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A necessidade de aplicação dos princípios da proporcionalidade e

humanidade no tráfico de drogas protagonizado por mulheres


latino-americanas

“Eu não serei livre enquanto houver mulheres


que não são, mesmo que suas algemas sejam
muito diferentes das minhas” – Audre Lorde

1. Introdução

O tráfico internacional de drogas hoje é o principal responsável pelo encarceramento


em massa nos países da América Latina. A atual política de guerra às drogas têm encarcerado
e criminalizado mulheres vertiginosamente, apesar dessas não representarem uma verdadeira
ameaça para a sociedade. As mulheres presas por tráfico internacional de drogas têm em
comum o aliciamento, seja pela condição de vulnerabilidade socioeconômica ou pela
vulnerabilidade emocional.
No primeiro aspecto são consideradas ‘presas’ fáceis pelos grandes chefes do tráfico,
pois, encontram-se em situação de vulnerabilidade social. Desempregadas, mães solteiras,
arrimos de família são atraídas por promessas de lucro rápido; no segundo, vulneráveis
emocionalmente são cooptadas por seus companheiros, já pertencentes ao mundo do tráfico,
que lhes apresentam a vida ilusória de poder e luxo que podem vir a ter. Antes da ambição
está presente em cada uma o desejo de serem amadas e úteis a esses homens, como bem
expõe La Boétie (2009, p. 66), o que justifica todo o perigo que correm, arriscando a própria
vida ao aceitarem fazer o que lhes é atribuído.
Em ambos os casos, entretanto, veem no tráfico a oportunidade para saírem da
pobreza, deixarem de sofrer privações materiais e oportunizarem aos seus filhos e familiares
melhores condições de vida.
Fato é que, a maioria das mulheres são presas por tráfico internacional de drogas em
razão de condutas de menor participação, raramente estão no topo da pirâmide, não são as
chefes, as ‘cabeças’ do mundo do tráfico, mas apenas e, tão somente, são interceptadas para
exercerem o papel de ‘mulas’1 do crime organizado, ou seja, fazerem o transporte das

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O nome atribuído ao animal híbrido, resultante do cruzamento de um jumento com uma égua, que se
caracteriza por ser do sexo feminino e por servir como animal geralmente usado para o transporte de cargas.

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substâncias até seu destino final. Muitas vezes, elas sequer têm conhecimento da presença de
drogas entre seus pertences.
Ao adentrarem o sistema prisional distanciam-se de sua família, são separadas de
seus filhos e, consequentemente, esquecidas pelos familiares e abandonadas por seus, até
então, companheiros. Há, ainda, os casos das presas que chegam grávidas aos presídios.
O cárcere agrava a situação dessas mulheres, pois, sem perspectivas entram,
permanecem e saem da prisão, em decorrência do sistema penal que não está e nunca esteve
preparado para realizar uma verdadeira política de ressocialização de seus custodiados e
posterior reinserção na sociedade.
A Lei de Execuções Penais prevê, em seu artigo 11, assistência material; à saúde;
jurídica; educacional; social e religiosa. Porém, a realidade não é essa; tendo em vista o fato
de haver pouquíssimas penitenciárias exclusivamente femininas, predominando as mistas,
com alas femininas improvisadas.
Sob a custódia do estado, novamente, essas mulheres veem-se abandonadas e sofrem
graves e constantes violações de direitos humanos básicos, a começar por sofrerem privações
de condições mínimas de higiene, como, por exemplo, o não fornecimento de absorventes e
papel higiênico; sem qualquer atendimento ginecológico e acompanhamento pré-natal quando
grávidas; não lhes é oportunizado estudo e, tampouco, um trabalho em que possam produzir,
ocuparem seu tempo e auferirem renda, de forma a contribuírem no sustento de seus
familiares e terem a chance de encontrarem um emprego quando libertas.
Ou seja, não se leva em consideração a proporcionalidade da conduta em relação ao
bem jurídico tutelado para se aplicar a pena, muito menos se a pena aplicada é realmente
necessária, tendo em vista que, a maioria das mulheres presas não possui ligação com grandes
organizações criminosas e não ocupam posições de gerência ou alto nível no submundo do
tráfico. Da mesma forma, não se observa o princípio da humanidade na execução da pena,
uma vez que as mulheres são submetidas a condições humanas degradantes dentro das
prisões.

2. O perfil das mulheres presas e sua relação com o histórico de colonização da América
Latina

Galeano (2017) expõe muito bem a triste história de colonização da América Latina,
que chama de “a região das veias abertas”, pois desde o seu descobrimento serviu para

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satisfazer as necessidades alheias. Região rica em minerais, petróleo, açúcar, café, frutas, tudo
se transformou em capital europeu e mais tarde norte-americano, inclusive, os homens e sua
capacidade de trabalho e consumo. Sustenta que a história de miséria, atraso e
subdesenvolvimento da América Latina é resultado de seu fracasso em contraposição à vitória
do capitalismo mundial, porque a riqueza dos países que a compõem foi responsável por gerar
a própria pobreza ao nutrir a prosperidade alheia do sistema imperialista, que se fortalece na
necessária desigualdade das partes que o formam, tornando-se cada vez mais ricos.
Quando aqui chegaram, os europeus se depararam com os índios e deles subtraíram
sua força de trabalho, após, atentando-se para o fato de que estes não eram desprovidos de
alma, como assim se acreditava, alguns teólogos protestaram, e a escravização dos índios foi
formalmente proibida no século XVI. A partir de então começaram a trazer negros africanos
para substituir substituí-los nas minas e lavouras de açúcar, negros esses que eram
comercializados, vendidos como mercadorias.
Como bem retrata Galeano (2017, p. 52 a 54):

[...] À rapinagem dos tesouros acumulados seguiu-se a exploração sistemática, nos


socavões e jazidas, do trabalho forçado dos indígenas e dos escravos negros
arrancados da África pelos traficantes. [...] Ouro, prata, açúcar: a economia colonial,
mais abastecedora do que consumidora, estruturou-se em função das necessidades
do mercado europeu, e a seu serviço. [...] A economia colonial também financiava a
dissipação de mercadores, donos de minas e grandes proprietários de terras, que
repartiam entre si o aproveitamento da mão de obra indígena e negra sob o olhar
ciumento da Coroa e sua principal associada, a Igreja. [...] As classes dominantes
não tinham o menor interesse em diversificar as economias internas nem em elevar
os níveis técnicos e culturais da população: era outra sua função na engrenagem
internacional para a qual atuavam, e a imensa miséria popular, tão lucrativa do ponto
de vista dos interesses reinantes, impedia o desenvolvimento de um mercado interno
de consumo. [grifo nosso]

Os índios para suportarem as tarefas que lhes eram impostas, com o pouco que
ganhavam, compravam folhas de coca em vez de comida e as mascavam durante todo o dia,
somado a isso consumiam aguardente. A exploração indígena nunca cessou e para darem
conta do árduo trabalho de levar nos ombros a bagagem dos conquistadores, passaram a
consumir coca, que já existia no tempo dos incas, que o governo monopolizava e só permitia
seu uso para fins rituais ou para o duro trabalho nas minas.
Mas foram os espanhóis que estimularam o consumo intenso da coca e que, no
século XVI, passaram a viver do tráfico de coca, do qual a igreja arrecadava impostos e
dízimos. Assim, o tráfico de drogas na América Latina adveio da colonização espanhola e

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desde então, assola a região, deixando, contudo, de ser institucionalizado e passando a ser
duramente reprimido e condenado pelo Estado e Igreja, passando a marginalizar e,
consequentemente, estratificar os usuários, fazendo vista grossa aos traficantes, posto que
esses sempre pertenceram às camadas abastadas da sociedade.
Os índios foram desterrados de sua própria terra, condenados ao êxodo eterno. Foram
empurrados para as zonas mais pobres, nas montanhas áridas ou para os desertos, enquanto as
fronteiras da civilização dominante avançavam.
Hoje a realidade em que vivem a população indígena e negra na grande maioria dos
países que compõem a América Latina é apenas a consolidação da marginalização:

A metade dos latino-americanos vive amontoada em casebres insalubres. Os três


maiores mercados da América Latina – Argentina, Brasil e México -, somados, não
chegam a igualar a capacidade de consumo da França ou da Alemanha Ocidental,
embora as populações reunidas de nossos três grandes excedam largamente a de
qualquer país europeu. [...] Até a industrialização, dependente e tardia, que
comodamente coexiste com o latifúndio e as estruturas da desigualdade, contribui
para semear o desemprego, em vez de ajudar a resolvê-lo; alastra-se a pobreza e se
concentra a riqueza nesta região de imensas legiões de braços cruzados que se
multiplicam sem parar. Novas fábricas se estabelecem nos polos privilegiados do
desenvolvimento – São Paulo, Buenos Aires, Cidade do México – e cada vez menos
mão de obra eles necessitam. O sistema não previu esse pequeno incômodo: o que
sobra é gente. E gente se reproduz. Faz-se amor com entusiasmo e sem precauções.
Cada vez resta mais gente à beira do caminho, sem trabalho no campo, onde o
latifúndio reina com sua gigantescas terras improdutivas, e sem trabalho na cidade,
onde reinam as máquinas: os sistema vomita homens. As missões norte-americanas
esterilizam as mulheres e semeiam pílulas, diafragmas, DIUS, preservativos e
calendários marcados, mas colhem crianças. Teimosamente, as crianças latino-
americanas continuam nascendo, reivindicando seu direito natural de ter um lugar ao
sol nessas terras esplêndidas, que poderiam dar a todos o que a quase todos negam
(GALEANO, 2017, p. 20-21).

O Levantamente de Informações Penitenciárias (Infopen), de 20142 mais uma vez


confirma isso com dado. Os negros (pretos e pardos, na classificação do IBGE), apesar de
serem 53% da população brasileira, correspondem a 61% dos presos no país, e os jovens de
18 a 29 anos, 18,9% dos brasileiros, representam 55% dos encarcerados.
Além disso, as pesquisas mostram que a maior parte dos presos por tráfico: não tinha
antecedentes criminais, foi indiciada apenas com base no relato de policiais e não possuíam
advogado constituído no momento em que foi apresentada na delegacia. Parte dos presos não

2
Relatório Infopen. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/explicado/2017/01/14/Lei-de-Drogas-a-
distin%C3%A7%C3%A3o-entre-usu%C3%A1rio-e-traficante-o-impacto-nas-pris%C3%B5es-e-o-debate-no-
pa%C3%ADs>. Acesso em: 28 de agosto de 2017.

4
carregava dinheiro no momento da prisão, e muitos afirmaram ser usuários, não traficantes.
Para os pesquisadores, os resultados demonstram a seletividade do sistema penal na aplicação
da lei, priorizando a prisão de “microtraficantes”, muitos dos quais podem ser, na verdade,
usuários presos injustamente.
A América do Sul responde por 60% das apreensões de cocaína no mundo e por
praticamente toda a produção, numa área aproximada de 185.000 campos de futebol.
A história de exploração e subdesenvolvimento dos países latino-americanos explica
todas as incongruências e diferenças existentes na sociedade subdesenvolvida, racista e
patriarcal que, ainda hoje, tem o modelo de família que centraliza na mulher toda a
responsabilidade da casa e dos filhos.
Quanto às mulheres, em decorrência da evolução da sociedade e a complexidade das
relações humanas, que alterou toda a estrutura sócio familiar, hoje, às mulheres cabe, ainda, a
liderança da família e do total de mulheres presas, “80% são mães e responsáveis principais,
ou mesmo únicas, pelos cuidados de filhas e filhos”3.
Essas mulheres encarceradas têm um perfil, de acordo com as informações
penitenciárias (Infopen), em pesquisa de 2014, tratam-se de mulheres: negras, jovens e mães
e, representam mais de 60% (sessenta por cento) da população carcerária de países como
Argentina, Brasil e Costa Rica.
Apenas no Brasil, 63% (sessenta e três por cento) das mulheres presas respondem
por tráfico de drogas4. É importante ressaltar que esse fenômeno deu-se a partir da edição da
Lei de Drogas n. 11.343, de 2006, que passou a prever a “associação criminosa”, o que
causou um recrudescimento da repressão, crescendo 698% (seiscentos e noventa e oito por
cento) o índice da população carcerária feminina5.
Uma sociedade que sempre carregou nos ombros os grandes impérios europeus e que
de suas grandes riquezas minerais herdou apenas o racismo, que estrutura o poder, na
distribuição dos papeis sociais, na seletividade penal e na ocupação do território urbano.

3. Princípio da Proporcionalidade

3
População carcerária feminina cresce 700% em dezesseis anos no Brasil. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/26/populacao-carceraria-feminina-cresce700-em-
dezesseis-anos-no-brasil.htm>. Acesso em: 28 de agosto de 2017.
4
Relatório Infopen. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-
nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 10 de setembro de 2017.
5
População carcerária feminina cresce 700% em dezesseis anos no Brasil. Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/26/populacao-carceraria-feminina-cresce-700-
em-dezesseis-anos-no-brasil.htm>. Acesso em: 28 de agosto de 2017.

5
Juarez Cirino (2017, p. 28-29), com base na teoria constitucional germânica
formulada por Alexy, discorre sobre três princípios parciais que o constituem: princípio da
adequação, princípio da necessidade e princípio da proporcionalidade em sentido estrito.
Quanto aos dois primeiros (adequação e necessidade), deve-se questionar:
a) a pena criminal é um meio adequado (entre outros) para realizar o fim de
proteger um bem jurídico?
b) a pena criminal (meio adequado, entre outros) é, também, meio necessário
(outros meios podem ser adequados, mas não seriam necessários) para realizar o fim de
proteger um bem jurídico?
Já, em relação à proporcionalidade em sentido estrito, também chamada de princípio
da avaliação, o questionamento é: “a pena criminal cominada e/ou aplicada (considerada meio
adequado e necessário, ao nível da realidade) é proporcional em relação à natureza e extensão
da lesão abstrata e/ou concreta do bem jurídico”?
Todas essas perguntas devem ser formuladas, sucessivas e complementarmente, com
o objetivo de integrar os princípios, os meios e os fins, de forma a harmonizar os princípios
fundamentais com a realidade (adequação e necessidade dos meios em relação aos fins
propostos).
Esse princípio implícito no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, tem como
finalidade proibir a aplicação de penas excessivas ou desproporcionais.
Cirino (2017, p. 30) defende que a retribuição da pena ao fato punível deve ser
equivalente ao desvalor de ação ou do resultado, desdobrando-se em duas dimensões o
princípio da proporcionalidade, abstrata e concreta.
A abstrata relacionada à criminalização primária (legislação), excluindo-se lesões
insignificantes e delimitando-se a cominação de penas criminais conforme a natureza e
extensão do dano social produzido pelo crime.
A concreta em relação à criminalização secundária (juiz), para que se equacione os
custos individuais e sociais em relação à aplicação e execução da pena. Seria o
custo/benefício entre crime/pena, tendo como resultado reflexo o custo social para a
condenada, sua família e a sociedade:

Menos afortunadas são as que não têm família por perto, condição que as obriga a
ver as crianças espalhadas em casas alheias ou recolhidas em abrigos sob a
responsabilidade do Conselho Tutelar. As que têm filhos mais velhos e a felicidade

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de morar em casa própria muitas vezes preferem que eles vivam sozinhos porém
juntos, condição na qual adolescentes de treze, quinze anos, se tornam chefes de
família. O que a sociedade ganha trancando essas mulheres por anos consecutivos?
O que representa, no volume geral do tráfico, a quantidade de droga que cabe na
vagina da mulher? Que futuro terão crianças criadas com mãe e pai na cadeia?
Quantas terão o mesmo destino? As mulheres-ponte flagradas todos os fins de
semana nas portarias poderiam ser condenadas a penas alternativas e a sanções
administrativas, como a proibição de entrar em presídios do estado. O preso a quem
se destina a encomenda poderia ser punido com a perda de benefícios e a extensão
da pena. Qualquer solução seria mais sensata que a atual: elas vão para a cadeia, os
filhos ficam abandonados em situação de risco e o homem que encomendou a droga
arranja outra ponte para manter o fluxo de caixa (VARELLA, 2017, p. 209).

Muitas mulheres são presas portando drogas, escondidas, descobertas em razão das
revistas íntimas pelas quais passam para poderem visitar seus companheiros, namorados e
maridos presos, esses sim, os verdadeiros traficantes. “São mães, esposas, namoradas, tias,
avós, ou irmãs de presos que juram estar condenados à morte caso não paguem dívidas
contraídas com assassinos implacáveis” (VARELLA, 2017, p. 206).
Após sofrerem ameaças e pressões, comprometem-se a adentrar a prisão com as
drogas, que se destinam ao consumo e, até mesmo, para a comercialização dentro da prisão
realizada por esses homens, porém, em razão de suas condutas, as mulheres é quem são
enquadradas como traficantes.
A criminalização secundária desses crimes praticados sem violência agravam o
conflito social já existente representado pelo crime, pois os custos sociais dessa
criminalização são maiores para essa mulher e sua família, geralmente, de classes e categorias
inferiores.
Observa-se, ainda, a deficiência na aplicação da Lei de Drogas, que em seu artigo 28
prevê o consumo pessoal, mas por falta de políticas públicas, estudos e debates acerca do uso
de drogas, na prática, o seu reconhecimento fica a critério do entendimento dos juízes, que
mesmo diante de muitos casos de apreensão de pequenas quantidades de drogas, enquadram a
conduta no tráfico de drogas.
De acordo com Marat apud Zaffaroni (2004, p. 342):

A retribuição não pode ser justa em sociedades altamente injustas quanto ao sistema
de produção (na América Latina mais de 40% da população está à margem do
sistema de produção industrial) e quanto ao seu sistema de distribuição (a maior
parte da renda concentra-se em uma minoria). Definitivamente, isto faz com que o
retribucionismo, que tem a vantagem de denunciar os excessos biologistas e racistas
do positivismo, converta-se em uma ideologia que, frequentemente, para não dizer
quase sempre, sirva aos setores mais ou menos tecnocratas do segmento judicial e a
seus vizinhos do sistema penal, fechando-se a qualquer dado de realidade que
provenha da sociologia ou da economia, que não tem cabimento dentro da sua

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interpretação jurídica. Nos últimos anos, tem servido aos penalistas defensores da
segurança nacional nos países do cone sul.

Ou seja, não há uma análise pormenorizada de cada caso, pois se fossem observados
critérios proporcionais para o retribucionismo no tráfico de drogas protagonizado pelas
mulheres latino-americanas, o encarceramento seria o último meio para reprimir a conduta,
simplesmente pelo fato dessas não terem relevância no mundo do crime, não apresentarem
periculosidade alguma e suas prisões apresentarem um custo social elevadíssimo, tornando
evidente a seletividade penal nessas prisões desnecessárias e flagrantemente ineficazes.

4. Princípio da Humanidade

Princípio que leva em consideração a racionalidade e, também, a proporcionalidade,


que decorre do mesmo processo histórico em que se originaram os princípios da legalidade,
da intervenção mínima e da lesividade, sob o prisma da “danosidade social” (BATISTA,
2007, p. 99).
Para Nilo Batista (2007), o princípio da humanidade intervém na cominação,
aplicação e execução da pena, tendo por racionalidade (uma derivação da proporcionalidade)
a necessidade de um sentido compatível com o ser humano, não podendo deter-se na simples
retributividade, quando converte seu modo em seu fim, pois em nada se distinguiria da
vingança, mas deve levar em consideração as aspirações humanas, como a proibição de pena
perpétua, no quesito proporcionalidade.
O princípio da humanidade deduz-se da dignidade da pessoa humana, fundamento de
Estados Democráticos de Direito, conquanto proíbe penas de morte, perpétuas, forçadas,
degradantes, de banimento, de trabalhos forçados e cruéis, como castrações, mutilações,
esterilizações e todas as que firam a essência do ser humano (CIRINO DOS SANTOS, 2017,
p. 32).
Para Bodin de Moraes apud Sarlet (2013, p. 35), o substrato material da dignidade
decorrem de quatro princípios jurídicos fundamentais:

I) Igualdade – que, em suma, veda toda e qualquer discriminação arbitrária e


fundada nas qualidades da pessoa;
II) Liberdade – que assegura a autonomia ética e, portanto, capacidade para a
liberdade pessoal;
III) Integridade física e moral – que no nosso sentir inclui a garantia de um conjunto
de prestações materiais que asseguram a vida com dignidade;

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IV) Solidariedade – que diz com a garantia e a promoção da coexistência humana,
em suas diversas manifestações.

Positivado desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), em seu


artigo 8º: “A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém
pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e
legalmente aplicada”; na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), no artigo 5º,
inciso II: “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos
ou degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à
dignidade inerente ao ser humano” [grifo nosso], que serviu de base para o artigo 5º, incisos
III, XLIX, XLVII, da Constituição Federal Brasileira, o princípio da humanidade visa à
garantida da integridade física e moral do ser humano preso.
Todavia, mesmo amplamente difundido, previsto e tão falado, não é observado em
nenhuma das cadeias públicas e penitenciárias do sistema penal brasileiro.
Ao adentrarem o sistema prisional essas mulheres, além de serem retiradas do
convívio com a sociedade e verem a desintegração do seu núcleo familiar [muitas perdem o
contato com seus familiares], dentro do sistema não veem perspectivas de mudança, pois, da
mesma forma que chegam: desempregadas; submissas; amedrontadas; sem preparação para
concorrem às vagas do mercado de trabalho; sem estudo ou com baixa escolaridade, a maioria
analfabetas (cerca de 64,77%)6 e sem quaisquer condições que lhes deem uma chance de
voltar a sonhar com um futuro diferente, assim saem e voltam para a sociedade.
Em sua experiência de mais de 28 (vinte e oito anos) de contato com presos,
realizando atendimento médico em São Paulo, na Casa de Detenção - Carandiru e,
atualmente, na Penitenciária Feminina da Capital, o médico Drauzio Varella relata em seu
livro “Prisioneiras” (2017, 78-79), várias experiências, confissões feitas pelas mulheres
encarceradas e denuncia problemas comuns a todos os presídios brasileiros:

O que poucos sabem é que o trabalho constitui uma das principais aspirações da
massa carcerária, menos por amor a ele do que por razões fáceis de compreender:
além de combater a ociosidade das horas, dos meses e anos que se arrastam – um
dos flagelos mais angustiantes da vida carcerária -, a cada três dias trabalhados
descontam um da pena a cumprir. [...] A maioria dos nossos presídios foi construída
sem levar em conta a criação de espaços para oficinas de trabalho. [...] é preciso
lembrar que não há possibilidade de trabalho sem oferta de emprego. Quantos
empresários estão dispostos a contratar operários que prestem serviços no interior

6
Dos 574 mil detentos e detentas no Brasil, apenas 20% trabalham e 8,6% estudam. Disponível em:
<https://www.brasildefato.com.br/2017/07/26/dos-574-mil-detentos-e-detentas-no-brasil-apenas-20-trabalham-e-
86-estudam/index.html>. Acesso em: 20 de outubro de 2017.

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das prisões? Quantos julgam que a imagem da empresa seria prejudicada? Na
verdade a mesma sociedade que se queixa da vida ociosa dos presídios e dos custos
do sistema lhes nega acesso ao trabalho.

Varella, faz ainda uma crítica à política de combate às drogas:

Enquanto vigorarem as leis atuais de combate às drogas ilícitas e insistirmos em


manter no regime fechado pequenos contraventores que não praticaram atos
violentos, nada leva a crer que haverá saída para os problemas da superpopulação
que transformaram nossas cadeias em escolas do crime. Pelo contrário: o
desemprego, a falta de oportunidades para os mais jovens, a desagregação familiar e
as sucessivas crises econômicas enfrentadas pelo país só vão agravá-los. Boa parte
do crescimento populacional nos presídios se deveu à legislação sobre o tráfico de
drogas promulgada em 2006, que endureceu as penas. Antes dela, 13% dos presos
brasileiros cumpriam sentenças por tráfico. Hoje, no estado de São Paulo esse
contingente é de 30% entre os homens e perto de 60% nas cadeias femininas.

A situação das mulheres encarceradas, que não possuem condições mínimas de


higiene, não têm atendimento e acompanhamento médico, nem mesmo quando grávidas, é,
sem sombra de dúvidas, o maior exemplo de tratamento degradante, desumano e indigno.
Muitas convivem com doenças infecciosas, adquiridas antes da gravidez, que se
agravam por conta de não receberem tratamento médico e não terem acompanhamento pré-
natal, o que acaba infectando os bebês ao nascerem. Nesses casos, após o parto, a mãe volta
para o sistema penitenciário e não pode acompanhar e cuidar de seu filho durante o período
em que fica internado para tratamento, tudo em razão das deficiências infraestruturais das
prisões brasileiras, que não possuem a quantidade suficiente de agentes penitenciários
disponíveis para escoltá-las, nem carros que possam transportá-las até o hospital, impondo à
criança a ausência da mãe desde seus primeiros dias de vida.
As mulheres grávidas, que se encontram presas por crimes relacionados ao tráfico de
drogas, correspondem a um percentual de 70,9%7.
Cabe ressaltar, ainda, que mesmo com a aprovação da Lei 13.434/2017, vedando o
uso de algemas pelas detentas, antes, durante e, inclusive, após o parto, não é isso que ocorre.
Muitas grávidas dão à luz seus filhos algemadas e assim permanecem sem que possam, até
mesmo, trocar a fralda de seus filhos. O momento do parto, além de ser de muita sensibilidade
pois, a mulher se encontra totalmente despida e vulnerável e com os sentimentos à flor da
pele, acabe se tornando um suplício para essas detentas que, além de serem acompanhadas por
7
Estudo revela o drama das presas grávidas no Brasil: “depois do parto, eles me algemaram”. Disponível em:
<http://justificando.cartacapital.com.br/2017/09/11/estudo-revela-drama-das-presas-gravidas-no-brasil-depois-
do-parto-eles-me-algemaram/>. Acesso em: 12 de setembro de 2017.

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agentes penitenciários homens, em flagrante desrespeito à sua intimidade, não raras vezes
sofrem agressões físicas e verbais.
A Lei de Execução Penal, em seu artigo 82, § 2º, prevê a existência de berçários nos
presídios femininos para que as mães possam cuidar e amamentar seus filhos até os 6 (seis)
meses de vida, contudo, se nem condições mínimas de higiene são proporcionadas às presas,
berçários são considerados artigo de luxo.

5. Considerações Finais

A proibição do uso de drogas gera violência e mortes, geralmente, das pessoas mais
vulneráveis (pobres, sem estudos, marginalizados, desempregados), que veem no tráfico de
drogas uma oportunidade de mudança de vida rápida, focando na grande demanda e nos
lucros auferidos. Porém, tudo não passa de ilusão, porque, assim como no sistema capitalista,
é uma minoria que detém o domínio do mercado, restando aos demais, nesse caso, às
mulheres, apenas o trabalho, a exposição à violência, ao risco de morte e à prisão.
Ao terem sua liberdade privada, essas mulheres são afastadas do convívio social e
familiar, deixando para trás filhos à mercê de privações materiais, porque, muitas vezes, são
elas as únicas responsáveis pelo sustento da casa, iniciando-se, então, um ciclo vicioso sem
fim, pois esses irão crescer sem suas mães, ficando vulneráveis ao uso de drogas e
marginalidade, muitas vezes, entregues ao mesmo destino delas, correndo o risco até de serem
“adotados” pelos reais traficantes.
O fato dessas mulheres adentrarem o sistema prisional grávidas e ali permanecem
sem o devido acompanhamento médico, sofrendo constantes violações de direitos, até que
seus filhos nasçam e desde seu primeiro dia de vida paguem pelos erros de suas mães, tendo
sua dignidade e liberdade violados, sujeitando-se por extensão à situação degradante em que
elas já se encontram, evidencia a completa desproporcionalidade e desumanidade que o
sistema penal, não só do Brasil, mas de toda a América Latina enfrenta, expondo suas falhas e
a falência/fracasso da política de combate às drogas, que tem gerado índices alarmantes de
mulheres responsabilizadas, em sua grande maioria, por condutas de menor ou nenhuma
participação no tráfico internacional de drogas.
O castigo [punição] não é um meio adequado para reagir diante de um delito e por
melhor que possa vir a ser utilizado, ainda assim não surtirá os efeitos desejados, pois, o
sistema inteiro foi criado para perpetuar uma ordem social injusta, seletiva e estigmatizante,

11
de forma que até mesmo sistemas que possuam um funcionamento tido como satisfatório não
deixarão de ser violentos (ACHUTTI, 2016, p. 93).
Como expõe Zaffaroni (2004, p. 58), “os delinquentes pertencem aos setores sociais
de menores recursos [...] Isto indica que há um processo de seleção das pessoas às quais se
qualifica como ‘delinquentes’ e não, como se pretende, um mero processo de seleção de
condutas ou ações qualificadas como tais”.
Pune-se incorretamente, desproporcionadamente, desumanamente, inclusive,
inocentes.

Referências

ACHUTTI, Daniel Silva. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um


novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

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