto, dependem de um conjunto de pro-
em embates intensos na mesma sociedade, nos mesmos cessos institucionais, econômicos, políticos e subjetivos,
corpos, erigindo e sustentando instituições, sujeitando- que precisam ser identificados a fim de se tornarem ob-
nos, insurgindo-se, subjetivando-nos. jeto de intervenção militante e de investigações impli-
Nas palavras de Guattari (2010): cadas. Esse foi o intuito da pesquisa aqui relatada, cujo
objetivo maior de contribuição com o processo de re-
Essa oposição entre molar e molecular pode forma psiquiátrica, em curso no país, justifica a realiza-
ser uma armadilha. Eu e Gilles Deleuze sem- ção do campo no município do Rio Grande do Sul, que
pre tentamos cruzar essa oposição com uma apresenta uma das redes de atenção psicossocial mais
outra, a que existe entre micro e macro. As bem estruturadas e mais “aquecidas”1 de nosso estado.
duas são diferentes. O molecular, como pro-
cesso, pode nascer no macro. O molar pode se
instaurar no micro. [...] Esse tipo de modelo Protagonizando um percurso de pesquisa: a
nos mostra como a produção molar de sub- construção metodológica
jetividade se acompanha necessariamente de
uma negociação mínima de processos mole- A pesquisa baseou-se no referencial da Análise Institu-
culares. (GUATTARI; ROLNIK, 2010, p. cional francesa, utilizando-se do método da cartografia
150-151). e configurando-se como uma pesquisa-intervenção. Se-
gundo essa abordagem, a construção de um objeto de
Ou seja, o uso desses conceitos auxiliou-nos a pesquisa encontra-se, fundamentalmente, indissociada
compreender o complexo jogo de forças e agenciamen- de seu próprio percurso metodológico. Um caminhar
tos que compõe os processos de subjetivação contempo- conjunto entre pesquisador e objeto: um jogo mútuo de
râneos, especialmente no terreno das políticas públicas afetações e interferências que vão dando os contornos
de saúde mental, contribuindo para o entendimento de um objeto nunca totalmente apreensível.
– ainda que incipiente – de que “[...] os problemas se Cartografar, nessa perspectiva, é apostar na po-
colocam sempre e ao mesmo tempo nos dois níveis” tência do “hódos-meta” (PASSOS; BARROS, 2009),
(GUATTARI; ROLNIK, 2010, p. 156). que propõe a inversão do método (“metá-hódos”), in-
Desse modo, o momento atual da reforma, através dicando que o percurso metodológico se faz conforme
de seus principais movimentos de luta antimanicomial, se processam os encontros e efeitos do pesquisar sobre
tem defendido a importância da “[...] redefinição do o campo de estudos e o pesquisador, sem traçar, ante-
lugar do ‘sujeito da diferença’ na sociedade [...]” (TOR- cipadamente, os possíveis caminhos e resultados para a
RE; AMARANTE, 2001, p. 83, grifo do autor), com o pesquisa. A pesquisa adquire, desse modo, um caráter
intuito de construir uma política de saúde mental aten- de intervenção, visto considerar “[...] a inseparabili-
ta às dívidas históricas contraídas juntamente por esse dade entre conhecer e fazer, entre pesquisar e intervir:
segmento da população brasileira. Nessa construção, toda pesquisa é intervenção” (PASSOS; BARROS,
a participação cidadã do usuário configura-se como 2009, p. 17).
1
A expressão faz alusão às “redes quentes” e “redes frias” que Passos e Barros (2004) utilizam para se referir à diferença entre as relações e os debates ocorridos no Fórum Social
Mundial de Porto Alegre e no Fórum Econômico Mundial de Davos, eventos cronologicamente paralelos e politicamente contrapostos em que o tema das redes é colocado
em questão.
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COSTA, D.F.C.; PAULON, S.M. • Participação Social e protagonismo em saúde mental: a insurgência de um coletivo
O conceito de analisador, que, para Lourau Participação social e saúde mental: das
(1995), evidencia a dinâmica invisível de forças que agonias de um lutador
perpassam as instituições, tornou-se importante fer-
ramenta de pesquisa ao possibilitar a enunciação do A noção de inclusão e participação da sociedade civil
tensionamento instituído-instituinte e a discussão de na formulação e no controle das políticas públicas no
algumas cenas e situações analisadoras do tema pes- Brasil é ainda muito incipiente. Comemoramos, em
quisado. Um exemplo disso, nessa trajetória específica 2011, os recentes 23 anos da promulgação da Cons-
de investigação, aparece nas formulações viabilizadas tituição Federal de 1988, cujo artigo 196 instituiu a
pela participação dos pesquisadores nas conferências saúde enquanto direito de todos e dever do Estado; e
de saúde mental, ocorridas ao longo do ano, em que o artigo 198 determinou a participação da comunida-
a pesquisa de campo foi se desenrolando. Outra fer- de enquanto diretriz constitutiva do Sistema Único de
ramenta importante para esta abordagem de pesqui- Saúde (SUS).
sa, que assumiu especial relevância nesse processo, foi É através da Lei 8.142, de 28 de dezembro de
o uso do diário de campo enquanto instrumento ca- 1990, que a participação social é garantida legalmente,
paz de acompanhar os sutis processos de inserção no criando-se as principais instâncias de inserção e partici-
campo empírico. Nele, foram registrados os encon- pação de representantes da população na construção da
tros, observações, falas e estranhamentos a fim de, política de saúde nacional: as conferências e os conse-
mais do que apenas compor registros de pesquisador, lhos de saúde.
compor a própria produção do conhecimento acerca No entanto, sabemos que apenas a instituciona-
da participação em saúde mental para os atores que lização desses fóruns participativos não garante, por si
participaram do processo: pesquisadores, usuários e só, a efetiva realização dos objetivos principais desses
trabalhadores que possam pensar-intervir na rede de espaços democráticos: “[...] avaliar a situação de saú-
saúde em que se inserem com outra condição/quali- de e propor as diretrizes para a formulação da política
ficação, munidos desse saber que deixa de ser apenas de saúde nos níveis correspondentes [...]” (no caso das
um saber acadêmico para uso pessoal e restrito a um conferências) e “[...] atuar na formulação de estratégias
seleto grupo de acadêmicos. e no controle da execução da política de saúde na ins-
A pesquisa foi conduzida em um município tância correspondente [...]” (para os conselhos de saú-
da fronteira oeste do Estado do Rio Grande do Sul, de) (BRASIL, 1990).
através da inserção de um dos pesquisadores em dois Em amplo artigo acerca da situação da participa-
espaços instituídos de participação para o usuário: ção social no Brasil, Goulart (2010) aponta alguns dos
1) Associação dos Usuários, Familiares e Militan- principais dilemas enfrentados para a efetivação desse
tes da Saúde Mental; 2) Assembleia dos Usuários, princípio do SUS:
reunião semanal dos usuários em um dos CAPS do
município. [...] devem os conselhos se constituir como fó-
Além da participação nas reuniões da asso- runs autônomos, plenárias de debates, assem-
ciação e da assembleia dos usuários, foram realizadas bleias permanentes, etc., destinadas ao apro-
entrevistas semiestruturadas com usuários, trabalha- fundamento político, conceitual, filosófico
dores e gestores do serviço de saúde mental, que serão dos temas sanitários, mas cujas decisões terão
apresentadas através de breves trechos de depoimen- apenas implicações remotas (se tanto) sobre a
tos selecionados a partir do critério de enunciação do condução do sistema de saúde? Ou, de forma
tema-foco do artigo em questão2. oposta, o que realmente importa não seria
2
Critérios éticos assegurados conforme descrito no parecer de número 2010047, do CEP do Instituto de Psicologia da UFRGS.
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COSTA, D.F.C.; PAULON, S.M. • Participação Social e protagonismo em saúde mental: a insurgência de um coletivo
influenciar de fato, com foco na práxis da ges- funciona por aí: ter essa abertura, não ter esse
tão? (GOULART, 2010, p. 30). preconceito, de ir construindo conforme aquilo
que vai aparecendo. (trabalhador de saúde).
O autor destaca um acentuado processo de buro-
cratização dos conselhos de saúde, resultando em uma Neste ponto, cabe retomar as duas dimensões
anteriormente discutidas para a análise das falas dos
[...] espécie de reinvenção da tutela, da subal- entrevistados: a do plano macropolítico, referente à
ternidade e da dependência na relação entre formação dos conselhos, conferências, garantias de leis,
Estado e sociedade. Os conselhos passam a agir daquilo que está instituído e formalizado socialmente; e
como meros espaços de disputa por recursos pú- outra que inclui o plano micropolítico, das relações de
blicos. (GOULART, 2010, p. 22). forças entre sujeitos desejantes, compondo formas de
se subjetivar, por exemplo, mais ou menos participati-
Quanto a isso, acreditamos que o depoimento vas. Um plano que deixa mais evidente a dimensão da
abaixo ilustre a questão: cidadania (plano jurídico) e outro que ressalta a dimen-
são dos processos de singularização (plano subjetivo).
[...] eu acho que esses locais instituídos, por São concepções que diferem sem, contudo, divergirem,
exemplo, o próprio serviço de saúde mental, a e que deveriam ser compreendidas como necessárias e
associação dos usuários, o conselho de saúde, complementares uma à outra.
eles não podem ser instituições assim muito bu- Dito de outra forma:
rocráticas, tem que ter essa coisa do cuidado,
né? de estimular as pessoas, estimular a auto- [...] os fóruns não existiriam não fosse a es-
nomia, e eu acho que o maior entrave é isso. trutura institucional que os criou e somente
Eu acho que esse seria assim, dos movimentos haverá participação se houver organização
sociais que eu vejo, que os conselhos de saúde, às da sociedade civil. Em certos casos podem
vezes, se tornam muito burocráticos. Eles não ocorrer resistências das autoridades muni-
trabalham a questão da grupalidade, do asso- cipais de saúde em relação à participação
ciativismo, da associação, da importância das dos usuários e mesmo assim ela ocorrer em
ideias de cada um para formar o todo. Não sei, função da pressão dos movimentos sociais.
eu vejo meio por aí. (trabalhador de saúde)3. (CÔRTES, 2002, p. 38).
3
Utilizamos o recurso de grifar em itálico os depoimentos literais dos entrevistados, destacando, sempre ao final dos trechos, a categoria a qual ele pertencia (trabalhador,
gestor ou usuário da saúde mental).
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COSTA, D.F.C.; PAULON, S.M. • Participação Social e protagonismo em saúde mental: a insurgência de um coletivo
Assembleia do Conselho Local, votando uma tese na complexa trama de impasses a serem superados para
Conferência Nacional de Saúde Mental ou definindo a realização dessa fundamental diretriz constitucional
seu Plano Terapêutico com a equipe que lhe cuida na de participação no sistema de saúde. Esse tema ganha
unidade de saúde, pode ter, do ponto de vista da mi- ainda maior relevância quando se trata deste peculiar
cropolítica do processo de cuidado, a mesma potência usuário do SUS, que ainda carrega uma herança de
transformadora de vidas. Trata-se, portanto, de apos- preconceitos e estigmas associados à loucura, confor-
tarmos nesse plano subjetivo – movimentos de resis- me a fala de um usuário: “[...] fico triste de ver que
tência e criação – em que a análise micropolítica “[...] muitos usuários não têm ‘voz ativa’ de verdade em as-
consistiria, exatamente, em tentar agenciar os processos suntos pertinentes à saúde mental”.
de singularização no próprio nível de onde eles emer- Para a dramaturgia grega, ser o protagonista
gem [...]” (GUATTARI; ROLNIK, 2010, p. 152), ou sinalizava ser o primeiro a entrar em cena. Por isso,
seja, buscando enfrentar a ambiguidade inerente a todo ainda hoje, a etimologia da palavra protagonista guar-
processo de institucionalização na perspectiva de que se da algo dessa disputa, pois ‘proto’ significa primeiro,
encontrem ‘novas saídas’ para os riscos de enrijecimento principal, e ‘agón’ significa luta, disputa, discussão. O
próprios dos movimentos da vida. De forma sistemá- primeiro a falar na ‘ágora’ grega, portanto, o ‘proto-
tica, parece-nos que é isso que os usuários expressam agonista’, é justamente aquele que anuncia o que se irá
quando fazem incluir a seguinte reivindicação entre as discutir, o primeiro a pôr aquilo que está em disputa,
teses aprovadas na IV CNSM-I: em discussão, em cena. Não será mesmo isso – aquilo
que não pode calar – que o usuário da saúde mental
A ampliação da participação da população nas anuncia em sua demanda/agonia participativa? O que
decisões do cotidiano dos serviços e nas instân- ‘precisa’ ser posto na roda?
cias de controle social deve incluir estratégias Trazer essa metáfora para o cenário da Reforma
que incentivam o fomento, a capacitação e Psiquiátrica sugere que, quando se trata de uma per-
qualificação das associações e movimentos de sonagem como o ‘louco’, esse lugar relativiza-se. Ser
saúde mental, organizados por representação e o primeiro a falar/participar/debater ainda implica
o incentivo à promoção de reuniões de usuários enfrentar desafios que carregam antigos atavismos
e familiares, em assembleias participativas nos manicomiais. Por isso, a importância da construção
serviços de saúde mental. As capacitações para de territórios onde o protagonista possa, realmente,
o exercício do controle social devem contemplar exercitar essa experimentação subjetiva de ‘entrar em
temáticas de saúde mental e serem feitas em cena’.
parcerias com universidades. Para tanto seria
fundamental a inclusão dos diferentes atores
da rede de saúde mental, a sensibilização dos Protagonismo e saúde mental: a potência
profissionais de saúde para integrarem os con- de um coletivo
selhos, o convite a outros movimentos sociais e
estímulo à organização de todos os atores em Não façam nada pra nós, sem nós!
associações, conselhos e participação nas confe-
rências. (BRASIL, 2010, p. 38). Essa fala, enunciada por um usuário durante um dos
encontros da assembleia no CAPS, ajudou-nos a pro-
A partir disso, a problemática do protagonismo blematizar que protagonismo é esse que buscamos
insere-se enquanto questão pertinente ao tema do con- estudar e que se discute em saúde mental e nos en-
trole social e pode ofertar um precioso instrumento contros do movimento antimanicomial. Conforme
conceitual e metodológico para o enfrentamento dos participávamos das reuniões da associação e da assem-
riscos das cristalizações institucionais, que figuram na bleia dos usuários, percebemos que a formação desses
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 572-582, out./dez. 2012 577
COSTA, D.F.C.; PAULON, S.M. • Participação Social e protagonismo em saúde mental: a insurgência de um coletivo
espaços participativos constituía-se como algo a mais de fazer uma terapia em grupo, que eu fui fazer
que meros encontros de grupos de usuários. uma vez e não deu certo.
O espaço assembleia, por exemplo, composto por
um grupo de 20 a 30 usuários, com encontros sema- Isso indicou-nos uma busca por pertencimento,
nais, caracteriza-se por ser uma forma participativa na pela constituição de um coletivo que ultrapassa as di-
qual todos os usuários do CAPS são incentivados a par- mensões de apenas um grupo terapêutico ou reunião
ticipar, tendo por objetivo a discussão de temas e assun- de usuários: a importância de uma vinculação afetiva,
tos do cotidiano do serviço, além de demandas trazidas que se estabelece enquanto processo e efeito de subjeti-
pelos próprios usuários. vação. Indicou-nos a demanda pela constituição de um
Nas reuniões das quais participamos, os assuntos território subjetivo onde o usuário possa experimentar,
giravam em torno de questões voltadas ao relaciona- talvez pela primeira vez, a capacidade de pensar e deci-
mento de uns com os outros, além de algumas ativida- dir por si só uma trajetória singular de vida.
des desenvolvidas no CAPS e na cidade: participação Nesse sentido, estamos nos referindo ao conceito
nas feiras do livro e da saúde do município; apresen- de coletivo, visto como plano relacional, constituído
tações de capoeira; atividades em projetos de educação ‘entre’ indivíduo e sociedade, de agenciamento, logo,
vinculados ao CAPS e participação nas demais oficinas produtor de subjetividade, como esclarece Escóssia
realizadas pelo serviço. Os usuários relataram histórias (2009):
de vida ocorridas antes e depois de começarem a fre-
quentar o CAPS. Histórias de abandono, violência, in- [...] um conceito de coletivo cuja definição não
ternações em hospitais psiquiátricos por aí afora. Com se dá por oposição ao indivíduo, pois não se
a vinculação às atividades do CAPS, consideraram-se confunde nem com um social totalizado nem
seres humanos respeitados: “[...] me sinto feliz aqui. É com a interação entre seres já individuados.
minha segunda casa! [...] sem a saúde mental, hoje nós Trata-se de um coletivo a ser apreendido a par-
não tinha ninguém”. tir de dois planos distintos, porém inseparáveis.
Ao longo dos encontros, fomos percebendo que Planos que se cruzam desfazendo as binarida-
formam um grupo bem unido. Muitos se conhecem há des: o plano das formas e o plano das forças. O
bastante tempo, se divertem, brincam e caçoam uns dos plano das formas é o plano de organização e de-
outros, mas também se apoiam mutuamente: “[...] eu senvolvimento das formas (DELEUZE, PAR-
tenho liberdade de ir e vir. Tu percebe que existe aqui NET, 1998), plano do instituído (LOURAU,
uns laços de grande afetividade, respeito, um excelente 1995) e da Lei, e concerne às formas já consti-
trabalho nas oficinas, de integração, né? de relação in- tuídas – individuais ou coletivas. [...] O plano
terpessoal” (usuário). das forças é o plano de constituição/criação das
A partir desses encontros nas assembleias, a possi- formas – individuais e sociais. Também defi-
bilidade de protagonizar, atrelada à existência de espaços nido como plano de imanência (DELEUZE,
participativos, começou a se delinear mais claramente, PARNET, 1998), plano do instituinte (LOU-
especialmente após uma das entrevistas com um usuá- RAU, 1995) ou plano de relações (VEYNE,
rio membro da associação dos usuários do município: 1982). (ESCÓSSIA, 2009, p. 690).
[...] dentro da associação existe, assim [...] um Uma compreensão, portanto, de coletivo en-
grupo de pessoas que eu já conheço há mais quanto plano de existência fértil para a experimentação
tempo. São todos conhecidos agora. Isso ajuda de maneiras outras de viver a vida. Isso remete a uma
muito, porque quando eu entrei na associação sutil, porém significativa, diferenciação, que aqui nos
[...] bah! hoje são pessoas que eu olho e tu não interessa especialmente, entre os termos autonomia e
te sente assim [...] sufocado, sabe?! É diferente protagonismo, ambos largamente explorados entre as
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COSTA, D.F.C.; PAULON, S.M. • Participação Social e protagonismo em saúde mental: a insurgência de um coletivo
reivindicações mais recorrentes das teses aprovadas na seja, parece-nos que o exercício de protagonizar, assim
IV CNSM-I. sugerido, potencializaria as possibilidades de criação das
A etimologia da palavra autonomia – onde ‘auto’ próprias normas de vida, preparando o terreno para tal
significa próprio, si mesmo, e ‘nomos’ norma, regra, empreendimento:
lei – sugere pensar que autonomia encontra-se ligada à
noção de indivíduo capaz de se autodeterminar, aque- Se ele [Associação dos usuários] for um espaço
le que produz e vive de acordo com normas próprias, verdadeiro, no qual eu possa divergir, opinar,
ou seja: pensar, concordando ou discordando, acho de
extrema importância. Pelo menos dentro da
[...] conduz o pensamento imediatamente à associação e em alguns setores do serviço existe.
ideia de liberdade e de capacidade de exercício Eu acho de extrema importância pra qualquer
ativo de si, da livre decisão dos indivíduos sobre pessoa poder participar. Nós temos colegas den-
suas próprias ações e às possibilidades e capaci- tro da associação que são, assim, extremamen-
dades para construírem sua trajetória de vida. te difíceis de lidar, mas estão ali participando
(FLEURY-TEIXEIRA et al., 2008, p. 2118). [...]. (usuário).
A autonomia, vista desse modo, sugere a capaci- Nesse sentido, esse depoimento aproxima-se da-
dade, quase que pronta e imediata, de saber se autode- quilo que PASSOS; BARROS (2004) propõem como a
terminar, de, ativamente, traçar formatos e projetos de interface entre clínica e política, ressaltando o potencial
vida. Porém, essa compreensão mais rasa da autonomia terapêutico de um coletivo:
desconsidera, muitas vezes, que esse projeto de “autogo-
verno” está colado em processos de subjetivação muito [...] aí nos encontramos com modos de pro-
próximos das amarras de que justamente pretende se dução, modos de subjetivação e não mais su-
libertar: da solidão individualista. Nessa perspectiva, o jeitos, modos de experimentação/construção e
tão promulgado fomento à autonomia pode se tornar não mais interpretação da realidade, modos
muito mais uma bandeira de luta de movimentos polí- de criação de si e do mundo [...]. Entendemos
ticos instituídos para esses fins do que propriamente um a experiência clínica como a devolução do su-
exercício de pensar sobre si mesmo, de (re)criar regras jeito ao plano da subjetivação, ao plano da
e modos de vida compatíveis com os sonhos singulares produção que é plano do coletivo. O coletivo,
de cada um. Além de corrermos o risco de reproduzir a aqui, bem entendido, não pode ser reduzido
instituição manicomial sob outra roupagem, como bem a uma soma de indivíduos ou ao resultado de
alertam Pande e Amarante (2011, p. 2075): “[...] os ser- um contrato que os indivíduos fazem entre si.
viços podem, a um só momento, cronificar, restringir, Coletivo diz respeito a este plano de produção,
segregar, proteger, bem como libertar, favorecer auto- composto de elementos heteróclitos e que experi-
nomia, cidadania e protagonismo.”. menta, todo o tempo, a diferenciação. [...] No
Em contrapartida, o conceito de protagonismo coletivo não há, portanto, propriedade parti-
emergiu, em muitas das situações promovidas pela pes- cular, pessoalidades, nada que seja privado, já
quisa, como muito próximo àquilo que os atores da Re- que todas as forças estão disponíveis para serem
forma Psiquiátrica escutados referiam como efeito ex- experimentadas. (PASSOS; BARROS, 2004,
perimentado em suas boas experiências de participação: p. 165-166).
[...] me sentir fazendo parte... aprender meu valor...
poder ser útil para outros... resgatar a própria vida [...] Dessa forma, a insurgência do coletivo, assim en-
foram algumas das expressões utilizadas que se referiam tendido, afirma-o como um dispositivo participativo
à dimensão coletiva da experiência participativa. Ou propício e potente ao exercício de protagonismo em
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COSTA, D.F.C.; PAULON, S.M. • Participação Social e protagonismo em saúde mental: a insurgência de um coletivo
saúde mental. O coletivo emerge aí como elemento ca- Além dessa concepção de base – que deve ne-
paz de favorecer um tipo de participação que, em vez cessariamente incluir dimensões macro e micropolí-
de reforçar as marcas do individualismo crescente numa ticas –, pensar as possibilidades de participação com
sociedade excludente, é capaz de reafirmar a possibili- protagonismo deve levar em conta, de acordo com
dade de todo sujeito, e qualquer sujeito, em algum mo- a perspectiva institucionalista, um conjunto de pro-
mento, ser o primeiro a se enunciar: ‘proto-agonizar’. cessos institucionais, econômicos e políticos, com o
O coletivo, como dispositivo de inclusão, torna-se, as- intuito de diminuir certo entendimento frequente-
sim, um conceito especialmente caro, ainda mais quan- mente reduzido à visão dos atores que a induzem e
do se trata de falar de participação social daqueles que de suas concepções. Por exemplo, algumas discussões
carregam a marca da segregação e da alienação em nossa dos participantes muitas vezes ficaram centradas em
sociedade. um viés eminentemente corporativo, em torno da afir-
mação e da defesa de interesses muito mais da esfera
de um segmento específico, que não necessariamente
Considerações Finais fomentavam a possibilidade de o usuário engatar-se
nessa mesma discussão e exercitar a possibilidade de
A pesquisa aqui sintetizada partiu do problema acerca ‘entrar em cena’. Acompanhamos isso nas definições
de quais formas ou mecanismos de participação em saú- acerca das teses a serem defendidas para conferências
de mental potencializariam o protagonismo dos usuá- de saúde mental a cada etapa, nas decisões acerca da
rios. O desafio foi cartografar o processo micropolítico logística necessária para viabilizar a participação dos
da participação, tomando por base as possibilidades de usuários nas próprias conferências (decisões materiais
esses espaços instituídos abrirem-se aos movimentos básicas relativas à alimentação, ao transporte, custeio
instituintes e cederem lugar às forças divergentes, às dos acompanhantes, por exemplo), que, em última
forças que pedem transformação: um outro lugar social. análise, repetem a demanda por hierarquia elementar
A questão, portanto, era essencialmente proble- que o usuário de saúde mental experimenta a cada dia.
matizar que tipo de composição participativa permiti- Argumentos que soavam como favoráveis aos usu-
ria o fomento do protagonismo de um usuário, que, ários, mas, na maioria das vezes, eram oriundos do
justamente por ser ‘usuário da saúde mental’, carrega posicionamento político-institucional do segmento
as marcas da exclusão, entre outras tantas justificativas trabalhador em saúde. Em outras palavras, um modo
clínico-jurídicas, na definição, como mentalmente in- participativo que, em determinados momentos, sola-
capazes. Logo, pessoas desprovidas de qualquer capaci- pava a viabilidade de o usuário sentir-se de qualquer
dade de gerirem sua própria vida. Quem dirá de ‘falar forma incluído.
em primeiro lugar’ sobre a vida em comum, enunciar-se Figueiró e Dimenstein (2010), também debaten-
em nome de um coletivo, pronunciar-se quanto à for- do esse tema na relação entre trabalhador e usuário em
mulação de normas para a vida na ‘pólis’? saúde mental, relatam uma cena em que uma usuária
Nesse sentido, discutir qual participação efetiva- perguntou o porquê de algumas mudanças feitas nas
mente temos construído na saúde mental coletiva indi- oficinas terapêuticas, e a resposta obtida foi que ‘eles’
ca a necessidade de mais pesquisas e debates em torno (trabalhadores) haviam pensado propor algumas ativi-
da ‘participação possível’, a ser construída nesse seg- dades novas, de acordo com a concepção ‘deles’ (dos
mento do SUS. Mas indica, também, a urgência do de- trabalhadores). E os autores comentam:
bate em torno da ‘participação desejável’, já que temos
garantido espaços de participação social que não neces- Isso mostra de onde partiram as mudanças,
sariamente resultaram em experiências de incremento bem como torna visível algumas linhas de for-
à capacidade das pessoas de interferirem nos rumos da ça que colaboram para a manutenção de de-
própria vida. terminadas práticas, que se atualizam, muitas
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COSTA, D.F.C.; PAULON, S.M. • Participação Social e protagonismo em saúde mental: a insurgência de um coletivo
vezes, bem distantes das posições dos usuários. efetivamente coletivos de confronto livre de ideias, es-
(FIGUEIRÓ; DIMENSTEIN, 2010, p. 435). paços em que as forças instituintes se debatam com as
formas instituídas de participação social (a inter-relação
A mesma assimetria também foi possível constatar molar e molecular), e permitam, cada vez mais, que nor-
em nossa pesquisa, indicando processos que constran- mas sejam experimentadas e discursos sejam enuncia-
gem o protagonismo e, consequentemente, favorecem dos em uma ‘ágora’ capaz de acolher toda a diversida-
a manutenção da histórica passividade dos usuários de de humana, mesmo na diferença radical que a loucura
saúde mental. Ou seja, questões de disputa de interesses escancara.
e hierarquização nas relações de poder entre profissio- Com isso, estamos dizendo que o resgate da di-
nais e usuários, bem como o enrijecimento dos modos mensão heroica de pronunciar-se em um confronto
de conduzir o processo participativo são capazes de evi- público – que o termo protagonismo guarda – requer
denciar certos riscos de uma possível institucionalização a constituição de espaços em que os usuários possam ex-
cronificadora, sinalizando fatores que podem reduzir perimentar a capacidade de pensar, sentir e decidir sobre
(ou até mesmo inviabilizar) as possibilidades de prota- suas vidas singulares em meio ao coletivo que consti-
gonismo em saúde mental. tuem e que os constitui subjetivamente. Estamos, pois,
Entretanto, na contramão disso tudo, foi possível falando de uma costura micropolítica do processo par-
também constatar processos que evocaram uma sensa- ticipativo, que não se dá a priori nos espaços instituídos
ção de caos, de ruptura de uma ordem e de um tipo para que ele aconteça, mas pode se dar, inclusive, neles.
de participação que, idealmente, acreditávamos poder Mesmo sem ter sido ‘a primeira a falar’ desse de-
encontrar nesses espaços. Conforme participávamos de batido tema da participação social na saúde mental, essa
alguns encontros, esses espaços, em certos momentos, pesquisa teve a pretensão de problematizar a temática
indicaram uma abertura significativa a processos de sin- das formas e forças contidas nos espaços participativos,
gularização. A pesquisa constatou que o espaço assem- de forma a constituir-se como mais um dispositivo para
bleia dos usuários carregava a potência de um coletivo que os usuários da saúde mental se façam efetivamente
capaz de fomentar momentos de protagonismo, neces- protagonistas, sejam menos silenciados e alienados de
sários de serem mais bem aproveitados pelos atores to- sua força e potência. Que o usuário possa, realmente e
dos que dele participam, e, talvez, principalmente, pelo cada vez mais, ser o ator principal, capaz de criar ca-
serviço, que ainda não percebe devidamente a riqueza minhos para si e, com isso, impulsionar a revolução de
da ferramenta terapêutica que ali se produz. sentidos que se pretende alcançar com o movimento de
A construção, portanto, de espaços participati- nossa Reforma Psiquiátrica. Que o ‘nada mais para nós,
vos potentes para que isso possa ocorrer cada vez mais sem nós!’ deixe de ser um pedido isolado de um usuário
e de melhores formas vincula-se à principal tese aqui escutado em uma pesquisa em saúde mental e se torne
defendida: o entendimento de que o protagonismo um imperativo ético para toda política pública de nosso
em saúde mental dependeria da garantia de exercícios país.
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ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
1
Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) –
RESUMO Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, exploratória e descritiva,
Florianópolis (SC), Brasil.
martinhagofernanda@gmail.com
que visa a analisar a percepção dos profissionais com relação à sua prática nos Centros de
2
Doutor em Social and Philosophical
Atenção Psicossocial II (CAPS II) de Santa Catarina. Os dados foram coletados nos 12 CAPS
Foundations of Education Program pela
University of Minnesota - Twin Cities (MN),
II do Estado, através de entrevistas semiestruturadas com 12 coordenadores e aplicação
Estados Unidos. Professor do Departamento
de Saúde Pública da Universidade Federal
de questionários abertos com 24 técnicos. Os relatos foram analisados sob a ótica her-
de Santa Catarina (UFSC) – Florianópolis
(SC), Brasil. menêutico-dialética. Os resultados sugerem, a partir da percepção dos profissionais, que
walter@ccs.ufsc.br
os CAPS II de Santa Catarina trabalham no limiar da institucionalização e que os usuários
não contam com adequado suporte social e comunitário fora das instituições que prestam
assistência à saúde mental.
PALAVRAS CHAVE: Centro de Atenção Psicossocial; Saúde Mental; Rede de Saúde; Inter-
setorialidade; Institucionalização.
ABSTRACT This is a qualitative, exploratory and descriptive study which aims to analyze the
perception of professionals regarding their practice in Psychosocial Care Centers II (CAPS II) of
Santa Catarina. Data were collected in the 12 CAPS II of the State, through semi-structured in-
terviews with 12 engineers and questionnaires opened with 24 technicians. The reports were
analyzed from the perspective hermeneutic-dialectic. The results suggest, from the professio-
nals’ perception, that the CAPS II Santa Catarina work on the threshold of institutionalization
and that users do not have adequate social and community support outside of institutions that
provide mental health care.
KEYWORDS: Psychosocial Care Center; Mental Health; Health network; intersectoriality; Insti-
tutionalization.
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 583-594, out./dez. 2012 583
MARTINHAGO, F.; OLIVEIRA, W.F. • A prática profissional nos Centros de Atenção Psicossocial II (CAPS II), na perspectiva dos profissionais de saúde mental de Santa
Catarina
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MARTINHAGO, F.; OLIVEIRA, W.F. • A prática profissional nos Centros de Atenção Psicossocial II (CAPS II), na perspectiva dos profissionais de saúde mental de Santa
Catarina
Conforme menciona Amarante (2008), é fun- parte das universidades com o trabalho desenvolvido
damental para os CAPS: oferecer estruturas flexíveis, nos mesmos, interesse que favorece o desenvolvimen-
evitando tornarem-se espaços burocratizados, repetiti- to e o aprimoramento da qualidade da atenção à saú-
vos, os quais tendem a trabalhar mais em relação com a de mental em nosso país. A relevância percebida nessas
doença do que com as pessoas; propiciar o acolhimen- pesquisas incitou o desejo de investigar especificamente
to aos sujeitos que estão em crise e às demais pessoas os CAPS de Santa Catarina, Estado que vem há algum
envolvidas (familiares, amigos e outros), de forma que tempo construindo sua rede de atenção à saúde men-
seja construída uma rede de relações entre a equipe e os tal. Imaginamos, ao empreender este estudo, que há,
sujeitos que fazem parte desse contexto; realizar o traba- no contexto dessa construção continuada, um exercício
lho terapêutico direcionado para enriquecer a existência constante de mudança de paradigma e invenção de no-
dos sujeitos; desenvolver suas habilidades para atuar no vas práticas. É um processo complexo, comum no con-
território, ou seja, desenvolver relações com os diversos texto da reforma psiquiátrica, que envolve mudanças de
recursos presentes na comunidade (associações de bair- comportamento, de cultura, e que consequentemente
ro, atividades esportivas, entidades comerciais); atuar gera insegurança e resistências. Sendo assim, existe um
embasados no princípio da intersetorialidade, ou seja, grande risco de continuar perpetuando a instituciona-
criar estratégias que tenham interface com os diversos lização dos sujeitos, modelo que talvez ofereça mais se-
setores sociais, principalmente com os serviços existen- gurança aos profissionais que apresentam dificuldades
tes no campo da saúde mental (cooperativas, residências diante de situações que exigem inovações não apenas na
de egressos, unidades psiquiátricas em hospitais gerais, prática, mas no modo de sentir, pensar, olhar os sujeitos
entre outros serviços) e da saúde em geral (unidades de com sofrimento psíquico intenso.
saúde, Estratégia de Saúde da Família e hospitais ge- Diante desse cenário, com intuito de conhecer o
rais); organizar a rede de atenção aos sujeitos que pas- trabalho nos CAPS, esta pesquisa foi elaborada com o
saram um longo período internados em hospitais psi- objetivo de analisar a percepção dos profissionais com
quiátricos ou que estão em situação de vulnerabilidade, relação à sua prática nos CAPS de Santa Catarina.
que precisam desenvolver autonomia, independência,
enfim, necessitam de acompanhamento para realizar as
atividades cotidianas e para a reinserção social; partici- Percurso Metodológico
par ativamente para que as políticas de saúde mental
e atenção psicossocial organizem-se de forma que haja Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, ca-
cooperação, sincronia de iniciativas e envolvimento dos racterizada como exploratória e descritiva. Definiu-se
atores sociais. como campo da pesquisa a rede de CAPS II de Santa
Para o fortalecimento da rede de atenção à saú- Catarina, em função de essa modalidade prestar atendi-
de mental é necessária uma articulação entre recursos mento especificamente aos sujeitos diagnosticados com
econômicos, sociais, afetivos, culturais, religiosos, sani- algum ‘transtorno mental’ e aos egressos de hospitais
tários, que possibilitem o cuidado e a reabilitação dos psiquiátricos. Os CAPSad II (referências para pessoas
sujeitos. Dessa forma, os CAPS são dispositivos que que apresentam problemas relacionados ao consumo
devem estar situados no núcleo da rede de serviços de de álcool e outras drogas) e o CAPSi II (referência no
saúde e em outros setores, que são fundamentais para a atendimento de crianças e adolescentes com sofrimento
inserção dos sujeitos excluídos da sociedade (BRASIL, psíquico) não participaram da pesquisa por atenderem
2004a). a perfis específicos de usuários, suscitando temas que
No Brasil, em diversas regiões, foram realizadas não se pretendia abordar neste estudo.
pesquisas sobre o trabalho nos CAPS (NUNES et al, No Estado de Santa Catarina, à época do estu-
2010; CAMPOS et al, 2008; KANTORSKI, 2007), do (2011), existiam 75 CAPS, sendo 44 CAPS I, 12
demonstrando que existe uma grande preocupação por CAPS II, dois CAPS III, 11 CAPSad II e seis CAPSi II
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Catarina
(SANTA CATARINA, 2011a). O campo de pesquisa mesmo tempo em que os dados eram coletados com
ficou delimitado aos 12 CAPS II, que estão distribuídos os outros profissionais. Os participantes foram desig-
por todas as regiões do Estado. nados por números de 01 a 35, indiferentemente de
Os participantes da pesquisa foram os coordena- serem coordenadores ou profissionais. Assim, os dados
dores e técnicos dos 12 CAPS II de Santa Catarina. Para apresentados não diferenciam sua origem de acordo
definir o número de profissionais e qual categoria pro- com a função ocupada, pois não era objetivo deste
fissional abordar, foram consideradas informações da artigo apresentar as diferenciações de percepções ou
Portaria/GM nº 336/02. De acordo com essa Portaria, a compará-las, mas colher um apanhado geral das per-
equipe mínima com nível superior de um CAPS II é de cepções dos profissionais, em funções administrativas
seis profissionais, sendo que duas categorias são defini- e técnicas, com relação a suas práticas, ou seja, descre-
das (médico e enfermeiro) e as outras quatro podem va- ver e explorar, fundamentalmente, o funcionamento
riar de acordo com as necessidades da unidade. Diante do trabalho profissional nos CAPS, na visão desses
dessa configuração proposta pelo Ministério da Saúde, profissionais.
considerou-se que a participação dos 12 coordenado- Para a realização das entrevistas semiestrutu-
res e de 24 técnicos dos CAPS II – sendo dois de cada radas, foi elaborado um roteiro, utilizando-se das as
unidade – seria satisfatória para prestar as informações mesmas questões contidas no roteiro para a formu-
necessárias a esta pesquisa. lação dos questionários abertos. Antes das entrevistas
Entendemos que os coordenadores não só exer- e da aplicação dos questionários, foi assinado pelos
cem um papel fundamental na ação dos CAPS, a par- participantes o “Termo de Consentimento Livre e Es-
tir de sua liderança na esfera organizacional, mas têm clarecido”, conforme a Resolução no 196/96 do Con-
também um conhecimento geral dos processos políti- selho Nacional de Saúde. O projeto desta pesquisa foi
cos, administrativos e técnicos que condicionam a ação aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres
técnico-assistencial dos serviços. Quanto à participação Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina
dos técnicos, ficou delimitada às categorias profissionais por meio do processo no 1004/367298.
de nível superior (psicólogo, médico, assistente social e Os dados das entrevistas e dos questionários ge-
enfermeiro, entre outros) porque estes estão, de manei- raram três categorias: 1) Atendimentos nos CAPS II;
ra geral, nas diversas unidades, diretamente em contato 2) Articulação dos CAPS II junto à rede de saúde; e
com os usuários e familiares, e com uma responsabilida- 3) Atividades intersetoriais no território. A categoria 1
de maior no que diz respeito ao trabalho de atendimen- gerou, ainda, três subcategorias vinculadas à categoria
to, o que lhes aporta a obrigação de uma aproximação principal: 1.1) Atenção à Crise; 1.2) Projeto Terapêu-
mais aprofundada com a realidade investigada. tico Singular e Profissional de Referência; e 1.3) Ofici-
Optou-se por não definir uma categoria profis- nas e Grupos. Na categoria 2, formulamos quatro sub-
sional específica, por considerar-se que a interdiscipli- categorias: 2.1) Atenção Básica de Saúde; 2.2) Serviço
naridade está definida como princípio estruturante da de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU; 2.3)
reforma psiquiátrica e, além disso, independentemente Leitos Psiquiátricos em Hospital Geral; e 2.4) Servi-
da função exercida, todos esses técnicos de nível supe- ços Residenciais Terapêuticos (SRT). Já na categoria 3,
rior possuem informações importantes para a pesquisa. não encontramos necessidade de subdivisão, portanto,
Para a coleta de dados foram realizadas entrevis- ela é apresentada de forma monolítica.
tas semiestruturadas com os coordenadores e aplicação Os relatos apresentados no texto são transcri-
de questionários abertos aos técnicos graduados. Essa ções literais das entrevistas e recortes dos questioná-
forma foi preferida devido à viabilidade, já que as en- rios, os quais foram analisados sob a ótica do pensa-
trevistas implicavam visitas em unidades localizadas em mento hermenêutico-dialético, a partir das obras de
diversas regiões de Santa Catarina. Dessa forma, as en- Habermas (2009), Gadamer (2002) e Stein (1987).
trevistas com coordenadores puderam ser realizadas ao Essa abordagem propõe compreender a realidade
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MARTINHAGO, F.; OLIVEIRA, W.F. • A prática profissional nos Centros de Atenção Psicossocial II (CAPS II), na perspectiva dos profissionais de saúde mental de Santa
Catarina
em transformação dentro de um contexto histórico e ao controle do sujeito usa como principais artifícios a
preconiza, ainda, a análise de conteúdos implícitos e contenção, a medicação e, principalmente, a internação
explícitos. em hospitais. Os profissionais entrevistados para este
A análise foi desenhada conforme uma perspec- estudo destacam o grande esforço envidado para evitar
tiva hermenêutico-dialética a que nos referimos como a crise através do tratamento nos CAPS. Uma vez que
‘Percurso Analítico’. O tratamento dos dados empíricos o sujeito entra em crise, os profissionais demonstram
foi realizado com base na interpretação, na compreen- dificuldades de lidar com essa situação, ressentindo-se
são, no consenso, na contradição e na superação dialé- da falta de médicos e demais profissionais habilitados
tica, que formam um ‘Circuito de Análise’. Durante o a acolher esse sujeito nessas circunstâncias. “Os CAPS
trajeto no circuito analítico, surgem reflexões, críticas, não são super CAPS, a equipe não tem uma varinha
sínteses que constituem o ‘filtro’ do pesquisador, ou mágica: Agora, pronto, tirou os usuários da crise!”
seja, não há neutralidade em quem analisa os dados. (Part. 5). Como reflexo dessas dificuldades, a maioria
Somente depois de passar pelo percurso é que se chega a dos casos é encaminhada para internação em pronto-
um ‘Resultado Inacabado’, que significa uma conclusão atendimento, em hospitais gerais ou psiquiátricos.
deste estudo, mas que é tomada como em constante Os profissionais reconhecem seu despreparo para
transformação. atender as situações de crise, e que isso gera, neles mes-
mos, insegurança, medo e dificuldades para desenvolver
seu trabalho nessa instituição designada para atender
Resultados e Discussão um público sempre sujeito a, em qualquer momento,
desencadear uma crise. A crise, portanto, não atinge
Atendimentos nos CAPS apenas o usuário, que sofre intensamente com a falta
Atenção à Crise do acolhimento à sua crise, mas também à saúde men-
Na atenção à crise, no contexto da saúde mental e aten- tal dos profissionais.
ção psicossocial, é necessário considerar a articulação O que emerge como aparente é que os CAPS dão
de diversos fatores, inclusive à rede de suporte, que in- conta dos usuários que se encontram estabilizados, a
cluem familiares e amigos, entre outras pessoas ligadas maioria medicada. Lidar com a crise exige mais prepa-
ao indivíduo que se apresenta como protagonista na ro, coisa que os profissionais alegam não possuir, o que
crise. Algumas pessoas podem fazer parte do processo demonstra a necessidade de investimento na capacita-
que determina ou facilita a emergência da crise, sen- ção dos recursos humanos já existentes e na seleção de
do até desconhecidas do sujeito. A crise é considerada profissionais para trabalhar nos CAPS.
por Amarante (2008) como uma condição mais social
do que biológica ou psicológica, podendo denunciar a
pouca solidariedade entre as pessoas ou uma situação Projeto Terapêutico Singular e Profissional de
precária no que se refere à existência de recursos para Referência
tratamento no território ou domiciliar. Projeto Terapêutico Singular é um plano de tratamento
Percebe-se, através dos relatos, que em alguns ser- a ser realizado pela equipe do CAPS, especificamente
viços é realizada a tentativa de acolher o usuário em crise para cada usuário. Trata-se de um conceito emergente
para que ele possa superar esse momento difícil e man- no contexto da reforma psiquiátrica, colocado como
ter o tratamento no CAPS. Entretanto, a prática predo- dispositivo para a superação dos tratamentos tradicio-
minante adotada nas situações de atendimento à crise nais, que massivamente aplicavam intervenções medi-
nos CAPS de Santa Catarina ainda segue o modelo clás- camentosas, na maioria das vezes, ignorando a singula-
sico da psiquiatria, centrado no controle dos sintomas ridade dos sujeitos, as necessidades específicas não só de
de crise. Considerado complexo e difícil para a maio- medicações, mas também de outras formas terapêuti-
ria dos profissionais, o atendimento à crise vinculado cas. Em dez CAPS, detectou-se a existência de Projetos
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MARTINHAGO, F.; OLIVEIRA, W.F. • A prática profissional nos Centros de Atenção Psicossocial II (CAPS II), na perspectiva dos profissionais de saúde mental de Santa
Catarina
Terapêuticos Singulares, os quais são discutidos nas reu- efetivamente seu papel, o usuário tem a segurança de
niões de equipe. Nos outros dois CAPS, os profissionais que poderá contar, a qualquer momento, com a equipe
responderam que ainda estão em processo de implanta- do CAPS.
ção do Projeto Terapêutico Singular.
O termo Profissional de Referência refere-se, em
geral, àquele profissional que tem uma relação mais Oficinas e Grupos
‘próxima’ com o usuário e que, baseado nessa proximi- As oficinas e grupos terapêuticos são algumas das prin-
dade contingencial, potencializa sua ação terapêutica. cipais formas de tratamento nos CAPS. Essas atividades
Em cada CAPS de Santa Catarina essa prática acon- são coordenadas por um ou mais profissionais, e po-
tece de forma relativamente diferente, conforme a di- dem ser definidas a partir das necessidades dos usuários
nâmica do serviço. Em quatro CAPS, um profissional e das disponibilidades de técnicos, com o objetivo de
de referência é designado para cada usuário. Em um promover a integração social e familiar, a expressão dos
CAPS, o profissional de referência passa a ser aquele sentimentos e dificuldades, o desenvolvimento de ha-
com quem o usuário mais se identifica, independente- bilidades pessoais e laborais, e o exercício da cidadania
mente, inclusive, da formação desse profissional. Neste (BRASIL, 2004a). As práticas de grupos e oficinas fa-
caso, o profissional de referência pode ser a cozinheira, zem parte do cotidiano dos profissionais e usuários dos
o jardineiro, a psicóloga, o médico etc. Em outros qua- CAPS.
tro CAPS, estabeleceu-se que qualquer profissional da Para Barros (2009), o atendimento em grupos e
equipe na qual o usuário participa das atividades é um oficinas é uma estratégia para promover uma nova assis-
profissional de referência. Em um CAPS, o profissional tência em saúde mental, por ser alternativa ao modelo
de referência é aquele que avalia as condições para o tradicional de tratamento psiquiátrico. Essa composi-
usuário receber alta do tratamento. No caso do usuá- ção de sujeitos visa, entre outras finalidades, à troca de
rio precisar novamente da assistência do CAPS, poderá experiências e à formação de vínculos, aspectos funda-
procurar esse profissional. Em um dos serviços, a equi- mentais para a ressocialização e a reabilitação social. Al-
pe não conseguiu implantar o profissional de referência. guns profissionais salientam que os grupos produzem
Em outro, o trabalho com profissional de referência não efeitos como desconstrução de cristalizações, invenção
obteve êxito no atendimento dos usuários, conforme de alternativas existenciais e oportunidade de compar-
relatado, porque quando esse profissional não estava tilhar sofrimentos. Nesse modelo de atendimento, é
presente no CAPS, os outros profissionais se negavam possível atender maior número de pessoas ao mesmo
a atender o usuário por considerarem que isso não era tempo, aspecto considerado importante sob o ponto de
sua responsabilidade. Então, para facilitar o atendimen- vista da viabilidade, no contexto do Sistema Único de
to dos usuários, foi extinto, naquele serviço, o trabalho Saúde (SUS).
com profissionais de referência. No decorrer das visitas aos CAPS de Santa Catari-
A existência de Projeto Terapêutico Singular e de na, observou-se que as práticas de grupos e oficinas, no
Profissional de Referência é fundamental para o acom- formato aberto ou fechado, são realizadas diariamente,
panhamento do usuário durante o tempo em que ele é com diversos objetivos terapêuticos, tais como: desen-
atendido no CAPS. Esses dispositivos podem ser consi- volver habilidades; melhorar a autoestima; promover
derados como indicativos da qualidade do processo de autonomia; exercer a cidadania, o autoconhecimento, a
cuidado, assim como do nível de relacionamento entre reinserção social, o lazer, a educação em saúde; discutir
os profissionais da equipe. Além disso, são fatores que, questões relacionadas à medicação e à integração dos
quando bem conduzidos, podem proporcionar ao usu- familiares ao tratamento etc. Em cada CAPS, há uma
ário a segurança de que está sendo acolhido, atendido dinâmica diferente de trabalho, com diferentes propos-
e cuidado com interesse, respeito e eficácia pela equipe. tas de oficinas e grupos. De forma geral, nos CAPS de
No caso do Profissional de Referência, quando cumpre Santa Catarina as oficinas estão mais relacionadas ao
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MARTINHAGO, F.; OLIVEIRA, W.F. • A prática profissional nos Centros de Atenção Psicossocial II (CAPS II), na perspectiva dos profissionais de saúde mental de Santa
Catarina
exercício da cidadania, com atividades voltadas para a A consolidação da atenção psicossocial é essencial-
produtividade, como a confecção de artesanatos, cos- mente ligada, portanto, aos demais serviços de saúde
tura, tapeçaria e culinária. Também envolvem o uso de e à rede de recursos comunitários, no sentido de que
formas artísticas como meio de expressão, como teatro, estes possam atender e acolher os usuários dos CAPS,
dança e música, entre outras. Já o termo “grupo” é uti- formando, assim, uma rede que ofereça cuidados às
lizado com um enfoque mais relacionado ao tratamen- pessoas com sofrimento psíquico. Neste trabalho, são
to do sujeito, conforme seu diagnóstico. Existem, por citados os serviços mencionados nos CAPS e aqueles
exemplo, grupos específicos para usuários com esquizo- que são destinados pelo Ministério da Saúde para atuar
frenia, outros para usuários diagnosticados com depres- junto aos CAPS.
são e alguns mais gerais, como os grupos antitabagismo,
voltados para reduzir o consumo de cigarros.
O engajamento dos usuários na construção das Atenção Básica de Saúde
oficinas e dos grupos é fundamental para atingir os pro- A construção de uma nova forma de atender as pessoas
pósitos desses trabalhos, pois é através dessa participa- com sofrimento psíquico intenso requer que o CAPS
ção que eles vão se envolvendo em processos de ação e a Atenção Básica de Saúde estejam integrados, via-
coletiva e superando suas dificuldades. Os profissionais bilizando o trabalho em saúde mental no território. A
relataram que a vontade de participar, por parte dos proposta do Ministério da Saúde é que esta integração
usuários, é bem dividida: uns gostam de participar e possibilite que o CAPS possa conhecer e interagir com
outros, nem tanto. as equipes de atenção básica do território; verificar os
A falta de recursos financeiros para a realização das problemas e necessidades de saúde mental e adotar ini-
oficinas é mencionada em alguns CAPS, o que resulta ciativas em conjunto; realizar apoio matricial às equipes
no empobrecimento dessa atividade. Os profissionais da atenção básica; e desenvolver atividades de educa-
mencionaram, entretanto, experiências exitosas prin- ção permanente sobre saúde mental em parceria com
cipalmente com relação aos grupos. Contar o sucesso, os profissionais da atenção básica. O apoio matricial ou
para esses profissionais, é expor vitórias em meio a vá- matriciamento significa o suporte às equipes da aten-
rias tentativas e a muito trabalho. Algumas equipes dos ção básica por meio de orientação e supervisão, aten-
CAPS, com o apoio dos gestores e da sociedade civil, dimento em conjunto de situações complexas e visitas
superaram as dificuldades financeiras, colocando em domiciliares, ou seja, a responsabilidade compartilhada
prática um sistema de atividades economicamente au- dos casos. Vale ressaltar que esse trabalho é diferente da
tossustentáveis. A falta de recursos financeiros para as lógica da referência e contrarreferência, que ficam res-
oficinas demonstra que, em alguns municípios, não há tritas aos encaminhamentos (BRASIL, 2004a).
investimento para as atividades voltadas para a saúde Em nove CAPS visitados, foi relatado que a aten-
mental. ção básica absorve uma parte da demanda de usuários
com problemas relacionados à saúde mental, porém,
com algumas dificuldades. Um dos problemas apon-
Articulação dos CAPS com a Rede de Saúde tados e considerados como dos mais preocupantes foi
A articulação dos CAPS para a construção de uma rede a estigmatização dos usuários dos CAPS e, ao mesmo
de atenção à saúde mental de base territorial é funda- tempo, a falta de preparo dos profissionais da atenção
mental para o desenvolvimento do sistema de saúde. básica para trabalhar com esse público. Esses dois fa-
Para os usuários, a construção contínua dessa rede é tores combinados resultam na resistência do próprio
essencial, pois, na base de sua inserção social e comu- usuário a ser atendido na atenção básica. Nos outros
nitária estão os recursos existentes na comunidade, que três CAPS, não há equipe preparada para absorver os
podem definir como esses usuários se sentirão em ter- usuários do CAPS nem profissional de saúde mental na
mos de sua inserção e de seu acolhimento. atenção básica dos municípios.
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MARTINHAGO, F.; OLIVEIRA, W.F. • A prática profissional nos Centros de Atenção Psicossocial II (CAPS II), na perspectiva dos profissionais de saúde mental de Santa
Catarina
Segundo os participantes, essas dificuldades dos Busca-se mudar esse modelo de atendimento,
profissionais da atenção básica em relação à saúde mas há resistência. (Part. 10).
mental vêm sendo superadas através de capacitações e,
principalmente, do matriciamento. Em cinco CAPS, Observa-se que a falta de flexibilidade na dinâmi-
foi relatado que o matriciamento já está funcionando ca do atendimento aumenta o risco das estruturas fica-
de forma efetiva, apresentando bons resultados. Nos rem engessadas, de maneira que o usuário não consiga
demais CAPS, foi mencionado que estão iniciando o circular na rede de assistência à saúde e, consequente-
processo para realizar o matriciamento, com exceção de mente, seja prejudicado no que diz respeito à sua saúde
um CAPS em que o matriciamento ainda está muito mental e aos seus direitos de cidadão.
distante da realidade do município.
Percebe-se, através dos depoimentos, que os
CAPS de Santa Catarina vivem realidades bem distin- Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU
tas em relação ao suporte da atenção básica. Em alguns O SAMU é um serviço de saúde responsável pela parte
municípios, passa-se pela Unidade de Saúde antes de de regulação dos atendimentos de urgência, pelo aten-
ir para o CAPS. Geralmente, nos casos de internação, dimento móvel de urgência e pelas transferências de pa-
os usuários são encaminhados direto para os CAPS. Já cientes graves da região. É capaz de atender, dentro da
em outros municípios, o CAPS funciona como porta região de abrangência, qualquer pessoa em situação de
de entrada, em função da dificuldade de manejo dos urgência ou emergência, e transportá-la com segurança
profissionais na Unidade Básica de Saúde. Segundo um e acompanhamento de profissionais da saúde até um
profissional, em seu município: hospital (SANTA CATARINA, 2011b).
O Ministério da Saúde, em 2004, realizou a pri-
Chorou na Unidade de Saúde, vai para o meira Oficina de Atenção às Urgências e Saúde Mental,
CAPS. Se falou que é cliente de CAPS, vem com o objetivo de promover o diálogo e a articulação
para cá [para o CAPS]. A porta de entrada entre a Política Nacional de Atenção às Urgências e a
era o CAPS [...] estamos revendo isso. Com Política Nacional de Saúde Mental. Essa oficina ocor-
o matriciamento, deve dar uma melhorada. reu devido à necessidade da articulação entre a rede de
(Part. 04). atenção à saúde mental e as equipes do SAMU, para o
fortalecimento e a ampliação das ações de saúde men-
O fato de haver um primeiro atendimento na tal no SUS. O SAMU, a partir dessa oficina, assumiu,
atenção básica nem sempre é um facilitador para a as- em conjunto com a área de saúde mental, a responsa-
sistência em saúde mental. Na verdade, isso pode se bilidade pelo atendimento às urgências psiquiátricas e
constituir, por si, em um problema, caso o CAPS seja pelo fomento à implantação de CAPS e de serviços de
uma instituição de “portas fechadas”, como é o exemplo urgências em hospitais gerais nos municípios onde está
de um município de Santa Catarina: implantado. Foi estabelecido também o compromisso
de apoio da rede CAPS à rede SAMU, a ser materiali-
Para ser atendido no CAPS, é necessário passar zado de forma matricial e incluir supervisão, capacita-
pela unidade de saúde e depois é (sic) encami- ção continuada, atendimento compartilhado de casos e
nhado para uma avaliação com o psiquiatra. apoio à regulação (BRASIL, 2007).
Somente os casos de tentativa de suicídio e crise No SAMU de Santa Catarina, foi instituída a
psicótica são encaminhados para o CAPS. O regulação da assistência, visando a priorizar as necessi-
problema é que existe uma fila de 500 pesso- dades de saúde da população, buscando racionalizar os
as esperando para serem pacientes de CAPS. A recursos existentes, propiciando o atendimento de acor-
atenção básica não tem equipe de saúde men- do com a necessidade, seguindo o princípio doutrinário
tal. O CAPS não atende demanda espontânea. do SUS da equidade. Os atendimentos do SAMU são
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MARTINHAGO, F.; OLIVEIRA, W.F. • A prática profissional nos Centros de Atenção Psicossocial II (CAPS II), na perspectiva dos profissionais de saúde mental de Santa
Catarina
realizados mediante Protocolos de Regulação, dentre É flagrante a falta de leitos psiquiátricos em hos-
estes, os Protocolos de Regulação da Atenção Pré-Hos- pitais gerais de Santa Catarina, o que ilustra as dificul-
pitalar Móvel, que contemplam a ‘Regulação em Saúde dades para implantação desses leitos nos hospitais. Os
Mental’ e a ‘Tentativa de Suicídio’, e os Protocolos de problemas envolvem também outros fatores, conforme
Regulação das Transferências Inter-Hospitalares, res- revelam os profissionais do CAPS:
ponsáveis pelas ‘Emergências em Psiquiatria’ (SANTA
CATARINA, 2011b). Há leitos em hospital geral, mas é muito difí-
Com relação aos serviços prestados pelo SAMU, cil conseguir internação, uma vaga para esses
de atendimento às solicitações dos CAPS em Santa Ca- supostos leitos. [...] Temos dois hospitais, pela
tarina, foi mencionado, em quatro CAPS, que o SAMU lógica não deveríamos ter essa dificuldade [...],
não atende resgate de usuários do CAPS; em cinco um deles com oito leitos, mas a gente percebe
CAPS, a solicitação do atendimento ao SAMU, quan- que é mais no discurso do que na prática. Os
do aceita, acontece com muita dificuldade; e apenas em leitos são cedidos para outras especialidades, in-
três CAPS foi mencionado que o SAMU atende os cha- ternações de planos de saúde, outras situações.
mados dos CAPS, alternando o resgate com a Central [...] O hospital coloca dificuldade da equipe
de Ambulância ou o Corpo de Bombeiros. deles de atendimento, dificuldade de não ter
A maioria dos relatos aponta contundentemente o uma ala e ser leito em hospital geral, [...]sem-
descaso e o preconceito no atendimento do SAMU para pre tem alguma desculpa. (Part. 10).
com os usuários dos CAPS. Diante desse problema, é
necessário recorrer a outros recursos, conforme mencio- Foi mencionado um hospital geral público em
na um profissional: que os leitos foram fechados em função da cobrança de
consulta médica antes da internação. Outros hospitais
Quando o paciente está agressivo, não tem também foram mencionados por essa mesma prática:
jeito, é a polícia que vai. [...]. A polícia só
vai se tiver internação garantida. O SAMU, Tem alguns lugares que os médicos psiquia-
para levar paciente em crise, é muito difícil. tras vendem os leitos, só tem leito se pagar R$
(Part. 02). 280,00. Aí, nós não mandamos. [...] O mé-
dico cobra uma consulta para colocar no leito
A resposta de um profissional do SAMU, ‘Se é do SUS. (Part. 07).
louco, eu não vou’ (Part. 10), em um caso de uma so-
licitação do CAPS, é relatada por um participante da O profissional menciona que esse hospital já foi
pesquisa, representando a dificuldade de estabelecer denunciado pelo CAPS, no entanto, a resposta foi que,
uma parceria com aquele serviço, em função da estig- devido à falta de psiquiatra no interior do Estado, é
matização sofrida pelos sujeitos com sofrimento psíqui- muito difícil resolver essa situação. Ele acrescenta: “O
co intenso. Estado deixa assim porque não tem o que fazer” (Part.
07).
Percebe-se que os problemas vão muito além da
Leitos Psiquiátricos em Hospital Geral resistência à implantação, pois, em alguns municípios,
A proposta de implantação de leitos psiquiátricos em as dificuldades estão na implementação do serviço. Vale
hospitais gerais tem como objetivo oferecer acolhimen- salientar que esses hospitais estão em diferentes regiões
to integral ao sujeito que está em crise. Esse serviço do Estado, o que demonstra não ser um fato isolado.
deve estar articulado com os outros dispositivos da rede O ‘Dicionário de Política’ (BOBBIO, 1998, p.
de saúde mental comprometidos com o cuidado desse 293) define corrupção como “o fenômeno pelo qual um
usuário. funcionário público é levado a agir de modo diverso dos
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MARTINHAGO, F.; OLIVEIRA, W.F. • A prática profissional nos Centros de Atenção Psicossocial II (CAPS II), na perspectiva dos profissionais de saúde mental de Santa
Catarina
padrões normativos do sistema, favorecendo interesses A maioria dos profissionais mencionou a neces-
particulares em troca de recompensa”. A corrupção tem sidade da existência de SRTs em seus municípios, em
sido objeto de muita atenção no Brasil, onde as estru- função das pessoas que estão ainda morando em hos-
turas democráticas estão ainda vulneráveis e sujeitas a pitais psiquiátricos ou hospitais de custódia, e que po-
atuações políticas, jurídicas e técnicas aplicadas de for- deriam, caso houvesse esse apoio, participar de algum
mas viciosas, com base nas estruturas de poder herdadas programa de desinstitucionalização. Situação similar é
das tradições coloniais. A corrupção na área da saúde é apontada com relação a usuários que são moradores de
também objeto de preocupação e, conforme os depoi- rua, usuários que estão na rua em consequência de con-
mentos dos profissionais acima, parece ser legitimada flitos com seus familiares e um grande contingente de
e, algumas vezes, considerada natural, como parte de sujeitos em situação de rua relacionada à dependência
um contexto normalizado. Alguns dos fatos relatados de álcool e outras drogas.
pelos participantes desta pesquisa foram denunciados Um profissional manifestou receio à implantação
em encontros públicos, o que leva a pensar que, em dos SRTs em seu município devido ao entendimento
alguns casos, em Santa Catarina, as autoridades pare- dos gestores com relação a esse serviço. Teme que as
cem acuadas, impotentes ou coniventes com os fatos, os residências sejam utilizadas para outros objetivos e não
quais fazem parte do complexo sistema de intervenção para o que realmente são destinadas pelo Ministério
e terapêutica em saúde mental e atenção psicossocial. da Saúde. Pensa também que esses serviços correriam,
neste caso específico, o risco de tornarem-se pequenos
manicômios ou simples abrigos para usuários que apre-
Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) sentam dificuldades de convivência com os familiares e
Os SRTs são casas situadas no espaço urbano, integradas dependentes de álcool e outras drogas.
à comunidade, com o objetivo de atender às necessida- Alguns municípios buscam formas alternativas
des de moradia dos sujeitos com ‘transtornos mentais aos SRTs para abrigar usuários que estão em situação
graves’. São destinadas aos indivíduos que passaram por de rua, como asilos, projetos em que as famílias rece-
longas internações psiquiátricas, egressos de Hospitais bem algum benefício para acolherem o usuário e insti-
de Custódia e usuários dos CAPS que são moradores tuições de abrigamento temporário, como as Casas de
de rua ou em relação aos quais a equipe identifica pro- Passagem.
blema de moradia (BRASIL, 2004b). Nessas situações, Percebe-se que existe um entendimento por parte
é avaliado se houve ruptura dos vínculos familiares ou dos profissionais de que ocorrem divergências entre os
sociais. Esse serviço tem o intuito de oferecer melhores objetivos dos SRTs em funcionamento com as propos-
condições de vida, possibilidades de retorno ao conví- tas explicitadas pelo Ministério da Saúde, voltadas es-
vio social e garantia dos direitos sociais a esses sujeitos. sencialmente para a desinstitucionalização dos sujeitos
Em 2011, foram implantados dois SRTs em um atendidos, o que, sob a ótica desses profissionais, difi-
município no norte do Estado de Santa Catarina. Os culta a implantação de tais dispositivos. O fato é que
outros três SRTs existentes em Santa Catarina estão a implantação dos SRTs em Santa Catarina caminha
localizados próximo ao Instituto Psiquiátrico de Santa vagarosamente, não se revelando, de nenhuma forma,
Catarina (IPq), complexo hospitalar psiquiátrico situ- como um foco para os gestores da saúde.
ado em uma região onde não existem CAPS. Os pro-
fissionais do IPq trabalham com aos moradores desses
SRTs, que anteriormente estavam internados no pró- Atividades Intersetoriais no Território
prio hospital. Em função dessas moradias estarem di- Os CAPS devem atuar no território (geográfico, polí-
retamente vinculadas a um hospital psiquiátrico, ques- tico, econômico e cultural) desenvolvendo parcerias
tiona-se se realmente deveriam ser consideradas como com os diversos recursos existentes na comunidade,
SRTs. trabalhando de forma intersetorial. Os dispositivos
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594 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 583-594, out./dez. 2012
ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
Elisângela Braga de Azevedo1, Maria de Oliveira Ferreira Filha2, Mayra Helen Menezes Araruna3,
Rafael Nicolau Carvalho4, Renata Cavalcanti Cordeiro5, Vagna Cristina Leite da Silva6
1
Doutoranda em Enfermagem pela
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
RESUMO Objetivou-se identificar práticas extramuros que promovam a inclusão social de
– João Pessoa (PB), Brasil. Professora do
Departamento de Enfermagem da Faculdade
usuários do Centro de Atenção Psicossocial do município de Campina Grande/PB/Brasil, a
de Ciências Médicas de Campina Grande
(FCM-PB) – Campina Grande (PB), Brasil.
partir de ações comunitárias. Pesquisa descritivo-interpretativa e qualitativa, realizada com
elisaaz@terra.com.br
19 profissionais. Utilizou-se entrevista semiestruturada, em 2010, cuja apreciação ocorreu
Doutora em Enfermagem pela Universidade
por meio da análise de conteúdo. Revelam-se momentos inclusivos extra CAPS, através
2
* Este artigo é um recorte da Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal
da Paraíba, intitulado: Rede de Cuidado em Saúde Mental: Tecendo Práticas de Inclusão Social no município de Campina Gran-
de- PB.
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 595-605, out./dez. 2012 595
AZEVEDO, E.B.; FERREIRA FILHA, M.O.; ARARUNA, M.H.M.; CARVALHO, R.N.; CORDEIRO, R.C.; SILVA, V.C.L. • Práticas inclusivas extramuros de um Centro de Atenção
Psicossocial: possibilidades inovadoras
596 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 595-605, out./dez. 2012
AZEVEDO, E.B.; FERREIRA FILHA, M.O.; ARARUNA, M.H.M.; CARVALHO, R.N.; CORDEIRO, R.C.; SILVA, V.C.L. • Práticas inclusivas extramuros de um Centro de Atenção
Psicossocial: possibilidades inovadoras
Essas primícias levam a pensar que, como os hu- Para o autor, a promoção de narrativas verbo-visuais
manos são seres relacionais, por sua vez, representam leva-os à recuperação de memórias de vida e de seus am-
uma totalidade aberta a outras totalidades. Contudo, bientes, possibilitando discussões sobre direitos sociais
há de considerar a constituição de uma relação que e culturais. Tal prática corroborou a construção de uma
deriva de duas características humanas, representada etiologia transpatológica, tendo em vista que gerou no-
tanto pela imperfeição quanto pelo amor. Desse modo, vas produções narrativas semióticas que os levou à re-
entende-se que, a partir do momento em que os sujeitos cuperação. Para tanto, foi necessário que o profissional
buscam a concretização das políticas de inclusão, insta- se aproximasse da linguagem iconográfica, associado às
la-se uma necessidade de visualizá-los como sujeitos de histórias orais desses atores, na tentativa de promover
relação, tendo em vista suas situações humanas (SILVA, uma prática de caráter desinstitucionalizante que trans-
2006; MACHADO, 2009). cendesse o modelo manicomial e permitisse o encontro
Portanto, a partir do movimento em direção à com a pessoa doente, a partir de sua história social, para
inclusão social, os sujeitos portadores, antes excluídos, que a mesma fosse reconstruída.
passaram a dividir o mesmo cenário social com outros Nessa perspectiva, o modelo psicossocial propõe
cidadãos tidos como ‘normais’. Todos esses avanços que as terapias devem sair do escopo medicamentoso
possibilitaram que conceitos e práticas assumissem a exclusivo ou preponderante, e coloca o sujeito no pa-
cada dia um caráter provisório e de possibilidades múl- pel principal do tratamento, sendo a família e, even-
tiplas. Assim, passa-se a valorizar a diversidade que, por tualmente, um grupo mais ampliado também incluí-
sua vez, pressupõe a preservação de que todas as pessoas dos como agentes fundamentais do cuidado. Assim,
são iguais no que se refere ao valor máximo da existên- a concepção de efeitos terapêuticos e éticos, de forma
cia: a humanidade do homem. Cabe salientar que a di- a valorizar os aspectos subjetivos, superaria a visão de
ferença não deve se constituir um critério de hierarqui- uma clínica voltada apenas para a remoção de sintomas,
zação da qualidade humana, pois, independentemente adaptação à realidade e supressão da carência (NUNES;
da condição existencial de cada um, todos possuem o JUCÁ; VALENTIM, 2007).
mesmo valor existencial, porque todos são seres huma- Contudo, não é possível promover a reinserção
nos (ROZEK, 2009). social da pessoa em sofrimento psíquico apenas den-
Para Silva (2004), os avanços dos novos serviços tro dos limites do CAPS, isso porque tal fato representa
de saúde mental para pessoas com transtornos men- reproduzir o isolamento do passado. Essa preocupação
tais permeiam para uma maior liberdade de expressão aponta para o risco de uma ‘manicomialização’ dos no-
dos sujeitos, através do desenvolvimento de um novo vos equipamentos, críticas que podem expor os serviços
ambiente de socialização, no qual esses atores, através a uma deslegitimação social (ONOCKO-CAMPOS;
de atividades grupais ou individuais, falem sobre sua FURTADO, 2006). Diante disso, pergunta-se: os pro-
vida social, troquem experiências e, assim, promovam a fissionais que atuam nos Centros de Atenção Psicosso-
saúde mental de base mais compreensiva e participati- cial estão desenvolvendo práticas inclusivas extra CAPS
va. Complementa dizendo que tais práticas favorecem para os portadores de transtornos mentais?
a integralidade do cuidado, na medida em que seus Assim, baseado no modelo psicossocial, este es-
profissionais promovem o resgate da subjetividade dos tudo objetivou identificar práticas extramuros que
usuários por meio de novos canais de comunicação e promovam a inclusão social de usuários do CAPS do
expressão, utilizando recursos como a pintura, o dese- município de Campina Grande/PB, a partir de ações
nho, a modelagem e a fotografia. comunitárias.
Silva (2004) revelou, ainda, que, ao realizar ofici- A relevância do estudo consiste em expor experi-
nas de expressão com usuários com transtornos mentais, ências positivas de inserção social de usuários em trata-
foi possível promover uma escuta classificada e atenta, mento no CAPS, possibilitando a realização das ações
que permitiu abstrair subjetividades dos participantes. por outras instituições de saúde mental e revelando
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AZEVEDO, E.B.; FERREIRA FILHA, M.O.; ARARUNA, M.H.M.; CARVALHO, R.N.; CORDEIRO, R.C.; SILVA, V.C.L. • Práticas inclusivas extramuros de um Centro de Atenção
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incentivando que isso dê continuidade, que isso Os locais escolhidos para as atividades refletem
continue acontecendo (p.19). o cuidado de buscar diversificar o ambiente, atenden-
do às necessidades das distintas faixas etárias, criança,
Nessa fala, evidencia-se que a ação desses profis- adolescente e adulto, e propiciando a participação de
sionais é movida pela intenção de mostrar aos familiares toda a família. O Parque da Criança, o centro esportivo
que é possível incluir as pessoas em situação de sofri- Plínio Lemos, o Centro de Convivência e o Shopping
mento psíquico em atividades sociais de caráter lúdico, são locais que permitem a socialização, o encontro entre
de lazer, contribuindo, desse modo, para sua ressocia- pessoas, integrando usuários, família e amigos, além de
lização, tendo em vista que muitos desses usuários são possibilitar a atividade corporal e a comunicação.
oriundos de instituições asilares, que têm como foco a A importância de promover ações coletivas que
exclusão dos mesmos dessas atividades. Eles compre- envolvam pessoas em sofrimento psíquico e a família
endem que a inclusão social não é uma ação isolada, do é foco que alguns estudos motivados pela consciência
serviço, mas de toda a sociedade e, principalmente, da do papel que a família assume no tratamento e na res-
família, que forma a base das relações humanas. ponsabilidade que lhe é direcionada. Um exemplo disso
O medo de circular em ambientes coletivos, foi uma pesquisa realizada em um CAPS, no municí-
como praças, shoppings, parques, é recorrente entre os pio de João Pessoa/PB, utilizando a associação livre de
familiares dos usuários, assim, as atividades assumem a palavras, a qual demonstrou que a inclusão do doente
perspectiva de descontruir o estigma sobre a periculosi- mental, seja na própria família ou na sociedade, é vista
dade do louco e certo constrangimento dos familiares. com ressalvas pelos familiares, sendo associada a ques-
Ao se perceberem participando de espaços sociais de tões como educação, lazer, adaptação, medo, rejeição,
convivência de forma tranquila, familiares de usuários discriminação, trabalho, impossível, questão social,
percebem que incluir esses sujeitos é uma possibilidade controle emocional, melhor assistência e convivência
a ser construída. (MACIEL et al., 2009). As dificuldades enfrentadas
O investimento do CAPS nessas ações promove a pela família podem interferir ou impedir a reinserção
produção de uma nova subjetividade, mais condizente do usuário na comunidade, daí a importância do apoio
com os paradigmas da reforma psiquiátrica, que dei- da equipe à família durante o processo.
xa de abordar exclusivamente os aspectos internos dos Corroborando essa discussão, Feuerwerker e
indivíduos para produzir uma relação com os espaços Merhy (2008) revelam que a família assume a princi-
sociais. pal responsabilidade no cuidado executado em âmbito
O relato da participante mostra, ainda, uma ini- domiciliar, dispondo de liberdade na composição das
ciativa válida de buscar fazer uma ligação com a reali- tecnologias de cuidado efetivamente utilizadas, ou seja,
dade socialmente aceita e praticada, ao estabelecer-se a família tem um modo próprio de estabelecer o cuida-
um período de lazer e descanso para que o indivíduo do com o usuário quando este está no âmbito domici-
retome as suas atividades, revigorando-o. Os meses de liar. Entretanto, deve-se entender que apenas transferir
janeiro e julho são propícios para essa ação por coin- o cuidado da instituição de saúde para o domicílio, de
cidirem com o período de férias escolares, após datas forma a reproduzir a mesma assistência, torna-se pouco
festivas como Natal, Ano Novo, São João e São Pedro eficaz por causar uma disputa de projetos terapêuticos
(estas duas últimas, de grande repercussão no municí- em que as famílias têm papel definidor. Dessa maneira,
pio do estudo). A mudança de planejamento é moti- excluir ou ignorar a família do processo de reinserção
vada por uma necessidade de mudança da rotina ge- social do usuário pode significar o insucesso da prática.
rada pelas férias, uma vez que estas representam uma Contudo, é importante ressaltar que, mais do que
oportunidade de trabalhar as práticas inclusivas extra- promover ações inclusivas do usuário do CAPS, é fun-
muros, tendo em vista o momento de socialização que damental garantir sua continuidade para a efetividade
representam. de seus resultados. Para tanto, faz-se necessário que a
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equipe de saúde promova o acolhimento, de forma a Desta forma, os profissionais mostram-se moti-
proporcionar um ambiente seguro para que ele se sinta vados para o exercício da inclusão social dos usuários,
à vontade no processo de reinserção social. O acolhi- buscando, nesse momento, trabalhar os estigmas, os
mento é compreendido como um método intercessor, preconceitos e a discriminação impregnados histori-
capaz de gerenciar crise, desestabilizando lugares e con- camente na sociedade, demonstrados através de atos e
cepções cristalizadas, atributo das práticas clínicas em atitudes e por anos de prisão desses usuários em ver-
saúde mental, realizadas por qualquer membro da equi- dadeiras celas, localizadas, muitas vezes, nas suas pró-
pe (SILVEIRA; VIEIRA, 2005). prias residências, escondendo ou mesmo excluindo-os
Por sua vez, o acolhimento, enquanto um ato de do convívio social, fragilizando, assim, o exercício da
agir, pode atravessar os processos relacionais em saú- cidadania. As falas abaixo reforçam essa discussão:
de, rompendo com os atendimentos tecnocráticos e
criando atendimentos mais humanizados (SILVEIRA; [...] Por exemplo, a gestão construiu o Plínio
VIEIRA, 2005). Indo além, trata-se de uma prática que Lemos [complexo esportivo] que a gente utili-
pode ser reproduzida pela família, que, na qualidade de zou, [...] como uma atividade extra CAPS [...],
potencial cuidadora, tem a capacidade de trabalhar com um centro que você pode levar a criança para
o usuário em atividades rotineiras, em momentos extra observar, para brincar. É um centro aberto,
CAPS. isso aí favorece também a gente, a desenvolver
A disputa de projetos terapêuticos criada entre a a nossa prática, como também tem o centro de
família, no cuidado domiciliar, e a equipe, na institui- referências que é da saúde mental que também
ção, estabelece um espaço de tensão que pode levar à a gente pode levar o usuário, seja ele criança ou
produção de novidades no arranjo tecnológico do tra- adulto, para desenvolver [...]atividades extras,
balho em saúde ou à captura das famílias pelo projeto além do atendimento. (p. 17).
hegemônico de produção da atenção. Portanto, a ten-
são é constitutiva desse novo espaço institucional de Percebe-se que o desejo que o profissional tem
cuidado e pode ser produtiva, convertendo-se em fator de trabalhar de uma forma diferenciada e integrada,
favorável à atenção domiciliar como espaço de “desins- de modo a promover a reinserção social do indivíduo,
titucionalização”, potencialmente produtora de inova- não é o único elemento envolvido no processo. Pode-se
ções (FEUERWERKER; MERHY, 2008). dizer que o processo de reinserção social da pessoa em
Partindo da premissa de que o cuidado atraves- sofrimento psíquico, promovido pelos CAPS, envolve
sa diversos campos de saberes e práticas, no campo da quatro elementos: o usuário do serviço, o profissional,
saúde esse cuidado corresponde a uma complexa trama a família e a gestão. O profissional age como um faci-
de atos, procedimentos, fluxos, rotinas, saberes, em um litador do processo, buscando meios de superar as bar-
processo dialético de complementação e disputa. Nesse reiras que separam esses indivíduos de uma vida social,
sentido, entende-se que o cuidar em saúde implica uma e esses meios devem ser garantidos pela gestão. Quando
gestão participativa, na qual sua inexistência representa a gestão está atenta às necessidades da população, ela
fragilidade, que mantém o não ordenamento da aten- cria condições para que os profissionais guiem família e
ção (SERRANO et al., 2011). usuários na mudança desses paradigmas.
Um facilitador para que essa prática inclusiva
acontecesse no município pesquisado se deu pelo fato [...] Semana que vem a gente está indo para
dos gestores municipais terem contribuído com espaços o Parque da Criança. Lá, existe [...] um lo-
distribuídos pelos bairros da cidade, o que tem favore- cal chamado indústria do conhecimento, onde
cido o trabalho dos profissionais com os usuários nesses eles oferecem uma biblioteca, brinquedos peda-
locais. Trata-se de áreas amplas e abertas ao público, es- gógicos, oficinas recreativas, acesso à internet.
senciais para a efetivação das ações. Então, desde o ano passado que a gente tem
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levado nossas crianças e adolescentes para lá. sociedade perante a participação dos usuários do CAPS
E, no início, a gente percebeu que existia uma nos espaços coletivos. Primeiramente, visualizou-se o
certa preocupação da equipe de lá, da indús- receio por parte da equipe em receber os jovens, de-
tria do conhecimento, em como receber essas pois, a dificuldade da própria família em circular com
crianças e adolescentes [...]. Então, a gente foi eles em espaços públicos, como shopping. Diante disso,
levando, foi mostrando que [...] eles poderiam percebe-se a importância da realização dessas práticas
estar frequentando lá, com ou sem a nossa com- inclusivas do CAPS, pois é saindo dos limites da insti-
panhia, porque a indústria do conhecimento tuição que as barreiras se apresentam, e é essa a oportu-
funciona durante todo o ano, então, nas colô- nidade de trabalhar com todos os envolvidos, sejam os
nias de férias nós acompanhamos, mas, além profissionais de outras áreas, a família, a população ou
das colônias de férias, nós incentivamos que os os próprios usuários que vão também aprender a lidar
pais levem [...], que eles frequentem esses locais, com a situação.
como o Shopping. Também existe uma grande Outra importante consideração é o reconheci-
dificuldade dos pais de circular em ambientes mento de atividades inclusivas como mecanismos não
públicos [...] com essas crianças e adolescentes apenas de viabilizar direitos (maior horizonte do concei-
porque elas acham que vão chamar atenção, to), mas de criar e favorecer esse espaço de sociabilidade
que todo mundo vai olhar e que as pessoas não a partir da circulação nos espaços de convivência das
vão aceitar. Então, a gente vem trabalhando cidades. Para além de ‘circular’ nos espaços, faz-se ne-
que a inclusão social não é só ter o direito de cessário ocupar seus equipamentos sociais e integrá-los
estar na escola, não é só ter o direito [...] de re- ao conjunto das experiências dos usuários e familiares.
ceber atendimento médico [...], mas a inclusão Sobre a ocupação dos espaços, o depoimento su-
social é poder circular por todos esses ambientes gere a visita a museus e a participação dos usuários em
sociais. (p. 18). atividades culturais.
O discurso acima remete a duas questões relevan- Sim, por exemplo, [...], a gente saia daqui
tes: a primeira diz respeito à preocupação de incluir os às 2hs [...], de 15 em 15 dias, para o mu-
jovens em espaços de aprendizado. Considerando que o seu da cidade, [...] então eles chegavam lá,
ser humano é um ser em constante construção, ignorar olhavam a exposição, a menina que trabalha
suas necessidades de aprendizado e de acompanhamen- no museu faz uma oficina com eles, conta
to tecnológico é também aprisioná-lo e excluí-lo. Uma uma história, bota para pintar, então isso é
debilidade emocional ou psíquica não significa incapa- incluir [...]. (p. 02).
cidade de aprendizado ou relacionamento, e promover
a inclusão digital é incluí-lo no mundo, já que este está Os vários equipamentos sociais do município
interligado pelos meios de comunicação, principalmen- vêm sendo constantemente utilizados pelos profissio-
te pela internet. nais, possibilitando as atividades inclusivas no lazer e na
Um ponto interessante ao tratar da internet é cultura. Isso mostra que eles têm uma visão ampliada
que ela possibilita que diferentes sujeitos se conectem da inclusão, pois suas ações demonstram que querem
e compartilhem experiências sem que uma imagem ou provocar rupturas nos preconceitos, seja do próprio fa-
diagnóstico seja considerado, ou seja, a internet veste miliar, da sociedade ou mesmo dos outros profissionais
o indivíduo em um mundo que lhe permite atuar sem que atuam nos serviços.
prejulgamentos, rompendo barreiras e possibilitando A construção de arranjos intersetoriais no campo
uma visão de mundo diferenciada. da saúde mental tem sido um imperativo nas estraté-
O segundo ponto relevante, concebido nas fa- gias de gestão e de cuidado direcionadas aos usuários
las dos entrevistados, foi a dificuldade de aceitação da da saúde mental. Nesse lastro, as ações e/ou parcerias
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com equipamentos culturais têm se tornado o principal espaços de isolamento, como os manicômios para
mecanismo de inclusão. Na verdade, chama-se atenção a comunidade, em dispositivos como os Centros
para a criação de uma ‘cultura’ em que os usuários fa- de Atenção Psicossocial. A experiência do pro-
çam parte dos circuitos das cidades, participando ativa- grama propõe-se ir além dos serviços públicos de
mente das manifestações culturais. Nessa perspectiva, atendimento, e o tratamento não ficando cen-
tem-se efetivado nos serviços CAPS do município pes- tralizado em um único espaço (CAPS) e não
quisado a criação de feiras, mostras artísticas e culturais fica restrito a técnicas definidas como ‘psi’ e sim
de trabalhos produzidos pelos usuários e seus familiares, descentraliza as ações para outros segmentos,
nos respectivos serviços. incluindo os portadores de transtorno mental
No entanto, as atividades extra CAPS encontradas nos mais variados instrumentos e espaços comu-
nesse estudo só estão sendo possíveis devido à existência nitários, oferecendo condições de cidadania e
dos espaços públicos que a gestão municipal tem cons- realizando de fato a inclusão social. (SOUSA,
truído e disponibilizado, como os já citados Complexo 2011, p. 12).
Esportivo Plínio Lemos, Parque da Criança e Museus
da cidade. Tais ambientes sociais contribuem para a cir- O estudo de Sousa (2011) também revelou que
culação das pessoas em sofrimento psíquico e favorece a experiência extra CAPS desenvolvida com os usuá-
o cumprimento do direito de cidadão. Na contempora- rios promoveu a inclusão social na medida em que tal
neidade, esses serviços funcionam com uma estrutura ação fez com que os participantes rompessem barreiras
inclusiva e com profissionais que atuam no seu interior, e preconceitos, superassem seus limites e vislumbrassem
com uma postura aberta para trabalhar com a saúde possibilidades, para as quais eles mesmos acreditavam
mental. não ter capacidade. Para a autora, os usuários:
As falas dos entrevistados nos revelaram existir um
local chamado indústria do conhecimento, no parque [...] apresentaram modificações importantes,
da criança, abastecido com equipamentos, insumos e expresso na postura física, no orgulho de fazer
profissionais que têm contribuído para a efetivação das parte, em estar presente, na satisfação de ser o
ações inclusivas, mas também existem alguns espaços assunto e de ter assunto, de falar em público
nos museus da cidade em que são disponibilizados am- sem dificuldade ou timidez, de não ter receio
bientes e profissionais que atuam sob essa mesma pers- da opinião alheia, reafirmando que o porta-
pectiva inclusiva. dor de transtorno mental deve estar inserido no
Silveira e Vieira (2005) revelam que as estratégias contexto comunitário. (SOUSA, 2011, p.09).
dos dispositivos de atenção psicossocial com os serviços
de base territorial estão cada vez mais presentes, assim, Outra experiência que confirmou os avanços na
os recursos disponíveis na comunidade devem ser ins- atenção psicossocial foram as oficinas realizadas em
trumentalizados a fim de propiciar respostas ao sofri- Castro/PR, cujo objetivo era promover a saúde mental
mento psíquico dos sujeitos, possibilitando novos con- e a inclusão social através da musicoterapia. Esse traba-
tratos sociais, transformadores de realidades subjetivas. lho investigativo, pelo caráter de sondagem da vivência
É importante revelar que este estudo não difere musical de cada participante da oficina, busca valorizar
de uma pesquisa realizada no município de Blumenau/ as particularidades de cada usuário do CAPS a partir de
SC, que utiliza um programa de rádio como estratégia jogos de ritmo, de aquecimento vocal, de relaxamento,
de inclusão social para pessoas em sofrimento psíquico de percepção ativa, além do canto propriamente dito
que frequentam o CAPS II. (LEANDRO et al., 2006).
Para Leandro et al., (2006), o mesmo projeto tam-
Tal programa vai ao encontro dos objetivos da bém se propôs a desenvolver um trabalho com flauta
reforma psiquiátrica, que preconiza a saída dos doce. Percebeu-se que as reações das pacientes foram
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AZEVEDO, E.B.; FERREIRA FILHA, M.O.; ARARUNA, M.H.M.; CARVALHO, R.N.; CORDEIRO, R.C.; SILVA, V.C.L. • Práticas inclusivas extramuros de um Centro de Atenção
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sempre de satisfação, de alegria e de entusiasmo. A au- Diante desse estudo, viu-se que a inclusão funcio-
toestima desenvolvida pela capacidade de produzir sons nou no sentido de valorizar os relacionamentos afeti-
pode ser ilustrada com a iniciativa das alunas de convi- vos entre todos os envolvidos no cuidado em saúde, de
dar membros de suas famílias e grupos do CAPS para modo a favorecer uma cultura de inclusão. Entende-se
ouvir as músicas tocadas por elas, demonstrando o po- que a instituição cumpre seu papel no contexto da Re-
der da música como fator de inclusão social. forma Psiquiátrica, promovendo saúde mental a partir
Compreende-se que, a partir da realidade do mu- da inserção social.
nicípio pesquisado, bem como das experiências expli-
citadas por outras pesquisas, há uma diversidade de
atividades de caráter inclusivo nos serviços substituti- Considerações Finais
vos, ações de inclusão tendo a via do trabalho (inclusão
produtiva) e a mais ressaltada em todas as experiências, As práticas inclusivas são estratégias articuladas entre
inclusive nas nossas, que são as ações de caráter cultural os profissionais que atuam nos serviços substitutivos da
de inserção nos espaços sociais de convivência, como saúde mental e os setores da sociedade, visando a reinse-
estratégia de desconstrução do modelo segregador, for- rir a pessoa em sofrimento psíquico ao convívio social.
mando a base para uma ‘nova’ cultura de inclusão. Os usuários, uma vez em tratamento e acompanhamen-
Existe uma preocupação em não reproduzir o mo- to pelo CAPS, necessitam de estímulos para que ‘rea-
delo manicomial, seja através da institucionalização dos prendam a viver’, de forma tal que não deixem que o
CAPS, da produção de novas cronicidades que se anun- sofrimento ou o transtorno psíquico causem, além da
ciam na retenção de usuários ou em modos de gestão exclusão social, uma limitação física.
resistentes em operar para fora do serviço. Tal fato alerta Logo, entende-se que cultivar práticas inclusivas
para a necessidade de expansão e articulação da rede dentro dos limites das instituições é controverso e de
substitutiva e, com isso, de fortalecer cada vez mais o baixo impacto quando se pretende que o usuário do
CAPS como organizador da rede de cuidados em saúde CAPS torne-se novamente um cidadão, deixando de ser
mental, que funcione, preferencialmente, na interface estigmatizado como um peso social. Promover o empo-
com a comunidade, potencializando os recursos de su- deramento dentro da realidade de cada um é o objetivo
porte social existentes (DIMENSTEIN, 2006). dessas ações, que utilizam recursos culturais para retirar
Para o efetivo processo de reinserção social do usu- esses indivíduos e seus familiares do cárcere de suas pró-
ário do CAPS, faz-se necessária uma união envolvendo prias mentes.
gestão, equipe de saúde, usuário e sua família, buscando Cabe enfocar o quão difícil é trabalhar com pesso-
um trabalho conjunto, cada um em sua esfera de par- as que sofrem de distintos sofrimentos psíquicos, com
ticipação, tendo em vista a compreensão das diretrizes sintomas que rompem sua ligação com o real, contudo,
de universalização, territorialização e integralidade das os benefícios que eles têm ao desfrutarem a possibilida-
ações e do acesso aos serviços de saúde mental, como de de participar de práticas inclusivas intra e extramu-
um referencial de ação para produção da saúde no cam- ros são imensos. Essas ações não prometem a cura, mas
po da atenção psicossocial. buscam uma melhor qualidade de vida para os usuá-
Essas ações estão voltadas para a desconstrução rios do CAPS, que, por sua vez, revelam possibilidade
da cultura institucional, o que pede aos profissionais de perceber o seu papel na sociedade, compreenden-
de saúde, fundamentalmente, que pautem suas ações do as relações humanas, descobrindo habilidades antes
nas necessidades de saúde da comunidade e não em desconhecidas.
soluções tecnicistas, medicalizadas e institucionaliza- As colônias de férias promovidas pelo CAPS do
das. Esse engajamento é fundamental para o sucesso da município de Campina Grande/PB utilizam recursos
construção de novas relações entre o serviço e a comu- da cidade, como parques, museus e shopping, para que,
nidade (SILVEIRA; VIEIRA, 2005). de forma descontraída, os usuários e a família quebrem
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AZEVEDO, E.B.; FERREIRA FILHA, M.O.; ARARUNA, M.H.M.; CARVALHO, R.N.; CORDEIRO, R.C.; SILVA, V.C.L. • Práticas inclusivas extramuros de um Centro de Atenção
Psicossocial: possibilidades inovadoras
as barreiras dos preconceitos impostos a si mesmos e saúde mental, sensibilização da população no apoio
passem a encarar com naturalidade momentos de lazer aos usuários do CAPS, além do olhar voltado para os
como esses. profissionais que lidam com essa realidade, promoven-
O novo olhar direcionado aos usuários do CAPS do capacitações e eventos na área.
exige a participação familiar, pois, à exceção de casos Sob essa perspectiva, observa-se que viver é
particulares, a família é o primeiro ciclo social do qual aprender a superar dificuldades, dificuldades essas
o indivíduo participa, e promover sua adaptação sem o que, para a pessoa em sofrimento psíquico, podem
apoio da família às práticas inclusivas é uma ação falha, estar associadas a um simples passeio ao shopping.
diretamente ligada ao insucesso. Dessa forma, as estratégias de inclusão desse usuário
O artigo sinaliza para a importância do compro- visam a impulsioná-lo a viver melhor, a auxiliá-lo a li-
misso da gestão com a promoção da reinserção social da dar com seus medos, vergonhas e com a discriminação
pessoa em sofrimento psíquico, a partir da construção que lhe é imposta. A sociedade precisa aprender a vê-
de espaços de interações coletivas, provendo ferramentas lo nas ruas e entendê-lo nas suas particularidades, sem
para usos diversos no trabalho com os usuários, assim excluí-lo. Para isso, ele tem que aprender a assumir o
como estímulos e divulgação dos projetos associados à seu papel na comunidade.
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ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
1
Graduada em Terapia Ocupacional pela
Universidade Federal do Triângulo Mineiro
RESUMO A partir da reforma psiquiátrica, pretendeu-se conhecer o contexto familiar após
(UFTM) – Uberaba (MG), Brasil.
alineaccosta@gmail.com
a desospitalização do sujeito com transtornos mentais, e como a reabilitação psicossocial
2
Mestre em Enfermagem Psiquiátrica pela
tem se articulado nesse processo. Foram entrevistadas cinco pessoas, familiares de sujeitos
Universidade de São Paulo (USP) – São Paulo
(SP), Brasil. Professora Assistente do Curso de
com transtornos mentais atendidos em um CAPS, e foi utilizada a metodologia qualitativa
Terapia Ocupacional da Universidade Federal
do Triângulo Mineiro (UFTM) – Uberaba
com análise temática. A coleta dos dados se deu através de entrevistas semiestruturadas.
(MG), Brasil.
erikatouftm@hotmail.com Os resultados apontaram limitações nas trocas sociais e o CAPS como única referência
social e de tratamento. Nas trocas materiais, os sujeitos não possuem trabalho com valor
social, e nas trocas afetivas, verificaram-se características da desospitalização sobrecarre-
gando os familiares. Mesmo assim, esses se mostram favoráveis a esse processo. Contudo,
existe a necessidade de construção e ampliação da rede de apoio social.
PALAVRAS CHAVE: Transtornos mentais; Relações familiares; Desospitalização.
ABSTRACT Based on the psychiatric reform, it was intended to verify the family context af-
ter a desospitalization of the person with mental disorders and the ways how the psychosocial
rehabilitation has been articulated in this process. Five people were interviewed, family and in-
dividuals with mental alterations receiving treatment in CAPs. In data collect, it was used semi-
structured interviews. The results showed limitations in social interchanges and CAPS as the
unique reference about social support. Regarding the material interchanges, the individuals
don’t develop any work with social value. In emotional interchanges, it became evident charac-
teristics of desospitalization overburdening other family members. Still they are favorable to this
process. However, there’s a need to construct and enlarge the social support network.
KEYWORDS: Mental disorders; Family relations; Desospitalization.
* Resultado do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), realizado para o Curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do
Triângulo Mineiro (UFTM) – aprovado pelo Comitê de Ética da UFTM, de acordo com o parecer nº 1558.
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COSTA, A.A.; TREVISAN, E.E. • Mudanças psicossociais no contexto familiar após a desospitalização do sujeito com transtornos mentais
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COSTA, A.A.; TREVISAN, E.E. • Mudanças psicossociais no contexto familiar após a desospitalização do sujeito com transtornos mentais
que intenta a transformação da visão social acerca Comitê de Ética da Universidade Federal do Triângulo
da loucura (AMARANTE, 1995). Mineiro consta no protocolo nº1558.
As mudanças ocorridas na política pública brasi- Os dados foram coletados através de entrevistas
leira de atenção à saúde mental colocaram os sujeitos semiestruturadas e gravados em mídia eletrônica. A
com transtornos mentais e seus familiares como pro- transcrição das entrevistas foi feita na íntegra pela au-
tagonistas de um processo que busca inovar as formas tora. A análise dos dados se deu através da construção
de tratamento,“[...] visando a atender esta população de um conjunto de categorias descritivas. A formulação
e pautar-se no acolhimento, no estabelecimento de dessas categorias é o resultado de leituras sucessivas do
vínculos, na responsabilização, na ética e no cuidado” material coletado, da ordenação dos relatos e da divisão
(MORENO, 2009, p. 567). do material em elementos componentes, que, poste-
Em pesquisa realizada no final da década de 1990, riormente, foram reexaminados e formaram conceitos
percebeu-se que, no processo de desinstitucionalização mais abrangentes (MINAYO, 2008).
ocorrido no País em decorrência do processo da refor- Foram entrevistados oito familiares de usuários
ma psiquiátrica, os familiares sofreram algumas altera- de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de um
ções em seu contexto, e apontou-se que o suporte da município de Minas Gerais. Porém, somente cinco de-
rede de apoio, bem como os princípios da reabilitação les responderam aos critérios de inclusão da pesquisa:
psicossocial não se apresentavam efetivos ou adequados. ser familiar de um sujeito com transtornos mentais que
Dessa forma, algumas famílias – principalmente as per- possua histórico de hospitalização por aproximadamen-
tencentes às classes sociais mais baixas – preferiam a ins- te seis meses, em qualquer instituição psiquiátrica, e
titucionalização de seu familiar com alterações mentais assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
(SADIGURSKY; TAVARES, 1998). O roteiro da entrevista semiestruturada possuía
Assim, faz se necessária a reestruturação das cren- perguntas relacionadas à identificação dos sujeitos da
ças e das representações da família acerca do tratamen- pesquisa (nome, idade, profissão, grau de parentesco
to. Após a desospitalização, a volta do sujeito para o lar com sujeito com alterações mentais); histórico da al-
e para a sociedade, de acordo com os preceitos da refor- teração mental (como e quando se deram as primeiras
ma e da inclusão social, trazem a indagação de como as crises, histórico familiar da doença, institucionalização
famílias dos sujeitos com transtornos mentais interpre- e desospitalização, tempo de internação, condições de
tam essa nova situação (MACIEL et al, 2009). tratamento, envolvimento familiar, desinstitucionaliza-
Sendo assim, este estudo objetivou conhecer as ção, encaminhamentos); ocupação/trabalho dos fami-
possíveis mudanças ocorridas no contexto familiar após liares, antes e depois da desospitalização, e rotina fa-
a desospitalização de seu membro com transtornos miliar (lazer, conflitos, cuidado, comunidade); serviços
mentais e compreender como a reabilitação psicossocial substitutivos (local, tempo que o sujeito com alterações
tem se articulado nesse processo. Será utilizado o termo permanece em tratamento durante a semana, satisfação
desospitalização, pois não há dados suficientes neste es- dos familiares com o serviço, diferenças entre tratamen-
tudo para afirmar que tenha havido, de fato, a desinsti- to institucionalizado e na comunidade); crises; auxílio
tucionalização desses sujeitos com transtornos mentais. financeiro; e opinião dos familiares sobre a reforma psi-
quiátrica. Vale ressaltar que esses foram os eixos norte-
adores das perguntas, mas que houve abertura para o
Procedimentos Metodológicos surgimento de outras indagações.
As entrevistas foram realizadas nas residências dos
A pesquisa foi desenvolvida a partir de um estudo sujeitos e para a identificação dos participantes foram
qualitativo que investigou as alterações psicossociais utilizados nomes fictícios – os familiares receberam no-
ocorridas no contexto familiar após a desospitalização mes de flores e os sujeitos com transtornos mentais re-
do sujeito com transtornos mentais. A aprovação pelo ceberam nomes de árvores, sendo eles:
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COSTA, A.A.; TREVISAN, E.E. • Mudanças psicossociais no contexto familiar após a desospitalização do sujeito com transtornos mentais
Eu acho que a pessoa que interna e fica um mês cronificadas. Para Goffman (1961), essa condição social
trancado deixa muita marca na pessoa. Ago- de exclusão é mais importante e determinante no seu
ra, pra você ver, uma pessoa que fica doente, se comportamento do que a própria doença mental.
ela tiver condição de passar daquela crise junto Dessa forma, é possível perceber que um período
com os familiares, é bem melhor, né? (Cravo). elevado de internação transforma os sujeitos, ocasio-
nando dificuldades relacionais ao seu contexto social,
Após a desospitalização, percebe-se que o sujei- familiar e afetivo, visto que a maioria dos entrevistados
to com transtornos mentais leva para seu cotidiano os não sabe lidar com as características geradas pelo tempo
sentimentos de injustiça, amargura e alienação, assim de internação.
como as características massificadoras e normatizado-
ras das instituições totais, mantendo sua conduta ainda
nos parâmetros da condição de hospitalização à qual Reabilitação Psicossocial
estava submetido. Segundo Goffman (1961), a interna-
ção em hospital para doentes mentais traz ao internado A reabilitação psicossocial é compreendida pelas ações
uma descaracterização de si e uma mortificação do eu, que visam a modificar os níveis de relação de domí-
através de processos relativamente padronizados nessas nio, abrindo novos meios para se estabelecer relações
instituições. entre comunidade, serviços, profissionais, familiares e
sujeitos. Ainda preconiza o desempenho do sujeito com
Ela custa a dar conta de tomar banho, quer transtornos mentais nas diversas esferas que compõem
ficar só dormindo. O probrema é esse. Depende o seu cotidiano, favorecendo as trocas afetivas, mate-
d’ela querer ir, porque ela é muito medrosa. E riais e sociais embasadas pela contratualidade com a
o CAPS é muito longe. Ela fica mais é aqui rede de apoio que circunda esse sujeito na comunidade
dentro. Às vezes, ela vai no portão. Num sai na (SARACENO, 2001).
rua porque tem medo de cachorro. (Jasmim). As trocas afetivas compreendem toda a afetivi-
dade, o cuidado, os sentimentos e as relações entre o
Machado, Manco e Santos (2005) afirmam que as sujeito e seus familiares. As trocas materiais estão rela-
pessoas que ficaram por anos institucionalizadas passam cionadas ao trabalho dos familiares e dos sujeitos com
a conviver com um forte sentimento de insegurança transtornos mentais, à aposentadoria, a tudo o que
quanto ao mundo extra-hospitalar, que, muitas vezes, se refere às finanças. Quanto às trocas sociais, trazem
lhe é passado como perigoso, hostil e preconceituoso. questões relacionadas à sociedade e a seus valores, à re-
A barreira entre a instituição e o mundo externo é lação da família com a sociedade e às consequências do
o primeiro facilitador de mutilação do eu e das subjetivi- isolamento social pela hospitalização.
dades; as perdas no convívio social podem não ser mais
recuperadas; há a ausência de bens e a ausência de obje-
tos pessoais que tem íntima ligação com o eu, perdendo Trocas Afetivas
seu conjunto de identidade. A instituição normalmente
lhe fornece o que é necessário, de forma massificada, e o Na pesquisa, ficou evidente a existência de trocas afeti-
identifica com números para uma melhor organização. vas entre os sujeitos e seus familiares. Porém, essas tro-
Além das relações interpessoais impostas com as quais cas acontecem de diferentes formas, de acordo com as
o internado tem que conviver no hospital, às vezes, ele singularidades dos atores envolvidos nessa relação.
ainda é obrigado a tomar a medicação e se alimentar
mesmo contra a sua vontade. As pessoas que vivem em Foi um amor assim, cristão, que eu tive pelos
uma instituição por muitos anos são usualmente ca- dois (marido e enteada). Ela ficou sendo como
racterizadas como dependentes, institucionalizadas e se fosse uma filha. Então, tudo que eu passei,
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COSTA, A.A.; TREVISAN, E.E. • Mudanças psicossociais no contexto familiar após a desospitalização do sujeito com transtornos mentais
eu sei que é uma cruz, uma cruz muita pesa- A família é um espaço social que promove a in-
da. Eu sei que tudo é para a glória de Deus. teração e o cuidado de seus membros quando uma
(Margarida). enfermidade acomete algum de seus integrantes. Essa
vivência pode ocasionar conflitos e dúvidas para os fa-
Tratando-se das mudanças psicossociais ocorridas miliares envolvidos, e, muitas vezes, provocar ‘instabili-
nesse contexto, fica claro que os familiares se sentem so- dade permanente na vida cotidiana’ (CHIAGAVATTI
brecarregados nos casos de dependência afetiva. A falta et al, 2009, p. 133).
de iniciativa apresentada pelo sujeito com transtornos Assim sendo, os familiares sentem necessidade
mentais no auxílio das tarefas cotidianas aumenta a não só de dar apoio físico e emocional, mas também
sobrecarga. de suportar o impacto da estigmatização sofrida pelo
Bandeira e Barroso (2005) relatam que as limita- sujeito com transtornos mentais. Esses encargos não se
ções no relacionamento do sujeito com seus familiares, remetem apenas a afeto, emoção e estresse, mas afetam
e, em específico, a falta de reciprocidade da pessoa com também o lado econômico (MACIEL et al, 2009).
transtornos mentais, é um aspecto negativo, que difi-
culta as relações saudáveis no dia a dia. Tem pessoas também que é agressiva e a família
não tem condição financeira de fazer um cô-
Tudo é eu: médico, higiene... Eu não dou ba- modo, de ta ali, junto, num é verdade? A gente
nho nele, ele toma banho sozinho. Mas esqui- sabe que pros familiar não é fácil, porque você
zofrênico não gosta de tomar banho. Aí, tem mexe com um doente mental sem isolar ele. Tá
que ficar em cima dele: ‘Já tomou banho?’. Aí, sujeito a machucar qualquer um, né? (Tulipa).
entro no banheiro: ‘Deixa eu ver se você tá to-
mando banho direito! Faz assim, esfrega aí, me É, eu vinha, largava até o serviço, e ia satisfeito.
ajuda!’. (Cravo). Pra ele, eu busco o remédio, vou satisfeito. Pede
guaraná, pede outra coisa. eu vou lá e compro.
As trocas afetivas e emocionais vivenciadas pelos Satisfeito com ele. Se o dinheiro dele acaba, eu
familiares no cotidiano, ao presenciarem o sofrimento importo de dar do meu dinheiro, não. Eu não
do sujeito com transtornos mentais, são afetadas direta- vou levar nada disso pro túmulo, tem que aju-
mente. Aparecem dificuldades pela falta de orientação dar quem precisa, né? (Gerânio).
sobre como agir nas distintas situações, por exemplo,
durante as crises. Isso demonstra a necessidade desses Maciel et al (2009) pontuam que o cuidar dos su-
familiares serem alvos de tratamento em saúde mental
jeitos com transtornos mentais demanda tempo e pode
(PEGARARO; CALDANA, 2006).
ocasionar restrições econômicas e sociais, visto que, em
muitos casos, eles não exercem trabalho com valor so-
Eu já tenho psiquiatra pra mim ir. A gente vai
cial. No entanto, mesmo não tendo um trabalho remu-
ficando atacado, né? Se a gente num toma um
nerado, a maioria recebe aposentadoria ou auxílio-do-
calmante. O doutor passou pra mim, pra poder
ença, não sobrecarregando as finanças da família e, em
dormir... (Gerânio).
alguns casos, auxiliando diretamente no sustento desta.
É importante ressaltar que foi verificado, nas en-
trevistas, que não houve alterações no papel ocupacio-
Trocas materiais
nal da maioria dos familiares participantes da pesquisa
após a desospitalização, exceto no caso da Margarida,
Saraceno (2001) aponta a necessidade do trabalho com
que passou a administração da oficina de costura de ves-
valor social, possibilitando a contratualidade com ha-
tidos de noiva para sua filha, podendo, assim, dedicar-se
bitat e sociedade, e, também, possibilitando a recons-
aos cuidados de Araçá e de sua própria saúde.
trução da cidadania e o respeito aos direitos humanos.
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COSTA, A.A.; TREVISAN, E.E. • Mudanças psicossociais no contexto familiar após a desospitalização do sujeito com transtornos mentais
Outro aspecto relevante no processo de reforma suporte à rede de apoio. Dessa forma, algumas famílias
psiquiátrica diz respeito à participação de usuários e fa- demonstravam sua preferência pela institucionalização
miliares na organização e na discussão política em ins- (GONÇALVES; SENNA, 2001). Porém, esta pesquisa
tâncias oficiais, visando à transformação do sistema de apontou que a maioria dos entrevistados apresenta um
saúde mental e à construção de uma nova forma de li- posicionamento favorável quanto à reinserção do sujei-
dar com as alterações mentais dos sujeitos. Dessa forma, to na família.
o usuário desse novo modelo deixaria de ser um objeto Ele, medicado certinho, vai vivendo normal:
de intervenção para tornar-se agente de mudanças para come, dorme, conversa. Tem hora que conversa
a construção de uma nova realidade, edificando o senti- meio sem nexo, mas conversa, conhece as pesso-
do de cidadania. E o movimento passaria a circular em as. Para mim, ele, não estando internado, to-
todas as instâncias, inclusive nas culturais e familiares mando medicamento, na minha casa é melhor!
(BRASIL, 2004). (Cravo).
Além disso, a participação ativa dos familiares nos
serviços de saúde mental, como CAPS, é apontado por Tem que ser o atendimento que precisa mesmo.
Bandeira e Barroso (2005) como necessária e pertinen- Ficar internado só quando precisar mesmo. Eu
te, visto que pode favorecer a adesão e maximizar a sa- jamais quero ver ela internada. (Margarida).
tisfação dos sujeitos com o tratamento.
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COSTA, A.A.; TREVISAN, E.E. • Mudanças psicossociais no contexto familiar após a desospitalização do sujeito com transtornos mentais
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ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
Dayane Cordeiro Machado1, Silvia Beatriz Costa Czermainski2, Edyane Cardoso Lopes3
1
Especialista em Saúde da Família e
Comunidade pelo Grupo Hospitalar
RESUMO As práticas integrativas e complementares estão em fase de expansão. O estudo
Conceição (GHC) – Porto Alegre (RS), Brasil.
Farmacêutica da Secretaria Especial de Saúde
objetivou conhecer o ambiente entre gestores para a inclusão de fitoterápicos na assis-
Indígena do Ministério da Saúde – Cascavel
(PR), Brasil.
tência. Nesta série de casos, descrevemos as percepções de coordenadores de unidades
dayane.machado@saude.gov.br
de saúde sobre as práticas integrativas. Os dados foram coletados em um questionário
Mestre em Gestão da Assistência
estruturado. O interesse pela inserção das terapias foi demonstrado por 13 dos 15 entrevis-
2
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 615-623, out./dez. 2012 615
MACHADO, D.C.; CZERMAINSKI, S.B.C; LOPES, E.C. • Percepções de coordenadores de unidades de saúde sobre a fitoterapia e outras práticas integrativas e
complementares
616 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 615-623, out./dez. 2012
MACHADO, D.C.; CZERMAINSKI, S.B.C; LOPES, E.C. • Percepções de coordenadores de unidades de saúde sobre a fitoterapia e outras práticas integrativas e
complementares
recomendou a incorporação dessa opção terapêutica 2003). Para Silva, Gondim e Nunes (2006), os fitoterá-
basead a no incentivo à produção nacional, com a uti- picos serviram para suprir a lacuna deixada pela escassez
lização da biodiversidade existente no país (BRASIL, de medicamentos alopáticos nas unidades de saúde.
2004b). A proposta de inclusão de fitoterápicos na Czermainski (2010) destaca a importância da
assistência farmacêutica pública ganha sustentação a definição de qual fitoterapia é proposta para o SUS e
partir de 2007, com a seleção de dois produtos do elen- percebe que as propostas de inserção advindas das or-
co de referência nacional de medicamentos (BRASIL, ganizações populares são diferentes das originárias de
2007). Esse número foi ampliado para oito plantas me- organizações farmacêuticas, por exemplo. Fonte et al
dicinais em apresentações diversas, que podem receber (2005), em debate sobre a complexidade em torno do
financiamento pelas normas do Componente Básico uso de plantas medicinais e fitoterápicos, observam dife-
da Assistência Farmacêutica. São elas: espinheira-santa, rentes olhares, entendimentos, interesses e concepções.
guaco, alcachofra, aroeira, cáscara-sagrada, garra-do- Apesar do reconhecimento da fitoterapia por con-
diabo, isoflavona-de-soja e unha-de-gato (BRASIL, selhos profissionais da saúde, como os da medicina,
2010c). A inclusão de fitoterápicos na assistência far- enfermagem e farmácia, muitos profissionais se sentem
macêutica básica supre algumas das indicações que ca- inseguros para abordar esse assunto (CFM, 1992; CFF,
recem de opções nas listas de medicamentos básicos de 2007a; COFEN, 1997; ALVIM et al, 2006; PONTES;
alguns municípios. MONTEIRO; RODRIGUES, 2006). Nesse sentido,
Muitas secretarias municipais e estaduais já apre- Souza e Vieira, citados por Rosa et al (2007), ressaltam
sentavam programas de fitoterapia com uso de recursos a importância de espaços de discussão sobre o tema,
próprios, anteriormente à inclusão dessa terapêutica no tanto no âmbito acadêmico quanto no de serviços, além
âmbito nacional (PIRES; BORELLA; RAYA, 2004; da promulgação legal para garantir a sua oferta.
GRAÇA, 2004; OGAVA et al, 2003; REIS et al, 2004; Michiles (2004) identifica a necessidade de um
MICHILES, 2004; CARNEIRO et al, 2004; RIO DE maior comprometimento dos gestores para o cumpri-
JANEIRO, 1996; RIO DE JANEIRO, 2001). mento de orientações oficiais sobre o tema fitoterapia.
É importante destacar a interação de programas de fi- A autora afirma, também, que a maioria dos gestores
toterapia com outros programas intersetoriais, em es- desconsidera que ações de apoio a programas de fito-
pecial, com a cadeia produtiva, como observado nas terapia podem contribuir para o desenvolvimento tec-
experiências dos estados do Rio de Janeiro e do Mato nológico e para a independência econômica do país na
Grosso (REIS et al, 2004; MATO GROSSO, 2005). área de medicamentos.
Programas vinculados a universidades, como o progra- Continuando a reflexão sobre o papel dos gestores
ma ‘Farmácias Vivas’, são estímulos para o uso corre- e a temática, destaca-se o papel dos gestores da ‘pon-
to de plantas medicinais selecionadas por sua eficácia ta’, os coordenadores de unidades de saúde. Ramires,
e segurança em substituição ao rotineiro uso empírico Lourenção e Santos (2004) comentam sobre a poten-
de plantas pelas comunidades (MATOS, 1998; SILVA; cialidade desses gestores em operar mudanças nos espa-
GONDIM; NUNES, 2006). ços de produção. Nesse sentido justifica-se o presente
O crescente interesse pela inserção da fitoterapia trabalho, o qual propõe conhecer se há um ambiente
no SUS pode ter várias justificativas além da economia favorável entre gestores de unidades de saúde de aten-
de custos de aquisição de produtos. Apresenta-se como ção básica para a inclusão de fitoterápicos na assistência
uma alternativa para geração de emprego, melhora da farmacêutica municipal e, assim, subsidiar ações de pla-
qualidade de fitoterápicos acessados pela população, nejamento local.
menor incidência de efeitos colaterais; são alternativas Este trabalho vem ao encontro das necessidades
consideradas mais ‘suaves’ de tratamento quando com- de investigações apontadas por outros autores: anali-
paradas aos medicamentos convencionais (REIS et al, sar a perspectiva dos profissionais de saúde sobre o uso
2004; PIRES; BORELLA; RAYA, 2004; OGAVA et al, de MAC, a possibilidade de introdução dessas práticas
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MACHADO, D.C.; CZERMAINSKI, S.B.C; LOPES, E.C. • Percepções de coordenadores de unidades de saúde sobre a fitoterapia e outras práticas integrativas e
complementares
nos serviços convencionais de saúde e a posição dos o conhecimento da PNPIC, as terapias citadas foram
gestores e produtores de políticas públicas de saúde categorizadas com relação à inserção nessa Política.
sobre a sua incorporação no Sistema Único de Saúde
(SPADACIO; BARROS, 2008).
Resultados e discussão
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MACHADO, D.C.; CZERMAINSKI, S.B.C; LOPES, E.C. • Percepções de coordenadores de unidades de saúde sobre a fitoterapia e outras práticas integrativas e
complementares
inferir-se pela presente pesquisa, o que justifica a neces- Os coordenadores foram questionados se con-
sidade de divulgação e de maior número de capacita- cordariam com a inserção de fitoterápicos na relação
ções relacionadas. de medicamentos essenciais do município, sobre o
Os entrevistados foram questionados se possuíam que catorze dos quinze se manifestaram positivamente
interesse na incorporação de terapias complementa- e apenas uma pessoa não declarou a sua opinião. De
res ou integrativas à rede de Atenção Primária à Saú- forma geral, a grande maioria dos coordenadores (n
de (APS) do seu município: 14 assinalaram interesse e = 13) acredita que a fitoterapia pode complementar o
uma pessoa não se manifestou. Na questão aberta sobre tratamento do usuário, e para 6 dos entrevistados a fi-
quais terapias recomendariam para a rede, as terapias toterapia não substitui os tratamentos convencionais.
citadas foram categorizadas em contempladas e não A fitoterapia foi apontada por 3 coordenadores como
contempladas na PNPIC. Entre as terapias reconheci- adequada para tratamento de doenças ‘leves’.
das e contempladas na política, a fitoterapia foi citada A interação dos fitoterápicos com outros medi-
por 10, acupuntura por 5 e homeopatia por 4. Achado camentos não é considerada importante por 6 profis-
semelhante a um trabalho investigativo sobre a aceita- sionais, enquanto 3 acreditam que a fitoterapia exerce
ção de práticas não convencionais por estudantes de interferência nos tratamentos farmacológicos tradicio-
medicina, o qual revelou que mais de 50% dos futuros nais. Sobre a existência de efeitos negativos causados
médicos indicariam ou apoiariam o uso da acupuntura por fitoterápicos, 4 julgam que não os causam, enquan-
e da fitoterapia por seus pacientes (KULKAMP, et al., to 2 reconhecem que esses produtos podem apresentar
2007). toxicidade significativa. Esclarece-se que o uso de plan-
As demais terapias alternativas citadas, hidrogi- tas medicinais e fitoterápicos não é isento de efeitos tó-
nástica, equiterapia, musicoterapia e reiki, não constam xicos. Os Centros de Informações Toxicológicas (CITs)
naquela Política e foram relatadas por apenas um entre- apontam que a fitoterapia é um recurso terapêutico
vistado. Esse conjunto de práticas necessita ser diferen- muito utilizado em automedicação e pode causar into-
ciado entre racionalidades e técnicas terapêuticas, pois xicações (CAVALINI et al, 2005). Os entrevistados. em
significa a incorporação de elementos de outra raciona- sua maioria (n = 9), têm a percepção de que os medica-
lidade médica. mentos fitoterápicos são seguros, eficazes e de qualida-
O nível de conhecimento sobre terapias comple- de. Por outro lado, apenas 5 reconhecem esses produtos
mentares e integrativas foi considerado básico por 9 dos como sendo economicamente viáveis para o município.
coordenadores, e 4 consideraram seu conhecimento
nulo; 1 como sendo médio e 1 avançado, o que reafir-
ma a necessidade de capacitações dos profissionais sobre Uso pessoal de plantas e fitoterápicos
o tema.
Quando questionados sobre a existência de te- O uso de plantas medicinais e fitoterápicos pelos pró-
rapias complementares e integrativas já disponíveis prios coordenadores de unidades foi revelado por 13
na rede de APS de Porto Alegre, 4 pessoas citaram a dos entrevistados, o que demonstra a aceitação pesso-
disponibilização da acupuntura e 2 da homeopatia. A al desses recursos terapêuticos entre os profissionais da
referência para o atendimento em homeopatia no mu- saúde.
nicípio é o Centro de Saúde Modelo, com atendimento Entre os que afirmaram fazer uso desses produtos,
médico e dispensação em farmácia homeopática. Esse 3 citaram nomes de produtos industrializados e espe-
Centro de Saúde é pioneiro no estado do RS na implan- cificaram as indicações correspondentes, enquanto 8
tação oficial da homeopatia em uma unidade do SUS, afirmaram fazer uso de plantas medicinais sob a forma
de acordo com Santana, Hennington e Junges (2008). de chás, sendo que apenas a metade destes especificou
E o mesmo local disponibiliza acupuntura aos usuários quais chás são usados. O grupo citou 13 plantas con-
(NEVES; SELLI; JUNGES, 2010). sideradas medicinais: erva-doce, camomila, abacaxi,
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MACHADO, D.C.; CZERMAINSKI, S.B.C; LOPES, E.C. • Percepções de coordenadores de unidades de saúde sobre a fitoterapia e outras práticas integrativas e
complementares
alface, boldo, cáscara-sagrada, copaíba, erva-cidreira, As plantas medicinais e as indicações citadas fo-
funcho, guaco, laranjeira, marcela e sene. Dessas, duas ram comparadas à nomenclatura popular das drogas
plantas, a cáscara-sagrada e o guaco, fazem parte do vegetais e a alegações constantes na RDC nº 10/2010.
elenco de referências nacional do componente bási- Observou-se que as indicações empregadas pelos coor-
co da Assistência Farmacêutica (BRASIL, 2010c). Ao denadores estão de acordo com a legislação, com ex-
analisarmos as enfermidades tratadas com plantas me- ceção da planta erva-doce. Essa norma padronizou o
dicinais e fitoterápicos, identificamos maior percentual uso dos frutos da erva-doce (Pimpinela anisum) para
para o efeito digestivo e calmante (tabela 1). dispepsia, cólicas gastrintestinais e expectorante.
Tabela 1. Indicações para o uso da fitoterapia pelos coordenadores de unidades de saúde. – Porto Alegre, 2010
Digestivo 03 (18,75%)
Calmante/tranquilizante/ansiedade 03 (18,75%)
Expectorante 02 (12,5%)
Antiinflamatório 02 (12,5%)
Regulação do fluxo intestinal 01 (6,25%)
Triglicerídeos 01 (6,25%)
Antiflatulência 01 (6,25%)
Cólicas 01 (6,25%)
Pirose 01 (6,25%)
Alergia 01 (6,25%)
Total 16
Uma questão muito importante a considerar é a Percepção dos coordenadores sobre a cul-
denominação popular das plantas. Alguns nomes po- tura de prescrição/indicação de plantas
pulares consagrados em determinadas regiões corres- medicinais e fitoterápicos pelos profissio-
pondem a outros nomes em outras localizações e na nais das suas unidades de saúde
literatura. Por exemplo, no sul do país, a planta erva-
doce é também chamada regionalmente como ‘fun- Os coordenadores foram questionados se os profissio-
cho’, porém, essa denominação popular não consta na nais prescritores de suas unidades recomendavam o uso
RDC nº 10/2010, literatura de referência da presente de plantas aos usuários. Nesse sentido, 7 entrevistados
pesquisa. responderam haver tal prática, sendo que 5 considera-
A alface e o abacaxi não são considerados como ram que ela ocorre raramente e 2 frequentemente. Das
plantas medicinais na literatura científica. Entretanto, 8 pessoas que assinalaram não, 3 assinalaram que a prá-
Ritter et al. (2002) referem o uso popular da alface tica ocorre raramente, contradizendo a resposta negati-
com fins medicinais em algumas pesquisas. va sobre a mesma.
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MACHADO, D.C.; CZERMAINSKI, S.B.C; LOPES, E.C. • Percepções de coordenadores de unidades de saúde sobre a fitoterapia e outras práticas integrativas e
complementares
A indicação de fitoterápicos pelos prescritores A fitoterapia foi mais indicada para implemen-
ocorre em 3 das 15 unidades, não ocorrem em 10 e tação na rede, sendo considerada como uma prática
não houve resposta para 2 unidades. Há a percepção complementar ao tratamento convencional pelos co-
de que os prescritores recomendam mais plantas medi- ordenadores. Observou-se a necessidade de informa-
cinais do que fitoterápicos. E, quando os coordenadores ção sobre os seus efeitos indesejáveis e interações. A
foram perguntados se eles mesmos já haviam indicado pesquisa demonstrou que há prática do uso pessoal de
ou prescrito fitoterapia para seus usuários, 10 relataram plantas medicinais ou fitoterápicos entre profissionais
já ter feito, destes, 8 o fazem eventualmente, 2 habitu- atuantes nos serviços de saúde pública, bem como a
almente e 5 afirmaram que nunca o fizeram. indicação desse recurso terapêutico aos usuários. Os
É importante que os gestores de serviços de saú- coordenadores percebem haver entre os prescritores
de não fiquem alheios. A existência de práticas com- uma recomendação maior de plantas medicinais em
plementares necessita ser reconhecida no processo de comparação aos fitoterápicos.
cuidado. Como anteriormente apontado, as terapias Os profissionais e usuários não dispõem de
complementares têm como um dos seus objetivos se- produtos fitoterápicos pela assistência farmacêutica
rem utilizadas visando um atendimento integral. Por- municipal. Sua disponibilização precisa ser debatida
tanto, o fato de que alguns profissionais entrevistados entre profissionais da saúde, pesquisadores, gestores e
já indicaram plantas medicinais ou fitoterápicos para o controle social. É importante que os envolvidos este-
seus usuários pode ser entendido como uma receptivi- jam atualizados sobre as oportunidades da inserção de
dade positiva ao uso terapêutico de plantas medicinais. fitoterápicos no âmbito municipal, inclusive das pos-
A resposta de um dos entrevistados, o qual complemen- sibilidades de financiamento com recursos financeiros
tou que apenas indica esses produtos quando solicitado destinados ao Componente da Assistência Farmacêu-
pelo paciente, também demonstra, acima de tudo, a tica Básica.
consideração do indivíduo e de suas particularidades; Conclui-se que os coordenadores de unidades de
entretanto, há de se investigar se há, nesses casos, com- saúde, assim como acontece entre os usuários, buscam
preensão sobre o uso. terapias que melhorem seu quadro de saúde, demons-
trando, assim, que há uma boa perspectiva de aceita-
ção da implantação da fitoterapia na rede de APS do
Conclusão município em questão.
Reconhece-se a dificuldade de transformação de
A pesquisa demonstrou a necessidade de capacitação dados quantitativos obtidos através dos questionários
dos trabalhadores do SUS sobre terapias integrativas em dados qualitativos que permitam o aprofundamen-
e complementares. A temática necessita ser explorada to de cada resposta e do seu contexto real. Sugere-se
em atividades de educação, em algum espaço onde as a continuidade da exploração dessa temática e a apli-
diferenças conceituais de cada prática possam ser escla- cação de métodos adicionais de pesquisa na busca de
recidas entre os profissionais. Há necessidade, também, orientações para a efetiva implantação da fitoterapia,
do grupo se aproximar da PNPIC e das possibilidades entre outras práticas integrativas e complementares,
de expansão de suas práticas. no SUS.
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MACHADO, D.C.; CZERMAINSKI, S.B.C; LOPES, E.C. • Percepções de coordenadores de unidades de saúde sobre a fitoterapia e outras práticas integrativas e
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Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 615-623, out./dez. 2012 623
ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
Ahécio Kleber Araújo Brito1, Francisca Islandia Cardoso da Silva2, Nanci Maria de França3
1
Doutorando em Educação Física pela
Universidade Católica de Brasília (UCB)
RESUMO Artigo com objetivo de revisar programas de intervenção direcionados à saúde
– Brasília (DF), Brasil. Professor Adjunto
da Universidade Federal do Piauí (UFPI) –
realizados nas escolas brasileiras. Pesquisaram-se dados dos bancos Lilacs, SciELO e Medli-
Teresina (PI), Brasil.
ahecio@ig.com.br
ne, dissertações, teses e documentos oficiais. Foram encontrados dez programas de saúde
2
Graduada em Licenciatura Plena em
e um número reduzido de intervenções em atividade física nas escolas. Nos núcleos de
Educação Física pela (UFPI) – Teresina (PI),
Brasil. Educadora Física da Secretaria Estadual
apoio à saúde da família, identificou-se pequena participação dos profissionais de edu-
de Educação – Teresina (PI), Brasil.
islandiacardoso@hotmail.com cação física. Concluiu-se que os programas de intervenção realizados nas escolas estão
3
Doutora em Educação Física pela Université reduzindo o sedentarismo e integrando ações de educação à saúde; e que, nos programas
Blaise Pascal – Clermont-Ferrand, França.
Professora do Programa de Pós-Graduação de apoio à saúde da família, faz-se necessária maior participação dos profissionais de edu-
Stricto Sensu em Educação Física da
Universidade Católica de Brasília (UCB) – cação física.
Brasília (DF), Brasil.
mnfranca@terra.com.br
PALAVRAS CHAVE: Educação; Promoção de saúde; Escola.
624 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 624-632, out./dez. 2012
BRITO, A.K.A.; SILVA, F.I.C.; FRANÇA, N.M. • Programas de intervenção nas escolas brasileiras: uma contribuição da escola para a educação em saúde
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 624-632, out./dez. 2012 625
BRITO, A.K.A.; SILVA, F.I.C.; FRANÇA, N.M. • Programas de intervenção nas escolas brasileiras: uma contribuição da escola para a educação em saúde
nas escolas brasileiras, e, assim, possibilitar a ingerên- brasileiros. Destaca-se, a seguir, cada projeto ou pro-
cia da escola como um veículo importante para a edu- grama encontrado.
cação e a promoção da saúde dos estudantes. Inicia-se com o programa governamental Política
Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), posto que
sua atuação ultrapassa as esferas de gestão do Siste-
Métodos ma Único de Saúde, (SUS) interagindo com as de-
mais políticas públicas e da sociedade. Aprovado em
Este trabalho utilizou o método da revisão bibliográ- 2006, o principal objetivo do programa é Promover
fica e, para esse fim, buscou periódicos científicos dos a qualidade de vida e reduzir a vulnerabilidade e os
bancos de dados Lilacs, SciELO e Medline e disserta- riscos à saúde relacionados aos seus determinantes e
ções/teses pesquisadas em sites de busca da internet. condicionantes – modos de viver, condições de tra-
Os critérios para citação do documento foram os se- balho, habitação, ambiente, educação, lazer, cultura,
guintes: programa ou projeto com intervenção dire- acesso a bens e serviços essenciais. À luz da promoção
cionada à educação ou à promoção da saúde na es- da atividade física, a Política Nacional de Promoção
cola, com texto publicado em periódico indexado no da Saúde (PNPS) propõe o compromisso da sociedade
portal qualis – CAPES (Coordenação de Aperfeiçoa- e de suas instituições com a adoção de modos de vida
mento de Pessoal de Nível Superior). Foram pesqui- mais saudáveis. A priorização do incentivo às práticas
sados também: a) dissertações de mestrado e teses de corporais na PNPS reconhece a relevância epidemio-
doutorado nos sites das universidades brasileiras que lógica do tema sedentarismo. Os dados da Vigilância
ofertam programas stricto sensu em áreas da saúde; b) de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas
dados fornecidos pela Organização Mundial de Saúde por Inquérito Telefônico (VIGITEL), pesquisa que
(OMS) e pelo Ministério da Saúde (MS). A coleta dos faz parte das ações da PNPS, indicaram, para o ano
dados foi realizada durante o segundo semestre do ano de 2011, que a prevalência de sobrepeso e obesidade
de 2010, e os autores citados na revisão trazem experi- entre adultos é de 48,55% e 15,85, respectivamente;
ências de intervenções em saúde realizadas nas escolas entre adolescentes, é de 47% e 14% (BRASIL, 2010).
do Brasil, desde o ano 2000 até os dias atuais. Chamou-nos a atenção também o Projeto de
Avaliação do Estado Nutricional de Escolares (AENE),
que teve origem na Tese de Doutorado: Avaliação do
Resultados estado de nutrição de escolares do município de São
Paulo: uma experiência multidisciplinar envolvendo
Após a análise dos dados encontrados, verificou-se que professores de educação física do Programa de Pós-
dez programas atendem aos critérios de inclusão esta- Graduação Interunidades de Nutrição Humana Apli-
belecidos para a presente revisão. Dos dez programas cada da Universidade de São Paulo – USP. O trabalho
citados, quatro receberam a denominação de projeto, realizou um curso de capacitação para professores de
quatro de programa e apenas dois foram denomina- educação física da Secretária Municipal de Educação
dos de estudo, talvez por terem sido originados de – SME. Em seguida, os mesmos avaliaram 9720 es-
dissertações de mestrado. Os programas e projetos colares de 10 a 18 anos, no ano de 2003, sendo 4829
apresentam, sobretudo, pesquisas com delineamento meninas e 4826 meninos. Dentre os meninos, 11%
experimental; apenas um projeto possui caracterís- apresentaram desnutrição leve ou moderada e 14%
tica de estudo transversal; e em dois programas não algum grau de obesidade; os índices entre meninas
foi identificada pesquisa científica. Cabe também foram 12,7% e 14,9%, respectivamente. A tese con-
destacar que o Programa Saúde na Escola foi citado cluiu que professores de educação física capacitados
apenas uma vez por se tratar de um programa úni- podem programar um projeto de avaliação do estado
co, embora seja desenvolvido em diversos municípios nutricional de escolares (AENE) (CEZAR, 2005). O
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BRITO, A.K.A.; SILVA, F.I.C.; FRANÇA, N.M. • Programas de intervenção nas escolas brasileiras: uma contribuição da escola para a educação em saúde
projeto AENE funciona no município de São Paulo Seguindo a linha de intervenção em educação nu-
desde 2005 até os dias atuais. tricional nas escolas, menciona-se o Programa de Edu-
Merece menção o Projeto Redução dos Riscos de cação Alimentar realizado durante o ano de 2005 com
Adoecer e Morrer na Maturidade (RRAMM), desen- os alunos de uma escola municipal de ensino funda-
volvido na Disciplina de Nutrologia do Departamento mental do município de Ribeirão Preto/SP. O estudo
de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo com objetivou desenvolver um programa de educação ali-
o objetivo de implantar um programa interdisciplinar mentar e avaliar seus efeitos sobre o estado nutricional,
e multiprofissional dirigido à Escola Fundamental o nível de conhecimento em alimentação e nutrição e
para redução dos fatores de risco para a obesidade e as as práticas alimentares, além de determinar o nível de
doenças associadas, pela promoção de hábitos saudá- atividade física dos escolares. O programa teve duração
veis adequados à realidade da escola pública. Sua pro- de seis meses e envolveu 951 alunos, de 6 a 16 anos de
posta de intervenção baseou-se em um programa edu- idade, matriculados da pré-escola à 8ª série, os quais
cativo das áreas de nutrição e atividade física destinado receberam aulas semanais sobre alimentação, nutrição
à escola pública, atingindo 2519 crianças matriculadas e atividades físicas. Após a intervenção, o estudo con-
nas duas primeiras séries do ensino fundamental de cluiu que o programa de educação alimentar proposto
oito escolas do município de São Paulo, por meio de foi eficaz para melhorar o nível de conhecimento sobre
treinamento em nutrição e atividade física destinado alimentação, nutrição e práticas alimentares, no entan-
aos professores (TADDEI, 2002). Deste projeto, que to, tais melhoras não foram capazes de modificar posi-
surgiu em 1999, foram derivadas nove dissertações de tivamente o estado nutricional dos alunos. Além disso,
mestrado nas áreas de nutrição, psicologia e educação foi detectada baixa aderência a programas de atividades
física; uma tese de doutorado em nutrição e uma tese físicas (SCHMITZ et al, 2008).
de doutorado em pediatria. Outro parâmetro relacionado à saúde que tem
Também é interessante destacar o Programa Agi- suscitado projetos de intervenção nas escolas é o nível
ta São Paulo, coordenado pela Secretaria de Estado da de atividade física dos alunos. Vemos, pois, que educa-
Saúde de São Paulo (SES), em convênio com o Centro ção nutricional e educação física são áreas que predomi-
de Estudos do Laboratório de Aptidão Física de São nam entre os projetos de saúde escolar. Neste sentido,
Caetano do Sul (CELAFISCS) e outras instituições chama atenção uma dissertação de mestrado apresen-
parceiras (CEZAR, 2005). O Programa tem como tada no Programa de Pós-Graduação stricto sensu em
objetivos principais o aumento do nível de atividade Educação Física da Universidade Católica de Brasília.
física e do nível de conhecimento sobre os benefícios O estudo foi desenvolvido em escolas do ensino fun-
de um estilo ativo de vida saudável, com três focos: damental das cidades satélites de Samambaia e Riacho
escolares, trabalhadores e idosos. Para a intervenção Fundo II, também no Distrito Federal, e teve como ob-
no ambiente escolar foi criado o Agita Galera, Dia da jetivo verificar o efeito de uma intervenção de caráter
Comunidade Ativa, que envolve mais de 6 milhões educativo na promoção de um estilo de vida saudável.
de escolares das 6 mil escolas do estado, localizadas Foram avaliados o nível de atividade física e os fatores
nos 645 municípios. A celebração tem sido realizada de risco para a saúde: obesidade e hipertensão arterial.
a cada última sexta-feira de agosto, desde 1997, sendo A intervenção foi realizada na escola experimental em
que, a partir de 2005, alcançou também as 1000 esco- diversos procedimentos, como: palestra com alunos e
las da capital de São Paulo, acrescentando, assim, mais pais, entrega de panfletos, folders e guias de bolso, in-
de um milhão de escolares. O impacto positivo do terferência nas aulas de educação física e nas atividades
Agita São Paulo levou ao reconhecimento da Organi- denominadas: recreio ativo e ‘sabadão’ da saúde. To-
zação Mundial da Saúde e à consequente constituição dos os procedimentos deram ênfase à importância de
da rede mundial Agita Mundo Network (OLIVEIRA, manter um estilo de vida ativo e, consequentemente,
2006). saudável, não só na escola, mas também no cotidiano.
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 624-632, out./dez. 2012 627
BRITO, A.K.A.; SILVA, F.I.C.; FRANÇA, N.M. • Programas de intervenção nas escolas brasileiras: uma contribuição da escola para a educação em saúde
O estudo encontrou elevados índices de sedentarismo, Ministérios da Saúde e da Educação lançaram o Progra-
sobrepeso e obesidade nas escolas, e pôde constatar uma ma Saúde na Escola (PSE) com os objetivos de reforçar
diminuição do sedentarismo nos estudantes da escola a prevenção à saúde dos alunos brasileiros e construir
experimental após a intervenção, ratificando, dessa for- uma cultura de paz nas escolas. O programa envolve
ma, a importância de projetos dessa natureza nas esco- diversos setores (municípios, órgãos federais, ministé-
las (CAVALCANTI, 2009). rios, Programa Saúde da Família, Universidade Aberta
De forma similar, o estudo de Ribeiro e Floria- do Brasil e outros) e está estruturado em quatro blocos:
no (2010) avaliou os efeitos de um programa de inter- avaliação das condições de saúde; promoção da saúde
venção no nível de atividade física de adolescentes de e da prevenção; educação permanente e capacitação de
escolas públicas de uma região de baixo nível socioe- profissionais e de jovens; avaliação da saúde dos estu-
conômico da cidade de São Paulo/SP. A amostra final dantes por intermédio de duas pesquisas em parceria
foi constituída por 69 adolescentes, de 12 a 14 anos, com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
alocados em dois grupos de intervenção (educação em (BRASIL, 2008).
atividade física e saúde e esportes/exercícios físicos) e Gabriel, Santos e Vasconcelos (2008) avaliaram
em um grupo controle. A intervenção do grupo educa- um programa para promoção de hábitos alimentares
ção em atividade física e saúde foi planejada para afetar saudáveis em escolares do ensino fundamental de Flo-
os padrões de atividade física e os hábitos alimentares rianópolis (SC). O estudo de intervenção foi desenvol-
adotados na adolescência. As estratégias utilizadas com vido com 162 escolares de terceira e quarta séries de
esse grupo incluíram discussões, debates, dinâmicas de duas instituições de ensino, uma pública e outra pri-
grupo e sessões de atividades físicas. A intervenção do vada. A metodologia envolveu a aplicação de um ques-
grupo esportes/exercícios físicos incluiu o desenvol- tionário de consumo alimentar e o aferimento de peso,
vimento dos fundamentos de quatro modalidades es- estatura, idade e sexo, antes e após um mês de finalizada
portivas e a participação em jogos pré-desportivos para a intervenção, de acordo com os protocolos recomen-
elevar o nível de atividade física dos participantes. No dados pela Organização Mundial de Saúde para a cole-
grupo controle, foram realizados dois encontros, com ta de medidas antropométricas. Ao final do programa,
duração de 50 minutos cada, para garantir o acesso às não foram constatadas alterações significativas no perfil
mesmas informações transmitidas ao grupo educação nutricional dos escolares, entretanto, é preciso conside-
em atividade física e saúde, de maneira resumida. Foi rar que o tempo entre a conclusão do programa educa-
utilizado um questionário que avalia a prática da ativi- tivo e a realização do segundo exame antropométrico
dade física semanal e anual, no interstício de agosto a (aproximadamente um mês) pode não ter sido suficien-
dezembro de 2008. Concluiu-se que, apesar das poucas te. Porém, houve redução significativa do consumo de
sessões de atividades físicas, o programa proposto para bolachas recheadas pelos meninos da escola particular
o grupo educação em atividade física e saúde foi bem e aumento do consumo de merenda escolar e frutas na
aceito pelos adolescentes, reforçando a hipótese de que escola pública, ou seja, houve mudanças de atitudes.
a escola é o local ideal para promover atividade física e Também é interessante o trabalho de Zapater et al,
saúde em escolares adolescentes. (2004), que aplicaram um programa de educação pos-
Registrou-se cerca de 600 programas denomina- tural em escolares de Bauru,/SP, e, apesar de realizarem
dos Saúde na Escola, incentivados pelo governo e im- apenas uma sessão educativa, contaram com reforço de
plementados por escolas públicas e particulares com o professores. Tal como no presente estudo, verificaram
objetivo de desenvolver ações de promoção da saúde e boa aceitação por parte dos escolares, uma vez que o
prevenção de agravos que permitam, entre outros fa- programa proporcionou aumento do conhecimento da
tores, melhoria do rendimento escolar, recuperação da postura sentada adequada, mas não podem afirmar se
autoestima e da autoconfiança e diminuição dos ní- houve mudança de hábitos, e sugerem acompanhamen-
veis de absenteísmo e repetência escolar. Em 2008, os to por maior tempo.
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BRITO, A.K.A.; SILVA, F.I.C.; FRANÇA, N.M. • Programas de intervenção nas escolas brasileiras: uma contribuição da escola para a educação em saúde
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BRITO, A.K.A.; SILVA, F.I.C.; FRANÇA, N.M. • Programas de intervenção nas escolas brasileiras: uma contribuição da escola para a educação em saúde
família (NASF), com reduzida participação dos profis- educativas no período de maior declínio dos padrões de
sionais de educação física nas equipes, e inferir o quanto atividade física e dos hábitos alimentares.
é importante disseminar, entre gestores e trabalhadores
do SUS, a prática de programas e ações para a promo-
ção da saúde com ênfase na valorização do trabalho do Conclusões
profissional de educação física (BRASIL, 2011). Mais
uma conclusão importante deste trabalho de revisão de O crescimento econômico e populacional está acarre-
literatura, a partir da análise dos estudos de intervenção tando mudanças no estilo de vida e nos hábitos alimen-
publicados na América Latina e no Brasil, em particu- tares da população brasileira, que influenciam o desen-
lar, foi de que os programas que promovem atividade volvimento das doenças crônicas não transmissíveis.
física na escola foram bem-sucedidos na redução do se- Diante desse fato, no Brasil, o poder público está incen-
dentarismo (MALTA et al, 2009). tivando e financiando projetos de educação e promo-
Outra questão importante, quando se aborda pro- ção da saúde nas escolas, através da Política Nacional
gramas de intervenção em saúde no ambiente escolar, de Promoção da Saúde (PNPS). A ideia é abandonar
diz respeito ao controle e à prevenção do sobrepeso e da a linha assistencialista complementar e partir para um
obesidade, devido ao aumento dos índices internacio- conjunto integrado de ações de educação em saúde que
nais da obesidade infanto-juvenil nas últimas décadas. se inicia na escola e estende-se à família.
Em vista disso, a Organização Mundial de Saúde pu- Na teoria, os projetos deveriam envolver os di-
blicou, em 2004, o documento “Estratégia Global para versos profissionais de saúde, que, em conjunto com
Nutrição, Atividade Física e Saúde”, no qual sugere, no professores e direção das escolas, devem ser agentes
tocante à alimentação, maior ingestão de verduras, legu- multiplicadores de informações sobre diversos assun-
mes e frutas e menor ingestão de sal, gorduras saturadas tos relacionados à saúde, não somente a alunos, mas
e açucares; quanto à atividade física, propõe o aumento também aos seus familiares, permitindo, assim, que
do nível de atividade física das crianças na escola, com comunidades possam adotar comportamentos e esti-
especial atenção ao transporte ativo, em bicicletas ou los de vida mais saudáveis. No entanto, os programas
a pé (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2004). de intervenção em saúde não ocorrem na maioria das
No Brasil, esse tema proporcionou o desenvolvimento escolas brasileiras, e os que acontecem geralmente são
de diversos projetos e programas de educação relaciona- promovidos por instituições científicas e serviços de
dos à alimentação e à nutrição na escola. saúde. Neste sentido, a escola, como instituição for-
Como adendo, deve-se dizer que a presente revi- madora da juventude, tem um papel estratégico no
são possui limitações. A primeira refere-se ao fato de desenvolvimento de ações e na aplicação de programas
que pesquisas bibliográficas realizadas na internet têm educacionais capazes de melhorar as condições de saú-
um elevado grau de complexidade devido à amplitude de, desde que possua um enfoque crítico, participativo,
das redes de informação, o que pode ter ocasionado a interdisciplinar, transversal e que consistam em proces-
não citação de programas e/ou projetos de intervenção sos lúdicos e interativos.
escolar. A segunda refere-se a não inclusão de investiga- As ações de saúde mais identificadas nos progra-
ções sobre prevalências de doenças crônicas não trans- mas e projetos avaliados referem-se ao incentivo da
missíveis, o que, por sua vez, não deixa de ser uma inter- prática de atividades físicas e da alimentação saudável.
venção na escola. No entanto, a inclusão de todas essas Neste sentido, os programas que promoveram ativida-
informações elevaria a dimensão do texto, tornando-o de física na escola foram bem-sucedidos na redução do
incompatível como o formato da revista. Por outro lado, sedentarismo. Nos núcleos de apoio à saúde da família
a vantagem deste estudo é mostrar que a escola, através (NASF), verificou-se reduzida participação dos profis-
da Educação Física, pode ser o espaço ideal para pro- sionais de educação física nas equipes. Adicionalmen-
mover saúde entre os escolares, através de intervenções te, deve-se considerar o potencial do Profissional da
630 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 624-632, out./dez. 2012
BRITO, A.K.A.; SILVA, F.I.C.; FRANÇA, N.M. • Programas de intervenção nas escolas brasileiras: uma contribuição da escola para a educação em saúde
Educação Física a partir do momento em que o mesmo sobre aptidão física e saúde, a fim de que os indivíduos
deve cumprir com uma das suas principais atribuições, possam adotar hábitos saudáveis não só na escola, mas
que é proporcionar conhecimentos teóricos e práticos em suas vidas.
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mar. 2010. Recebido para publicação em Maio/2012
Versão definitiva em Outubro/2012
Suporte financeiro: não houve
Conflito de interesse: inexistente
632 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 624-632, out./dez. 2012
ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
1
Especialista em Saúde Pública pela
Faculdade de Ciências Médicas (FCM) –
RESUMO O estudo refere-se a uma das principais dificuldades encontradas no proces-
Campina Grande (PB), Brasil.
taise_morais@hotmail.com
so de doação de órgãos: a deficiência de educação continuada específica para doação
2
Mestre em Meio Ambiente pela
por parte da população e dos profissionais de saúde. Teve como objetivo enfatizar como
Universidade Federal da Paraíba (UFPB) - João
Pessoa (PB) – Brasil.
a educação influi positivamente nas estatísticas de doações de órgãos. Trata-se de uma
maricelma.ribeiro@gmail.com
revisão bibliográfica, incluindo artigos de periódicos eletrônicos e obras literárias. Existe
uma grande diferença entre o número de pessoas esperando transplante e o número de
doadores. Medidas de educação contínua e políticas de saúde pública que incentivem as
pessoas a manifestar o desejo de serem doadoras são estratégias importantes para ame-
nizar esse problema.
PALAVRAS CHAVE: Transplante de órgãos; Educação Continuada; Promoção da Saúde.
ABSTRACT The study refers to one of the main difficulties encountered in the process of organ
donation: the deficiency of specific continuing education for donations by the general public
and health professionals. Aimed to emphasize how education affects positively the statistics of
organ donations. This is a literature review, including electronic journal articles and literary wor-
ks. There is a big difference between the number of people waiting for transplant and the num-
ber of donors. Measurements of continuing education and public health policies that encoura-
ge people to express their desire to be donors are important strategies to alleviate this problem.
KEYWORDS: Organ transplantation; Continuing education; Promotion of health.
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 633-639, out./dez. 2012 633
MORAIS, T.R.; MORAIS, M.R. • Doação de órgãos: é preciso educar para avançar
634 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 633-639, out./dez. 2012
MORAIS, T.R.; MORAIS, M.R. • Doação de órgãos: é preciso educar para avançar
Identificação das Equipes Transplantadoras: a Cen- sociedade é influenciada por indivíduos com os quais
tral de Transplantes informa as equipes transplantado- se relaciona e por campanhas que incentivam o aumen-
ras sobre a existência do doador e qual paciente receptor to da doação de órgãos (CONESA et al, 2004).
foi selecionado na lista única em que todos são inscri- A literatura é pródiga em referências, demons-
tos por uma equipe responsável pelo procedimento do trando que os meios massivos de comunicação, apesar
transplante. de sua grande penetração em âmbito nacional e mun-
dial, não são os mais adequados para promover escla-
Retirada dos Órgãos: as equipes fazem a extração dos recimento suficiente sobre temas polêmicos, como é o
órgãos no hospital onde se encontra o doador, em cen- caso da doação de órgãos. Ao contrário, muitas vezes,
tro cirúrgico, respeitando todas as técnicas de assepsia a forma, a simbologia e o repertório utilizados pelos
e preservação dos órgãos. Terminado o procedimen- meios de comunicação de massa causam mais celeuma
to, elas se dirigem aos hospitais para procederem à e confusão que esclarecimentos (MORAES; GALLA-
transplantação; NI; MENEGHIN, 2006).
Estudo realizado na Espanha constatou que mui-
Liberação do Corpo: o corpo é entregue à família con- tas informações provenientes da mídia, que poderiam
dignamente recomposto. ser um caminho para o esclarecimento de dúvidas, por
vezes, reproduzem informações distorcidas, superfi-
ciais e preconceituosas, sendo, desta forma, incapazes
Aceitação da população e fatores associa- de modificar comportamentos negativos relacionados
dos à doação à doação de órgãos. Foi observado que a negativa de
consentimento à doação de órgãos pode ser mais fa-
A recusa familiar representa um grande entrave à reali- cilmente modificada através da implementação de en-
zação dos transplantes, contribuindo para que o núme- contros específicos, campanhas escolares e orientações
ro de doadores seja insuficiente para atender à demanda pelos profissionais de saúde (CONESA et al, 2005).
crescente de receptores em lista de espera, sendo tam- Ressaltamos aqui a importância da discussão do
bém apontada como um dos grandes fatores responsá- assunto ‘doação de órgãos’ com amigos e familiares,
veis pela escassez de órgãos e tecidos para transplantes pois as pessoas, quando bem instruídas a respeito do
(JACOB et al, 1996). tema, são capazes de promover discussões, o que pode
As famílias que compreendem bem o diagnóstico ser considerado como promoção de doação.
de morte encefálica são mais favoráveis à doação de ór- Escolaridade também é uma variável importan-
gãos em comparação com as famílias que acreditam que te, sendo que pessoas com nível de escolaridade maior
a morte só ocorre após a parada cardíaca. Estas geral- parecem ter uma melhor aceitação sobre doação de ór-
mente manifestam dificuldades em aceitar a condição gãos (CONESA et al, 2005).
de morte do ente querido (SMIRNOFF; MERCER; O indivíduo contrário à doação de órgãos apa-
ARNOLD, 2003). rece em estudos como sendo: homem ou mulher com
A divulgação e o esclarecimento são de funda- idade acima de 45 anos, com baixo nível educacio-
mental importância para que a população possa criar nal, que não entende ou não conhece o conceito de
uma consciência sobre a doação de órgãos, e os meios morte encefálica, que tem parceiro contra a doação
de comunicação têm um papel relevante nesse processo de órgãos, que não é favorável à doação de sangue e
(MORAES; GALLANI; MENEGHIN, 2006). tem medo da manipulação do corpo (cadáver) após
Os meios de comunicação de massa (televisão, a morte. As razões principais para não ser doador
rádio, jornais, revistas) são os principais veiculadores foram o desconhecimento de como ser doador e o
de informações acerca do transplante e da doação de medo de diagnóstico errado de morte (MARTINEZ;
órgãos para a população. Além disso, uma parcela da MARTI; LOPEZ, 1995).
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 633-639, out./dez. 2012 635
MORAIS, T.R.; MORAIS, M.R. • Doação de órgãos: é preciso educar para avançar
Apresentando os motivos de recusa da doação o quadro do paciente e são motivos para que aquela se
de órgãos e tecidos para transplante recuse a doar os órgãos.
Estudo desenvolvido por Moraes e Massarollo (1995) A desconfiança na assistência e o medo do comércio
apontou que os principais motivos de recusa da doação de órgãos
dos órgãos são: Há a crença de que a morte do parente possa ser ante-
cipada ou induzida objetivando a doação dos órgãos.
A crença religiosa
Foi desvelado que a religião é considerada como sendo um A inadequação do processo de doação
dos motivos para recusar a doação dos órgãos e tecidos A solicitação da doação dos órgãos pela equipe médi-
para transplante. ca, quando feita antes da confirmação do diagnóstico, é
motivo de revolta e indignação para os familiares.
À espera de um milagre A família, quando se sente cobrada pela equipe para au-
A crença em Deus alimenta a esperança da família de que torizar a doação dos órgãos, fica desconfiada e recusa a
um milagre possa acontecer. A crença de que Deus possa doação, mesmo lamentando não respeitar o desejo do
ressuscitar ou abençoar o paciente com um milagre é tão falecido de ser um doador.
grande que o familiar, mesmo quando tem ciência da mor-
te encefálica, prefere acreditar que o paciente vai melhorar. O desejo do paciente falecido, manifestado em vida,
de não ser um doador de órgãos
A não compreensão do diagnóstico de morte encefálica É respeitado o desejo do falecido, manifestado em vida,
e a crença na reversão do quadro de não ser um doador de órgãos, sendo considerado
A falta de entendimento da família sobre a morte encefá- pelo familiar que o importante é acatar o desejo do ente
lica dificulta a assimilação de que uma pessoa possa estar querido, mesmo que para algumas pessoas a vontade
morta quando está com suporte avançado de vida. Nessa do paciente, depois de morto, não tenha importância
circunstância, o consentimento da doação dos órgãos é in- ou que o ato de recusar a doação pareça uma atitude
terpretado pela família como sendo o mesmo que assassi- egoísta.
nar, decretar ou autorizar a morte do parente.
O medo da perda do ente querido
A não aceitação da manipulação do corpo Foi desvelado que o familiar expressa o medo da perda
O familiar tem dificuldade em aceitar a manipulação do negando a doação dos órgãos.
corpo do parente com a finalidade de retirada de órgãos
para transplante, e a não aceitação é motivo para negar a
doação, por acreditar que o corpo é o templo sagrado de Algumas estratégias de incentivo à doa-
Deus e, portanto, intocável. ção de órgãos
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MORAIS, T.R.; MORAIS, M.R. • Doação de órgãos: é preciso educar para avançar
insuficiente dos profissionais de saúde brasileiros so- atitudes com relação ao tema. Campanhas de esclare-
bre o tema transplante de órgãos, o que pode justificar cimento deveriam ocorrer dentro das próprias insti-
o baixo nível de captação de órgãos em nosso meio tuições, com a participação de médicos, enfermeiras,
(AMARAL et al, 2002). técnicos de enfermagem e todos os outros profissionais
Pesquisa realizada com pessoas que frequentavam que trabalham no hospital. O mesmo deveria aconte-
postos de saúde na Espanha apontou que apenas 7% cer em postos de saúde, clínicas e hospitais menores.
das pessoas receberam informações sobre transplante Essas campanhas deveriam disponibilizar informação
de profissionais da atenção primária à saúde; o restan- clara e específica a respeito dos conceitos básicos de
te, de outros veículos. Foi observado que, quando o morte encefálica, doação de órgãos, custo de doação,
paciente recebia uma informação negativa sobre trans- aparência do corpo após a retirada de órgãos, aspectos
plantes por um profissional da saúde, esse tipo de in- éticos, experiências da família do doador e do recep-
formação causava o pior impacto sobre a aceitação da tor, entre outras orientações, pois essas pessoas, como
doação. Por outro lado, quando esses mesmos profis- são formadoras de opinião, influenciam os pacientes e
sionais forneciam informação positiva sobre os trans- seus familiares (TRAIBER; LOPES, 2006).
plantes, havia um claro aumento das reações positivas,
mais importantes que as provenientes de outras fontes Incentivo à discussão dentro das famílias
(89% e 65%, respectivamente) (TRAIBER; LOPES, Pesquisas realizadas com famílias de doadores de ór-
2006). gãos demonstram que um fator importante para essa
Estima-se que somente 15 a 20% dos potenciais decisão foi a discussão prévia sobre doação entre os
doadores de órgãos se tornam doadores efetivos. Exis- familiares.
te a ideia de que a escassez do número de doações é Estudo realizado na cidade de Pelotas (RS), que
fruto da falta de doadores ou da alta taxa de recusa avaliou uma amostra de 3159 adultos, através de ques-
de doações pelos familiares, mas esses dados revelam tionário, demonstrou que 80,1% dos participantes se-
que não há uma absoluta falta de doadores, porém, de riam favoráveis à doação de órgãos de um familiar seu,
doações. Ou seja, embora ainda haja a crença de que caso este houvesse manifestado previamente o dese-
o motivo para a não doação está na falta de potenciais jo de ser doador. Em contrapartida, apenas um terço
doadores, é descrito em estudos que, antes da recusa dos investigados autorizaria a doação se não houvesse
por parte dos familiares, um dos maiores empecilhos à uma discussão prévia com a família (BARCELLOS;
doação de órgãos recai sobre os profissionais de saúde ARAUJO; COSTA, 2005).
(SILVA, 2004). Uma pesquisa canadense que investigou familia-
A negativa de consentimento por parte da família res de pacientes que evoluíram para morte encefálica
poderia ser contornada mais facilmente se os profissio- em nove hospitais constatou algumas diferenças entre
nais envolvidos no processo de captação esclarecessem famílias de doadores e de não doadores. Familiares de
de forma competente as dúvidas daquela. Infelizmen- pacientes jovens, do sexo masculino, com morte asso-
te, muitos profissionais não estão preparados para ciada a trauma, apresentavam maior probabilidade de
responder a questionamentos sobre a doação. Outro consentir com a doação. O fato de a família ter discu-
fator a ser considerado é a classificação incorreta dos tido sobre doação com o paciente ou acreditar que o
órgãos e tecidos que, por essa razão, são rejeitados, di- paciente desejaria ser doador, mesmo sem ter tido uma
minuindo o número de transplantes (ESPÍNDOLA et discussão explícita sobre o assunto, foi fortemente as-
al, 2007). sociado ao consentimento para doação de órgãos neste
Os profissionais da saúde têm papel importante estudo (SMIRNOFF; MERCER; ARNOLD, 2003).
na divulgação de informação sobre doação de órgãos, Infere-se que campanhas que incentivem as pes-
pois têm acesso a grande parte da população e causam soas a discutir sobre doação de órgãos e transplantes
impacto maior que outros meios de comunicação nas com seus familiares são fundamentais.
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 633-639, out./dez. 2012 637
MORAIS, T.R.; MORAIS, M.R. • Doação de órgãos: é preciso educar para avançar
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Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 633-639, out./dez. 2012 639
ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
Geisa Cristina Modesto Vilarins1; Helena Eri Shimizu2, Maria Margarita Urdaneta Gutierrez3
1
Mestre em Ciências da Saúde pela
Universidade de Brasília (UnB) – Brasília (DF),
RESUMO Entre os vários instrumentos de gestão utilizados no Sistema Único de Saúde
Brasil.
ggvilarins@gmail.com
(SUS), a regulação tem sido tratada com maior relevância. Este estudo objetivou uma re-
2
Pós-Doutora em Enfermagem pela
visão sobre o tema regulação em saúde e sua potencialidade para a execução das ações
Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS)
– Brasília (DF), Brasil. Professora Associada do
sanitárias. Foram selecionados 48 artigos, publicados em diversas bases de dados online,
Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade
de Ciências da Saúde da Universidade de
entre os anos 1989 e 2011. Por ser um mecanismo de equilíbrio entre oferta e demanda,
Brasília (UnB) – Brasília (DF), Brasil.
shimizu@unb.br a regulação busca a disponibilização de serviços e recursos assistenciais adequados às
3
Doutora em Saúde Pública pela Escola necessidades da população, garantindo um acesso de qualidade baseado nos princípios
Nacional de Saúde Pública da Fundação
Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ) – Rio de norteadores do SUS.
Janeiro (RJ), Brasil. Professora Adjunta do
Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade
de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília
PALAVRAS CHAVE: Regulação em saúde; Acesso aos serviços de saúde; Gestão em saú-
(UnB) – Brasília (DF), Brasil.
urdanetamm@gmail.com de; Política pública de saúde.
ABSTRACT Among the various management tools used in the Unified Health System (SUS), re-
gulation has been treated with greater relevance. This study aimed to review the issue on health
regulation and its potential for implementation of health activities. Forty-eight articles were se-
lected, published in several online databases, between 1989 and 2011. Because it is a balancing
mechanism between supply and demand, regulation seeks the provision of healthcare services
and resources tailored to the needs of the population, ensuring access to quality based on the
guiding principles of SUS.
KEYWORDS: Health regulation; Health services accessibility; Health management; Health pu-
blic policies.
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VILARINS, G.C.M.; SHIMIZUI, H.E.; GUTIERREZ, M.M.U. • A regulação em saúde: aspectos conceituais e operacionais
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VILARINS, G.C.M.; SHIMIZUI, H.E.; GUTIERREZ, M.M.U. • A regulação em saúde: aspectos conceituais e operacionais
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VILARINS, G.C.M.; SHIMIZUI, H.E.; GUTIERREZ, M.M.U. • A regulação em saúde: aspectos conceituais e operacionais
Nesse contexto, o Estado pode transferir ações públicos como um poderoso instrumento de gestão. To-
para o setor privado ou agir em parceria com agentes davia, há que se debater a utilização desse instrumento
sociais. Transforma-se, portanto, o antigo Estado cen- sob a ótica da transição do Estado provedor para o Esta-
tralizador da produção do bem público em um moder- do garantidor da produção dos serviços públicos, visto
no Estado coprodutor, mas ainda na condição de res- que a regulação interfere na prestação desses serviços.
ponsável último por sua produção. Sob essa lógica, a função reguladora do Estado é
Logo, a regulação pode ser vista como a influência fundamental para harmonizar e articular a oferta e a de-
deliberada e propriamente dita do Estado em qualquer manda, pois a intervenção estatal na saúde seria a única
área ou setor que influencie a sociedade. O papel do forma de otimizar a alocação dos escassos recursos dis-
Estado, ao se utilizar da regulação, é o de definir os cri- poníveis para a sociedade (CASTRO, 2002).
térios de organização e prestação dos serviços, estabe- Por conseguinte, a regulação, além de se referir
lecendo prioridades, além de elaborar as regras para a aos macroprocessos de regulamentação, também defi-
atuação dos mercados. ne os mecanismos utilizados na formatação e no dire-
A ação do Estado em função do interesse público cionamento da assistência à saúde propriamente dita
é observada quando a regulação, basicamente, se referir (ANDREAZZI, 2003).
à ação de uma agência pública sobre serviços de valor Registra-se que alguns países têm se preocupado
para a coletividade. Essa ação presume uma autoridade mais enfaticamente com a questão da regulação em saú-
pública formalmente constituída que centraliza as ações de. A Bulgária, por exemplo, compartilha com muitos
de regulação, atuando por fora das relações comerciais e outros países da Europa Central e da Oriental o desafio
governamentais (WALSHE, 2003). de passar de um sistema de saúde em que o Estado era
Indistintamente, no Brasil, segundo Ibanhes et al o principal financiador e fornecedor de serviços de saú-
(2007), a regulação tem como fundamentação a macro- de para um sistema mais pluralista, com uma variedade
política de ajuste econômico, de viés neoliberal, a partir de fontes de financiamento, incluindo um sistema de
da privatização de setores estratégicos como as áreas de seguro de saúde e um papel mais forte do setor privado.
energia, telecomunicações, petróleo e gás, vigilância sa- Para tanto, a regulação do acesso foi utilizada como ins-
nitária e saúde suplementar. trumento de gestão sobre os prestadores de serviços em
Portanto, um Estado regulador apresenta como saúde para se estabelecer um sistema de financiamento
características primordiais a definição de grandes orien- sustentável (RECHEL; BLACKBURN; SPENCER,
tações e alvos a serem alcançados no estabelecimento de 2011).
políticas públicas, além de um sistema de monitorização Na Inglaterra, a regulação, além de fornecer acesso
e de avaliação para a análise dos resultados esperados. aos serviços de saúde, é considerada também um instru-
mento na gestão de reclamações sobre a saúde pública,
disponibilizando dados para os serviços de ouvidoria
A regulação em saúde e de assistência social (HOLMES-BONNEY, 2010).
Outro ponto considerado no Serviço Nacional Britâ-
A garantia do acesso da população aos serviços públi- nico de Saúde (NHS) é que a regulação traz consigo
cos de saúde a uma assistência qualificada, por meio o ônus de prestar as informações para auditoria e fis-
de uma rede organizada de serviços, requer a atuação calização, além de respaldar a prestação de contas dos
direta do Estado na busca do estabelecimento de regras serviços de saúde.
definidas para atuação dos mercados, o que configura a No Brasil, o debate mais aprofundado com rela-
passagem de um Estado prestador para um Estado re- ção ao conceito, às práticas e às finalidades da regula-
gulador, de fato. ção, do controle, da avaliação e da auditoria em saúde
Como efetivador das políticas públicas em saú- iniciou-se a partir de 2001 com as Normas Operacio-
de, o Estado utiliza a regulação do acesso aos serviços nais de Assistência à Saúde (NOAS). As NOAS SUS
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 640-647, out./dez. 2012 643
VILARINS, G.C.M.; SHIMIZUI, H.E.; GUTIERREZ, M.M.U. • A regulação em saúde: aspectos conceituais e operacionais
01/2001 ampliam a responsabilidade dos municípios Sanitária (ANVISA), com vistas a atuar não em um
sobre a atenção básica e reservam à União e aos Estados setor específico da economia, mas em todos os setores
a gestão da média e da alta complexidade dos serviços relacionados a produtos e serviços que podem afetar a
públicos de saúde. saúde da população brasileira. Uma das singularidades
A regulação no SUS ganha força após o Pacto de dessa Agência é a sua competência tanto na regulação
Gestão (2006), que tem como principal finalidade a econômica do mercado (definição de preços e moni-
busca de maior autonomia para os estados e municí- toramento do mercado) quanto na regulação sanitária
pios no que tange aos processos normativos do SUS, (registros de medicamentos, por exemplo).
definindo a responsabilidade sanitária de cada esfera de Outra agência reguladora criada foi a Agência
governo e tornando mais claras as atribuições de cada Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por meio da
uma, contribuindo, assim, para o fortalecimento da Lei nº 9.961/00, com a finalidade de regulamentar os
gestão compartilhada. planos privados de saúde. Ela tem desenvolvido meca-
Portanto, permanece a convicção de que o Esta- nismos tanto para as formulações de políticas públicas
do possui autoridade sobre os provedores de serviços de saúde quanto para a busca de melhor atendimento
– públicos e privados – para regular suas atividades, do beneficiário, com o intuito de procurar melhor ba-
de modo a reduzir os custos de operação do sistema, lanceamento entre os procedimentos de mercado das
garantindo aos cidadãos um atendimento gratuito de operadoras e os direitos da sociedade de receber melhor
qualidade (ARRETCHE, 2003). qualidade na assistência à saúde (DIAS, 2004).
Ademais, o processo de regulação poderá inter- Com o entendimento do Ministério da Saúde
relacionar a coordenação de atividades, a alocação de (BRASIL, 2005, p. 318) e a anuência do Conselho Nacio-
recursos e a administração de conflitos, além de utilizar nal de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS),
diferentes técnicas, voltado para a busca de equilíbrio a regulação é definida, então, como um conjunto de
entre oferta, demanda e financiamento, com o objetivo relações, saberes, tecnologias e ações que intermedeiam
de alcançar a eficiência e a equidade. a demanda dos usuários por serviços de saúde e o acesso
Apesar disso, a prestação de serviços na área da a estes.
saúde apresenta-se como um dos setores mais pro- Criada em 2008, a Política Nacional de Regulação
blemáticos para o exercício da regulação pelo Estado. do Ministério da Saúde (BRASIL, 2008) objetiva, pre-
Regular não se resume ao ato de regulamentar, mas cipuamente, promover o acesso equânime, universal e
também inclui uma gama de ações que verificam se a integral dos usuários ao SUS. Não em uma lógica mera-
produção em saúde se dá conforme as regras estabeleci- mente financeira, a regulação em saúde contribui para
das (SHILLING; REIS; MORAES, 2006). otimizar a utilização dos serviços, em busca da qualida-
A regulação controla não só o cumprimento das de da ação, da resposta adequada aos problemas clínicos
leis para a proteção dos indivíduos e das comunidades e da satisfação do usuário, sem que haja, para tanto, a
carentes, como também controla a qualidade dos ser- fragmentação do cuidado.
viços. Claramente, a regulação tem um papel impor- No estado de Minas Gerais, a regulação é vista
tante na proteção da população, impedindo fraudes e como um conjunto de regras impositivas de proteção
garantindo padrões mínimos de qualidade dos serviços com vistas ao monitoramento e ao controle dos serviços
de saúde (SCRIVEN, 2007). Trata-se de um processo prestados. Nesse plano, o objetivo pode ser de caráter
pelo qual a atividade do setor público e as forças de social ou econômico, e, em geral, visa a encorajar ativi-
mercado são direcionadas para o bem público (JEWEL; dades consideradas úteis (MENICUCCI, 2005).
WILKINSON, 2008). Em consonância, na região metropolitana de São
Neste sentido, no final dos anos 1990, por meio Paulo, a regulação da saúde pública é apontada como
da Lei nº 9.782/99, criou-se a primeira agência regula- possuidora de um caráter racionalizador dos serviços
dora social no Brasil: a Agência Nacional de Vigilância complementares e suplementares (FIANI, 2004).
644 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 640-647, out./dez. 2012
VILARINS, G.C.M.; SHIMIZUI, H.E.; GUTIERREZ, M.M.U. • A regulação em saúde: aspectos conceituais e operacionais
Como forma de operacionalizar o processo de re- Contudo, torna-se imperativo que o processo
gulação do acesso aos serviços de saúde, observa-se a regulatório deva ser flexível para permitir sua ade-
criação de várias centrais em todo o país nas seguin- quação às peculiaridades municipais, respeitando as
tes áreas: urgência e emergência, consultas e exames especificidades locais, ao mesmo tempo que subsidie
de média e alta complexidade, internações clínicas decisões sobre macropolíticas regionais e interseto-
ou cirúrgicas e em terapia intensiva, transplantes, riais (CAVALCANTE, 2003).
obstetrícia e neonatal, entre outras (EVANGELIS- Caracteriza-se, portanto, como um instrumen-
TA; BARRETO; GUERRA, 2008). to de gestão com potência para sinalizar, de forma
Como exemplo, tem-se o Complexo Regulador sistematizada, os pontos de estrangulamento com
do Distrito Federal, institucionalizado em 2009, ape- vistas à consolidação do acesso às tecnologias de saú-
sar de as atividades de cunho regulatório terem sido de existentes de forma mais equitativa e justa para a
iniciadas em 2006. Tal serviço é responsável por um população.
conjunto de estratégias e ações definidas em um pla-
no de regulação assistencial, para todos os níveis de
complexidade, visando à organização efetiva de uma Considerações finais
rede pública articulada hierarquicamente, a partir do
planejamento estruturado em bases regionais. Tem a Nota-se a nítida polissemia do termo regulação,
missão de fornecer o acesso devido aos usuários, por entretanto, é na área econômica que o mesmo en-
meio de centrais de regulação na área ambulatorial, contra maior ressonância, como um instrumento de
nas especialidades de dermatologia, oftalmologia, ra- equilíbrio entre oferta e demanda, de modo a ofere-
diologia e cardiologia, e na área de internação, com cer eficiência ao sistema com geração de resultados
ênfase no acesso aos leitos de terapia intensiva. positivos.
Outro modelo é a central de regulação no es- Na área da saúde, a literatura demonstra que,
tado do Ceará, sediada em Fortaleza, voltada para a sob o aspecto da oferta, a regulação busca a dispo-
regulação do acesso à terapia intensiva, com a dispo- nibilização de serviços e recursos assistenciais ade-
nibilização de leitos públicos e privados. Um estudo quados às necessidades da população, com base em
desenvolvido nesse cenário discute a relação entre o critérios epidemiológicos, mas que ainda encontra-se
público e o privado na prestação dos serviços, além incipiente no SUS. Sob a ótica da demanda, a regula-
de abordar o papel do Estado e da sociedade civil na ção busca qualificá-la, disponibilizando o serviço de
exigência de um controle efetivo sobre a utilização saúde mais adequado ao usuário, em momento opor-
dos serviços oferecidos (CAVALCANTE; OLIVEI- tuno, equânime, e pautado por critérios de prioriza-
RA, 2011). ção de riscos, o que também requer aprimoramentos.
Sob o prisma da equidade na assistência à Deve-se pensar na regulação em saúde sempre
saúde, a regulação é imprescindível e sua finalidade é no contexto dos princípios norteadores do SUS, e
assegurar que se atinjam os grandes objetivos sociais não apenas como forma de racionalizar os recursos
do sistema de saúde, equilibrando as numerosas fa- existentes. Sob essa lógica, o processo regulatório
lhas de mercado e/ou falhas do governo que caracte- deverá estabelecer um redimensionamento da oferta
rizam esse setor (FARIAS, 2011). (diminuição ou expansão), qualificando a utilização
Não obstante, o processo de regulação do acesso dos recursos assistenciais e financeiros e coibindo flu-
aos serviços de saúde pode constituir-se em um po- xos paralelos, baseados em relações pessoais e outros
deroso instrumento de intervenção na realidade sa- critérios não científicos ou não pactuados.
nitária, permitindo às instâncias de gestão estadual, Destarte, o papel da regulação revela-se impe-
municipal e federal regular o perfil assistencial mais rativo ao promover a articulação e a integração das
adequado às necessidades de saúde. atividades de regulação com as ações de fiscalização,
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 640-647, out./dez. 2012 645
VILARINS, G.C.M.; SHIMIZUI, H.E.; GUTIERREZ, M.M.U. • A regulação em saúde: aspectos conceituais e operacionais
controle, avaliação e auditoria nos diversos níveis de Promove, assim, a equidade do acesso e garante a
complexidade da assistência dentro de uma rede hie- integralidade da assistência de forma universal e orde-
rarquicamente organizada. E, ao garantir o acesso dos nada, segundo os princípios do SUS. Torna-se, então,
usuários aos serviços de saúde, atua sobre a oferta dos um instrumento de gestão pública imprescindível para
mesmos e estabelece a adequação dessa oferta às neces- garantir maior efetividade às ações desenvolvidas pelos
sidades identificadas. sistemas de saúde.
Referências
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ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
1
Pós-Doutoranda em Saúde Coletiva
pela Universidade Estadual de Campinas
RESUMO O objetivo deste estudo é efetivar uma revisão de literatura a partir dos perten-
(UNICAMP) – Campinas (SP), Brasil.
Professora do Departamento de Serviço
cimentos identitários, sobretudo das características relacionadas a etnia e gênero e suas
Social da Universidade Federal do Piauí (UFPI)
– Teresina (PI), Brasil.
intersecções com a saúde mental. Fundamenta-se na concepção de identidade de Anto-
luciacsrosa@yahoo.com.br
nio Carlos Ciampa e nas variáveis sombra enfatizadas por Benedeto Saraceno. Promove-
2
Doutora em Saúde Coletiva pela
se um balanço do estado da arte a partir de levantamento no SciELO, Medline e LILACS.
Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) – Campinas (SP), Brasil..Professora Conclui-se que a maioria dos estudos volta-se para temáticas relacionadas à mulher. A
do Departamento de Saúde Coletiva
da Universidade Estadual de Campinas violência contra a mulher ganha proeminência nas suas repercussões negativas sobre a
(UNICAMP) – Campinas (SP), Brasil.
rosanaoc@mpc.com.br saúde emocional, sendo destacada a sua condição de vítima.
PALAVRAS CHAVE: Gênero; Etnia; Cidadania; Saúde mental.
ABSTRACT The goal of this study is to carry out a literature review based on identity belon-
gings, especially characteristics related to ethnicity and gender as well as its intersections in
mental health. It is based on the concept of identity by Antonio Carlos Ciampa and variable
shadow emphasized by Benedeto Saraceno. It promotes a balance of state of the art from the
survey conducted by Scielo, Medline and Lilacs. It is concluded that the majority of studies turns
to themes related to a woman. It is concluded that the majority of studies turns to themes re-
lated to the female. Violence against women gained prominence in their negative impact on
emotional health, highlighting her victim condition.
KEYWORDS: Gender; Ethnicity; Citizenship; Mental health.
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ROSA, L.C.S.; CAMPOS, R.T.O. • Etnia e gênero como variáveis sombra na saúde mental
destacando-se, no escopo deste estudo, o gênero acres- articulações que permitam produzir mais vida, recrian-
cido com as dimensões étnico-raciais, que se constitu- do e investindo em outras identidades. As categorias
íram, associados aos condicionantes de classe social, as em apreço exigem interlocuções seminais com outros
bases fundantes das desigualdades que historicamente campos de saber, constituindo, assim, uma exigência
marcaram a dinâmica da sociedade brasileira. interdisciplinar.
O presente estudo baseou-se no levantamento do ‘esta- Rabelo e Tavares (2008), em análise da literatura que
do da arte’ ou ‘estado do conhecimento’, como define processam sobre as interfaces entre saúde mental e gê-
Ferreira (2002), isto é, “mapeou e discutiu a produção nero, informam que duas tendências predominam teo-
acadêmica (...) na perspectiva de informar os aspectos ricamente. Uma voltada para a epidemiologia, compa-
e dimensões” mais privilegiados e destacados remetidos rando a distribuição desigual dos transtornos mentais
às dimensões de gênero e etnia na interface com a saúde entre homens e mulheres. As mulheres seriam mais
mental, contextualizando o que se materializou até o vulneráveis aos transtornos mentais leves, sobretudo à
ano 2011. Privilegiou-se a produção científica (artigos, depressão. De outro lado, os estudos de natureza so-
teses e outros) disponibilizada em português, eletroni- ciológica, colocando em enlevo a violência, evidenciam
camente, na Bireme (Biblioteca Virtual em Saúde), a como os atravessamentos de gênero influenciam o pro-
qual abrange como base de dados a LILACS, o Me- cesso saúde-doença.
dline e o SciELO (acessado em 28 de junho de 2012), Com o mapeamento realizado, o resultado confir-
empregando-se por descritores os termos etnia, saúde mou tais inclinações entre os estudos, acrescentando-se
mental, mulher, homem e gênero. Enfocando as cate- novos itens e olhares. Identificaram-se duas vertentes
gorias étnico-racial e saúde mental, nenhum artigo em envolvendo as dimensões de gênero. De um lado, os es-
português foi localizado. O emprego dos descritores tudos dirigidos para a questão de gênero com primazia
saúde mental, mulher, gênero resultou em 29 textos, sobre o polo considerado historicamente dominado da
descartando-se 9 em função de: 7 textos completos não relação, ou seja, as mulheres, com 15 textos. Destes, 9
estarem disponíveis; um por ser uma repetição de outro tratam diretamente da violência contra a mulher, pre-
existente, e um outro em função de o conteúdo não ponderando a violência entre parceiro íntimo/conjugal
fazer conexão com as categorias em tela. (em 8 deles).
O tipo de produção predominante foi constituída De um modo geral, é possível afirmar que nesses
de artigos, em número de 12; 7 teses; e 1 dossiê. estudos a categoria gênero ressaltou a vulnerabilidade
A análise de conteúdo, na sua vertente temática, da mulher em um contexto relacional envolvendo as
foi empregada para tratamento do material acessado. hierarquias sociais/relações de poder.
Discutir os pertencimentos identitários de gênero Uma segunda perspectiva explora outras orienta-
e etnia pode permitir ampliar a análise dos indicadores ções sexuais, sobretudo a transexualidade e as mulheres
de avaliação na democratização de acesso e permanência lésbicas, despatologizando olhares e resignificando a vi-
nos serviços de saúde, a partir de tais categorias. Ainda vência deste segmento.
permite avaliar a distribuição dos transtornos mentais e Apenas um texto, de autoria de Grubits e Dar-
de seus agravos conforme o gênero e a etnicidade. Possi- rault-Harris (2003), traz à baila questões étnico-raciais,
bilita também apreender outras identidades igualmen- a partir da população indígena.
te tendentes à estigmatização social que, somadas ao A violência contra a mulher ganha realce, pois, his-
transtorno mental, podem agravar a condição social da toricamente, na sociedade moderna capitalista, a partir
pessoa com transtorno mental ou potencializar outras da institucionalização da divisão sexual do trabalho que
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reforçou relações assimétricas, inclusive reforçadas de coleta de dados, bem como possibilita replicar es-
por todo aparato jurídico estatal, a mulher ocupou tudos ou compará-los, inclusive, transculturalmente.
um lugar subordinado, sendo frequentemente vítima Para tanto, há necessidade de validá-los, o que é
da violência em suas várias dimensões e contextos. tratado no artigo de autoria de Schraiber et al. (2010)
Primeiramente, por não ser considerada cidadã, o com relação ao WHO VAW, para estimar a violência
que passa a ocorrer no contexto brasileiro a partir dos de gênero contra a mulher, tendo por base empírica
anos 1930, com o direito ao voto. São Paulo e a Zona da Mata de Pernambuco. Os
Com o revigoramento da sociedade civil, na dé- autores concluem que tal instrumento é adequado
cada de 1970, emergem o movimento de mulheres e para estimar a violência, para qual foi produzido,
o movimento feminista, que passam a dar visibilidade apresentando alta consistência interna, e discrimina
a várias demandas para alterar a condição feminina os diferentes tipos de violência: psicológica, física e
na sociedade brasileira, lutando contra sua opressão sexual, os quais, tanto no contexto brasileiro quan-
(PINTO, 2003) e por igualdade de direitos de ho- to no internacional, se superpõem.
mens e mulheres. Muñoz (2010), buscando entender a violência
Há várias conquistas em termos de políticas contra a mulher no Brasil do início do século XX,
públicas, uma delas materializada na institucionali- investe no caso Elza, uma alemã de classe média alta
zação, em 2004, do Programa de Atenção Integral à que o marido, em conluio com todo aparato médi-
Saúde da Mulher (PAISM). Mas os avanços ocorrem co e policial, interna por não aceitar o seu pedido
de maneira contraditória, com a persistência da vio- de divórcio, recebendo diagnóstico de ‘degeneração
lência contra um número significativo de mulheres e atípica’. Torna-se um caso emblemático por colocar
da pouca ampliação da participação dos homens em em xeque a ordem patriarcal.
arenas que permanecem com nichos femininos, como Esse é um caso paradigmático que se sintoniza
o trabalho doméstico não remunerado. com o consenso dos estudiosos de que a violência
Desde 1991, a Organização Pan-Americana da remete à saúde psíquica da mulher. Tal fato se es-
Saúde reconhece a violência como causa do adoeci- pelha também nos diferenciais de prevalência dos
mento das mulheres. Para a ONU, violência de gê- transtornos mentais em mulheres, como constata
nero é Arôca (2009), destacando que entre elas predomi-
nam os transtornos mentais comuns que, nas ca-
[...] qualquer ato de violência baseada no gê- madas populares, são associados ao ‘sofrimento dos
nero que resulte ou possa resultar em dano ou nervos’.
sofrimento físico, sexual ou psicológico a uma Os danos impostos à mulher podem repercutir
mulher, incluindo ameaça de tais atos, coerção, igualmente na vida dos filhos, sendo, portanto, um
privação arbitrária da liberdade, seja no âmbi- dos determinantes no processo saúde-doença para
to publico ou privado. (UNITED NATIONS algumas famílias.
GENERAL ASSEMBLY, 1993). Oliveira (2008) informa que “[...] as mulheres
com história de violência apresentaram uma densi-
Ela pode vitimizar homens, mas seu alvo prin- dade de incidência de desmame 35% maior do que
cipal são as mulheres, sendo seu perpetrador um ho- as não expostas” (p. 10), concluindo que a violência
mem, comumente do círculo próximo. física grave na gestação constitui “[...] um fator de
A violência muito frequentemente causa pre- risco para a interrupção precoce” (p. 72) do aleita-
juízos psicossociais à mulher, tais como isolamento mento materno exclusivo.
social, maior dependência econômica, entre outros. Durand et al. (2011), ao explorar a repercus-
Há vários instrumentos para mensurar a violência são da exposição à violência por parceiro íntimo no
contra a mulher, o que permite padronizar as formas comportamento do filho, conclui que a
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VPI mostrou-se fortemente associada aos pro- Madge Porto (2006), ao avaliar o que pensam os
blemas de comportamento dos filhos e a força gestores municipais do SUS sobre o atendimento psi-
dessa associação foi crescente, conforme a gra- cológico envolvendo a violência contra a mulher, cons-
vidade da violência e o número de problemas tata que aqueles dissociam tal procedimento da Política
considerados. (p.359). municipal de saúde mental, havendo uma tendência
de psicologização da questão, reduzida ao atendimento
Diante do quadro de vulnerabilidade da mulher, psicológico. Na análise da autora, o atendimento psico-
das dificuldades dos serviços de saúde e do sentimento lógico figura como uma intervenção isolada, desvincu-
de impotência dos profissionais em oferecer uma assis- lada de questões de saúde mais amplas, como a saúde
tência resolutiva, algumas pesquisas focalizam a forma- mental ou mesmo a saúde da mulher.
ção de pessoas para esse tipo de intervenção. Vislumbrando a necessidade de ampliação do
Pedrosa e Spink (2011) mostram o quão distante foco da atenção, Ballarin et al. (2008) constatam as di-
das grades curriculares e da formação médica esse recor- ficuldades da atenção integral à saúde da mulher com
te se encontra, o que promove uma dissociação entre as transtorno mental, que requer ações intersetoriais dada
queixas das mulheres com relação às suas vivências da a associação da enfermidade com a pobreza, com as
violência. Segundo as autoras, os registros em prontuá- sobrecargas em múltiplas arenas, a violência, a discri-
rios se resumem aos sintomas e prescrições biomédicas, minação, entre outros. Os autores mostram as dificul-
ignorando o contexto de vida destas mulheres que ten- dades das mesmas em conseguir exames ginecológicos
dem a sofrer com a violência institucional perpetrada com regularidade, sendo, em muitas circunstâncias,
por práticas profissionais que, atravessadas por diferen- expostas à gravidez indesejada; ao câncer de mama e
ças de classe social, desconsideram a pobreza e as múl- à perda do ‘poder familiar’ sobre os filhos pela precária
tiplas exclusões a que são submetidas, desconsiderando atuação promotora da integralidade.
suas repercussões no processo saúde-doença-cuidado. Alguns estudos, na perspectiva de superar a visão
Por sua vez, Angulo-Tuesta (1997) analisa as re- de impotência dos profissionais e a meramente vitimi-
presentações sociais dos profissionais de dois serviços zatória das mulheres, apostando na promoção de qua-
de atenção primária (Centros de Saúde e Programa Mé- lidade de vida, fortalecendo o protagonismo e o empo-
dico de Família), bem como o papel que os mesmos deramento, investem em ações assistenciais inovadoras,
desempenham diante desse tipo de violência. As dife- recortadas pela categoria gênero.
renças constatadas na assistência prestada entre os servi- Faúndes et al. (2006) propõem procedimentos
ços são imputadas aos diferentes modelos organizativos, e formas de atuação profissional para vitimas de estu-
favorecedores ou não da atenção integral à mulher em pro para além das ações pontuais de emergência e dos
situação de violência de gênero. protocolos. Incorporam ações de seguimento e orien-
Os profissionais admitem que nos atendimentos, tação para os diferentes públicos. Tal proposta emerge
no geral, as mulheres silenciam sobre a violência de da identificação da falta de preparo de ginecologistas e
gênero, mas, contraditoriamente, intensificam a pro- obstetras para atuarem nesse cenário. Insistem na im-
cura por serviços de saúde, sendo estereotipadas como portância da atenção psicológica e de pessoal.
‘poliqueixosas’. No Programa Médico de Família, pelo Neves e Cabral (2008), ao analisarem a centrali-
fato de a própria organização do processo de trabalho dade da mãe no cuidado de crianças com necessidades
acontecer na comunidade, com acompanhamento lon- especiais em saúde, identificam o peso das sobrecargas
gitudinal, os profissionais têm maior facilidade em con- que a oprimem, expresso em isolamento social, desgaste
firmar suspeita de violência contra a mulher. E com- físico e mental. No afã de se empoderar individualmen-
preendem a violência como um “problema complexo te, essas mulheres se apoiam na expectativa social de
e delicado” (p.130), apresentando dificuldades em sua que se construam como ‘boas mães’, abnegadas e com
abordagem e manejo. dedicação incondicional aos filhos.
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Como constatam as autoras, tal estratégia é refor- do alcoolismo e do cuidado em saúde. Há modificação
çada pelos profissionais dos serviços de saúde ao limitar da autoimagem social da mulher alcoolista pelo “apre-
o papel social das mulheres à ‘mãezinhas’, reduzindo sentar, ensinar e trabalhar”, e pela nova compreensão
sua identidade à maternidade. Suprimem, assim, sua de que “são capazes, mesmo sendo alcoólatras” (p.110).
condição feminina. Panoramicamente, observa-se a emergência de al-
As autoras observam que a troca de experiências terações substanciais na produção acadêmica, que passa
entre mulheres que vivenciam situação limite configura de uma abordagem preponderantemente vitimizatória
fonte coletiva de empoderamento, propiciando repen- das mulheres para outra em que novos desenhos assis-
sar a produção de um tempo para si, o que, por sua vez, tenciais são traçados, bem como a produção de coleti-
a revigora na própria tarefa de cuidar. vos de pessoas que vivenciam situação em comum se
Rabelo e Tavares (2008), explorando uma expe- constrói, ampliando o fortalecimento da cidadania, o
riência entre CAPS e ESF, mostram a associação entre protagonismo.
sofrimento e relações sócio-afetivas com o objetivo de O acumulo teórico permitiu um bom diagnóstico
questionar o uso de ansiolíticos entre as mulheres. Ao da situação da saúde na mulher na sociedade, princi-
buscar redirecionar o encaminhamento da abordagem palmente a partir do processo de redemocratização da
das mulheres, capacitando equipes, reencaminham sociedade brasileira. Com a democracia consolidada e
a abordagem para o que está subjacente ao uso ou à o Estado ampliado, incorporando a sociedade civil, a
demanda por ansiolíticos. Ou seja, a subordinação das necessidade de intervenções mais propositivas parece se
mulheres aos maridos, considerados “homens carra- evidenciar, alargando as possibilidades de construção de
patos”, ou seja, “um homem que a massacra e que a novos processos de trabalho em saúde.
impede de viver a própria vida, um homem cuja ação Observa-se, ainda, nos textos analisados o predo-
se limita a sugar o sangue da mulher” (p. 140). Como mínio de uma tendência de leitura focada nas mulheres
resposta de saída individual, recorre a serviços de saúde de maneira una e homogeneizadora, sem destacar, por
visando a aplacar seu sofrimento, tendo por retorno a exemplo, outros pertencimentos, tais como étnico-ra-
medicalização. Com essa experiência, desenha-se a pos- ciais, etários/intergeracionais ou mesmo de classe social.
sibilidade de redirecionar a intervenção. Aliás, questões étnicas aparecem em apenas um texto,
No mesmo diapasão se situa a tese de Barbosa com relação à população indígena, e sem conexão direta
(2008), que analisa o trabalho com um grupo terapêu- com a saúde mental.
tico voltado para mulheres alcoolistas, sob o foco da Nesse contexto, destaca-se a importância de evitar
redução de danos. A grupalização promove uma me- leituras homogeneizantes da vivência, quer masculina
lhora na imagem de si e fomenta novas práticas em saú- ou feminina, haja vista que o próprio movimento femi-
de. Como espaço, inclusive, lúcido e intermediado por nista reconhece a pluralidade da vivência e das identi-
ações de geração de renda, tais como a oficina de biju- dades das (e entre) mulheres.
teria, alimentação viva, produção e exibição de vídeos e Em suma, o que está posto como desafio é a des-
atividades de expressão como o canto, a dança e o tea- construção da medicalização da mulher, o que deman-
tro, o cuidado é diferenciado segundo a ótica de gêne- da outra organização dos serviços de saúde e o forta-
ro. As mulheres aprendem novas habilidades, inclusive lecimento de seu protagonismo social para além de
relacionais, a ‘saber fazer’; se identificam com a proble- experiências pontuais e episódicas e da saúde.
mática das outras, o que permite um repensar sobre a Outro grupo de estudos se dedica às mulheres
vida e as estratégias de enfrentamento de problemas ou sob outros prismas, promovendo estudos comparativos
de certas dificuldades pessoais, como a timidez. Além com a realidade masculina em vários cenários.
de fomentar a interação com um público fora do es- É consensual na literatura o reconhecimento das
paço clínico, através da exposição e da comercialização diferenças na prevalência de transtornos mentais entre
de produtos, a experiência forja uma nova abordagem homens e mulheres. Andrade, Viana e Silveira (2006),
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ROSA, L.C.S.; CAMPOS, R.T.O. • Etnia e gênero como variáveis sombra na saúde mental
ao promoverem uma revisão de literatura, constatam espaço afetivo-familiar, enquanto os segundos busca-
que há diferenças de gênero na incidência, na preva- riam expandir sua relação com o espaço público para
lência e no curso dos transtornos mentais. As mulheres a cidade.
estariam mais propensas – 1,5 a mais – que os homens Alguns estudos concentraram a atenção nas con-
durante a vida a ter um transtorno mental. São mais dições de trabalho a partir da categoria gênero.
suscetíveis a apresentar sintomas ansiosos, depressivos, Rocha e Debert-Ribeiro (2001), ao efetivarem um
transtornos alimentares e a serem vítimas de situação de estudo comparativo entre homens e mulheres na pro-
violência de gênero, que, no geral, deixam como uma fissão de analistas de sistemas, com base na ergonomia,
das sequelas a depressão e o transtorno de estresse pós- observam alguns fatores em comum, produtores de pre-
traumático. Ansiedade e alterações de humor podem juízos à saúde física e mental. Destacaram: sobrecarga
se intensificar ou apresentar comorbidade em períodos de trabalho, pela demanda de realização em curto espa-
em que intensas alterações hormonais são esperadas, ço temporal; “alto grau de responsabilidade; exigência
tais como: pré-menstruais, puerpério e menopausa. Por mental do trabalho; e complexidade da tarefa” (p. 539).
sua vez, os homens apresentam maior prevalência de Distúrbios psicológicos foram igualmente detectados
transtornos relacionados ao uso indevido de substâncias em homens e mulheres. Todavia, as mulheres ganha-
psicoativas, ram proeminência na insatisfação com o trabalho, em
sintomas visuais e osteomusculares e na maior “preva-
transtornos de personalidade anti-social e es- lência da fadiga e dos sintomas de depressão, irritabili-
quizotípica, transtornos do controle de impul- dade e ansiedade” (p. 546). As diferenças negativas com
sos e de déficit de atenção e hiperatividade na relação às mulheres foram atribuídas às diferenças de
infância e na idade adulta. (p. 44). percepção subjetiva e à superposição de responsabilida-
des e tarefas envolvendo dois universos distintos, o do
apresentando também maiores taxas de suicídio. mercado formal de trabalho, remunerado, e o mundo
Tais diferenciais são atribuídos às particularidades bio- privado do trabalho doméstico, condensados na dupla
lógicas; a questões psicossociais; às diferentes pressões jornada de trabalho. Tal fator é gerador de sobrecarga,
sociais; às diferentes formas de enfrentar os problemas o que repercute na saúde física e mental das mulheres.
e de buscar soluções; e à maior facilidade da mulher Reafirmando tal entendimento, Vellozo (2010),
em detectar alterações na própria saúde e em procurar ao analisar como as condições de trabalho impactam na
ajuda nos serviços de saúde. saúde de mulheres que trabalham como motoristas de
Marín-León et al. (2007), ao ter como principal ônibus urbanos, também evidencia o fenômeno da du-
ferramenta uma lista com 17 problemas da comuni- pla jornada de trabalho, haja vista que o tempo de folga,
dade, a partir de variáveis sóciodemográficas, mostra a que seria dedicado ao descanso e ao lazer, é vivenciado
diferença de intensidade na leitura dos mesmos, apre- de maneira distinta em função do gênero. Os homens
sentada por homens e mulheres, concluindo que a “pro- são dispensados cultural e socialmente desse encargo.
porção de mulheres que caracterizaram os problemas da Em função da mesma sobrecarga, as mulheres alegam
lista como graves foi sempre maior que a dos homens” que não dispõem de tempo para exercícios físicos regu-
(p. 1091). Os autores interpretam tal divergência afir- lares, o que poderia melhorar as repercussões negativas
mando que as mulheres são mais influenciadas emocio- das condições de trabalho, haja vista que a principal
nalmente pelos problemas e falam mais sobre eles. ferramenta desse tipo de trabalho – o ônibus – foi pro-
Grubits e Darrault-Harris (2003), ao compara- jetada ergonometricamente para os homens.
rem duas comunidades indígenas e as manifestações de Condições de trabalho igualmente desfavoráveis
gênero a partir do desenho de crianças, identificam as para ambos os sexos, segundo a autora, “repercutem de
diferenças de comportamento e leitura de mundo en- modo distinto na saúde dessas pessoas’ devido às atri-
tre meninas e meninos: as primeiras mais associadas ao buições de gênero” (p. 64).
654 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 648-656, out./dez. 2012
ROSA, L.C.S.; CAMPOS, R.T.O. • Etnia e gênero como variáveis sombra na saúde mental
Este segundo aglomerado de estudos sobre a mulher masculino e feminino seriam pólos extremos de
confirma a visão anterior, vitimizatória. Mas, para além dis- um eixo contínuo do sexo, a existência de si-
so, mostra diferenças substanciais em termos epidemiológi- tuações intermediárias, como indivíduos com
cos, sinalizando para sua maior vulnerabilidade a agravos, o anatomia masculina e características físicas e/
que exige um outro olhar e uma outra conduta para esse seg- ou psicológicas femininas ou vice-versa, se tornou
mento. Indica, ainda, as diferenças substanciais na leitura de concebível. (p. 21).
mundo e de seus problemas entre pessoas do sexo masculino
e do sexo feminino, bem como o avanço das mulheres em Tais mudanças permitem a modificação do sexo
profissões até então consideradas nichos masculinos, o que pela via dos hormônios e das cirurgias plásticas (cirurgias
não deixa de impactar sua saúde. Na relação saúde-trabalho- de redesignação), o que tem sido assegurado pelo SUS.
gênero, a dupla jornada de trabalho destacou-se como per- Desloca-se, assim, o eixo analítico do sexo biológico para
sistente e prejudicial à saúde da mulher. o sexo psicológico, metamorfoseado à identidade de
Por fim, observa-se a ampliação das discussões de gê- gênero.
nero na produção acadêmica para além da vivência binária, Nesse contexto, as demandas feministas se alteram,
incorporando de maneira positiva outras orientações sexuais exigindo a “dissociação entre o exercício da sexualidade e
na perspectiva de resignificar olhares. a reprodução” (REDE NACIONAL FEMINISTA DA
Dois artigos priorizando outras orientações sexuais SAÚDE, 2006).
têm seu pioneirismo registrado através da temática dire- O ‘sexual’ é visto para além da violência. É associado
cionada para a despatologização da homossexualidade e da também ao bem-estar das pessoas, no cerne da ‘saúde se-
transexualidade (AMARAL, 2011). Outro volta-se para xual’, na compreensão de que a sexualidade é um direito.
as demandas da área da saúde pelo segmento de lésbicas O movimento social do segmento lésbicas, gays, bis-
(REDE NACIONAL FEMINISTA DA SAÚDE, 2006), sexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT), até
remetendo, inclusive, ao sofrimento implicado no precon- então centrado nos programas de AIDS/HIV, se expande
ceito e na discriminação socialmente imputados a esses gru- para outras arenas, pleiteando do SUS/Reforma Psiquiá-
pos minoritários. trica a incorporação do uso do nome social nos formulá-
Em sua tese, Amaral (2011) reconstitui toda trajetória rios e no cotidiano de atendimento dos serviços de saúde,
dos avanços tecnológicos/ científicos, a partir dos anos de e investimento em pesquisa e assistência em saúde mental
1950, que alteraram todo paradigma em torno do transe- do grupo, particularmente remetendo ao uso indevido de
xualismo, diferenciado desde então da homossexualidade e substâncias psicoativas e ao suicídio. Ações de combate
da travestilidade. à violência implicada com a homofobia são requeridas,
O transexualismo é concebido como sobretudo, no ambiente familiar e de trabalho.
A partir do levantamento bibliográfico efetivado
uma variação do gênero, cuja característica conclui-se que, apesar da ampliação da categoria gênero
principal seria o desejo de modificação do sexo, para outros segmentos sociais, observou-se que houve
[...] descrita como uma discordância entre o pouca diversificação da identidade das pessoas com trans-
sexo físico e a identidade de gênero, na qual torno mental, ganhando destaque a mulher em uma pers-
seria necessário reestabelecer este alinhamento. pectiva predominantemente vitimizatória. Dimensões
(p.25). étnicas são raramente exploradas. Outras dimensões da
identidade de gênero, tais como outras orientações sexu-
A autora reconstitui a emergência de uma nova ais, começam a ganhar visibilidade bem como o protago-
compreensão endocrinológica que indica que “todos nismo de coletivos sociais, inclusive de mulheres, o que
os organismos são, em termos químicos, potencial- aponta para a necessidade de mudanças na organização
mente de ambos os sexos” (p. 21), o que permitiu uma dos serviços e na relação dos mesmos com a sociedade
releitura em que em geral.
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 648-656, out./dez. 2012 655
ROSA, L.C.S.; CAMPOS, R.T.O. • Etnia e gênero como variáveis sombra na saúde mental
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656 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 648-656, out./dez. 2012
ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
Juliana Xavier Pinheiro da Cunha1, Jussiara Barros Oliveira2, Valéria Alves da Silva Nery3, Edite Lago da
Silva Sena4, Rita Narriman Silva de Oliveira Boery5, Sergio Donha Yarid6
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação
Enfermagem e Saúde da Universidade
RESUMO Objetiva-se analisar a literatura existente sobre a preservação dos aspectos éti-
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) –
Itapetinga (BA), Brasil.
cos da autonomia da pessoa idosa e as implicações na assistência de enfermagem. A busca
julianaxcunha@gmail.com
foi realizada através da Biblioteca Virtual em Saúde, no período de 2003 a 2011. Da análise
Mestranda do Programa de Pós-Graduação
emergiram três eixos temáticos: Visão social sobre o idoso; O princípio ético da autonomia
2
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 657-664, out./dez. 2012 657
CUNHA, J.X.P.; OLIVEIRA, J.B.; NERY, V.A.S.; SENAE.L.S.; BOERY, R.N.S.O.; YARID, S.D. • Autonomia do idoso e suas implicações éticas na assistência de enfermagem
658 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 657-664, out./dez. 2012
CUNHA, J.X.P.; OLIVEIRA, J.B.; NERY, V.A.S.; SENAE.L.S.; BOERY, R.N.S.O.; YARID, S.D. • Autonomia do idoso e suas implicações éticas na assistência de enfermagem
profissional de saúde decide a respeito do que é melhor Para isso, foram realizadas buscas na Biblioteca
para o paciente. Essas atitudes predominam de forma Virtual em Saúde – BVS, em publicações compreen-
acentuada nas práticas dos profissionais no cuidado aos didas entre os anos de 2003 e 2011. A delimitação do
idosos, por julgarem serem estes incapazes de decidir de recorte temporal da pesquisa teve por início o ano de
forma sensata a respeito de sua saúde. Nesse sentido, 2003, por ter sido o ano em que foi decretado e san-
pode ser afetado um dos princípios básicos da bioética, cionado o dispositivo legal de incentivo à preservação
que é o respeito à autonomia. da autonomia dos idosos brasileiros, a Lei Nº 10.741/
O respeito ao princípio da autonomia na assis- 2003, que aprovou o Estatuto do Idoso (BRASIL,
tência ao idoso deve levar o profissional de saúde, em 2003).
particular o da enfermagem, a considerar a capacidade Para seleção dos estudos, realizou-se uma análise
de escolha, crenças e valores morais do paciente. Isso prévia a partir da leitura dos títulos e resumos, a fim de
possibilita que o idoso exerça a sua autonomia e decida verificar se preenchiam os critérios de inclusão estabe-
entre as alternativas de cuidado que lhe são apresenta- lecidos: estudos completos em português, publicados a
das, a partir da compreensão clara das consequências de partir de 2003, que se adequassem a uma das questões
cada uma delas. norteadoras. Foram excluídos: conferências, capítulos
Dessa forma, busca-se, com este artigo, analisar de livros, assim como pesquisas que não tivessem rela-
a literatura existente sobre a preservação dos aspectos ção com a temática proposta.
éticos da autonomia da pessoa idosa e as implicações na Surgiram 85 estudos distintos a partir da união
assistência de enfermagem. entre descritores: “idoso”; “autonomia pessoal”; “cuida-
do de Enfermagem”; “ética” e “Enfermagem”. Porém,
ao se aplicarem os critérios de inclusão e exclusão, fo-
Método ram selecionadas 12 pesquisas que se aproximaram do
objetivo proposto. Essas foram salvas em arquivos doc e
Trata-se de uma revisão de literatura, realizada no pri- pdf, e armazenadas em pasta própria, analisadas crite-
meiro semestre de 2011, buscando-se responder as se- riosamente, identificadas conforme foco de investiga-
guintes questões norteadoras: o que a literatura eletrô- ção e objetivo do estudo.
nica apresenta acerca da preservação dos aspectos éticos Para nortear a discussão, foram identificados três
da autonomia da pessoa idosa? Quais as implicações eixos temáticos: visão social sobre o idoso; o princípio
da preservação dessa autonomia para a assistência de ético da autonomia para o idoso; e o respeito à autono-
enfermagem? mia na assistência de Enfermagem ao idoso.
Tabela 1. Estudos que contemplam a autonomia da pessoa idosa, publicados no período de janeiro de 2000 a junho de 2011
(N=12)
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CUNHA, J.X.P.; OLIVEIRA, J.B.; NERY, V.A.S.; SENAE.L.S.; BOERY, R.N.S.O.; YARID, S.D. • Autonomia do idoso e suas implicações éticas na assistência de enfermagem
VISENTIN; LABRONICI;
--------------------- --------------------- Revisão bibliográfica
LENARDT/ 2007
Trabalhadores que prestam
cuidados de enfermagem
REIS; CEOLIM/ 2007 Questionário Quantitativa
a idosos institucionalizados
GANDOLPHO; FERRARI/
--------------- --------------- Revisão bibliográfica
2006
MARTINS; RODRIGUES/
--------------- --------------- Revisão bibliográfica
2004
SANTOS; MASSAROLLO/
Enfermeiros Entrevista Quanti-qualitativa
2004
Idosos coordenadores e
responsáveis por duas
ALVES JÚNIOR/ 2004 Observação e entrevista Qualitativa
associações brasileiras e
duas francesas
Fonte: ALMEIDA; AGUIAR, 2011; TAMAI , 2011; FERNANDES; GARCIA, 2010; FLORES et al, 2010; OLIVEIRA; ALVES, 2012; VISENTIN; LABRONICI; LENARDT,
2007; REIS; CEOLIM, 2007; GANDOLPHO; FERRARI, 2006; MARTINS; RODRIGUES, 2004; SANTOS; EIDT, 2004; SANTOS; MASSAROLLO, 2004; ALVES JÚNIOR,
2004.
660 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 657-664, out./dez. 2012
CUNHA, J.X.P.; OLIVEIRA, J.B.; NERY, V.A.S.; SENAE.L.S.; BOERY, R.N.S.O.; YARID, S.D. • Autonomia do idoso e suas implicações éticas na assistência de enfermagem
buscou-se nesses estudos a compreensão dos estereó- aspectos fisiológicos, psicológicos, emocionais e sociais,
tipos que cercam a pessoa idosa e as implicações para o que gera, muitas vezes, um atendimento inadequado
a sua autonomia, a fim de contribuir para a discussão (REIS; CEOLIM, 2007).
frente à assistência de Enfermagem ao idoso. Desta maneira, o cuidado ao idoso fica compro-
A partir da análise, emergiram três categorias so- metido quando é fundamentado em uma visão social
bre a autonomia do idoso e as suas implicações éticas generalista e preconceituosa, que desconsidera as carac-
na assistência de enfermagem, que serão discutidas a terísticas individuais da pessoa idosa. Frente a isso, é
seguir. necessário que o tratamento destinado a essa população
seja especializado e livre de associações estigmatizantes,
o que possibilita ao idoso o exercício de sua autonomia
Visão social sobre o idoso (TAMAI , 2011).
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 657-664, out./dez. 2012 661
CUNHA, J.X.P.; OLIVEIRA, J.B.; NERY, V.A.S.; SENAE.L.S.; BOERY, R.N.S.O.; YARID, S.D. • Autonomia do idoso e suas implicações éticas na assistência de enfermagem
Muitas vezes, os profissionais de saúde não valorizam e configuram-se elementos impeditivos para que es-
o direito que o paciente tem de ser informado, pois, es- ses pacientes possam gerenciar o seu cuidado. Isso faz
tando mais esclarecido, fará reivindicações e não aceitará com que as pessoas idosas tornem-se dependentes dos
atitudes paternalistas. Com relação aos idosos, outro fator profissionais que cuidam de sua saúde e que decidem a
que dificulta o acesso às informações está relacionado aos respeito dela, e, por falta de preparo, muitas vezes, tais
estereótipos sociais que influenciam a prática do profissio- profissionais tendem a infantilizar o cuidado.
nal no cuidado à pessoa idosa; essa, por sua vez, não pode O tratamento infantilizado do idoso resulta de
ser anulada e tampouco ter o seu direito à informação uma comparação equivocada do tratamento afetivo e
desrespeitado, em função de estereótipos sociais que ge- respeitoso que é dado às crianças, concepção que apro-
neralizam os idosos como incapazes e dependentes; o fato xima velhos e crianças e que, por vezes, é inculcado no
de tratá-lo como uma pessoa que tem o direito de exercer imaginário social. Isso pode ser resultado, em parte, da
a sua autonomia possibilita uma relação respeitosa entre aparente fragilização e dependência dessa população, o
o idoso e o profissional (VISENTIN; LABRONICI; LE- que acaba por se manifestar na prática dos profissio-
NARDT, 2007). nais de enfermagem, no sentido de atuar de forma im-
Existe, enraizada na prática de muitos profissionais, perativa, não respeitando as decisões do idoso e nem
a visão de que a autonomia do idoso está diretamente as- lhe fornecendo informações suficientes sobre sua saúde
sociada à noção de dependência social e física. Eles des- (ALVES JUNIOR, 2004).
consideram o idoso como participante de seu processo de Ao agir dessa forma, o profissional acaba por vi-
vida e adoecer e o direito de ter conhecimento sobre sua timizar os idosos, ao utilizar expressões diminutivas e
condição de saúde, aspectos que interferem na tomada de infantilizadoras, acreditando que assim estará demons-
decisões pautadas na autonomia; enfim, adotam uma ati- trando afeto e compaixão. Muitas vezes, esses aspectos
tude paternalista (VISENTIN; LABRONICI; LENAR- se apresentam de forma velada na prática cotidiana
DT, 2007). do profissional de enfermagem, no momento em que
O paternalismo é definido como condutas realizadas concebe todo idoso como uma pessoa dócil, submissa
pelos profissionais que, julgando beneficiar o paciente, de- e conformada, o que, na verdade, contribui para que se
cidem por ele sem o seu consentimento. Em se tratando de diminua ainda mais a sua autonomia e independência
pessoas idosas, que estejam com suas capacidades cogniti- (REIS; CEOLIM, 2007).
vas preservadas, a atitude paternalista infringe uma regra Quando o profissional desrespeita a autonomia
ética, legal e moral (SANTOS; MASSAROLLO, 2004). do idoso, ele o submete a seus cuidados de forma au-
Vale ressaltar que os idosos que se identificam como toritária, fazendo com que muitos idosos apresentem
autônomos sentem-se mais valorizados e com a dignidade um comportamento passivo e pouco questionador; ao
preservada; e, para eles, a falta de respeito à sua autonomia contrário, é fundamental que a equipe de enfermagem
reflete diretamente na sua qualidade de vida. Mesmo que preserve a capacidade de decisão do idoso, garanta o
haja algum tipo de dependência, a autonomia pode ser vi- cuidado sob a perspectiva da integralidade e estabeleça
venciada no cotidiano do idoso, a partir do momento em um vínculo que resulte em uma assistência respeitosa e
que os profissionais consideram as suas escolhas e lhe dão digna; é imprescindível valorizar suas vivências e contri-
liberdade para agir (FLORES, 2010). buições, tratá-lo com atenção, amabilidade, paciência,
atendendo às suas necessidades biopsicossociais com
competência, estimulando o autocuidado, contribuin-
O respeito à autonomia na assistência de En- do para sua independência e autonomia (GANDOL-
fermagem ao idoso PHO; FERRARI, 2006).
Dessa forma, ao prestar assistência de enfermagem
Os estereótipos com relação aos idosos, construídos so- às pessoas idosas, não se deve rotulá-las como incapazes,
cialmente, por vezes, permeiam as ações de enfermagem pois o envelhecimento apresenta-se a cada ser humano
662 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 657-664, out./dez. 2012
CUNHA, J.X.P.; OLIVEIRA, J.B.; NERY, V.A.S.; SENAE.L.S.; BOERY, R.N.S.O.; YARID, S.D. • Autonomia do idoso e suas implicações éticas na assistência de enfermagem
de forma singular, e, para os que necessitam de cuida- Porém, nem sempre é possível que o idoso gra-
dos mais constantes, na medida do possível, deve ser vemente enfermo ou com limitações cognitivas com-
estimulado o autocuidado e considerada a capacidade preenda as informações que lhe são fornecidas sobre o
de decisão. seu estado de saúde. Nesses casos, em que a autono-
É necessário rejeitar concepções negativas sobre o mia encontra-se comprometida, as relações da equipe
envelhecer e, mesmo para aqueles idosos mais fragiliza- de saúde ocorrem com a família. Assim, por exemplo,
dos, é necessário que o cuidado esteja fundamentado na para a decisão da continuidade de um tratamento,
manutenção de sua autonomia e da qualidade de vida a escolha deve considerar a opção demonstrada pela
(SANTOS; EIDT, 2004). Diante disso, os profissionais pessoa idosa antes do comprometimento; dessa for-
de enfermagem precisam rever seus conceitos sobre o ma, tenta-se resguardar a sua autonomia (VISENTIN;
ser idoso, com o intuito de desenvolver suas atividades LABRONICI; LENARDT, 2007).
de forma a promover a independência e garantir a au- Portanto, situações dilemáticas, com as quais o
tonomia, tendo como meta a atenção holística ao ser profissional de enfermagem se depara na assistência
humano que envelhece. ao idoso, devem ser analisadas sob a perspectiva da
O profissional de enfermagem precisa estar cons- bioética, em suas várias vertentes. Caso o respeito à
ciente de que é fundamental uma avaliação constante autonomia do idoso infrinja outros princípios éticos
para motivar a autonomia do idoso, pois os cuidados da beneficência, da justiça e da não-maleficência, o
devem ser reestruturados conforme o estado de saúde profissional deve rever a sua atuação, a fim de prestar
apresentado, para que ele participe do gerenciamento uma assistência de enfermagem qualificada e racional,
de seu cuidado de maneira segura. garantindo a integridade física, espiritual e emocional
Assim, a assistência deve se efetivar através de uma da pessoa idosa.
avaliação multidimensional do idoso por parte do en-
fermeiro e de outros profissionais da equipe de saúde,
visando à participação ativa do idoso no seu cuidado, Considerações Finais
incentivando sua autonomia e corresponsabilidade.
Essa conduta inscreve-se em uma atitude ética, o que se O profissional de enfermagem deve estar a todo o mo-
contrapõe à instituição social de estereótipos e atitudes mento revendo a sua postura ética no cuidado à pes-
paternalistas que interferem no cuidado. soa idosa, pois os estereótipos sociais constantemente
Ao adotar uma postura paternalista, o profissio- interferem nas práticas desses profissionais, fazendo-
nal não valoriza a capacidade de decisão dos idosos de os adotar uma atitude paternalista e, de certa forma,
exercer seu autogoverno. Um exemplo disso é a omis- autoritária. A partir do momento em que o princípio
são total ou parcial para o paciente sobre seu estado de ético da autonomia dessa população for respeitado na
saúde, principalmente quando o prognóstico não lhe é assistência de enfermagem, contribuirá para a partici-
favorável, e a situação se mostra mais frequente quando pação ativa e cidadã no seu processo de cuidado.
se trata de pessoas idosas (SANTOS; MASSAROLLO, Mesmo para as pessoas idosas que se encontram
2004). Geralmente, o profissional, no intuito de prote- em estado de saúde mais fragilizado, na medida do
ger o idoso, no caso da constatação de uma patologia, possível, sua autonomia deve ser estimulada por meio
não lhe informa o diagnóstico, o que fere o princípio de ações simples, como a escuta ativa, considerando a
ético da autonomia. Dessa forma, o profissional fica singularidade do envelhecimento de cada pessoa e a
diante de situações dilemáticas, como, por exemplo, repercussão positiva no cuidado, a partir do momento
comunicar ou não à pessoa idosa uma enfermidade em que lhe é garantido o direito humano básico de
terminal ou que o seu tratamento é apenas paliativo exercer seu autogoverno.
(SANTOS; MASSAROLLO, 2004; VISENTIN; LA- Verificou-se também, através da análise dos es-
BRONICI; LENARDT, 2007). tudos, uma carência voltada para pesquisas originais
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 657-664, out./dez. 2012 663
CUNHA, J.X.P.; OLIVEIRA, J.B.; NERY, V.A.S.; SENAE.L.S.; BOERY, R.N.S.O.; YARID, S.D. • Autonomia do idoso e suas implicações éticas na assistência de enfermagem
sobre a autonomia do idoso. Ainda são poucos os es- Nesse sentido, este estudo poderá contribuir
tudos voltados para essa temática, que se mostra de para uma reflexão e mudança de prática dos profis-
grande relevância devido ao atual panorama brasilei- sionais de enfermagem, fomentando discussões que
ro, no qual a expectativa de vida da população idosa abordem os aspectos éticos, frente à necessidade do
tem aumentado e demonstrado a necessidade de ha- respeito e da preservação da autonomia do idoso, bem
ver profissionais habilitados para lidar com esse novo como estudos futuros de avaliação da assistência de
cenário, compreendendo o ser idoso de forma plena enfermagem e da percepção dos idosos, diante dessa
e ética. perspectiva de abordagem.
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ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
1
Doutorando em Saúde Pública pela Escola
Nacional de Saúde Pública da Fundação
RESUMO O estudo oferece uma visão do produto conta-poupança em saúde. Informa
Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ) – Rio de
Janeiro (RJ), Brasil. Servidor do Banco Central
suas características e implantação em sistemas nacionais de saúde. Trata-se de uma revisão
do Brasil – Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
pp.salles@uol.com.br
da literatura relativa às Medical Savings Accounts (MSA) com visões distintas sobre a aplica-
bilidade do produto, para situá-lo no contexto de individualização do risco, tendência de
alguns sistemas de Bem-Estar operantes no mundo. Encontram-se detalhadas as experiên-
cias das MSA em Cingapura, nos Estados Unidos e na África do Sul. O resultado da revisão
da literatura permite concluir que o produto é inadequado no que se refere ao controle de
custos e aponta para os riscos de sua má utilização, com impactos desfavoráveis na saúde
pública.
PALAVRAS CHAVE: Planos de saúde; Conta-poupança em saúde; Individualização do ris-
co; Responsabilização.
ABSTRACT This study provides an overview of the product health savings accounts. It provi-
des information about its features and implantation in national health systems. It deals with
a revision on literature related to Medical Savings Accounts (MSA) with different views on the
applicability of the product, in order to place it into the context of risk individualization, current
trends in some operating systems of Living Well in the world. In the course of the work we can
find detailed experiences of MSA in Singapore, USA and South. The outcome of the literature
review shows the inadequacy of the product concerning the control of health costs, and points
out its misuse that might cause unfavorable impacts in public health.
KEYWORDS: Health-plan; Health savings accounts; Risk-individualization; Health-accounta-
bility.
*
As opiniões expressas neste trabalho são exclusivamente do autor e não refletem, necessariamente, a visão do Banco Central
do Brasil.
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DIAS FILHO, P.P.S. • Medical Savings Accounts: experiências internacionais no contexto adverso da individualização do risco
Países
Critérios
Cingapura África do Sul EUA
Prevenção do risco moral; Redução de custos; prev. risco Redução de custos; prev. Risco
Objetivos reserva financeira para a maior moral; Inclusão de peq. empresas moral; expansão do seguro
idade e autônomos privado
População coberta 2,7 mi (84%) 1,6 a 2 mi (4-5%) Menos de 300 mil (*)
Fonte: SCHREYÖGG, Jonas. Demographic development and moral hazard: health insurance with medical savings accounts. The Geneva Papers on Risk and Insurance, Hants,
UK, v. 29. n. 4, p. 689-704, oct. 2004.
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DIAS FILHO, P.P.S. • Medical Savings Accounts: experiências internacionais no contexto adverso da individualização do risco
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DIAS FILHO, P.P.S. • Medical Savings Accounts: experiências internacionais no contexto adverso da individualização do risco
que faz controle via contenção da oferta e do consumo Exemplificando-se o caso da operadora Discovery He-
de serviços de saúde. Shortt (2002) segue na mesma alth, que pontua uma senhora acima de 45 anos que faz
direção ao afirmar que o programa MSA de Cingapura um mamograma com 2,5 mil pontos. Acumulando-se
aparenta contribuir pouco para o controle de custos, pontos, pode-se adquirir descontos em produtos não
que resulta basicamente das fortes restrições do lado da médicos, p.e., com 60 mil, compra-se uma passagem
oferta de serviços. aérea com 92% de desconto em relação ao preço cheio
Na visão do governo local, a filosofia do financia- da mesma.
mento da atenção à saúde em Cingapura “é baseada na Segundo Schreyögg (2004), o sistema de MSA
responsabilidade individual, associada aos subsídios go- sul-africano detém 50% da fatia do mercado de seguro
vernamentais a fim de manter os cuidados básicos em privado em saúde do país. Söderlund e Hansl (2000)
saúde acessíveis” [em termos de preços] (BARR, 2001). discutem que o conceito de MSA aplicado na África do
Para Barr (2001), a verdadeira lição da experiência Sul é, a priori, atraente para pessoas jovens e saudáveis,
cingapuriana reside na sua negação: não há uma ‘bala e, portanto, acaba por gerar uma seleção adversa.
mágica’ para o financiamento à saúde. Quanto mais um Por ter estudado o tink tank do Texas, o NCPA
sistema de saúde é efetivo em conter custos, ou, ainda, não concorda que as MSA da África do Sul selecionem
eficiente em transferir responsabilidades [do governo], jovens, afirmando que aqueles assegurados com MSA
maior a probabilidade de esse sistema ser inequitativo. não são necessariamente mais saudáveis do que os asse-
gurados em planos de saúde tradicionais, com cobertu-
ra compreensiva. O estudo do NCPA concluiu, ainda,
O modelo sul-africano que despesas incorridas em procedimentos médico-
ambulatoriais nos grupos segurados por MSA foram,
O sistema nacional de saúde sul-africano é público, de fato, menores do que aquelas relativas ao grupo se-
contudo, nos últimos anos, a adesão a seguros-saúde gurado por apólices tradicionais, compreensivas (MA-
cresceu, e 20% da população passou a ter cobertura TISONN, 2000). O estudo foi conduzido por Shaun
de saúde privada. Na África do Sul, o modelo de MSA Matisonn, atual Chefe do Gerenciamento de Riscos da
concorre com os produtos tradicionais de asseguramen- seguradora Discovery Health, da África do Sul.
to em saúde. O sistema de MSA tem operação privada
e opera combinado com seguro para cobertura das des-
pesas com tratamentos crônicos e hospitalizações custo- HSA nos EUA
intensivas. São as chamadas despesas não discricioná-
rias. Para as discricionárias, o usuário utiliza seu saldo A ideia de MSA nos EUA, originalmente, foi concebida
da MSA (SCHREYÖGG, 2004). por John C. Goodman e pelo NCPA. Em um ambien-
O saldo depositado nas MSA para os gastos dis- te de elevados custos médicos observados ao longo dos
cricionários são, em média, equivalentes a US$ 1,5 mil. anos, o conceito foi desenvolvido para reduzir o risco
Os saldos das MSA são remunerados a 7,5% a.a., e, se moral dos contratantes, em particular, para os casos de
for necessário um adiantamento da conta, os juros serão gastos médico-ambulatoriais. Goodman e Musgrave
também de 7,5%. Os recursos são geridos diretamente conduziram um estudo, em 1992, que concluiu que um
pelas seguradoras e aplicados no mercado de capitais aumento nas franquias dos seguros-saúde pode levar a
(SCHREYÖGG, 2004). uma sensível redução nos prêmios (SCHREYÖGG,
Segundo Schreyögg (2004), algumas segurado- 2004; GOODMAN; MUSGRAVE, 2000).
ras introduzem em seus produtos MSA um sistema O ponto focal da proposta de Goodman era o es-
de pontuação correspondente a procedimentos utili- tabelecimento de incentivos fiscais para que cidadãos
zados em saúde preventiva, que podem servir de des- comuns pudessem efetuar depósitos voluntários em
contos em compras diversas de serviços não médicos. suas MSA, ofertadas pelas seguradoras associadas a um
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seguro-saúde para gastos catastróficos, com elevadas de jovens e pessoas de baixa renda dos planos de saú-
franquias (SCHREYÖGG, 2004). de, com consequente encarecimento dos preços das
O programa foi implantado em 1996, durante apólices.
a administração Clinton, sob a forma de um piloto, O custo do asseguramento em saúde nos EUA,
na esteira da legislação da Health Insurance Portability não é novidade, tem crescido a taxas elevadas. Jovens e
and Accountability Act (HIPAA) (Lei nº 104-191, de pessoas saudáveis estão deixando os planos em função
21/08/96). As MSA poderiam ser oferecidas durante dos preços das apólices. Vale relembrar trechos do po-
quatro anos (até 2000), prorrogáveis por mais dois (fi- lêmico aumento anunciado para os preços dos planos
nal de 2002), para um número limitado de contas (750 individuais da operadora californiana WellPoint, no iní-
mil). As franquias variavam entre US$ 1,5 mil e US$ cio de 2010:
2,25 mil para planos individuais, e entre US$ 3 mil e
US$ 4,5 mil para planos familiares. Foi estabelecido, Nos EUA é preocupante a recente notícia de
no piloto, que os montantes máximos a serem aporta- ameaça de aumentos abusivos de preços da ope-
dos nas MSA, para obtenção da isenção fiscal, deveriam radora Anthem Blue Cross of California, sub-
ficar entre 65% e 75% das franquias. A administração sidiária da WellPoint Inc., que em janeiro de
Bush estendeu o piloto até o final de 2003 e levantou 2010 anunciou pretensões de reajustar os preços
praticamente todas as restrições existentes até então de 800.000 clientes de planos individuais em
(SCHREYÖGG, 2004). 39%, a partir de 1º de março de 2010.
Em 2004, o programa foi liberado para comer-
[…] A operadora, representada pelo chefe de
cialização generalizada sob o nome de Health Savings
sua ‘consumer business unit’ Brian Sassi, afir-
Accounts (HSA). Os recursos das HSA podem ser utili-
ma que os ‘preços em geral dos seguros saúde es-
zados para a cobertura de quaisquer despesas médicas,
tão aumentando graças a fatores como elevação
sendo que os saques com esses propósitos não são ta-
dos custos com prestadores e ao envelhecimento
xados pelo imposto de renda. Os fundos não utiliza-
populacional, no entanto a recessão acelerou os
dos permanecem na HSA obtendo rendimentos isentos
aumentos de custos a níveis ainda maiores no
de imposto; podem ser acumulados anualmente e são
mercado de planos individuais da Califórnia.
portáteis, isto é, em caso de mudança de seguradora,
o participante leva os saldos consigo para a outra HSA A presidente da American Health Insurance
escolhida (CANNON, 2006). Plans (AHIP), Karen Ignagni, afirmou que os
Desde que as HSA tornaram-se disponíveis, em prêmios dos planos individuais estão subindo
janeiro de 2004, o número de americanos que aderi- por causa dos custos médicos, que ‘estão nas
ram voluntariamente ao produto atingiu a casa dos três nuvens’, e porque jovens e pessoas saudáveis es-
milhões. Isto é, houve, basicamente, uma migração do tão deixando a cobertura privada, segundo ela
seguro-saúde tradicional para o seguro-saúde de eleva- por causa da situação atual. (SALLES DIAS
da franquia, compatível com uma HSA. O número de FILHO, 2010, p. 151-153).
pessoas que compraram uma HSA diretamente é me-
nor e não pode ser quantificado. No total, observadores Essas informações ilustram um cenário em que
estimaram em 6 milhões o número de beneficiários até empresas americanas estão – e já há muito tempo –
2008, com saldos acumulados nas HSA estimados em com dificuldades para honrar os custos assistenciais de
US$ 5 bilhões; e, para 2010, US$ 25 milhões, detendo suas forças de trabalho, e em busca de custos menores,
US$ 75 bilhões em ativos (CANNON, 2006). através da responsabilização dos trabalhadores. Juntos,
É importante fazer aqui um parêntese: a grande esses fatores têm impulsionado o mercado das HSA nos
crise financeira de 2008-2009 gerou uma elevação da Estados Unidos. Segundo o relatório de Cannon (2006,
taxa de desemprego nos EUA, ocasionando exclusão p. 2), do Cato Institute, um think tank liberal1,
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DIAS FILHO, P.P.S. • Medical Savings Accounts: experiências internacionais no contexto adverso da individualização do risco
Em teoria, HSA tornarão os pacientes consu- incluídos os casos em que as coberturas se pareciam com
midores mais prudentes de cuidados em saúde, o tipo ofertado pelo produto MSA.
porque consumidores são mais custo-conscientes Os resultados de saúde das pessoas que possuíam
quando gastam o próprio dinheiro. Os pacien- planos de saúde com elevadas franquias não foram, de
tes tenderão a perguntar mais sobre os custos maneira geral, piores do que os daqueles que possuíam
e benefícios das diversas opções de tratamento, qualquer outro tipo de cobertura, apesar de terem ‘con-
como, por exemplo a troca de um remédio de sumido’ bem menos serviços médicos. Os investigadores
marca por um genérico. escreveram:
1
Em sua home page, o Cato Institute se autodenomina uma instituição de pesquisa de políticas públicas dedicada aos princípios da liberdade individual, do governo limitado,
dos mercados livres e da paz, ou, in verbis: The Cato Institute is a public policy research organization – a think tank – dedicated to the principles of individual liberty, limited
government, free markets and peace. Its scholars and analysts conduct independent, nonpartisan research on a wide range of policy issues. Disponível em: http://www.cato.
org/about.php. Acesso em: 25 abr. 2011.
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DIAS FILHO, P.P.S. • Medical Savings Accounts: experiências internacionais no contexto adverso da individualização do risco
Quadro 2. Custo médico mensal médio segundo o tipo de plano e coberturas (USA-2008) – Em US$ (preços correntes)
Coberturas
Tipos de planos
Apenas empregado Empregado e um dependente Familiar
Fonte: Adaptado de: TOWERS-PERRIN. Health Care Cost Survey. 2008. Disponível em: <http://www.towersperrin.com/tp/getwebcachedoc?webc=HRS/USA/2008/200801/
hccs_2008.pdf> Acesso em: 25 abr. 2011.
Notas:
(¹) PPO – planos de livre escolha
(²) POS – Mix entre livre escolha e rede credenciada
(³) HMO – Planos que operam com rede, a exemplo das medicinas de grupo
(*) Account-based Health Plans, duas modalidades: HRA (Health Reimbursement Account) e HSA (Health Savings Account)
O survey de 2008 traz a inflação médica dos planos empresariais, em relação ao ano anterior, dentre todos os
tipos de planos relacionados no Quadro 3.
PPOs 6%
POSs 8%
HMOs 7%
HRAs 7%
HSAs 7%
Fonte: Adaptado de: TOWERS-PERRIN. Health Care Cost Survey. 2008. Disponível em: <http://www.towersperrin.com/tp/getwebcachedoc?webc=HRS/USA/2008/200801/
hccs_2008.pdf> Acesso em: 25 abr. 2011.
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DIAS FILHO, P.P.S. • Medical Savings Accounts: experiências internacionais no contexto adverso da individualização do risco
A conclusão óbvia a que se chega é a de que a a uma redução da influência do pacto intergeracional.
inflação médica incide de maneira praticamente igual Tanto maior a proporção de custos assistenciais funde-
em todos os tipos de planos de saúde observados. No ados pelas MSA, menores os efeitos da distribuição in-
caso da HSA, ela até supera a inflação geral dos planos. tergeracional, que, no caso das populações em processo
Portanto, o dado da pesquisa desmente que as HSA de envelhecimento, levará a uma elevação das despesas
são capazes de reduzir os custos assistenciais pela força assistenciais desse grupo.
do poder discricionário dos consumidores (consumer- Outra questão controversa relativa ao modelo
driven plans). das MSA refere-se às decisões dos usuários referentes a
Tudo leva a crer que o pressuposto de que os cus- modalidades de tratamento às quais, em tese, eles deve-
tos estão sendo transferidos dos empregadores para os riam ser submetidos mediante aconselhamento médico.
empregados é verdadeiro. Cannon (2006, p. 12), em seu trabalho, citou uma pes-
Outros argumentos importantes para a análise dos quisa na qual pessoas portadoras de MSA seriam signi-
impactos das MSA estão presentes no estudo de Can- ficativamente mais propensas a evitar, a economizar ou
non (2006), sendo de relevância a crítica a seguir: quais a adiar tratamentos de saúde por conta dos custos do
seriam os impactos do desenvolvimento das MSA sobre que aquelas que optam por coberturas compreensivas
os demais planos? tradicionais.
A conferência de Goodman, de 1996, já trazia Segundo a pesquisa citada, pessoas portadoras de
tal questionamento. Ele, na ocasião, citou John Bur- MSA seriam 50% mais propensas a questionar os pres-
ry, chairman das Blue Cross & Blue Shield de Ohio, o tadores quanto aos custos das terapias; 33% estariam
qual havia advertido, ainda nos anos 1990, que as MSA propensas a buscar terapias alternativas, e estariam três
poderiam significar, ao mesmo tempo, vantagens ines- vezes mais dispostas a buscar tratamentos alternativos
peradas para os saudáveis [apólices anuais mais baratas] mais baratos.
e a ruína para a estabilidade financeira da indústria de Cannon (2006) aponta, ainda, que, em conse-
seguros (GOODMAN, 1996, p. 152). quência, uma maior consciência dos custos relativos aos
Essa é a questão econômica central, sobre a qual os tratamentos induziria os prestadores a atentarem mais
resultados das diversas pesquisas, surveys e artigos aca- para seus preços e para a qualidade dos serviços ofer-
dêmicos ainda não ofereceram resposta. O trabalho de tados. O autor acredita que as MSA, ao tornarem os
Cannon (2006) deixa essa questão em aberto de forma consumidores mais sensíveis aos custos – uma vez que
preocupante. desembolsam parte das despesas com o autocuidado –,
Alguns observadores preveem que as HSA irão os tornam mais críticos quanto aos tratamentos a que
causar o aumento dos prêmios nos seguros com co- serão submetidos.
bertura compreensiva (tradicionais). Participantes sau- Conforme avalia Schelkle (2008), a tendência
dáveis, ao abandonarem o pool em busca da adesão às dominante de liberalização nas economias políticas
HSA, deixarão os menos saudáveis na carteira, o que avançadas está movendo os esquemas de Bem-Estar em
poderia causar a elevação nos prêmios, levando a um direção a uma hibridização, com a aplicação dos princí-
movimento seguinte de novas saídas e novos encareci- pios de mercado nos esquemas de proteção, representa-
mentos de prêmios (CANNON, 2006, p. 6), podendo da por uma privatização dos serviços sociais. Noções de
ocasionar a chamada ‘morte em espiral’ de certos planos escolha ou de quase mercados estão sendo introduzidas
tradicionais. nesses novos esquemas. Há mais escolha individual e
Uma explicação teórica desse fenômeno poderia menos formações de ‘pools de risco’. Há uma notável
ser dada a partir da visão de Schreyögg (2004), segun- ênfase à individualização em detrimento da socialização
do a qual uma gradual introdução das MSA acompa- dos riscos.
nhada de uma correspondente diminuição de parte do O prêmio Nobel de Economia 2008, Paul Krug-
sistema custeado por contribuições tradicionais levará man, em artigo em sua coluna do New York Times,
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criticou duramente essa postura de tratar pacientes hoje poderia resultar em cuidados assistenciais futu-
como consumidores de serviços médicos: ros mais custosos ainda, o que tornaria os planos com
franquias elevadas uma obtusidade (CANNON, 2006,
E eis minha questão: quando é que se tornou p. 11).
normal, ou, aliás, quando é que se tornou acei- Para outros, a escolha por MSA acopladas a um
tável, se referir a pacientes de serviços médicos seguro catastrófico de elevadas franquias encorajaria os
como ‘consumidores’? A relação entre médicos e optantes dessa modalidade de produto a serem consu-
pacientes costumava ser considerada como algo midores mais cautelosos. Segundo Cannon (2006), se
de especial, quase sagrado. Agora, políticos e su- os participantes puderem reduzir os prêmios de seus se-
postos reformistas falam sobre o ato de receber guros através da contenção do tabagismo, do controle
cuidados de saúde como se não diferisse de uma de suas taxas de açúcar no sangue ou de colesterol, den-
transação comercial [...]. tre outros, mais participantes poderiam fazer o mesmo.
Em nota publicada em periódico brasileiro2, essa
[...] Os Estados Unidos têm o sistema de saúde questão foi abordada: ‘Para reduzir o impacto dos cus-
com mais ‘influência do consumidor’, entre os tos futuros, os convênios médicos começam a se voltar à
países avançados, e também apresentam os cus- prevenção, com estímulo a práticas que reduzam a pos-
tos de saúde mais altos, por larga margem, sem sibilidade de tratamentos. Alguns exemplos são a práti-
que isso resulte em serviços de saúde de qua- ca de atividades físicas e a adoção de hábitos saudáveis’.
lidade superior à encontrada em outros países Segundo empresas, porém, o cliente resiste à prevenção
nos quais o sistema tem custo mais baixo. (grifos nossos).
A resistência, portanto, é real, existe, sendo certo
Krugman (2011) conclui seu artigo afirmando que alguns críticos advogam a desconstrução do con-
que a medicina como escolha do consumidor fracas- senso estabelecido a partir da crise do Estado de Bem-
sou onde quer que tenha sido tentada. Estar, que consiste na concepção de uma suposta neces-
Além de reafirmar o fracasso da utilização de sidade e na consequente legitimidade de pensarem-se as
produtos consumer-driven, quando se trata de cuida- políticas atuais de saúde não mais como frutos de um
do médico, Krugman traz ao debate a questão subja- ‘pacto sanitário’ sobre o direito do cidadão aos cuidados
cente do uso indiscriminado das MSA. Em situações em saúde, e um dever correspondente ao Estado de ga-
limites, elas carregam o dom de perverter a relação ranti-las, mas, ao contrário, como um dever do cidadão
médico-paciente. Imbricados pela financeirização do de ser saudável e um direito do Estado de incentivar,
cuidado, os pacientes tornam-se consumidores que controlar e, eventualmente, sancionar o comportamen-
definem as opções de tratamento, deixando em segun- to daquele cidadão que, por ventura, tivesse práticas de-
do plano o aconselhamento médico. Que consequên- nominadas ‘não saudáveis’ (SCHRAMM, 2006).
cias isso pode ter? Schramm (2006) antecipa uma possível objeção à
Em testemunho ao Congresso americano, ainda proposta da bioética da proteção ao apontar os perigos
nos anos 1990, John Sturdivant, presidente da Fede- paternalistas e autoritários das atitudes protetoras, visto
ração de Empregados Estatais (AFL-CIO), declarou que estas poderiam tornar-se instrumentos não legíti-
que, sob a égide das MSA, os trabalhadores adiariam mos de limitação do exercício da autonomia pessoal e,
tratamentos até que se tornassem absolutamente ne- mais ainda, de cerceamento dos assim chamados ‘direi-
cessários (GOODMAN, 1996, p. 153). Para alguns tos fundamentais’, cuja garantia é condição necessária
críticos, evitar ou adiar procedimentos assistenciais da responsabilização moral do agente pelos seus atos.
2
FOLHA DE SÃO PAULO. Estratégia: empresas incentivam prevenção. Folha de São Paulo. São Paulo: segunda-feira, 11 de abril de 2011. Mercado.
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DIAS FILHO, P.P.S. • Medical Savings Accounts: experiências internacionais no contexto adverso da individualização do risco
Shortt (2002, p. 162) afirma que de Cingapura demonstra que, do lado da oferta, os
prestadores competem pelos melhores profissionais
a noção de que [com as MSA] os indivíduos
médicos e pelas mais sofisticadas tecnologias custo-in-
terão um incentivo para adotar hábitos saudá-
tensivas; a competição via preços é secundária.
veis para reduzirem seus gastos em saúde não é
respaldada por nenhuma evidência.
Afirma que não há evidências de que pessoas de- Considerações finais
tentoras de MSA conseguiram obter maior adequação
do cuidado ou mesmo melhor qualidade. De fato, o A implantação das MSA nos países que a adotaram ti-
autor avalia que, em alguns casos, cuidados preventi- nha como mote a redução de custos ante a responsabili-
vos necessários poderão ser adiados por aqueles com zação do indivíduo. Acreditava-se nas escolhas racionais
desejo de aumentar seus saldos nas MSA, levando a das pessoas influenciando o controle dos preços e da
custos futuros elevados ante as situações de saúde agra- qualidade dos serviços, isto é, confiava-se na hipótese
vadas pelo adiamento das terapias (SHORTT, 2002). de que consumidores são custo-conscientes quando
Segundo esse mesmo autor, as MSA não aparen- gastam o próprio dinheiro. No entanto, as experiências
tam ter atingido as suas metas. Ao avaliar as experi- mostraram que o produto foi inefetivo no quesito con-
ências correntes de Cingapura, China e as simulações trole de custos de atenção à saúde.
utilizando-se dos dados do Medicare americano, o au- Ademais, não há evidência de que os indivíduos
tor não recomenda a adoção do produto no Canadá, terão um incentivo para adotar hábitos saudáveis para
onde é diretor do Centro de Pesquisas de Políticas e reduzirem seus gastos em saúde.
Serviços de Saúde da Queen’s University (Ontario.). Quando houve controle de custos, como no caso
Segundo ele, as MSA “[...] além de não terem contro- cingapuriano, deveu-se tão somente às pesadas restri-
lado custos, podem aumentar as iniquidades em sis- ções de oferta. Em Cingapura, 58% dos gastos em saú-
temas públicos de saúde” (SHORTT, 2002, p. 159). de são financiados pelo desembolso direto, enquanto as
Shortt (2002) avalia que, conforme o sugerido MSA respondem por 8,5% das despesas.
pela experiência de Cingapura, as MSA não contri- O produto cresce hoje nos EUA ante a pressão
buem para uma distribuição mais equitativa da co- altista dos gastos em saúde, que, no cenário recessivo
bertura, sendo que o produto, quando combinado a instalado na esteira da grande crise financeira de 2008,
incentivos fiscais, é atraente para os mais ricos e sau- fez com que empresários buscassem alternativas mais
dáveis, deixando as pessoas dependentes do ‘pool de baratas para o financiamento da saúde dos trabalhado-
risco’ em situação de buscar alternativas ainda mais res, figurando, entre elas, as MSA, denominadas He-
onerosas, ou a ponto de enfrentarem crescentes de- alth Savings Accounts naquele país. Críticos das MSA
sembolsos diretos. argumentam que o produto permite aos emprega-
Estudo patrocinado pela Organização Mundial dores transferir custos de benefícios de saúde para os
da Saúde (OMS) indica que não há evidências claras trabalhadores.
de que o Medisave de Cingapura tenha, significati- As MSA custam entre 15% e 20% menos do que
vamente, reduzido o risco moral e contribuído para um seguro compreensivo, para fins de adesão ao produ-
conter custos, já que o dispêndio de Cingapura em to. Isso, graças aos desembolsos diretos, não quantificá-
saúde continuou a crescer mesmo após a introdução veis pelo seu caráter individual, específico. No entanto,
das MSA (HANVORAVONGCHAI, 2002). a inflação médica no produto equivale à inflação geral
Hsiao (2001), outro crítico das MSA, afirma que dos seguros-saúde.
o esquema cingapuriano se utiliza dos cidadãos para Alguns observadores apontam que a expansão
promover a constrição dos custos em saúde. Os cus- das MSA poderá levar a aumentos nos preços dos se-
tos são regulados pelo lado da demanda. O exemplo guros tradicionais, de cobertura compreensiva, face ao
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 665-677, out./dez. 2012 675
DIAS FILHO, P.P.S. • Medical Savings Accounts: experiências internacionais no contexto adverso da individualização do risco
desmantelamento do pacto intergeracional. É consabi- Assim, na medida em que, segundo a lei, a am-
do que as saídas de jovens e saudáveis – a base con- plitude das coberturas será definida por normas da
tributiva – das carteiras de planos tradicionais geram regulação setorial, um seguro com franquias, com ca-
incremento no custo da carteira remanescente de forma racterística de restrições de acesso e, portanto, com
exponencial, e, no caso das populações em processo de admissibilidade de negativas de cobertura, não poderia
envelhecimento, isso poderá levar a uma elevação das prosperar sem uma revisão no parlamento.
despesas assistenciais desse grupo. Na hipótese de admissibilidade do produto, tal
No Brasil, diante do estágio regulatório concer- feito poderia pressionar ainda mais o orçamento públi-
nente às coberturas previstas no rol mínimo de proce- co. Seria esperado que uma massa de clientes do produ-
dimentos para as operadoras e seguradoras de saúde, a to MSA evitasse despender dos seus saldos nas mesmas
implantação das MSA encontraria uma barreira legal. MSA para obter atendimento gratuito no Sistema Úni-
O Artigo 10 da Lei nº 9.656 instituiu, no âmbito da co de Saúde (SUS). E, ao serem instadas a ressarcirem
saúde suplementar, o plano-referência de assistência à ao erário, as operadoras poderiam alegar nulidade da
saúde, sem limite financeiro para cobertura dos even- ação, tendo em vista que tais procedimentos não esta-
tos em saúde, que corresponde a um rol mínimo de riam respaldados no rol dos relacionados às MSA, dada
procedimentos. a restrição de acesso imposta pelas franquias.
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ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
Remulo Orlando Borges da Silva1, Elioenai Dornelles Alves2, Dandara Sampaio Leão de Carvalho3,
Diego Martins Mesquita4
1
Graduando em Medicina pela Universidade
de Brasília (UnB) – Brasília (DF), Brasil.
RESUMO Este estudo consiste em um relato de experiência derivada do PET-Saúde, im-
remuloorlando@gmail.com
plantado na UnB e inserido na realidade da comunidade do Paranoá-DF, durante o período
Livre Docente pela Universidade Federal do
2009-2010. Entre as atividades desenvolvidas, estão: a elaboração de instrumento de da-
2
(DF), Brasil.
diego_martins_mesquita@yahoo.com.br
Paciente; Saúde da Família.
ABSTRACT This study is composed of a report of experience derived from PET-Health, esta-
blished in UNB and inserted into the reality of community Paranoá-DF, during the period 2009-
2010. Among the activities are: development of an instrument of data structured in a manner
of Family Medicine; the creation of an electronic portfolio, the holding of training workshops,
among others. From the acquired results, it was observed a change in academic attitude, ma-
king future professionals more critical, thoughtful, empathetic and really concerned with the
Primary Health Care.
KEYWORDS: Primary Health Care; Home Visit; Patient Care Team; Family Health.
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SILVA, R.O.B.; ALVES, E.D.; CARVALHO, D.S.L.; MESQUITA, D.M. • Programa PET-Saúde: trajetória 2009-2010, na Universidade de Brasília
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SILVA, R.O.B.; ALVES, E.D.; CARVALHO, D.S.L.; MESQUITA, D.M. • Programa PET-Saúde: trajetória 2009-2010, na Universidade de Brasília
prazo correspondente à duração do edital. O programa situação encontrada na comunidade e, com a aplica-
também recebe estudantes não-renumerados e alunos ção da metodologia da problematização, realizam uma
regulares de disciplinas, os quais utilizam a estratégia ação de forma interdisciplinar nas comunidades. Como
PET para execução do plano pedagógico, vivenciando a exemplo de atividades realizadas, podemos citar: a cria-
realidade local e a prática profissional individualmente ção de portfólio eletrônico Moodle-Aprender, visitas
ou em equipe. domiciliares, construção de um modelo de prontuário
Este artigo se classifica como um Relato de experi- PET (estruturado em moldes da medicina familiar),
ência baseado nas práticas integradoras do PET-Saúde, oficinas de capacitação, feiras de saúde, organização
correspondente aos anos de 2009 e 2010, na Universi- de grupos educativos, discussão de casos clínicos, entre
dade de Brasília. O foco principal é descrever como se outras.
desenvolveu o programa, apresentando uma visão inte- O ensino prático, envolvendo estudantes da Uni-
grada de tutores e alunos que participaram da implan- versidade, está associado à atuação das equipes multi-
tação e do funcionamento do programa, expondo uma disciplinares que realizam visitas semanais nas residên-
reflexão crítica das rotinas, resultados e políticas criadas cias da comunidade do Paranoá, cadastradas no Posto
e implementadas na comunidade. de Saúde da Quadra 18. As visitas domiciliares apresen-
Quanto aos aspectos éticos, não há restrições, pois tam um caráter investigativo da realidade individual de
não foi utilizado na composição deste artigo nenhum cada componente da família, bem como a promoção de
tipo de questionário ou de experiência interpessoal com uma consciência de autocuidado familiar e a orientação
seres humanos. Para a construção deste relato, foram de perspectivas auxiliadoras na melhoria da qualidade
elaboradas as seguintes etapas: 1) revisão bibliográfi- de vida.
ca nos bancos de dados SciELO, LILACS, BIREME, As visitas domiciliares (VD) norteiam um caráter
BVS, MEDLINE, no período de 2000 a 2010, com os essencial da formação de um novo profissional da Saúde,
seguintes unitermos: PET-saúde, medicina da família centrado no conhecimento da história da Comunidade,
e atenção primária em saúde; 2) destacado dos estudos no diagnóstico inserido na realidade biopsicossocial do
validados na realidade brasileira em comparação com indivíduo, além do conhecimento da realidade de cada
outros programas semelhantes, de outras instituições; profissional da Saúde, em seu contexto de atuação den-
3) a equipe envolvida: estudantes bolsistas, precepto- tro da equipe de Atenção Primária em Saúde, e de sua
res e coordenadores se reuniram em diversas ocasiões importância no contexto global de promoção de saúde.
para registro de suas experiências, limitações e críticas; Outro fator importante é o incentivo na formação téc-
4) Análise crítica das experiências; e 5) Reflexão teórica nica, cognitivo-motora e afetiva da relação profissional-
da literatura. paciente dos acadêmicos.
Para que isso pudesse ser alcançado, foram pro-
gramadas atividades de capacitação com preceptores
Relato de Experiência e tutores, de maneira a homogeneizar a linguagem de
todos. Além desses momentos com o grande grupo, a
Dentro da tríade proposta pelo PET-Saúde, extensão- dinâmica de trabalho envolve encontros frequentes en-
ensino-pesquisa, as atividades desenvolvidas estão inti- tre o tutor e seus preceptores para avaliar e programar
mamente inseridas na realidade do Paranoá-DF, atuan- as visitas (PINTO et al, 2009). Como os contextos do-
do em uma esfera multidisciplinar, visando à melhoria miciliares são trabalhados por meio do reconhecimento
da Atenção Básica e da formação de profissionais atua- das diferenças, existiu uma demanda para elaboração e
lizados, na perspectiva de mudança do processo de tra- sistematização de um modelo de coleta de dados que
balho em saúde (ALVES, 2005). atendesse, de modo integral, às necessidades da saúde
As atividades práticas, realizadas com a supervi- das famílias dessa comunidade, abordando as principais
são de preceptores locais e de monitores, elegem uma estratégias do SUS e do Programa Saúde da Família.
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SILVA, R.O.B.; ALVES, E.D.; CARVALHO, D.S.L.; MESQUITA, D.M. • Programa PET-Saúde: trajetória 2009-2010, na Universidade de Brasília
A construção desse modelo de coleta de dados cul- de Saúde do Paranoá. Esse laço entre diferentes meios
minou na criação do Prontuário PET. A organização do de trabalho fortalece a estratégia de Saúde da Família
Prontuário PET obedece a uma sequência já conhecida e produz diversos resultados teóricos e práticos, tanto
e bastante utilizada na identificação de demandas e ne- na reorientação curricular dos cursos da saúde na Uni-
cessidades dos usuários: conhecimento, percepção e de- versidade quanto na modificação da rotina de trabalho
finição dos problemas e demandas do doente; definição dos Profissionais da Saúde. Esse mesmo laço constrói
dos objetivos terapêuticos e das ações e tarefas que serão com as famílias atendidas pelo programa uma relação
negociadas com o paciente; divisão de responsabilida- de parceria e empatia, fundamental no direcionamento
des entre a equipe; avaliação das ações e novas condutas. de soluções para as múltiplas problemáticas de cada fa-
O Prontuário PET estimula e fortalece o trabalho mília (AGUIAR et al, 2010).
em equipe e o diálogo entre os profissionais e alunos, Outro pilar preconizado pelo PET-Saúde é a ex-
favorecendo troca de conhecimentos, inclusive com os tensão, caracterizada pela construção de oficinas de
doentes e familiares, gerando essa noção de dimensão capacitação dos Alunos de Graduação, objetivando o
global da saúde do paciente. Contribui também para a conhecimento das áreas de Atenção Primária e de Saú-
produção de vínculos e para o fortalecimento do sen- de da Família. Diversos temas comumente abordados
tido de grupo, que visa a sustentar as construções que visam à apresentação e reorientação de perspectivas do
foram elaboradas coletivamente, além de estimular o serviço de saúde local, bem como à construção de no-
empenho no trabalho. vas expectativas. Existe também a necessidade de uma
Outro ponto importante na utilização desse Pron- pactuação de novas programações, mediante um cro-
tuário são os benefícios gerados para as famílias cadas- nograma de atividades anuais que estabelece diretrizes
tradas, em termos de qualidade e uniformidade do ser- e parâmetros.
viço. A qualidade do atendimento prestado, o afeto, o Comumente, através das oficinas, também são
vínculo e a conduta dos casos são intimamente influen- apresentadas as linhas de pesquisa em atuação na Re-
ciados pelo cuidado e pelas orientações proscritas pelo gional do Paranoá, promovendo estímulo à entrada de
instrumento de coleta de dados. Desse modo, há notá- novos acadêmicos, apoio de docentes e do corpo de saú-
vel ganho na qualidade de vida das famílias atendidas de do Paranoá. Outras oficinas desenvolvidas objetivam
pelo PET-saúde. Dos pontos abordados do prontuário, atingir a comunidade em algum aspecto, motivando
em especial, aqueles que trazem maior benefício para a uma reavaliação postural e uma conscientização de te-
qualidade de vida e para a observação clínica da família mas prevalentes no cotidiano da Comunidade.
são as Listas de Problemas Familiares e a Folha de Evo- Dentre os resultados já obtidos com o programa,
lução da Visita Domiciliar. podemos citar também a criação e a construção do por-
Após a realização das Visitas Domiciliares, como tfólio eletrônico: o Moodle-Aprender. Nesse portfólio,
rotina pré-definida, existe um debate na sala de reuniões todos os petianos podem registrar suas contribuições
do Posto de Saúde, no qual discutimos e aprimoramos com as práticas para que sejam disponibilizadas a todos.
as condutas dos casos clínicos que estão sendo acompa- Dentre os registros, podemos citar a evolução das Visi-
nhados, bem como realizamos o levantamento das ne- tas Domiciliares, os livros-textos, artigos científicos, no-
cessidades. Essa atividade enriquece o conhecimento de tícias organizacionais e descrição de projetos científicos.
todos e estabelece uma cobrança do comprometimento Outro caráter essencial, desenvolvido durante as
com as atividades dos integrantes. A partir dela, os casos atividades do PET-Saúde, foi o desenvolvimento de
são aprofundados, os diagnósticos são solucionados e é grandes projetos científicos na comunidade. Essas pes-
fortalecida a estratégia do plano de cuidado da família, quisas têm a finalidade de reconhecer, avaliar e quali-
constituindo as bases do futuro profissional da saúde. ficar os serviços do PSF, beneficiando a comunidade e
Dessa forma, a atividade de Visita Domiciliar desenvolvendo o caráter crítico dos alunos diante das
une os esforços da academia e do serviço da Regional realidades vividas.
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 678-683, out./dez. 2012 681
SILVA, R.O.B.; ALVES, E.D.; CARVALHO, D.S.L.; MESQUITA, D.M. • Programa PET-Saúde: trajetória 2009-2010, na Universidade de Brasília
Dentro desse quadro de atividades exercidas pelo Outros fatores dificultadores, como os constan-
PET, diversos fatores facilitadores e dificultadores sur- tes eventos burocráticos e a ausência de um secre-
giram, acompanhando o desenvolvimento e a implan- tariado dentro da Regional de Saúde para assuntos
tação do programa. específicos do PET, atrasam o desenvolvimento de
A facilidade de implantação no Paranoá foi pro- atividades. A não fixação de equipe de gestores locais
piciada por esforços conjuntos de professores e alunos, gera uma necessidade de frequentes repactuações, ha-
e do apoio incondicional dos Conselheiros Regionais vendo, muitas vezes, falta de investimentos da Secre-
de Saúde do Paranoá, possibilitando, entre outros, a taria de Saúde em equipamentos básicos para a reali-
existência de um espaço físico para a realização das zação das atividades.
contínuas atividades na Comunidade. Entre os as- As dificuldades também estão presentes dentro
pectos positivos, podemos citar também a facilidade da própria Universidade, por intermédio de um bai-
de acesso aos profissionais do serviço, que cumprem xo apoio da direção. Evidenciamos alguns problemas
horários regulares e permitem uma maior organização técnico-administrativos envolvendo o transporte para
e integração dos diversos projetos dentro do Progra- os locais de atividade, e constantes períodos de greve
ma. Assim, o serviço pode ser realizado de maneira da Universidade.
eficaz, contribuindo para a satisfação da comunidade
atendida e dos próprios estudantes em fazer parte de
um trabalho inovador na Universidade. Essa integra- Conclusão
ção com o serviço permite o desenvolvimento de uma
relação de trabalho democrática, ética e transparente, A formação de um profissional de saúde crítico, refle-
propiciando o sucesso das atividades e a consequente xivo, preparado para atuar em equipe e no mercado
melhoria da qualidade de vida da comunidade. de trabalho exige uma série de experiências de ensino-
A mudança da mentalidade dos acadêmicos tam- aprendizagem diferenciadas (PEREIRA et al, 2008).
bém foi um efeito facilitador, na medida em que novas Os resultados obtidos nas avaliações e no acom-
exigências surgiram, evidenciadas pela criação e pelo panhamento dos alunos sugerem que os objetivos de
fortalecimento da Liga Acadêmica de Saúde da Famí- inseri-los em equipes multiprofissionais, capacitá-los
lia, pela contratação de um professor titular com espe- para problematizar a realidade e planejar ações de
cialização em Medicina da Família e Comunidade, e modificação de situações de risco em equipes multi-
pelo pleito, com os organismos políticos internos da profissionais foram alcançados. Os próprios acadêmi-
faculdade (Centro Acadêmico e Conselho Acadêmi- cos consideraram que a participação no programa foi
co), pela reorganização das disciplinas clínicas com importante para a sua formação (PINTO et al, 2009).
maior enfoque na Medicina de Família. É necessário, no entanto, aprofundar a inves-
Entretanto, é necessário ressaltar os fatores difi- tigação de como essa experiência poderá influenciar
cultadores para a contínua reavaliação e melhoria do na formação final desse profissional de saúde, e se ele
Programa. Por parte da Secretaria de Saúde do Distri- estará mais apto para integrar as equipes multiprofis-
to Federal, falta uma ampliação das equipes do PSF na sionais propostas pelo SUS.
Regional de Saúde do Paranoá, para uma multiplica- Apesar dos diversos aspectos dificultadores rela-
ção das experiências positivas ocorridas. A resistência tados, o aprendizado pela prática, o contato com a
por parte dos Agentes Comunitários de Saúde, que, comunidade carente, a convivência com os profissio-
devido ao insucesso no pleito de bolsas de pesquisa, nais do serviço da Estratégia Saúde da Família, pos-
não interagem completamente com os acadêmicos sibilitados pelo PET-Saúde, interferem na mudança
durante as atividades, enfraquecendo uma visão mais do foco dos futuros profissionais da saúde, sendo
ampliada da integração dos múltiplos profissionais da atingido com sucesso um dos principais objetivos da
área da Saúde. implementação do Projeto no Brasil.
682 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 678-683, out./dez. 2012
SILVA, R.O.B.; ALVES, E.D.; CARVALHO, D.S.L.; MESQUITA, D.M. • Programa PET-Saúde: trajetória 2009-2010, na Universidade de Brasília
Os alunos mobilizados interagem com o restante efetivamente preocupados com a Atenção Primária à
da comunidade discente, propondo mudanças curri- Saúde.
culares no âmbito da atenção primária. Salienta-se a importância de multiplicar e divul-
Percebe-se a necessidade de uma extrapolação gar tais experiências para o fortalecimento da interação
dessa experiência para outras localidades, possibili- entre as diversas categorias profissionais, a articulação
tando uma ampliação dos efeitos positivos propicia- das ações para promoção da saúde, o aprimoramento da
dos pelo PET-Saúde e pela influência desses efeitos formação profissional e a consolidação do SUS, através
sob a perspectiva de formação de novos profissionais do conhecimento interdisciplinar (REGINA, 2010).
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Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 678-683, out./dez. 2012 683
ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
1
Doutor em Saúde Coletiva pela Faculdade
de Ciências Médicas da Universidade
RESUMO Este ensaio considera o contexto da dinâmica social brasileira como desafio para
Estadual de Campinas (FCM/Unicamp) –
Campinas (SP), Brasil. Professor Adjunto do
as relações entre a gestão do sistema de saúde e o trabalho em saúde. Além dos pactos
Departamento de Medicina da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar) – São Carlos
recentemente firmados entre os entes governamentais, reconhece a necessidade impe-
(SP), Brasil.
giovanni@ufscar.br
rativa de um pacto ético/político entre gestores e trabalhadores. Nesse pacto, a gestão do
sistema deve assumir a perspectiva cotidiana da produção do cuidado e nela reconhecer o
protagonismo do ator essencial que são os trabalhadores de saúde. Diante da ausência de
um pacto ético-político entre gestores e trabalhadores, apresenta uma proposta para sua
construção, como contribuição à consolidação do Sistema Único de Saúde.
PALAVRAS CHAVE: Atenção à saúde; Recursos humanos; Gestão de pessoal; Sistema Úni-
co de Saúde; Saúde pública.
ABSTRACT This paper considers the context of brazilian social dynamics as a challenge for
relations between the management of the health system and health work. In addition to the
recently signed agreements between governmental entities, the study recognizes the imperative
need for an ethical political pact between managers and workers. In this pact, the manage-
ment system should take the daily perspective of care production and recognize the role of the
essential actor who is the health worker. Given the absence of an ethical-political pact between
managers and workers, presents a proposal for its build-up as a contribution to the consolida-
tion of the Unified Health System.
KEYWORDS: Health care, human resources, personnel management; Unified Health System;
Public Health.
684 Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 684-694, out./dez. 2012
ACIOLE, G.G. • Falta um pacto na Saúde: elementos para a construção de um Pacto Ético-Político entre gestores e trabalhadores do SUS
Saúde em Debate • Rio de Janeiro, v. 36, n. 95, p. 684-694, out./dez. 2012 685
ACIOLE, G.G. • Falta um pacto na Saúde: elementos para a construção de um Pacto Ético-Político entre gestores e trabalhadores do SUS
federativo em um modelo de gestão financeira e tribu- (CECCIN; FEUERWERKER, 2004a) e tem alimen-
tária ainda bastante centralizado. tado, inclusive, um conjunto de reflexões em torno
A experiência acumulada com o processo de des- do processo de formação profissional para o SUS
centralização trouxe, contudo, novos elementos para o (CECCIN; FEUERWERKER, 2004b).
amadurecimento da reflexão sobre as especificidades do Pautados por esse cenário, os gestores das três esfe-
papel de cada esfera de governo no Sistema Único de ras do SUS firmaram, em 2006, um compromisso pú-
Saúde. O importante avanço da descentralização nos blico e institucional de construção do Pacto pela Saúde,
últimos anos requer, além disso, a ampliação do escopo de revisão anual, respeitando os princípios constitucio-
da função de controle e avaliação no âmbito dos estados nais do SUS e as necessidades de saúde da população,
e, particularmente, dos municípios, de forma a superar com implicação nos três eixos ordenadores: Pacto pela
o enfoque de avaliação de resultados, isto é, o transitar Vida, Pacto em Defesa do SUS e Pacto de Gestão do
das atividades tradicionais de vistoria e controle de fa- SUS (BRASIL, 2006). O Pacto pela Vida se constitui
turamento dos prestadores do sistema de saúde para a de um conjunto de compromissos ético-políticos deri-
mensuração da qualidade do atendimento às necessida- vados das situações epidemiológica e sanitária do país,
des de saúde dos usuários. consideradas suas disparidades regionais; e significa
Os pressupostos políticos do momento atual indi- uma priorização de ações focadas em resultados e com
cam que, para o aprofundamento do processo de des- a explicitação dos compromissos orçamentários e finan-
centralização, deve-se ampliar a ênfase na regionaliza- ceiros para sua execução pelas três esferas de governo.
ção e no aumento da equidade, buscando a organização As prioridades firmadas para 2006 foram, entre
de sistemas de saúde funcionais em todos os níveis de outras: implantar a política nacional de atenção à saúde
atenção, não necessariamente confinados aos territórios do idoso; reduzir a mortalidade por câncer de colo de
municipais e, portanto, sob responsabilidade coorde- útero e de mama; reduzir a mortalidade materna, neo-
nadora dos gestores estaduais. Além da lógica político- natal e infantil por diarreias e pneumonias; fortalecer
administrativa de delimitação dos sistemas de saúde, a capacidade do sistema de responder às doenças en-
que assegura a indivisibilidade dos territórios munici- dêmicas e emergentes, com ênfase na dengue, malária,
pais e estaduais no planejamento da rede e a autono- hanseníase, tuberculose e influenza; elaborar e implan-
mia dos entes governamentais na gestão, é fundamental tar a política nacional de promoção da saúde, interna-
considerar, para a definição do papel de cada nível de lizando, principalmente, hábitos saudáveis de atividade
governo no sistema funcional, as noções de territoria- física e redução do tabagismo; e consolidar e qualificar a
lidade na identificação de prioridades de intervenção e estratégia da saúde da família como modelo de atenção
de organização de redes de assistência regionalizadas e básica e como ordenadora das redes de atenção à saúde
resolutivas, além das capacidades técnico-operacionais do SUS.
necessárias ao exercício das funções de alocação de re- O Pacto em Defesa do SUS estabelece a ação
cursos, programação físico-financeira, regulação do organizada e concreta dos três níveis de governo para
acesso, contratação de prestadores de serviço, controle reforçá-lo como política pública de Estado, defenden-
e avaliação. do vigorosamente os princípios que a norteiam. Como
Especialmente depois da experiência político- prioridades apontadas em 2006, mencionamos: imple-
institucional de gestão do trabalho e da educação na mentar um projeto de mobilização social que inter-
Saúde, realizada pelo Ministério da Saúde, a partir de nalize nos corações e mentes a saúde como direito de
2003, a construção de equipes de trabalho singulares, cidadania e dever do Estado, e o SUS como política
cooperativas, autônomas e instrumentalizadas para atu- garantidora universal desse direito; alcançar a regula-
ar e intervir no quadrilátero da saúde (educação, gestão, mentação da Emenda 29, que estabelece a política de
modelo assistencial e controle social) se tornou elemen- financiamento do sistema; garantir o incremento dos
to constituinte desse conjunto de ações estruturantes recursos orçamentários/financeiros em todos os níveis
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ACIOLE, G.G. • Falta um pacto na Saúde: elementos para a construção de um Pacto Ético-Político entre gestores e trabalhadores do SUS
de governo; e aprovar o orçamento do SUS, com parti- brasileiro desde as primeiras décadas do século XIX,
cipação de todas as esferas e explicitação de compromis- que ganha inflexões nítidas nas últimas décadas do sé-
sos de cada uma delas. culo XX, com os contornos sociais que assume. Os
O Pacto de Gestão do SUS estabelece as responsa- pactos na saúde revelam, assim, forte vinculação com
bilidades de cada esfera de governo, visando a diminuir dimensões políticas e sociais. Esse seu caráter se reve-
e até eliminar as competências concorrentes, deixando la essencial para a efetivação de políticas de Estado,
mais clara a tarefa de cada governo para uma gestão ao garantir legitimidade para os atores institucionais
compartilhada e solidária do Sistema de Saúde. Neste e ao potencializar efetividade e governabilidade para
sentido, o pacto reafirma a importância da participa- as políticas públicas setoriais. A pactuação, portanto,
ção e do controle social, e explicita as diretrizes para o não deve ser vista como marco acabado e exitoso de
financiamento tripartite: busca critérios para alocação um acordo entre pares. Ao contrário, representa um
equitativa de recursos, reforça os mecanismos de trans- processo de negociação permanente em busca da su-
ferência de recursos interesferas, integra o fundo federal peração de conflitos intergovernamentais, e elo de
e estabelece relações contratuais entre os três níveis de construção de uma responsabilização solidária que,
governo. por meio de metas, indicadores e ações bem defini-
Como prioridades, o Pacto estabelece o compro- das, constitua uma forma indutora de accountability
misso com a inequívoca definição da responsabilidade e transparência, capaz de favorecer a democratização
sanitária de cada esfera de governo e pontua as diretrizes dos espaços institucionais de governo e o controle so-
de gestão com ênfase na descentralização, na regionali- cial (GUERREIRO; BLANCO, 2011). Nesse contex-
zação, no financiamento compartilhado, na programa- to, além disso, os serviços públicos atravessam uma
ção pactuada e integrada, na participação e no controle fase de transição e de rearranjos funcionais e organiza-
social, no planejamento integrado e na gestão do tra- cionais, em que se colocam o debate de soluções entre
balho e da educação na saúde, mas ainda teremos que as organizações sociais (OS) (MERHY, 1999) e/ou as
aguardar o tempo histórico necessário para que os efei- fundações estatais (BRASIL, 2007).
tos de tal agenda política sejam efetivamente sentidos. Parece-nos, pois, de fundamental importância
Até porque, em que pese a agenda de compromissos fir- que a política de gestão do trabalho para a saúde seja
mada pelos Pactos, a implantação efetiva de um sistema destacada, e que nela, sempre e cada vez mais, ressal-
com essa ambição e complexidade exige uma organiza- te-se a importância de um ator social cujo protago-
ção que enfrente um conjunto crescente de dificuldades nismo deve tomar seu devido destaque na cena: os
determinadas pela resistência dos interesses contrários a trabalhadores de saúde. Primeiro, para o alcance da
essa proposta. No momento atual, a dinâmica político- verdadeira medida da complexidade, da abrangência
administrativa do SUS é afetada por questões contextu- e das interfaces de sua ação, o que inclui elementos
ais, como as decorrentes da política econômica federal, que envolvem da sua formação à sua qualificação para
e seus âmbitos administrativo e previdenciário, ao lado agir em saúde. Segundo, para o dimensionamento do
das consequências da redistribuição de encargos e re- lugar e do papel que verdadeiramente ocupa na agen-
cursos nas três esferas de governo (DAIN, 2001), pela da da gestão do sistema de saúde. E, terceiro, para a
centralidade tributária, e mesmo pela tendência à flexi- constatação da centralidade que ocupa na questão da
bilização das relações de trabalho resultante do proces- atenção à saúde, prestada no interior dos serviços do
so de globalização econômica e social, com os reflexos SUS em todos os níveis. E antes que a terceirização
considerados nas políticas e nos avanços de seguridade desenfreada e a desregulamentação das relações de tra-
social (FLEURY; LOBATO, 2009; ACIOLE, 2006). balho comprometam ainda mais o desempenho de um
A proposta de pactos políticos é uma experiência ator político, cujo tratamento, em geral, não conse-
fortemente incrustada na história institucional e po- guiu superar os limites burocráticos e as amarras do
lítica nacional, remontando à estruturação do Estado convencional, que insistem em continuar tratando a
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ACIOLE, G.G. • Falta um pacto na Saúde: elementos para a construção de um Pacto Ético-Político entre gestores e trabalhadores do SUS
gestão do trabalho como questão centrada na adminis- saúde da população brasileira. Já os segundos, que pos-
tração de pessoal ou como desenvolvimento de pessoal sam ser levados a repensar sua inserção e seu papel, de
e de recursos humanos. modo que o empenho no alcance dos objetivos pactu-
Precisamos, pois, dar passos mais largos para a ados possa ser o motor para o atendimento de sua rei-
construção de uma relação ético-dialógica entre a gestão vindicação por remuneração justa, concomitantemente
e o trabalho, de modo a incluir no conjunto de forças com o engajamento substancial na mudança das condi-
sociais envolvidas com a construção do SUS também os ções de saúde e doença da população assistida. Realizar
trabalhadores; sob uma perspectiva na qual sejam vis- esse pacto significa, portanto, trilhar passo importante
tos como portadores de protagonismo e de capacidade na construção de uma correlação de forças favorável ao
de autogoverno, e não somente como força de trabalho enfrentamento dos desafios éticos e políticos coloca-
submetida passivamente às injunções administrativas dos na cena institucional brasileira desde o nascimento
e gerenciais, ou subsumida nas questões corporativo- constitucional do SUS, em 1988.
profissionais que a regulamentam e despedaçam.
A fim de assegurar os compromissos social e polí-
tico por parte dos gestores, na forma de decisão política Uma proposta para a gestão do trabalho:
no cumprimento dos preceitos legais para a implemen- construção do pacto ético-político entre
tação do SUS, resta por fazer um pacto com os traba- gestores e trabalhadores
lhadores em cada nível de governo. Com os recursos e
instrumentos do planejamento em saúde, nas magnitu- Entendermos o modelo assistencial como o doador de
de e abrangência necessárias, sem o revés das tentações sentido às ações da política de saúde, em geral, e da ges-
centralizadoras e tendo como foco as realidades locais, tão do trabalho, em particular, implica a ampliação das
tomando suas peculiaridades como espelho para o enca- discussões para reformulação da prática acima apon-
minhamento de soluções e respostas às demandas, um tada, a fim de que se articule uma política específica
pacto entre a gestão e o trabalho gera enormes possibili- de gestão do trabalho dentro do SUS, em consonância
dades para o caminho da implementação da política de com a conjuntura apontada. Em outras palavras, a ges-
saúde, que desde a criação do SUS persegue o encontro tão do trabalho deve ser vista como um lugar de formu-
fecundo entre a intenção e o gesto, num sistema único, lação e execução da política de saúde e de uma política
porém pleno de potencialidades do diverso e do múlti- para o trabalho no SUS. Uma execução ágil, eficaz e
plo, e aberto aos desafios de um processo de construção democrática de uma política construída por decisões
que parece nunca acabar (ACIOLE, 2006). tomadas em colegiados paritariamente constituídos. Ao
A intenção deste artigo, elaborado a partir de re- se voltar para a qualificação do processo de trabalho no
flexões acumuladas na trajetória pessoal do autor (que campo da assistência e da gestão, esta área deve buscar
foi, em momentos diversos, dirigente sindical, médico, atingir respostas efetivas aos três imperativos colocados
participante de movimentos e projetos de reforma e anteriormente na introdução deste texto. A partir desse
transformação da formação em saúde, além de gestor enfoque, podemos ressaltar como seu objeto que inter-
municipal de saúde), é propor a efetivação de um pac- medeie um processo de aproximação entre a gestão e
to ético-político construído consensualmente entre os o trabalho, de modo a transcender os aspectos formais
dois atores coletivos – gestores e trabalhadores da saúde do contrato, estabelecendo um diálogo entre estes dois
–, colocando ambos no caminho da efetiva implantação coletivos e arrastando ambos para a efetiva implantação
do SUS. Pacto em que os primeiros possam oferecer não do Sistema Único de Saúde.
apenas remuneração justa, como também condições in- A construção desse consenso ético-político deve
fraestruturais de trabalho; que estas estejam atreladas procurar âncora em diretrizes que balizem o desencade-
ao alcance de objetivos postos na garantia da qualidade amento do processo em todos os locais da organização
da assistência e do real atendimento às necessidades de ao mesmo tempo que permitam, revelem e respeitem as
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particularidades locais. Dos gestores, como já dissemos, atenção integral às necessidades de saúde da população
que passem a oferecer tanto condições infraestruturais brasileira em todos os níveis, ações e serviços do sistema
e materiais de trabalho quanto uma remuneração mais de saúde.
justa e equânime com as reais necessidades e motivações Atender aos imperativos de construção de um
dos trabalhadores, atrelada, no todo ou em parte, ao pacto ético-dialógico entre gestores e trabalhadores,
alcance de objetivos pactuados prévia e continuamente. portanto, implica a ideia de que no interior dos espaços
Dos trabalhadores, deseja-se que possam ser e estar en- institucionais, seja dos serviços locais, seja das organi-
volvidos na adesão crítica e consciente ao projeto, e que zações maiores como as secretarias de saúde, desenca-
repensem o seu papel, assumindo a dimensão de par- deiem-se os seguintes momentos de um processo que
ceiros construtores desse projeto e não somente de seus representa o movimento de construção do pacto a ser
executores. Adesão crítica, na proporção em que o em- efetivado. Esclareçamos, ademais, que utilizamos a pa-
penho no alcance das mesmas metas e objetivos possa lavra momento na sua acepção de potência de mover ou
ser o motor para o atendimento de suas reivindicações pôr em movimento, e não com o significado de hiato
por remuneração justa, mas que também signifique ou intervalo de tempo.
progressiva melhora das condições infraestruturais des-
se desempenho e progressivo envolvimento, responsa-
bilização e vínculo de si com a população sob cuidado. Primeiro momento: a discussão do modelo
Para tanto, destaquemos alguns princípios nor- assistencial
teadores desse processo de pactuação: a) Considerar o
setor público como espaço de investimento, portanto, Mais do que uma discussão dos méritos do modelo or-
merecedor de um olhar e de um agir políticos diferen- ganizacional da assistência à saúde, em vigência no mu-
ciados, em busca de resultados que os legitimem pe- nicípio ou nas redes regionais de atenção à saúde, o que
rante o meio social; b) que a qualificação da assistência pode significar, em última instância, a discussão ideo-
à saúde, prestada no interior do aparelho estatal, seja logizada das concepções políticas do governo no apa-
tomada como instrumento para essa legitimação; c) Em relho do Estado, interessa aqui, para o momento deste
consequência dos anteriores, que o atendimento às ne- passo, a explicitação dessa política em seus elementos
cessidades da população assistida deva presidir todos os analíticos: do que se compõe ou como se estrutura; para
momentos do processo de trabalho localizado nos servi- quem é voltada; e quais são seus objetivos e prioridades,
ços e nas ações desenvolvidas; d) Nesse escopo, o resgate de modo a explicitar o interesse público como o norte
da dignidade do exercício profissional, em todas as suas maior das políticas sociais.
instâncias, surge como condição necessária e inerente à Assim, é importante colocar em relevo e pôr em
consecução dos princípios anteriores. debate como se organiza; quais os critérios existentes
Diante dessas questões, o processo de construção para inclusão/exclusão; como se dá a participação po-
do pacto entre gestores e trabalhadores deverá se de- pular para o controle social da gestão pública; quais
sencadear em condições, aqui destacadas somente para são os principais aspectos do financiamento, da gestão
efeito de apresentação, mas que devem se realizar de financeira e das estruturas organizacional e administra-
modo simultâneo e complementar, a fim de bem or- tiva, democratizando informações e ampliando os ca-
denar a relação entre a gestão e o trabalho em saúde. nais de transparência e democracia institucional. Esse
Condições que não devem ser compreendidas em uma movimento de elucidação diagnóstica levará, necessa-
dimensão semântica de aspectos conjunturais, mas que riamente, à identificação dos ‘interlocutores’, de modo
representam os necessários desdobramentos para que a a estabelecer, de modo peremptório e cabal, a represen-
pactuação pretendida aconteça de forma a subsumir o tação institucional e formal dos gestores e dos trabalha-
que parece ser um recorte assistencialista, com um efe- dores, bem como ao envolvimento direto daqueles que
tivo engajamento da gestão e do trabalho em buscar a constituem seus antípodas institucionais – os ‘usuários’
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– nas suas instâncias representativas e deliberativas – os das diferentes unidades de saúde e a composição das
conselhos gestores. equipes/unidades’ se constituem em uma etapa proble-
Na outra ponta da interlocução sistêmica do pacto matizadora das diferenças e especificidades, no sentido
com os trabalhadores, haveria que se dedicar tempo e de garantir o tratamento de diferentes como desiguais
atenção às dimensões estruturais e financeiras do sis- e de evitar os vieses de uma sub ou superestimação do
tema de saúde. A caracterização dos recursos, suas ori- que é a moda, ou a média, incorrendo em uma dupla
gens e a interação entre os mesmos seriam dimensões possibilidade de erro: ocultar as unidades/equipes pro-
a serem trabalhadas, no sentido de revelar situações e blemáticas dentro do sistema e/ou puxar para baixo ou
estruturas condicionantes/determinantes de resultados para cima os resultados da avaliação, mascarando seus
desejados/alcançados. Da mesma forma, isso deve ser verdadeiros objetivos. A ‘discussão do papel, individual
feito com relação aos eixos balizadores do modelo. As- e coletivo, de cada corporação e de cada profissional, e
sim, a organização da referência e da contrarreferência, do compromisso exigido’ para o exercício desse papel
por exemplo, explicitaria outro sem número de situa- é outra etapa de capital importância, especialmente se
ções que produzem interações entre os diversos níveis compreendida como momento de pactuação inter e in-
da atenção. Isso leva, por sua vez, a que se apresente traequipes e grupo dirigente, e enquanto fase ou etapa
o modus operandi que define/condiciona/estrutura, produtora de corresponsabilidade recíproca, e não para
ou não, a hierarquização de procedimentos: qual o afirmar/reafirmar poderes e lógicas estabelecidas.
seu grau de amplitude, qual o nível de sua organiza-
ção, levando, ou não, à horizontalização dos profissio-
nais. Finalmente, mas não por último, a adscrição de Terceiro momento: a discussão da gestão e
clientela, como importante denominador da equação: sua organização
gestão-trabalhadores-usuários.
Consideramos fundamental a discussão do ‘papel da
gestão, seus recursos e sua interação com os meios e
Segundo momento: a discussão do processo instrumentos’ que gerencia para estabelecer uma com-
de trabalho preensão crítica de uma das pontas da equação – a
gestão do sistema e do trabalho em saúde, de forma
Para esta discussão, importa, sobretudo, ‘discrimi- a ir além de sua dimensão administrativa. Ainda que
nar positivamente o papel de cada corporação profissio- também seja uma instância responsável por aspectos
nal no processo’; e ter em vista a compreensão crítica de formais da relação de trabalho, a gerência deve ganhar,
algumas das variáveis que apontamos anteriormente. É aqui, ou ter apontada entre suas características a con-
preciso ressaltar as especificidades que cercam os proce- dição de instrumento a serviço da produção de elos de
dimentos envolvidos: os saberes e práticas envolvidos, integração e fomento do trabalho solidário, depositária
a organização de equipes, os mecanismos de planeja- de uma identidade profissional que procura subsumir
mento, gestão e regulação, como pano de fundo a inter- todas as demais sem anular-lhes as especificidades. O
mediar as relações entre os atores envolvidos. Para esse ‘modelo de gestão’, igualmente, deve ter destacadas as
passo, propomos a discussão e a análise ‘da lógica/racio- suas características, tanto como condição estruturante
nalidade do sistema ou da rede’, no sentido de identifi- para a gestão do trabalho, como instância delimitadora
car se é aberta, burocratizadora, receptiva etc. Um estu- e estruturadora dos limites e das amarras do cotidiano
do do processo de entrada e saída do paciente dentro do da mesma, agregando subprodutos que se constituem
sistema, por exemplo, permite revelar como interagem em variáveis construtoras de itens da própria avaliação,
e como se condicionam os momentos de acolhimento, ao mesmo tempo que produzem tessituras constitutivas
diagnóstico, conduta e gerenciamento do cuidado para da própria avaliação em si. Assim, por exemplo, se o
a obtenção deste ou daquele resultado. A ‘apresentação modelo de gestão é colegiado ou não, centralizador ou
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não, no todo ou em parte, ou seja, se permite encontros e a habilidade das equipes de trabalho, os protocolos
periódicos das equipes; se os realiza; se propicia espa- de atendimento específicos, os indicadores de saúde e
ços de encontros entre os diversos níveis da gestão e do outros, poderão ter sua construção ou utilização defini-
trabalho; se existe conformação de equipes de trabalho das, na medida em que o processo de pactuação estiver
em função de produtos esperados; se cada profissão faz sendo executado.
a sua parte de acordo com a sua especialidade; se exis-
te espaço de planejamento coletivo ou de discussão de
prioridades etc. As ‘características problematizadoras’ Quinto momento: desencadeamento do
são decorrentes da discussão da etapa anterior, e serão processo
definidas em função das características apontadas para o
modelo de gestão em exame. Assim, um modelo centra- Um quinto e, talvez, decisivo passo subsume e dá o
lizador, verticalizado, terá identificadas características eixo organizacional e o sentido a todos os anteriores:
que balizarão a sua transformação em modelo de gestão desencadear a construção do pacto. Em consideração
colegiado, democrático e dialógico, e assim por diante. à ideia de ‘processo’, este momento se dará desde que
se inicie o primeiro passo. Importante apontar algumas
sugestões, a nosso ver, facilitadoras da tarefa, e que já
Quarto momento: a elaboração de vimos pespontando ao longo deste detalhamento. A
instrumentos primeira diz respeito à necessidade de sua construção
coletiva. Assim, é recomendável a constituição de uma
O passo seguinte, antes de esgotada a realização dos an- equipe que reúna elementos tanto do nível gerencial
teriores, será a ‘definição das regras do jogo, de modo a central como das áreas meios e dos serviços de assis-
permitir o feedback necessário para o acompanhamen- tência direta, não só para tornar mais rica e inteira a
to e o aprimoramento do processo’. Fundamental para discussão, mas também para fazer do grupo uma estra-
a objetivação do processo e para a posterior avaliação tégia de envolvimento de todos os atores na tarefa em
será a participação de todos os sujeitos envolvidos, si e para si. A segunda sugestão diz respeito à necessi-
em sua dupla perspectiva: de submetidos e de agentes dade de que o processo adquira uma característica de
ativos, como dimensões que firmam explicitamente a organicidade, em que o coletivo das equipes de trabalho
compreensão do processo como uma construção cole- se sinta apropriado do processo todo, aqui compreen-
tiva e paritária e cujos interesses particulares se subsu- dido enquanto propiciador de estímulo ao sentimento
mem no objetivo transcendente de um salto qualitativo de corresponsabilidade. A terceira procura se referir ao
nas relações entre a gestão e o trabalho. Os ‘elementos cuidado de que nenhuma categoria profissional deva ter
singulares do processo deverão ser produtos dotados de subestimado o seu potencial e o seu papel para a cons-
natureza superior às meras volições corporativas, enga- trução da assistência, ainda que o seu valor de uso social
jamentos voluntaristas ou posições militantes ou idios- possa ser maior ou menor na perspectiva do senso co-
sincráticas. Assim, os instrumentos do pacto devem se mum. Finalmente, uma prévia avaliação das condições
pautar pelas transformações na qualidade, pelos aspec- objetivas de governabilidade, dentro da convicção de
tos éticos de compromisso e pela adesão de equipes e de que esse processo, uma vez desencadeado, deva ganhar
serviços, bem como por indicadores epidemiológicos e caráter de irreversibilidade para garantir-lhes as condi-
de resultados que meçam transformações na atenção às ções necessárias de existência e continuidade, conside-
necessidades de saúde dos usuários’, e não apenas pela radas suas potencialidades e seus atributos na direção
produção de atos profissionais. São dimensões neces- das mudanças necessárias, tendo em vista o alcance dos
sárias ao processo de coletivização do pacto. Algumas objetivos e das metas gerais apontados no início deste
‘ferramentas’ serão estabelecidas em consequência dessa trabalho. Para esse aspecto, convém considerarmos as-
etapa. Assim, a caracterização da clientela, a composição pectos que estão presentes em arenas colegiadas, como
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a dos conselhos de saúde: é imprescindível a garantia de produto coletivo, que subsume, mais do que reúne, os
aspectos formais e legais, tanto quanto de representa- diferentes desempenhos individuais. A segunda é que
tividade e legitimidade dos atores que sentarão à mesa não pode provocar o desaparecimento do componente
para a elaboração dos termos do pacto. individual, porque submerso na equipe ou para evitar
os nós críticos que a discriminação positiva dos desi-
guais deve suscitar . Isso se torna possível na medida em
Sexto momento: a avaliação do processo que o trabalho em equipe deixe de ser uma abstração
em termos e se constitua em processo de autonomia
Em consonância com o que foi dito antes, é preciso profissional e autogoverno, em que se considerem os
constituir a avaliação como um instrumento para a ges- interesses pessoais e os interesses grupais como fatores
tão, colocando-a na perspectiva de dispositivo de análi- em si condicionantes. Portanto, para corresponder ao
se, e inserida em um processo de vinculação entre obje- sentido anteriormente apontado, que se considere con-
tivos e metas pactuados, o que significa o atendimento ditio sine qua non a sua construção coletiva.
às necessidades da população assistida e uma resposta A terceira decorre do fato de que, enquanto ins-
às demandas das categorias profissionais envolvidas no trumento de uma relação ético-dialógica, esse momen-
processo de produção da assistência à saúde. E também to do pacto não pode, isto é, a avaliação não pode,
enquanto uma etapa de definição da política de valo- simplesmente, aparecer como por encanto no seio
rização dos profissionais envolvidos nesse mesmo pro- da organização. Não deve vir como encomenda! Que
cesso. Isso significa compreendê-la como um processo não seja despencada como um pacote e/ou não venha
de negociação entre os atores envolvidos na intervenção como fator de produção pecuniária! Antes, e de novo,
a ser avaliada, ou seja, pressupõe a construção de um para que faça sentido, deve ser instaurada no interior
diálogo permanente entre interlocutores, em igualda- de um processo de discussão coletiva que lhe infunda
de de situação discursiva, preocupados em constituir um necessidade, inerente e intangível. Por conta mesmo do
espaço dialógico de natureza ética para que a avaliação respeito ao sentido e à introjeção de seu significado, e
se constitua não somente em uma leitura dos resulta- de ser colocada sob a perspectiva de construtora de um
dos, mas seja igualmente geradora de procedimentos e contrato de gestão, sob a premissa de ser construída em
práticas de aprendizagem, pela identificação coletiva do processo.
que constituirá categorias e elementos de análise e acom- Uma característica fundamental, consequência
panhamento (HARTZ; CONTRANDIOUPOLOS, e razão para que se constituam as anteriores, reside
2008). na identificação e na construção coletiva dos obje-
Para tanto, entendemos ser necessária a observân- tivos colocados, dos critérios adotados e dos papéis
cia de algumas medidas preservadoras desse espírito em situação de avaliados, com toda a clareza possível
ético-dialógico. A primeira é que a avaliação precisa ser por todos os envolvidos, de modo que não apenas se
doadora de sentido. E, nesse caso, um duplo sentido: superem problemas oriundos dessa natureza, como
tanto uma clara definição de ‘para quê’ e ‘por quem’ também se possa lidar em maior grau e com maior
precisa ser feita, de ‘como’, ‘quando’ e ‘onde’ precisa que tranquilidade diante do imediatismo dos resultados,
aconteça, quanto compreendida além da dimensão de positivos ou negativos, na direção de um contínuo e
auditagem mecânica e fria, ou acima da perspectiva de solidário repensar crítico das próprias funções da or-
supervisão autoritária e rígida, ou, ainda, como uma ganização. Um processo, enfim, cuja viabilidade não
espécie de intermediária entre o trabalho e a recompen- se atrela exclusivamente à eficácia ou aos resultados,
sa. Ou, pior, como pacote gestado em instâncias supe- mas essencialmente aos passos dados na sua constru-
riores. Assim, tanto por quem a faz como por quem a ção. E esse proceder também constitui escopo para a
recebe, o que aqui é mera separação didática, a avalia- construção crítica do sujeito coletivo, na sua dupla di-
ção deve tomar o desempenho em uma perspectiva de mensão de avaliador-avaliado.
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Recebido para publicação em Maio/2011
Versão definitiva em Junho/2012
Suporte financeiro: não houve
Conflito de interesse: inexistente
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ARTIGO ORIGINAL • ORIGINAL ARTICLE
1
Doutor em ciências sociais pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
RESUMO Este artigo traz uma reflexão sobre a questão do cuidado nos serviços territoriais
– São Paulo (SP), Brasil. Professor do curso de
Terapia Ocupacional da Universidade Federal
e comunitários, no contexto de consolidação e aperfeiçoamento do SUS. Através da noção
Paulista (UNIFESP) - Santos (SP), Brasil.
ferkinker@ig.com.br
de encontro terapêutico, busca afirmar a necessidade de os processos terapêuticos parti-
rem do diálogo e das mudanças nos fluxos de poder entre usuário e terapeuta, produzin-
do percursos singulares e inéditos não previstos. Através da ideia de que o processo de
transformação é a regra e não a exceção nos organismos vivos, constata que a modificação
do terapeuta é condição para a modificação do usuário dos serviços.
PALAVRAS CHAVE: Serviços territoriais e comunitários; Relação terapêutica; Relações de
poder.
ABSTRACT This paper presents a reflection about the question of the carefulness in the te-
rritorial and communitarian services, in the context of SUS’s consolidation and improvement.
Through the notion of therapeutic meeting, it aims to affirm the need of the therapeutic pro-
cess to arise from dialogue and changes in the power flow between the therapist and the pa-
tient, creating singular and unique ways not predicted before. Through the Idea that in living
organism the transformation process is the rule and not the exception, it is ascertained that the
therapist’s modification is a condition for modifying the patient.
KEYWORDS: Territorial and community services; Therapeutic relationship; Power relations.
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KINKER, F.S. • Encontro terapêutico ou processo-metamorfose: desafio dos serviços territoriais e comunitários
natureza em nossas veias. Nesse sentido,só podemos Basaglia, a psiquiatria só se relaciona com a doença e
exercer nossa autonomia e auto-organização através do não com o sujeito, e para isso tem respostas prontas,
diálogo permanente com o ambiente, e, portanto, so- construídas sobre a nosografia, sem dar espaço para
mos ao mesmo tempo nós próprios e os outros. que as perguntas, as necessidades reais e a experiência
No decorrer do processo evolutivo, a metamor- existencial do doente apareçam:
fose, que tem produzido sempre novas organizações,
tem sido a regra e não a exceção, se pensarmos em um Liberar as necessidades reais do usuário
tempo mais longo da história do universo. Sendo assim, de um serviço, das necessidades artificiais,
a saúde pode ser considerada esse processo-metamor- produzidas de tal maneira que a respos-
fose, que transforma o organismo constantemente, e ta à necessidade se traduza no controle da
que aumenta sua potência de agir (SPINOZA, 2009). classe subordinada, significa romper esse
Como ressalta Spinoza (2009), os afetos podem au- mecanismo e fazer explícita, na prática, a
mentar ou diminuir a potência de agir, e o Conatus, o função da ideologia científica como suporte
esforço para perseverar na existência, busca as formas falsamente neutro da ideologia dominante.
de aumentar nossa potência de agir, pois dela depen- (BASAGLIA; BASAGLIA, 1977,p. 17,
de a vida. O propósito da intervenção terapêutica se- tradução nossa).
ria, assim, ampliar as possibilidades de existência e de
transformação, enriquecendo a existência através desse Um movimento de colocar em suspensão os
processo-metamorfose. conhecimentos e repertórios técnicos parece aqui
representar uma forma importante de viabilizar um
encontro transformador com os usuários dos servi-
O cotidiano dos serviços na prática ços. Colocar em suspenso, num cabide imaginário,
metamorfósica os conhecimentos e os modos de operação aprendi-
dos, serve como estratégia para produzir uma nova
Consideremos os serviços territoriais e comunitários escuta e uma nova realidade. Considerando que a
para pensar na prática do cuidado, e tenhamos os CAPS realidade traduzida por nós não é uma fotografia ou
(Centros de Atenção Psicossocial) como referência que um espelho exato do que está fora de nós, pois ‘o
permita a extensão dessas reflexões para os demais ser- objeto do conhecimento é coproduzido por nossas
viços do SUS. projeções mentais sobre uma realidade exterior e pela
Como é sabido, os CAPS são serviços que devem introdução, via tradução e reconstrução, dessa reali-
se responsabilizar pelas questões de saúde mental de de- dade exterior em nossa mente’ (MORIN, 2010, p.
terminada área de abrangência, devendo oferecer um 243-244), podemos entender que, se modificarmos
cuidado contínuo no tempo a partir de um intenso di- as respostas, modificaremos as demandas, produzin-
álogo com seus usuários (BRASIL, 2004). do uma outra realidade; se modificarmos os efeitos,
No cotidiano de trabalho dos CAPS, o diálogo modificaremos as causas através do principio da
com os usuários é central. A forma como se dá esse recursividade (MORIN, 2010). O princípio da re-
encontro é que vai determinar o percurso terapêutico, cursividade é aquele em que causa e efeito se entre-
as demandas, os desafios e os projetos a construir. E laçam; um efeito retroage sobre sua própria causa,
como se dá esse diálogo? Como acessar as reais neces- produzindo movimentos não-lineares e bifurcantes.
sidades dos usuários (BASAGLIA, 1977; BASAGLIA, O conhecimento, as formas de traduzir, enquadrar,
BASAGLIA, 1985) sem reproduzir as respostas já pré- interpretar, produzir a realidade, pode ser utilizado
formadas pelos paradigmas psiquiátricos, psicológicos por nós se não nos submetermos a ele, se não dei-
ou sociológicos, baseadas em necessidades artificiais xarmos que ele nos domine. Porque as respostas que
produzidas pelas ideologias científicas? Como nos diz damos coproduzem os fenômenos:
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KINKER, F.S. • Encontro terapêutico ou processo-metamorfose: desafio dos serviços territoriais e comunitários
[...] los millones de hombres y mujeres cuya pro- então, o arsenal de fundo das mudanças terapêuticas,
ducción de sentido está limitada, bloqueada, já que as relações poder/saber produzem as realidades
aniquilada, negada, no están em dicha condi- e os conhecimentos, as terapias e os contexto de vida.
ción por ser enfermos mentales o por estar en É por esse motivo que as relações terapêuticas são es-
terribles situaciones de sufrimiento psicosocial, sencialmente relações de poder: são construções de
sino essencialmente por falta de respuesta ade- realidades compartilhadas ou não por atores que con-
cuada a sus enfermedades o a sus sufrimientos frontam seus saberes e formas de entender o mundo;
psicosociales. En otras palabras, no es la disca- a busca por uma construção compartilhada de realida-
pacidad resultante de condiciones de enferme- de. Como sugere Nathan (1996), a relação terapêutica
dad o de sufrimiento psicosocial la que quita engendra um debate teórico entre formas diversas de
sentido a los seres humanos sino una decisión ver o mundo; a teoria do terapeuta e a do paciente se
discriminatória tomada por otros. Una decisi- confrontam num sistema de comunicação singular. A
ón que define la producción de sentidos ajenos a sintonia fina que permite uma comunicação na mesma
la razón dominante como ‘ausencia de sentido’. faixa de frequência entre usuário e terapeuta é o grande
(SARACENO, s.d., p. 11-12). desafio da intervenção terapêutica, sendo o confronto
da potência de agir de ambos a energia que produz as
Desta forma, podemos entender que os conceitos realidades. O que está em jogo nessas relações são deter-
de saúde e de doença vão definir o fenômeno a ser tra- minadas produções de verdade, estabelecidas a partir de
tado, e que podemos também, por exemplo, comparti- saberes diversos, entre os atores envolvidos. Caberia ao
lhar de um conceito de saúde como intensidade de vida, terapeuta e ao paciente estabelecer um diálogo múltiplo
em que o considerado doente pode ter mais saúde que que produzisse realidades flexíveis e maleáveis, que se
os ditos normais, por ter mais intensidade de vida em movimentassem. Ou seja, produzir na relação terapêu-
algumas ocasiões. A grande saúde de Nietzsche (1998, tica processos de transformação das condições de vida,
2003, 2008) ou o aumento da potência de agir (SPI- dos papéis sociais, de produção de novos conhecimen-
NOZA, 2009) podem ser uns dos muitos referenciais a tos, novos valores e, assim, novas realidades múltiplas
serem utilizados. E, nesse sentido, o projeto terapêuti- e enriquecedoras, portanto, potentes. O sofrimento
co, o projeto do cuidar, pode se constituir na produção singular possui uma dimensão estritamente relacional,
de um projeto de vida. Como sugere Nicácio (2003), a que o coproduz. Assim, produzimos os percursos que
construção dos projetos de vida e o processo terapêuti- a experiência do sofrimento vai tomar, fazendo-os em
co seriam a construção permanente de um itinerário de conjunto com a pessoa que sofre.
inclusão que parte dos trajetos singulares dos usuários, Outro desafio colocado por esse pleno encontro
tendo como lócus da intervenção a vida concreta dos dos usuários com os profissionais dos serviços (sejam
mesmos, suas relações, seus modos de vida. Escapar-se- estes CAPS, UBS/USF) seria ter como palco das ações
ia, então, de uma abordagem focada na doença, colo- terapêuticas o contexto real de vida dos usuários: um
cando-a entre parênteses para lidar com o sujeito e suas território vivo de relações, onde se misturam percur-
reais necessidades (BASAGLIA, 1985). Tal abordagem, sos coletivos e singulares, relações, produções sociais,
fruto do encontro primeiro entre usuários e terapeutas, sofrimento ou saúde. E, nesses termos, a complexa apa-
exigiria, então, uma mútua transformação, o que nos rência do território coloca desafios importantes aos pro-
levaria à ideia contraditória de que a transformação do fissionais dos serviços territoriais. Tal aparência comple-
usuário dependeria da transformação do profissional. xa é composta por uma série de características que lhe
Ou seja, a transformação do profissional seria a con- confere um ar impenetrável e perigoso: o suposto, mas
dição primeira e um sinal de que o usuário estaria se falso, vazio de recursos; a violência; a fragilidade dos
transformando, aumentando sua potência de agir. As laços sociais provocados pelos novos desenraizamentos
mudanças nos fluxos das relações de poder seriam, do atual estágio do capitalismo; a desregulamentação
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das relações de trabalho e das demais relações (BAUMAN, situações que sejam transformadoras. A forma de orga-
2003); o controle exercido através da sensação de incerteza nização dos serviços expressa o grau de possibilidades
quanto ao amanhã; as novas formas de controle dos desvios de diálogo com os usuários. Por exemplo: se o aces-
que combinam medidas duras e disciplinares típicas de uma so é facilitado, se a forma de acolher é burocratizada
sociedade disciplinar (FOUCAULT, 2000, 2005) com as ou não, se há mecanismos que barram e dificultam a
estratégias flexíveis de uma sociedade do controle (DELEU- entrada dos usuários nos serviços; se as equipes são
ZE, 1992), que se baseiam num misto de submissão vo- flexíveis e têm prontidão (KINOSHITA, 1996), ou
luntária e captura involuntária com vigilância permanente se estão presas em protocolos rígidos; se, no contato
e capilarizada. com o território, são agenciados e potencializados no-
Enfim, o trabalho territorial exige uma imersão nos vos recursos intersetoriais que envolvem relações com
contextos concretos de vida, que pode ser evitado pela ma- outros atores de fora do campo da saúde mental; se os
nutenção constante de programas de atividades protocolares projetos terapêuticos são vistos como projetos mobi-
que afastam o contato com as contradições sociais e com a lizadores de vida ou se são empregados como proto-
realidade de vida dos usuários (as grades de atividade pré- colos de atendimento, muitas vezes apresentados em
formadas por oficinas terapêuticas, grupos terapêuticos, fichas que, longe de representarem a amplitude neces-
atendimentos individuais e grupais que reproduzem o dis- sária dos caminhos a seguir, são limitadores e inibido-
tanciamento das contradições cristalizam os papéis e as situ- res da experimentação (afinal, um projeto terapêutico
ações, evitando qualquer metamorfose e produção de saú- como projeto de vida é o próprio processo de encon-
de). É óbvio que não se trata de negar a potencialidade dos tro e de negociação entre terapeutas e usuários, um
procedimentos dos serviços de saúde mental, mas de consta- movimento que não cabe em nenhuma ficha, embora
tar que esses procedimentos, afastados da realidade concreta os instrumentos de registro possam ajudar, em algum
de vida dos usuários em seu território de existência, servem momento, na organização das estratégias sempre dife-
apenas como formas de controle dos desvios e de manuten- rentes de intervenção); se a unidade garante o Direito
ção da ordem, empobrecimento da existência de usuários e ao asilo (KINOSHITA, 1996). Como nos diz Ki-
profissionais, produzindo o que Saraceno chamaria de entre- noshita (1996,p. 44),
tenimento (SARACENO, 1999), ou seja, ocupar o tempo
dos usuários dos serviços como um fim em si mesmo, sem [...] nas situações em que o paciente neces-
provocar mudanças nas relações sociais, exercendo de fato site de proteção e/ou continência, entende-
uma forma de controle e de invalidação. Poderíamos trocar mos que o sistema deve garantir espaços que
o termo entretenimento pelo de controle e invalidação, lem- proporcionem um distanciamento adequado
brando que passar o tempo como um fim em si mesmo, no das condições habituais de vida do paciente
manicômio ou no CAPS, mesmo que desenvolvendo toda (meio familiar, ambiente de trabalho, círculo
a sorte de atividades, pode tanto ser algo prazeroso como de amizades). Distanciamento que não deve
doloroso, que resulta em despotencializações, se não estiver significar isolamento nem reclusão... Nas si-
conectado e dialogando com a realidade concreta de vida tuações mais críticas muitas vezes é necessá-
dos usuários, onde estão as contradições e as potências de rio criar uma distância útil, que permita a
transformação (SARACENO, 1999,p. 16-17). percepção diferenciada da situação, seja pelo
paciente, seja por todos aqueles envolvidos.
(familiares, amigos, patrões).
Como o diálogo com os usuários pode modular
o cotidiano dos serviços Muda-se, com isso, a noção de internação, que
deixa de ser uma forma de controle e o tratamento
Parecem ser necessárias uma grande dose de liberda- em si para ser uma ação estratégica no acompanha-
de e a possibilidade de experimentação para produzir mento dos usuários, viabilizada através de negociações
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para transformar o seu sofrimento, porque a MAURI, 1990, p. 29). ... cuidar significa
terapia não é mais entendida como a persegui- ocupar-se, aqui e agora, de fazer com que
ção da solução-cura, mas como um conjunto se transformem os modos de viver e sentir
complexo, e também cotidiano e elementar, de o sofrimento do “paciente” e que, ao mes-
estratégias indiretas e mediatas que enfrentam mo tempo, se transforme sua vida concreta
o problema em questão através de um per- e cotidiana, que alimenta este sofrimento.
curso crítico sobre os modos de ser do próprio (ROTELLI, DE LEONARDIS, MAURI,
tratamento (ROTELLI, DE LEONARDIS, 1990, p. 33).
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