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Como erradicar o analfabetismo sem erradicar os analfabetos?

Espaço Aberto

Como erradicar o analfabetismo


sem erradicar os analfabetos? *

Munir Fasheh
Arab Education Forum
Harvard University, Center for Middle Eastern Studies
Cambridge, Massachusetts, USA

Tradução: Timothy Ireland


Universidade Federal da Paraíba, Programa de Pós-Graduação em Educação

Introdução tade da minha vida, iniciada após os trinta anos, pas-


sei a ouvir os elementos em minha volta, inclusive a
Este artigo constitui um depoimento sobre uma minha voz interior e a voz da natureza. Em outras
parte do meu envolvimento pessoal com a linguagem, palavras, venho procurando superar a suposição de
a alfabetização e o conhecimento. Durante a primeira que o pensar constitui um ato superior ou mais im-
metade da minha existência, como a maioria das pes- portante do que o viver ou o fazer. Dedicar atenção
soas escolarizadas, abordei a vida de um ponto de vista ao ambiente em que vivo, bem como ser fiel à minha
superior àquele dos próprios “elementos” (pessoas, experiência e voz interior, e ainda fazer uso de pala-
coisas, relações sociais e fenômenos). Comecei com vras, em lugar de ser usado por elas, passaram a ser
os textos oficiais e profissionais, conceitos e teorias, meu princípio norteador central.
medidas padronizadas e significados já prontos – abor- Nessa segunda fase da minha vida, tornei-me
dagem seguida por instituições, em geral, e pela ins- crescentemente consciente e cauteloso quanto ao pa-
tituição educacional, em particular. Na segunda me- pel exercido por pensamentos, soluções, pretensões e
declarações universais, como também acerca de for-
mas dominantes de conhecimento e de textos que con-
* Apresentado na mesa-redonda organizada pela Organiza- tribuem para o desaparecimento da diversidade e para
ção das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura a predominância de um caminho para o progresso e o
(UNESCO), em Paris, França, e realizada em 9 de setembro de desenvolvimento. Definir as pessoas em termos ne-
2002, em comemoração ao Dia Internacional da Alfabetização. gativos é parte do problema do discurso dominante.
Publicado originalmente em inglês sob o título How to erradicate Definir uma pessoa, por exemplo, como “analfabeta”
illiteracy without erradicating illiterates? em Literacy as freedom: (quer dizer, em termos do que lhe falta, em lugar do
a UNESCO round-table. Paris: UNESCO, 2003. Traduzido e pu- que a pessoa possui e faz) constitui exemplo relevan-
blicado com a permissão da UNESCO. te para esta discussão. Aquela pessoa considerada

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analfabeta pode possuir conhecimento e sabedoria que é real. Além de comparar os dois mundos, irei
fantásticos, podendo expressar-se de várias e belas abordar alguns projetos em que me envolvi durante
formas. Porém, tudo isto é ignorado, frisando-se ape- os últimos trinta anos. Esses projetos incorporaram
nas suas carências. É uma forma bastante efetiva de os princípios e as convicções que me norteiam e com
utilização da linguagem para controlar tanto o que a os quais trabalhei em relação à linguagem, à alfabeti-
mente vê como o que não consegue ver. zação e ao conhecimento.
Se fosse uma questão relacionada apenas ao ter- A primeira articulação desta relação apareceu
mo “analfabeto”, não a teria suscitado. Ao longo da num artigo que escrevi em 1990.1 A “descoberta” da
minha vida, fui definido, junto com o meu povo, em matemática de minha mãe analfabeta e a conclusão
termos negativos, e muito raramente – se é que ocor- de que minha matemática e meu conhecimento não
reu alguma vez – pelo que somos e pelo que temos. poderiam nem detectar nem compreender sua mate-
Fomos definidos como “não-judeus”, mesmo quando mática e seu conhecimento marcaram o momento de
formamos a maioria na Palestina. (É como definir os virada mais importante de minha vida. A matemática
franceses na França como “não-argelinos”!). E, pelo e o conhecimento dela tiveram o impacto mais im-
menos, desde 1949, nós, somados a 80% da popula- portante sobre a minha percepção de conhecimento,
ção do mundo, fomos definidos como não-desenvol- de linguagem e de sua relação com a realidade. Mais
vidos ou subdesenvolvidos, ou em desenvolvimento. tarde, dei-me conta de que a invisibilidade da mate-
Apesar disso, utilizarei aqui o termo “analfabeto” para mática de minha mãe não era uma questão isolada,
sublinhar sua própria falta de sentido e para relacio- mas um reflexo de um fenômeno amplo relacionado
nar o conteúdo deste trabalho com as discussões atuais ao ponto de vista ocidental dominante. Bernal e Black2
sobre o assunto. desafiam todo o fundamento de nosso pensamento
Parte significativa deste artigo consiste em uma sobre a questão: O que é clássico com respeito à civi-
comparação entre dois mundos: o mundo de minha lização clássica? A civilização clássica, segundo ar-
mãe analfabeta e meu mundo de escolarizado. Meu gumentam, tem raízes profundas nas culturas afro-
fascínio com essa comparação tem sido um dos prin- asiáticas, que têm sido sistematicamente ignoradas,
cipais elementos que tem inspirado meu pensamento negadas ou reprimidas desde o século XVIII, princi-
e minhas ações durante os últimos 25 anos, pelo me- palmente por motivos racistas. O desenvolvimento,
nos. Estou ainda fascinado com o mundo de minha durante os últimos cinqüenta anos, tem revelado uma
mãe, sua maneira de viver, compreender, saber, rela- continuação desse processo de ignorar, negar e repri-
tar e se expressar. Ela continua sendo um incompará- mir o que os povos e as culturas possuíram, e ainda
vel tesouro para mim, cada vez que me encontro numa possuem, ao longo da história.
situação em que preciso olhar as coisas de forma di- A primeira intifada palestina, que começou em
ferente do padrão, em que preciso imaginar uma for- dezembro de 1987, aprofundou e ampliou muitas das
ma diferente de perceber, como na presente situação, convicções que vinham crescendo dentro de mim du-
quando sou chamado a enaltecer a alfabetização. Vejo rante a década de 1970. Tornou-me consciente de as-
a minha imaginação, em tais situações, voltar-se para pectos culturais e sociais que as estruturas e a termi-
ela, porque ela foi uma verdadeira encarnação, de um
ponto de vista mundial, radicalmente diferente. Por
isso, quando ouço uma pessoa, ou leio uma declara- 1
Community education is to reclaim and transform what
ção, afirmando que o analfabeto não é um ser huma- has been made invisible, Harvard Educational Review, 1990, fev.
no completo e que precisamos salvar essa pessoa, 2
Martin Bernal e Athena Black, The afroasiatic roots of
estremeço por dentro e sinto a necessidade urgente classical civilization. The fabrication of Ancient Greece, 1785-
de uma nova visão que venha a tocar na essência do 1985. Rutgers University Press, 1987.

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nologia dominantes fizeram invisíveis. Durante a pri- tenha ocorrido quando comemorávamos o Dia Interna-
meira intifada, dei-me conta de que o que mantinha a cional da Alfabetização, tenho dificuldade em pro-
sociedade palestina viável eram as pessoas que têm clamar esse instrumento, especialmente num mundo
raízes no terreno da cultura e nas vidas cotidianas, em que ferramentas, particularmente a linguagem, são
sejam analfabetas ou não. Foram as tradições e as es- utilizadas para controlar, reprimir e distorcer. Exaltar
truturas sociais enraizadas que mantiveram em fun- alfabetização é como enaltecer carros. Mas, quando
cionamento as várias comunidades na região da Mar- olhamos os efeitos dos carros sobre importantes e
gem Ocidental (West Bank) e na faixa de Gaza. Em antigas cidades como Cairo e Atenas, nos damos conta
outras palavras, o fator crucial na relação entre pes- de que precisamos tomar mais cuidado. Em outras
soas e comunidade não é se o indivíduo é alfabetiza- palavras, precisamos analisar não somente o que a
do ou não, mas se tem raízes no terreno cultural e na alfabetização acrescenta na forma como é concebida
convivência cotidiana. e implementada, mas também o que subtrai ou torna
Para mim, o desafio que as comunidades enfren- invisível.
tam em qualquer lugar é reconquistar e revalorizar as Em resumo, meu viés neste trabalho é óbvio:
diversas formas de aprender, estudar, conhecer, rela- minha preocupação não é com dados estatísticos –
tar, agir e se expressar. Minha primeira reação à inti- por exemplo, quantas pessoas aprendem o alfabeto –
fada, com relação à linguagem, foi trabalhar com es- mas com nossa percepção do aprendiz e sobre o que
tudantes da Universidade de Birzeit.3 Solicitei-lhes acontece com ele no processo de aprender o alfabeto.
que lessem as primeiras páginas dos jornais e escre- Minha preocupação é garantir que o aprendiz não
vessem sobre elas, comparando as manchetes com o perca o que já possui; que ser alfabetizado não pode
que estava escrito a seguir e com o que estava real- ser considerado superior a outras formas; que o apren-
mente acontecendo. No entanto, o maior projeto em diz possa utilizar o alfabeto, em vez de ser usado por
que me envolvi como resultado da intifada, relacio- ele. Em outras palavras, minha preocupação é garan-
nado com linguagem e alfabetização, foi o lançamen- tir que, no processo de erradicação do analfabetismo,
to de uma campanha de leitura na sociedade palestina não esmaguemos os analfabetos. Neste artigo, enfatizo
como projeto principal do Instituto Tamer, que fun- aspectos que não são normalmente frisados nas dis-
dei na Palestina, em 1989.4 Desde 1997, envolvi-me cussões e programas sobre alfabetização. Não há ne-
em dois outros projetos: o Fórum Árabe de Educação nhuma necessidade de repetir o que já foi dito.
(Arab Education Forum) e o Projeto Qalb el-Umour,
que incorporam percepção e concepção, bem como A história da minha mãe “analfabeta”
prática e “mitos” diferentes, com respeito à aprendi-
zagem e ao uso da linguagem. Na década de 1970, quando trabalhava em esco-
Antes de concluir essas considerações prelimi- las e universidades na região da Margem Ocidental
nares, gostaria de fazer uma observação sobre a mesa- (West Bank) na Palestina e tentava identificar um sen-
redonda na qual apresentei este trabalho. Embora ela tido para a matemática, a ciência e o conhecimento,
descobri que o que estava buscando estivera muito
próximo a mim, na minha própria casa: a matemática
3
Estivemos numa situação “ilegal”, porque a Birzeit, bem como e o conhecimento de minha mãe. Ela era costureira.
outras universidades e escolas palestinas, foi fechada por Israel. As mulheres traziam-lhe peças retangulares de tecido
4
Para mais detalhes, ver meu artigo The reading campaign de manhã; ela tirava algumas medidas com giz colo-
experience within palestinian society: innovative strategies for rido. Até meio-dia, cada peça retangular estava cor-
learning and building community, Harvard Educational Review, tada em trinta pedaços pequenos e, até a noite, esses
1995, fev. pedaços estavam costurados, formando um belo con-

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junto novo. Se isto não é matemática, não sei o que é. rante; ao se tornar alfabetizada, uma pessoa é trans-
O fato de não ter descoberto isto durante 35 anos me formada de uma forma milagrosa, de modo que a po-
fez compreender o poder da linguagem para o que breza e a ignorância desaparecem para sempre; uma
enxergamos e o que não enxergamos. O conhecimen- pessoa alfabetizada é mais livre que uma pessoa anal-
to da minha mãe estava fundido na vida, como o sal fabeta etc. O fato é que minha mãe analfabeta não era
na comida, de uma forma que o fez invisível para mim, inferior em seu conhecimento nem menos humana ou
como pessoa escolarizada e alfabetizada. menos livre. Assim, ao atribuirmos poderes mágicos
Fui treinado para ver as coisas com base na lin- à alfabetização, estamos fazendo uma falsa promessa.
guagem oficial e nas categorias profissionais. Em um Meu envolvimento com minha mãe não era nem
sentido profundamente verdadeiro, descobri que mi- objetivo nem subjetivo, embora tenha incluído elemen-
nha mãe era analfabeta em relação ao meu tipo de tos dos dois aspectos. Esse envolvimento tocou mi-
conhecimento, mas que eu era analfabeto em face do nhas íntimas convicções e crenças. O diálogo entre o
seu tipo de compreensão e conhecimento. Assim, seu ponto de vista e o meu ajudou-me a retirar muitas
descrevê-la como analfabeta e considerar-me como máscaras que tinha adquirido por meio da educação.
alfabetizado, em certo sentido absoluto, reflete uma Não foi fácil tirá-las. Passaram-se vários anos antes
compreensão estreita e enviesada do mundo real e da de poder admitir minhas novas convicções em públi-
realidade. Sou analfabeto entre os povos indígenas co. Estava simplesmente colocando minha carreira,
do Equador; um grego é analfabeto no Paquistão etc. prestígio e reputação em perigo.
Uma distinção que considero mais consistente que Em certo momento, pensei realmente que o que
alfabetizado e não-alfabetizado seria aquela estabe- era necessário para fazer minha mãe compreender
lecida entre povos cujas palavras estão enraizadas no matemática melhor era ensiná-la a ler e escrever,
ambiente sociocultural em que vivem – como flores ensiná-la um pouco da terminologia aceita e os cami-
naturais – e povos que usam palavras que podem pa- nhos da matemática dominante. Pensei se poderia ape-
recer bonitas e brilhantes, mas sem raízes – iguais a nas ensiná-la como organizar o que ela sabia em ter-
flores de plástico. Colocado de forma diferente, um mos das categorias que eu havia estudado e ensinado,
desafio sério que enfrentamos no mundo de hoje é imaginando que seu conhecimento viria a ser muito
fazer com que cada pessoa, seja alfabetizada ou não, melhor. Pensei que, misturando sua matemática com
“diga o que sente, e sinta o que diz”, uma afirmação a minha, talvez chegaria a alguma coisa fantástica. Aos
estranha à lógica institucional e a profissionais dedi- poucos, porém, concluí que seu conhecimento e o meu
cados a suas carreiras.5 não poderiam ser misturados; seria como misturar flo-
A percepção do conhecimento de minha mãe res naturais com flores de plástico – sendo seu conhe-
desafiou várias suposições que estão freqüentemente cimento as flores naturais. Seu conhecimento não po-
embutidas nas discussões oficiais sobre alfabetização, deria ser ensinado ou transmitido por métodos,
tais como: uma pessoa alfabetizada é melhor que uma categorias e linguagens que eu havia estudado e esta-
pessoa analfabeta; uma pessoa analfabeta não é um va ensinando. Ao mesmo tempo, dei-me conta de que
ser humano completo; uma pessoa analfabeta é igno- meu tipo de conhecimento não poderia ser integrado à
sua vida, da mesma forma que o dela à minha. Não
gosto do termo “empoderamento”, mas, se me permi-
5
Espero que algum dia a Organização das Nações Unidas to utilizá-lo: diria que fui “empoderado” pela minha
(ONU) declare uma década para que pessoas digam o que sentem mãe e não o inverso, embora a sabedoria atual estabe-
e sintam o que dizem. Isto teria, na minha opinião, um profundo e leça que minha mãe precisava de “empoderamento”.
real impacto na busca de reverter a lógica desastrosa que atual- Dei-me conta de que o que poderia fazer era arti-
mente domina o mundo. cular minha compreensão de seu conhecimento e

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torná-lo visível ao mundo dos alfabetizados. Minha determinado. Não significa liberdade de escolha e de
esperança era de que aprendêssemos, de novo, como decisão, embora incorpore ambas. “Fazer cada um seu
ser humildes e nos tornássemos conscientes da diver- caminho na vida ao andar” implica estar atento e re-
sidade de formas de aprender, conhecer, perceber, vi- conhecer a realidade. Além disso, deve ser fiel a suas
ver e se expressar, e que tais formas não podem ser experiências da realidade e a suas convicções e prin-
comparadas utilizando medidas lineares. Articulei cípios. Nesse sentido, somos todos parceiros na com-
minha compreensão de seu conhecimento na espe- preensão da realidade; cada pessoa é uma fonte de
rança de que pudéssemos parar de fazer afirmações compreensão. Somos todos criadores, observadores,
universais, como “alfabetização faz milagres”, sem construtores e autores de uma realidade. Compreen-
muitas e consistentes qualificações, e de que com- der a realidade não envolve um único autor, mas mui-
preendêssemos novamente que a diversidade é ele- tos; ou seja, todos aqueles que se esforçam para in-
mento constituinte da natureza da vida. Assim, iría- vestigar, de uma forma independente, o sentido da
mos parar de afirmar que há apenas um caminho para vida e das palavras.
a aprendizagem, para o conhecimento e para o pro- Ninguém tem o direito nem autoridade para mo-
gresso, notadamente a educação. Minha esperança era, nopolizar as interpretações e os significados. Inter-
e ainda é, a de eliminar o monopólio da educação sob pretação pessoal e investigação independente de sig-
a forma de aprendizagem e reconquistar diversos “es- nificados são, para mim, os direitos humanos mais
paços”, além de recursos, nos quais as pessoas apren- fundamentais (que, ironicamente, não recebem men-
dem. Em outras palavras, educação representa ape- ção na Declaração Universal de Direitos Humanos!).
nas uma das formas de aprender. Assim, aqueles que Além disso, interpretação pessoal e investigação in-
estão satisfeitos com ela devem ser apoiados. Tam- dependente de significados estão entre as caracterís-
bém os que estão satisfeitos com outras formas de ticas mais importantes da liberdade. Representam a
aprendizagem deveriam receber apoio, sendo-lhes for- livre interação e a reflexão autêntica entre o mundo
necidos meios e facilidades, incluindo recursos para no íntimo da pessoa e o mundo à sua volta. Interpre-
ajudá-los a aprender. Isto implicaria o fim da era do tação pessoal e investigação independente de signifi-
Educação para todos e, no seu lugar, haveria a provi- cados, porém, requerem responsabilidade de nossa
são de diversas formas de aprender. Desse modo, não parte e, conseqüentemente, incorporam risco. É aqui
iríamos produzir pessoas com qualificações conside- que o preço da liberdade, responsabilidade, compro-
radas inúteis, incluindo os que desistem da educação, misso e presteza apresenta um aspecto convergente.
colocando depois a culpa neles próprios. Isto é muito Nesse sentido, liberdade não pode começar a partir
relevante para os esforços de alfabetização que estão de modelos, nem seguir padrões predeterminados,
sendo lançados atualmente. nem ser medida. Todavia, pode ser inspirada na vida
dos outros indivíduos.
Alfabetização como liberdade? No sentido descrito, sinto que minha mãe “anal-
fabeta” era mais livre do que eu. Ela trilhou o seu
A liberdade constitui o principal tema dessa caminho na vida ao palmilhá-lo, e não por meio de
mesa-redonda, merecendo, portanto, algumas consi- treinamento nem pelo ensino de conhecimento frag-
derações antes de se discutir sua relação com a alfa- mentado, isolado da vida. Ela aprendeu, em vez de
betização. Para mim, o aspecto mais fundamental da ser ensinada. Aprendeu observando, fazendo, refle-
liberdade reside no fato de cada um fazer o seu cami- tindo, contando e produzindo. Criou seu próprio ca-
nho na vida andando. Liberdade não é a escolha entre minho e construiu sua compreensão. Uma grande di-
caminho x ou caminho y, embora possa incorporar ferença entre nós era que, quando eu precisava
esse aspecto. Também não é seguir um caminho pre- descobrir o significado de uma palavra, deveria

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procurá-lo no dicionário, na enciclopédia ou em al- não depender de terceiros para se “locomover” no


gum outro livro. Ela, ao contrário, procurava os sig- mundo moderno. É verdade, mas meu argumento prin-
nificados com base na sua experiência de vida. A cipal neste artigo é exatamente este: como conquistar
minha forma de busca era mais cômoda. Raramente esse tipo de liberdade sem perder outros tipos, os quais,
me esforçava para explorar a importância de refletir em minha opinião, são absolutamente cruciais?
sobre a minha experiência com a palavra; não fazia
qualquer investigação independente do significado. Uma analogia
Mas ela criava sua própria compreensão; era uma es-
pectadora, uma construtora, uma autora da realidade. Vou fazer uma analogia com carros para escla-
Eu, ao contrário, era um imitador, resolvendo proble- recer o que quero dizer aqui. Como “sinônimo” da
mas, a maioria dos quais já tinham sido resolvidos palavra “analfabeto”, utilizarei o termo “sem-carro”
um trilhão de vezes, de uma forma enfadonha e para definir as pessoas que não possuem carro. Em
repetitiva, nas escolas ao redor do mundo durante os vez de descrever tais pessoas como aquelas que an-
últimos cem anos, pelo menos. dam, que usam o que existe em sua riqueza natural
Uma típica pergunta de meu tipo de educação (pernas), enfatizamos o que elas não possuem. De
era: “Quais são as dimensões da maior caixa que po- alguma forma, uma pessoa que possui um carro é mais
demos fazer desse pedaço retangular de compensa- livre para visitar mais lugares, lugares mais distan-
do?”. Um desafio típico para minha mãe era: “Como tes, mas terá de usar estradas construídas. Essa pes-
criar um belo vestido desse pedaço retangular de te- soa pode escolher entre várias estradas, mas todas
cido, que venha a cair bem em tal pessoa?”. Além são predeterminadas e construídas. É muito mais di-
disso, ela era livre por não precisar de qualquer insti- fícil criar o seu próprio caminho utilizando um carro.
tuição para obter um emprego. Seu conhecimento bro- Pessoas “sem-carro” (iguais a “analfabetos”) prova-
tou da vida e estava conectado com a vida. Seu traba- velmente se locomovem num raio menor, mas são
lho era necessário em qualquer lugar que morasse. mais livres para circular e explorar as cercanias. Elas
Era o seu próprio chefe. Era livre do medo de perder criam os seus caminhos ao andar. Seus pés estão sem-
o emprego ou de ser julgada por um comitê arbitrário pre no chão. A visão da paisagem através do vidro de
como inapta para o emprego. A superação do medo é um carro (ou de um avião) cria a ilusão de que a pes-
outro aspecto fundamental da liberdade. Ela era livre soa está aprendendo sobre a paisagem. Mas isso é
da hegemonia de instituições e de profissionais. Ao completamente diferente do pisar e do sentir o solo,
contrário de professores, instrutores, especialistas etc., sentir as plantas, o ar fresco, os sons da natureza etc.
o seu compromisso não era com instituições e profis- Alguns podem dizer: por que não ter os dois? Tudo
sionais; não precisava deles para obter legitimidade. bem, desde que o uso de carros (ou aviões) não seja
Seu compromisso era com as pessoas de quem gosta- considerado superior e mais valorizado do que an-
va, muitas das quais se tornaram suas amigas. Ao con- dar, e desde que não percamos a capacidade de che-
trário, meu conhecimento tinha sua origem em insti- gar a lugares ou de usufruir de aspectos da vida nos
tuições e eu precisava de instituições. Além do mais, quais nem carros nem linguagem possam chegar. Via-
possuir um currículo e constantemente ter medo de jando somente de carro ou de avião, é difícil alguém
fracassar ou ser acusado de uma coisa ou outra são adquirir conhecimento. Ao contrário, para um agri-
aspectos que se contrapõem à liberdade, no sentido cultor, um marinheiro, um verdadeiro cientista, um
descrito anteriormente. verdadeiro artista ou um viajante a pé, isso é fácil.
Uma objeção pode ser feita: saber ler e escrever Sabedoria esta relacionada com a capacidade de es-
pode ajudar as pessoas a se libertarem, no sentido de cutar e observar a natureza e o ambiente. Aumentar a

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velocidade da vida não pode ser considerado o prin- gostava de fazer. Ela não era educadora, nem facilita-
cipal objetivo ou valor. Gandhi, considerado sábio dora, nem libertadora, nem conscientizadora ou ne-
por muitos, disse certa vez: “Há mais a fazer na vida nhum desses qualificativos que são importantes no
do que aumentar a sua velocidade”. mundo de controle e consumo, no qual as pessoas
Considerar o ato de ler e escrever uma necessi- estão divididas entre “incapazes” e “salvadores”. Ela
dade humana básica, freqüentemente subtrai das pes- era honesta, fazia as coisas em que acreditava; eu
soas o que considero ser mais básico: a capacidade de nunca a ouvi dizer qualquer coisa falsa – preferia fi-
expressar sua vida de alguma forma que, para muitos, car calada. Sua maneira de viver foi suficientemente
pode não ser pela linguagem e por escrito. Se conse- convincente para comover outras pessoas. Ela nunca
guirmos proporcionar alfabetização para todos sem dava lições. Ao contrário, seguia os princípios em que
lhes retirar o que já possuem, tudo bem. Levando-se acreditava, aqueles que desejava para a comunidade.
em consideração que os recursos são limitados e nos- Não havia separação entre suas palavras e suas
sos caminhos são freqüentemente exclusivos, é signi- ações. Quando usava a palavra “amor”, por exemplo,
ficativo proporcionar várias opções para as pessoas suas ações já tinham precedido esta expressão. Nun-
fazerem suas escolhas. A expressão do conhecimento ca senti que estivesse competindo com alguém. Fazia
da minha mãe, por exemplo, tomou a forma de belos as coisas movida por convicção pessoal, uma voca-
vestidos. A expressão do conhecimento do agricultor ção interior. Com sua maneira de viver e solucionar
está no que ele cultiva. E assim por diante. Afirmar problemas, e com suas percepções, ajudou-me a su-
que o processo de alfabetização é mais importante para perar muitos mitos da escolarização. Não deixei de
minha mãe não faz sentido. Se uma pessoa pode ad- ser escolarizado, mas não faço mais o que antes fazia
quirir uma forma de se expressar sem perder outras, cegamente. Por exemplo, abandonei muitas palavras
não há problema; mas, se por alguma razão, tiver de que usava antes de ser liberto, tais como progresso,
escolher, não se justifica afirmar que a alfabetização sucesso, fracasso e avaliação de pessoas. Sugiro que
é a única ou melhor opção para todos. Investir todas dediquemos um tempo para refletir sobre o conheci-
nossas energias e nossos recursos numa só forma com- mento e a sabedoria da minha mãe “analfabeta” e de
promete tanto a diversidade como a liberdade. todas as pessoas “analfabetas” que não estão interes-
Os professores de quem ainda lembro com cari- sadas no sistema de controle e competição. Vale a pena
nho não eram aqueles que instruíam bem e possuíam frisar que não estou falando sobre minha mãe como
conhecimento técnico e diplomas avançados, mas os uma pessoa excepcional ou extraordinária. No fundo,
que eram generosos e receptivos. Eram generosos de acredito que todas aquelas pessoas rotuladas como
espírito, e também concediam seu tempo e ouvidos, “analfabetas” possuem qualidades especiais e mara-
ou seja, eram ouvintes compassivos. Eram receptivos vilhosas. Incentivo as pessoas a buscarem e revela-
em suas atitudes e relações; receptivos com coração e rem o tesouro escondido que há no “analfabeto”.
mente. Aceitavam não somente o que era conhecido, Qualquer tentativa de eliminar as raízes de pes-
mas também o que soava estranho – a hospitalidade é soas como minha mãe de seu terreno cultural e colocá-
verdadeira quando é oferecida a estranhos, e não so- las em molduras de plástico ou caixas, seja em nome
mente àqueles que conhecemos. Estavam abertos a da alfabetização, do desenvolvimento ou de qualquer
idéias novas – nunca preconceituosas – e tinham gran- outra coisa, será uma atitude que devemos olhar com
des sentimentos. Minha mãe foi uma dessas profes- cautela. Devemos examinar o que perdemos em qual-
soras. Não foi uma professora profissional certifica- quer processo e não somente o que ganhamos. O de-
da; era um ser humano profundo. Ela era generosa, safio é descobrir como alfabetizar uma pessoa, como
receptiva, gentil, carinhosa e sábia. Além disso, de- minha mãe, sem eliminar o conhecimento fantástico,
senvolvia uma atividade artística, um trabalho que a autoconfiança e a sabedoria que essa pessoa possui.

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Aprendendo a partir de projetos de Birzeit, em 1979, que denominei “matemática em


outra direção”. Depois escrevi um livro em árabe com
Muitos dos projetos que iniciei e nos quais traba- o mesmo título.
lhei durante os últimos 25 anos surgiram da compreen-
são do que minha mãe havia incorporado e, depois de Campanha de leitura
1987, da inspiração gerada pela primeira intifada pa-
lestina. Esses projetos incluíram o ensino de matemá- Quando lançamos a campanha de leitura no Ins-
tica para trabalhadores analfabetos na Universidade tituto Tamer para Educação Comunitária, na Palestina,
de Birzeit, no final da década de 1970. Incentivava, em fevereiro de 1992, o principal objetivo era criar o
em minhas aulas, os estudantes a utilizarem suas ex- hábito de leitura e fazer dela uma atividade prazerosa
periências para redefinir termos, fazendo experimen- dentro daquela comunidade. A campanha foi esten-
tação com educação comunitária (como o lançamen- dida recentemente para incluir os campos de refugia-
to da campanha de leitura na Palestina, através do dos palestinos no Líbano. Não procuramos enfrentar
Instituto Tamer), encorajando as pessoas a articular o o analfabetismo no sentido literal do termo, pois acha-
que fazem através do Fórum Árabe de Educação e mos que ser alfabetizado não envolve somente o co-
criando espaços para que os jovens pudessem expres- nhecimento técnico de como ler e escrever, mas sig-
sar, intercambiar e discutir, como no projeto Qalb el- nifica possuir capacidade e meios de aprender e
Umour. Vou abordar, de forma breve, esses projetos. produzir. Assim, as atividades da campanha para a
Quando a Universidade de Birzeit foi fechada promoção da leitura propunham-se a ajudar as pes-
por Israel, no final da década de 1970, decidi ensinar soas a adquirirem esses meios para aprender, princi-
matemática, nessa universidade, para trabalhadores palmente a capacidade de trabalhar em pequenos gru-
analfabetos. Não parti de uma fórmula lógica, come- pos, dialogar e refletir sobre suas ações através da
çando com os números e algarismos, mas escolhendo escrita e da discussão. Independentemente de ser uma
tarefas que os estudantes cumpriam quase diariamen- pessoa “alfabetizada” ou “analfabeta”, o ambiente era
te. Vou citar dois exemplos. Todos os dias, eles se des- tal que todos queriam se envolver na leitura, ou pela
locavam de suas casas para a universidade. Assim, leitura literal de livros, seja escutando alguém os len-
solicitei-lhes que desenhassem a estrada que percor- do, ou ainda contribuindo para que fossem escritas e
riam. O segundo exemplo refere-se à arrumação das registradas suas experiências de vida.
cadeiras em grandes salas e auditórios. Como a uni- O objetivo essencial do Fórum Árabe de Educa-
versidade era pequena naquela época, usavam-se ção é convidar cada pessoa ou grupo que está fazen-
muitas salas e auditórios para múltiplos propósitos. do alguma coisa por inspiração interior, em vez de
O problema que formulei foi como descobrir quantas cumprir alguma tarefa repetitiva e sem sentido, a re-
cadeiras cabiam num certo auditório, antes de come- fletir sobre o que faz e socializá-lo, de modo que com-
çar a movê-las. Isto exigia várias operações relacio- partilhe sua experiência com outras pessoas. Embora
nadas com matemática e linguagem, tais como dese- descrevêssemos as iniciativas como inspiradoras, não
nhar um mapa do auditório, contar as pedras do chão, nos colocávamos como juízes para excluir qualquer
observar os símbolos dos números e escrever pala- pessoa desse processo de reflexão, socialização e
vras. Essa questão foi discutida durante vários dias e compartilhamento. A experiência inclui pessoas alfa-
envolveu vários aspectos. Em resumo, usei o que fa- betizadas e analfabetas. Consideramos todas elas uma
ziam diariamente para construir conhecimento sobre fonte de compreensão e toda experiência como tendo
o alfabeto e os números. Buscando redefinir termos e um valor que pode ser revelado e compartilhado. A
construir uma compreensão própria, programei um responsabilidade está inteiramente no nível pessoal
curso para alunos do primeiro ano da Universidade ou no grupo local.

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Como erradicar o analfabetismo sem erradicar os analfabetos?

Um exemplo disso é a revista Qalb el-Umour que, há nenhuma história que não seja suficientemente va-
embora não cuide estritamente de ensinar o alfabeto, liosa para ser publicada. Em dois anos, mais de vinte
constitui um exemplo de como utilizar o alfabeto, em números da revista foram produzidos em vários paí-
vez de ser utilizado por ele – uma distinção crucial ses árabes; outros tantos foram elaborados em Boston
com relação à alfabetização. Qualquer grupo de ami- (EUA), Irã e Udaipur (Índia). A essência da revista
gos – independentemente de idade, procedência, área Qalb el-Umour é fazer com que as pessoas, em pe-
geográfica – pode reunir-se, expressar aspectos da sua quenos grupos, tomem sua vida como sujeitos de re-
vida e arrecadar alguns recursos para produzir um flexão, expressão e ação; assumam a responsabilidade
número da revista. A idéia é baseada na constatação de fazer alguma coisa sobre a sua vida e seu ambiente,
de que o que se precisa para produzir a revista pode e compartilhem isso com outras pessoas. Resumindo,
ser encontrado em qualquer grupo: suas histórias, suas a essência da revista é fazer com que as pessoas escu-
expressões, sua vontade e a decisão coletiva de pro- tem sua voz interior, construam o seu mundo interior,
duzi-la. A revista é elaborada a partir do que existe, costurando o tecido social da comunidade, estando
do que as pessoas possuem em abundância. Ninguém atentas para o seu entorno, sentindo-se responsáveis
aprova, ninguém edita. Dessa forma, a linguagem uti- para o que precisa ser feito e sendo honestas nas suas
lizada na revista é considerada um instrumento para a expressões. Estas são as principais diretrizes e con-
liberdade, expressando o que existe em uma pessoa e vicções do projeto. “Criatividade” constitui um com-
a interação entre o que existe em seu interior e o seu plemento natural desse processo.
ambiente; não é um instrumento que se usa para ava-
liar crianças por conceitos, como correto ou errado. O problema da alfabetização
Não existe um editor profissional para editar os tex-
tos; ao contrário, incentivamos as pessoas a compar- O problema maior da alfabetização é substituir
tilhar o que escrevem. Se, como conseqüência das as experiências de vida por palavras e considerar con-
discussões, elas sentem que querem fazer mudanças, ceitos mais reais do que a realidade. Conceitos e ter-
não há problema. Mas ninguém tem autoridade para mos profissionais e científicos são freqüentemente
corrigir ninguém. As pessoas podem fazer uso de qual- tratados como sendo mais reais do que a realidade.
quer linguagem ou qualquer ferramenta de expres- Recentemente, participei de um simpósio em que cin-
são, tais como vídeo e desenho, com as quais se sen- qüenta presidentes, vice-presidentes e reitores de vá-
tem à vontade para expressar aspectos de sua vida rias universidades da Europa Ocidental e Oriental e
que gostariam de compartilhar com outros. Se as pes- dos Estados Unidos estavam reunidos para discutir o
soas não têm acesso a uma máquina de escrever ou a modelo de gerenciamento de suas universidades. Em
um computador, são incentivadas a escrever os textos vez de cada um começar descrevendo como adminis-
a mão, fato que ocorreu em alguns lugares. trava sua instituição, os participantes tiveram que ini-
Não há monopólio na revista sobre quem pode ciar com o conceito de autonomia. Esse conceito tor-
ou não pode escrever; também não há exclusão de nou-se uma coisa concreta, mais concreta que as
pessoas que não sabem escrever “corretamente”. Pes- diversas realidades das várias universidades. O que
soas envolvidas na produção de um número desfru- estava acontecendo nas várias universidades teve que
tam do benefício das suas capacidades naturais para ser ajustado e medido de acordo com esse conceito,
trabalhar juntas, atuar, refletir, expressar-se, ler, con- desenvolvido nos Estados Unidos e, em grau menor,
versar, estudar, comunicar-se, aprender e produzir – nos países da Europa Ocidental.
com liberdade, dignidade, transparência e honestida- Comentei, anteriormente, que uma diferença
de. Não há temores, nem julgamentos, nem avaliações grande entre minha mãe e eu era que, quando eu pre-
baseadas em medidas “objetivas” ou profissionais; não cisava descobrir o significado de uma palavra, ia

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Munir Fasheh

procurá-lo em um dicionário ou fonte semelhante. Ao pessoas que reclamam e exigem seus direitos cons-
contrário, ela procurava o significado das palavras em tantemente. Precisamos ser intelectualmente hones-
suas experiências de vida. Alfabetização aprofunda o tos, se pretendemos inverter o caminho das catástro-
hábito de aprender sobre o mundo e não aprender com fes que presenciamos no mundo de hoje; precisamos
base no mundo. Minha mãe aprendia baseada no mun- repensar qualquer coisa que se diz universal.
do. Eu aprendia sobre o mundo, freqüentemente as- Universalismo, mais do que qualquer outra coisa, tem
pectos artificiais e construídos pelo mundo. sido a causa principal para se eliminar a diversidade
Aprender a ler e a escrever pode ajudar uma pes- que, a meu ver, constitui a essência da vida. Esse ca-
soa a ser livre. No entanto, também acredito – e isso minho em direção às catástrofes é de responsabilida-
acontece com freqüência – que há a necessidade de de principalmente das pessoas altamente letradas, pro-
uma pessoa alfabetizada se libertar da hegemonia e vidas de ciência e tecnologia. Nada, por exemplo, tem
da tirania das palavras. É crucial reexaminar o con- causado tanto mal irreversível, com referência à po-
ceito de alfabetização num mundo que está marchan- luição do corpo humano, alimentos e natureza, como
do na direção de catástrofes que são criadas princi- a química, nos últimos cem anos!
palmente por pessoas alfabetizadas – tais como poluir As pessoas letradas possuem algumas crenças
o ar, a terra e o oceano; controlar mentes e criar ins- estranhas, tais como a de que a maioria das crianças
trumentos de destruição total. não gosta de aprender, a não ser que sejam forçadas –
Numa publicação da UNESCO sobre alfabetiza- daí, educação compulsória. É a mesma coisa afirmar
ção, li a seguinte afirmação: “[...] a meta é libertar que peixes não gostam de nadar, a não ser que sejam
centenas de milhões dos nossos concidadãos, incenti- forçados. John Holt expressou isto muito bem: “Pei-
vando-os a aprender a ler e, depois, continuar lendo”. xes nadam, passarinhos voam e pessoas aprendem”.
E o que fazer com o imenso número de pessoas que Aprendizagem é complemento natural da vida. Na
não gosta de ler e, em vez disso, gosta de outras coi- verdade, se precisamos tornar a educação obrigatória
sas que são para elas mais prazerosas e que as susten- e obrigar as crianças a irem à escola, é porque o que
tam no cotidiano? Temos o direito de concluir que há se ensina na escola não é minimamente interessante.
alguma coisa errada com elas e que devem ser força- E se algumas escolas conseguem tornar a educação
das a aprender a ler e a continuar lendo? Isto constitui interessante oferecendo facilidades, como piscinas e
meu argumento principal neste artigo: se algumas pes- ginásios, a mensalidade geralmente sobe vertiginosa-
soas não gostam de ler e escrever, não devemos con- mente. A concepção de que “pessoas não aprendem a
cluir que há alguma coisa errada com elas. não ser que sejam ensinadas” pode ser verdadeira
Usando textos como a principal ferramenta da apenas para habilidades técnicas.
educação, nossa mente torna-se o que meu amigo Quero dar outro exemplo de como as pessoas
Gustavo Esteva e seus colegas denominam de “men- escolarizadas podem ser cegas. Após cinqüenta anos
te textual”, deixando-a sem raízes e sem teto. Se ana- transformando a maioria das sociedades em ruínas
lisarmos com seriedade a história de educação, desde socioeconômicas, o desenvolvimento é ainda consi-
sua concepção, há quinhentos anos, ou a história da derado, principalmente pelos escolarizados, liberda-
época de desenvolvimento, desde sua declaração por de e um sonho! A maior parte dos transtornos e da
Truman, há 53 anos, ou a história dos direitos huma- destruição, em grande número de países, deveu-se a
nos, desde sua adoção, não vamos nos precipitar bus- programas e políticas de desenvolvimento. O que
cando defendê-las cegamente. Faz-se urgente repensar aconteceu recentemente na Argentina, o que aconte-
tais ferramentas que julgamos corretas. Ao enfatizar- ceu no Brasil, na década de 1970, e o que aconteceu
mos direitos, por exemplo, ajudamos a mudar as pes- em muitos países da África subsaariana, durante os
soas que se sentem responsáveis e livres para atuar, últimos cinqüenta anos, são conseqüências diretas do

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Como erradicar o analfabetismo sem erradicar os analfabetos?

desenvolvimento. Tais conseqüências podem ser in- falar exatamente a mesma língua, com os mesmos sig-
visíveis para as mentes educadas, em virtude das nificados. As idéias de Nadrija tiveram que esperar
muitas publicações e especialistas que ainda afirmam cento e cinqüenta anos, quando os franceses as aco-
que o desenvolvimento é bom. lheram para ajudar a estabelecer o Estado e a educa-
Os textos contêm muitas histórias de sucesso. É ção franceses. A Grã-Bretanha, a Suécia e outros paí-
fácil mentir com palavras. Na realidade, porém, são ses europeus logo seguiram o exemplo.
poucos os exemplos em que a diversidade não foi eli- Como uma pessoa letrada, sempre que quero fa-
minada, em que as formas de viver não foram repri- lar alguma coisa, busco as palavras certas em meu di-
midas, em que comunidades não se tornaram frag- cionário mental, em minha memória: busco as pala-
mentadas e totalmente dependentes da ajuda externa. vras e as idéias armazenadas lá. Minha mãe parecia
O desenvolvimento, na maioria dos países, teve o ser muito mais espontânea e honesta em suas expres-
mesmo efeito da AIDS: matou seus sistemas naturais sões. Sendo uma pessoa analfabeta, usava suas expe-
de imunidade e os expôs a todos os tipos de males riências para ajudá-la a escolher as palavras que melhor
sociais e econômicos. Somente ensinamos se ama- expressassem o que queria dizer. Buscava elementos
mos o que fazemos, se incorporamos em nossa vida o e referências em seu ambiente e em sua experiência, e
que queremos ensinar. Ensinamos honestidade, sen- escolhia as palavras que expressavam da maneira mais
do honestos; linguagem, pelo seu uso criativo e sig- autêntica o que queria dizer.
nificante; ciência, pela observação do questionamen- A ferramenta do alfabeto tornou-me uma pessoa
to e da prática constante. capaz de trabalhar, principalmente por meio de tex-
Controlar mentes por meio do que, às vezes, se tos. Minha mente e meu pensamento, bem como os
denomina “língua materna” não é uma fantasia nem termos que utilizava, inspiravam-se nos livros que ti-
ficção. É história. Isto foi descoberto e registrado por nha estudado e ensinado. A descoberta da matemáti-
Ivan Illich, no seu livro Shadow work (Trabalho de ca e do conhecimento da minha mãe ajudou-me a en-
sombra).6 Colocado de uma forma sucinta, o enredo tender o quanto meu conhecimento estava ancorado
assim se desenrola: na mesma época em que Colombo em livros didáticos, e o quanto minha mente estava
procurou a rainha Isabel da Espanha para apresentar isolada da vida e condicionada por palavras – primei-
o seu plano de estender o controle do reino sobre os ramente, durante meus estudos e depois como pro-
novos territórios, outro senhor, com o nome de Nabrija, fessor. Passei a entender quanto a forma do conceito
procurou-a para apresentar um plano para controlar o (a palavra escrita) dominava meu pensamento e mi-
seu povo dentro das fronteiras do próprio país. Afir- nha percepção; descobri quantas vezes me comportei
mava para a ambiciosa rainha que a melhor forma de como se o conceito, a forma e aquilo a que se refe-
controlar a mente de seus súditos era através do ensino riam fossem iguais e como, inconscientemente, trans-
de uma única língua oficial, que mais tarde se chama- mitia isto aos meus alunos. Gostaria de frisar que não
ria “língua materna”, fazendo com que as pessoas que estou falando aqui sobre a leitura de livros que tra-
falassem diferentemente se sentissem constrangidas zem uma enorme satisfação e permitem que a mente
ou diminuídas. Ele já tinha dois livros preparados para e a imaginação viajem por vários tipos de mundo;
a língua que criara a partir de várias línguas faladas estou falando sobre livros-texto e o ensino da língua.
naquela época, na Espanha: um dicionário e uma gra- Comecei a me dar conta de que há opressão de
mática. Honra lhe seja dada, Isabel lhe disse que de- todos os tipos em meu redor: política, militar, social e
via ser maluco ao tentar forçar uma nação inteira a econômica. Porém, o fato de tornar-me consciente do
conhecimento de minha mãe ajudou-me a entender a
opressão causada pelo processo de alfabetização, por
6
N.T. Publicado em 1981, por Marion Boyars, de Londres. estar confinado em meu conhecimento e por apren-

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Munir Fasheh

der a partir de textos. Nos anos de 1970, utilizei a cado incorporar em seu trabalho e em sua filosofia.
linguagem como instrumento para liberar mentes, pro- Não podemos impor um significado para todos. Em
pondo alternativas e quebrando a hegemonia dos sig- terceiro lugar, precisamos abandonar as soluções uni-
nificados universais. Logo, porém, conclui que havia versais que resolvem tudo e que legitimam sua impo-
limites para essa função da linguagem. A linguagem sição sobre as pessoas, normalmente em nome do pro-
é limitada em termos de compreensão. O fato é que gresso, desenvolvimento e “empoderamento”. Esse
experimentamos muito mais do que podemos enten- modelo revela-se desumano e maléfico.
der por meio da mente, e compreendemos muito mais Uma forte convicção cresceu em mim, ao longo
do que podemos expressar pela linguagem. Infe- dos anos, de que há uma necessidade mais básica do
lizmente, a educação tem transformado conhecimen- que aprender a ler e escrever: a de ter pelo menos
to e aprendizagem em mercadorias, e estudantes e pro- uma capacidade ou forma em que a pessoa é capaz de
fessores em consumidores. Penso que é preciso cuidar se expressar. Alguns escolheriam a leitura e a escrita;
para que não repitamos o mesmo padrão nos progra- outros, porém, podem escolher diferentes formas.
mas de alfabetização – durante e depois da década da Impor uma forma para todos é não somente uma me-
alfabetização. dida opressiva, por ignorar as diversas maneiras como
as pessoas vivem, como também retira das pessoas
O que fazer? aquilo que gostam de fazer e o modo como gostam de
aprender e de se expressar. Ademais, a imposição de
A exemplo de qualquer outro mecanismo, o im- uma forma, neste caso a alfabetização, leva natural-
pacto da alfabetização depende dos valores que go- mente a discriminar os que não gostam dessa forma.
vernam a sociedade em que é lançada. Isto é pouco Pode levar a tratar uma pessoa analfabeta como infe-
mencionado, embora forme, a meu ver, o fator mais rior, e não como ser humano completo.
importante de como o processo de alfabetização afe- Precisamos conviver com mitos e suposições
ta as pessoas e para que fins é empregado. Já que os novos. Em primeiro lugar, precisamos dar-nos conta
principais valores que movem as instituições moder- de que cada pessoa é uma fonte de conhecimento e
nas e os profissionais são ganhar, controlar e segre- compreensão. Uma das maiores resistências que sen-
gar, pode-se concluir que a alfabetização serviria prin- ti, quando trabalhava com professores de matemáti-
cipalmente a esses valores, significando, na prática, ca, foi admitir que não há nenhuma criança que não
que ajudaria a transformar pessoas em consumidores tenha capacidade lógica. Também precisamos parar
e competidores mais eficientes, tornando-as mais in- de relacionar analfabetismo com ignorância. Acredi-
dividualistas e isoladas da vida real. tar que há pessoas ignorantes ou ilógicas constitui em
Assim, conclui-se que o primeiro e mais impor- si uma crença equivocada e incoerente.
tante passo para qualquer grupo que pretenda envolver- Liberação e liberdade estão articuladas à diver-
se no trabalho de alfabetização, ou lançar um projeto sidade e ao pluralismo. Assim, a libertação de con-
de alfabetização, é discutir os valores que a comuni- ceitos universais é crucial para qualquer conceito de
dade gostaria de manter. Afortunadamente, já que o liberdade. Precisamos de uma década para proclamar
mundo dos analfabetos normalmente é governado por a diversidade que existe nos processos de aprendiza-
valores que são mais humanos que o ganho, o contro- gem, conhecimento e expressão; uma década a nos
le e o individualismo, há melhores oportunidades de lembrar que aprendizagem acontece por meio do agir
abordar a questão de valores em tais comunidades. e do interagir com o maior número de elementos pos-
O segundo passo é que cada grupo decida que sível no seu ambiente, incluindo livros. Liberdade está
significado adotar para a alfabetização, que signifi- relacionada com honestidade e lealdade a nossas ex-

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Como erradicar o analfabetismo sem erradicar os analfabetos?

periências e nossas vozes interiores. Se a alfabetiza- magando a diversidade numa velocidade acelerada.
ção coloca-se a favor da liberdade, não pode ser pro- Precisamos tomar cuidado para não estender esta des-
movida utilizando-se instrumentos de dominação. truição ainda mais, em domínios novos, tal como a
A década da liberdade, como Educação para to- alfabetização. Já temos muita destruição causada pela
dos, constitui um apelo para que o mesmo tratamento educação e pelo desenvolvimento, durante as últi-
seja dispensado a todos. Precisamos de espaços, opor- mas décadas. Por isso, precisamos ser cuidadosos e
tunidades, facilidades e recursos, para que as pessoas críticos.
possam desenvolver a sua expressão, ou seja, desen- Posso afirmar que tive sorte em três coisas na
volver em termos de expressão o que já fazem, mas minha vida: vivi uma boa parte da minha vida na era
sempre melhor. É preciso desenvolver os meios pelos pré-desenvolvimento; um dos meus educadores mais
quais elas já se expressam ou gostariam de se expres- importantes foi uma pessoa analfabeta; vivi a maior
sar. Existe uma necessidade muito mais humana e real parte da minha vida sem um governo nacional. Essas
do que alfabetização para todos. Se, por exemplo, um três coisas me propiciaram uma visão de mundo que
indivíduo é um contador de histórias, sua necessidade não se alcança por meio de instituições nem de pro-
se relaciona mais com o desenvolvimento daquela ha- fissionais. Tenho sorte porque tive que repensar cons-
bilidade. Se é um bailarino de dabke (uma dança ára- tantemente os significados de palavras, porque tive
be) ou um tocador de tableh (um instrumento musi- que assumir responsabilidade pela maior parte das
cal), faria mais sentido desenvolver aquela habilidade. coisas de que precisávamos na comunidade. E tam-
Digo isto porque os recursos são limitados. Aplicar bém porque, freqüentemente, tive que me satisfazer
nossos limitados recursos numa só forma de expres- com o que está disponível para todos: o outro, a na-
são e comunicação, por imposição, não pode ser visto tureza, o que a terra produz e também a capacidade
como totalmente inócuo. Entretanto, é preciso recon- de sentir, refletir, aprender e expressar-se. Considero-
quistar desesperadamente uma atitude pluralista, atra- me um afortunado, porque convivi com exemplos
vés da qual possamos voltar a respeitar formas radi- vivos de pessoas que adotaram uma maneira dife-
calmente diferentes de viver, conhecer e expressar-se. rente de viver, seguindo uma lógica diferente, valo-
As pessoas precisam ter espaços e facilidades, res diferentes, pressupostos diferentes e convicções
incluindo recursos, para que tenham liberdade de es- diferentes.
colha. Não é uma boa estratégia repetir a prática de
educação em que somente uma opção é oferecida aos Recebido em março de 2004
alunos. Soluções ou declarações universais vêm es- Aprovado em abril de 2004

Revista Brasileira de Educação 169


Resumos/Abstracts

to make an incursion into a highly ção de direito público subjetivo em indicating that such a perspective
incomplete field, presenting some simples comercialização de pacotes clearly endangers national sovereignty
partial results of a study undertaken in educacionais (cursos, sistemas de ava- and autonomy, leading potentially to
2000-2001, with 25 families of average liação e certificação, livros, uniformes, the loss of cultural diversity and local
to successful entrepreneurs from Minas mapas etc.). Conclui, indicando que tal values, to the benefit of a process of
Gerais. The aim of the study was to perspectiva fere a soberania e autono- cultural homogeneity. Notwithstanding,
learn about the young people’s school mia das nações, em um caminho que it also highlights the emergence of
history and the educational strategies pode levar à perda da diversidade cul- movements opposing this tendency.
used by their parents during that time. tural e de valores locais, em benefício Key-words: commercialisation of
A corpus of 50 interviews conducted de um processo de homogeneização education; privatisation; World Trade
with the youngsters and their mothers cultural, o que vem sendo contestado Organisation; General Agreement on
was compiled. Our conclusions allow com a emergência de movimentos con- Trade in Services
us to question the current belief that trários.
the pattern of school excellence is a Palavras-chave: comercialização da Munir Fasheh
privilege of “the rich”, or in other educação; privatização; Organização Como erradicar o analfabetismo sem
terms, that school élites are composed Mundial do Comércio; Acordo Geral erradicar os analfabetos?
of “rich” students. sobre Comércio em Serviços O texto desafia várias suposições que
Key-words: school trajectory; family The regulation of the commercial estão freqüentemente embutidas nas
educational strategies; school/family approach to the educational sector discussões oficiais sobre alfabetização,
relations by WTO/ GATS questionando o valor inerentemente li-
The text indicates the entrepreneurial bertador e positivo do processo de alfa-
Ângela C. de Siqueira groups’ growing interest in the betização, com base na necessidade de
A regulamentação do enfoque educational field given the large respeitar e revalorizar a diversidade de
comercial no setor educacional via amount of resources involved, formas de aprender, estudar, conhecer e
OMC/GATS presenting the perspective of including se expressar. Argumenta que liberação
Aponta o crescente interesse de grupos education, as a service, on the agenda e liberdade estão articuladas à diver-
empresariais na área educacional, pe- of the General Agreement on Trade in sidade e ao pluralismo e que a educação
rante o grande volume de recursos nela Services, as a World Trade representa apenas uma das formas de
envolvidos, apresentando a perspectiva Organisation directive. To this end, it aprender. Afirma que o universalismo,
de inclusão da educação, como serviço, analyses WTO and GATS documents, mais do que qualquer outra coisa, tem
na agenda do Acordo Geral Sobre Co- as well as proposals presented by some sido a causa principal para se eliminar a
mércio em Serviços, regido pela ótica countries, demonstrating their interests diversidade considerada a essência da
da Organização Mundial do Comércio. in eliminating “barriers” to “free vida. Sugere que a adoção da alfabeti-
Para tanto, analisa documentos da trade” in education. The text points out zação como forma dominante de conhe-
OMC, do GATS, propostas apresenta- that the existence of national cimento pode contribuir para o desapa-
das por alguns países, evidenciando o regulations and even the offer of public recimento da diversidade e para a
interesse destes na eliminação de “bar- education can be challenged as predominância de um único caminho
reiras” para seu “livre comércio”. Sina- practices which are harmful to the para o progresso e o desenvolvimento.
liza que a existência de regulamenta- “free” offer of educational services Palavras-chave: analfabeto; alfabeti-
ções nacionais e mesmo a oferta do and subject to WTO sanctions allowing zação; linguagem; conhecimento; di-
ensino público podem ser questionados business groups to demand public versidade
como práticas prejudiciais à livre ofer- resources and other benefits. Should How to erradicate illiteracy without
ta de serviços educacionais, sujeitos às GATS succeed, it runs the risk of erradicating illiterates?
sanções da OMC, entre as quais os converting education from a subjective The text challenges various
grupos empresariais poderão vir a exi- public right into a process of simple suppositions which are frequently
gir recebimento de recursos públicos e commercialisation of educational included in official discussions on
outros benefícios. Alerta para o fato de packages (e.g. courses, systems of literacy, questioning the inherent
que, caso o GATS se concretize, corre- evaluation and certification, textbooks, liberating and positive value of the
se o risco da transformação da educa- uniforms, maps etc.). It concludes by literacy process on the basis of the

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Resumos/Abstracts

need to respect and valorise the the forms of learning. It affirms that knowledge could contribute to the
diversity of forms of learning, studying, universalism has been the principal disappearance of diversity and to the
knowing and expressing oneself. It cause of the elimination of diversity predominance of one path to progress
argues that liberation and liberty are which is considered the essence of life and development.
linked to diversity and to pluralism and and suggests that the adoption of Key-words: illiterate; literacy;
that education represents just one of literacy as the dominant form of language; knowledge; diversity

Revista Brasileira de Educação 185

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