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Comentários aos artigos 1º e 2ª da Lei

12.850/13 - Criminalidade Organizada e crime


organizado
Publicado por Luiz Flávio Gomes
há 7 anos

Comentários aos artigos 1º e 2ª da Lei 12.850/13 - Criminalidade organizada e crime


organizado
PALAVRAS-CHAVE: Lei 12.850/13 - Criminalidade organizada - Crime organizado -
Organização criminosa.
SUMÁRIO: 1. A partir de que data entra em vigor a Lei 12.850/13? - 2. Crime permanente iniciado
antes da nova lei é abrangido por ela? - 3. Quais são os parâmetros normativos do direito penal
intertemporal? - 4. Qual o princípio que rege a lei penal nova mais benéfica? - 5. A coisa julgada
constitui obstáculo para a incidência da lei nova favorável? - 6. Para as normas processuais rege
qual princípio? - 7. Para as normas processuais com conteúdo material rege qual princípio? - 8. Para
as normas processuais mistas regem quais princípios? - 9. Do que cuida a Lei 12.850/13? - 10. De
que maneira devemos “combater” (controlar) a criminalidade organizada? - 11. Foi descartado o
chamado “direito penal de segunda velocidade” (de Silva Sanchez)? - 12. Foi descartado o chamado
direito penal de terceira velocidade (de Jakobs)? - 13. Qual foi a opção do legislador? - 14. Do
ponto de vista político-criminal, quais possibilidades existem? - 15. Qual linha político-criminal foi
seguida pela Lei 12.850/13? - 16. Do ponto de vista dogmático como deve ser interpretada a Lei
12.850/13? - 17. Qual seria a opção correta? - 18. Existe o crime organizado? Qual era a tese de
Zaffaroni? - 19. Qual seria a conformação do crime organizado hoje? - 20. Continuam os paraísos
fiscais? - 21. O que pensa Ferrajoli sobre o crime organizado? - 22. Que se entende por organização
criminosa? - 23. A primeira definição de organização criminosa veio com a Lei 12.694/12? - 24. O
conceito de organização criminosa dado pela Lei 12.694/12 continua válido? - 25. Quais seriam as
diferenças principais entre os dois conceitos de organização criminosa? - 26. Antes das Leis
12.694/12 e 12.850/13 foi refutada a tese do uso do Tratado de Palermo? - 27. Quais são os
requisitos da definição de organização criminosa na Lei 12.850/13? - 28. Quatro ou mais pessoas? -
29. [Associação] estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que
informalmente? - 30. O que significa associação “estruturalmente ordenada”? - 31. Existe hierarquia
na organização criminosa? - 32. Quais seriam outras características das organizações criminosas? -
33. Exige-se um grupo estável e permanente, com intenção de continuidade no tempo? - 34. O uso
de ameaça ou violência é comum? - 35. A seleção dos seus membros e o fim de lucro integram a
“organização”? - 36. O que as organizações criminosas fazem ou fornecem? - 37. Mediante a
prática de infrações penais? - 38. O grupo tem que planejar a prática de infrações penais cujas penas
máximas sejam superiores a quatro anos? - 39. Ou que sejam de caráter transnacional? - 40. Quais
são as diferenças entre o crime de associação criminosa (CP, art. 288) e o de organização criminosa
(da Lei 12.850/13)? - 41. Qual é o âmbito de aplicação da Lei 12.850/13? – 42. Em que consiste o
crime organizado? - 43. Quais são as outras características do crime organizado? - 44. Qual são os
bens jurídicos protegidos? - 45. Qual o aspecto subjetivo do crime? - 46. Qual a pena cominada ao
delito de crime organizado? - 47. Em que consiste o crime de obstrução da investigação? - 48. O
novo conceito de crime organizado ilumina a compreensão de várias outras leis ou normas? - 49.
Variações e dimensões do crime organizado - 50. A arma de fogo aumenta a pena? - 51. A posição
de comando aumenta a pena? - 52. Quais outras circunstâncias aumentam a pena? - 53. É possível o
afastamento cautelar do funcionário público? - 54. Quais são os efeitos da condenação penal? - 55.
Quem instaura o inquérito quando o autor é policial? - 56. Punibilidade do crime organizado - 57.
Duas sugestões (provocações?) de Luigi Ferrajoli - 58. Por detrás do crime organizado pode haver
um psicopata/canalha?
LEI Nº 12.850, DE 2 DE AGOSTO DE 2013
1. A partir de que data entra em vigor a Lei 12.850/13? A partir de 19.09.13. A lei foi publicada no
dia 05.08.13, com “vacatio legis” (tempo de divulgação e de conhecimento da lei) de 45 dias, nos
termos do art. 27 (da 12.850/13). Como se conta o tempo da “vacatio”? De acordo com o art. 8º, §
1º, da Lei Complementar 95/98 (que é uma espécie de Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro), “a contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de
vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor
no dia subsequente à sua consumação integral” (Texto incluído pela Lei Complementar nº 107, de
26.4.2001). Em suma: conta-se o dia da publicação (05.08.13, dies a quo) assim como o último dia
do prazo (18.09.13, dies ad quem). A vigência acontece a partir do primeiro segundo (a partir da
primeira movimentação do ponteiro do relógio) do dia subsequente, ou seja, do dia 19.09.13.
2. Crime permanente iniciado antes da nova lei é abrangido por ela? Sim. Todos os fatos
(relacionados com o crime organizado) praticados a partir do primeiro segundo do dia 19.09.13
estão regidos pela nova lei, que criou, pela primeira vez, o crime organizado no Brasil (não
confundir o crime organizado, que é o todo, com a organização criminosa, que é sua parte –
voltaremos a esse ponto nos nossos comentários ao art. 2º, abaixo). A organização criminosa é, por
natureza, um fato permanente, ou seja, sua consumação perdura no tempo, de acordo com a vontade
do agente (que tem o domínio do fato). Conduta permanente, iniciada antes do dia 19.09.13, que
continua sendo executada a partir desta data (“integrar” organização criminosa, por exemplo), passa
a ser regida pela nova lei. Em outras palavras, o crime organizado permanente não esgotado, mesmo
iniciado antes do novo texto legal, se prossegue em ação na data da nova lei, passa a ser regida por
esta.
3. Quais são os parâmetros normativos do direito penal intertemporal? Vejamos: A Lei 12.850/13
tem vigência a partir de 19.09.13. No que concerne ao direito penal intertemporal, urge desde logo
salientar o seguinte: no art. 2º foi descrito o crime organizado. Trata-se de crime novo, ou seja, de
uma novatio legis incriminadora, que é regida, evidentemente, pelo princípio da irretroatividade: só
vale para fatos ocorridos de 19.09.13, em diante (v. CF, art. 5.º, inc. XL, c. C. Art. 2º, parágrafo
único, do CP). A lei só vale a partir dessa data e só vale para fatos ocorridos dentro da sua vigência.
Seguem a mesma regra da irretroatividade todos os crimes novos tipificados na Lei 12.850/13,
como, por exemplo, os dos arts. 18 a 21. Também é maléfica a regra do novo art. 288 do CP, na
parte em que diminuiu o número de participantes necessários do crime (de quatro para três). Antes a
lei dizia “mais de três agentes” (no mínimo, quatro), agora a lei fala em três ou mais. Lex dura:
irretroativa (só se aplica para fatos ocorridos sob a vigência da nova lei, ou seja, para fatos
ocorridos a partir de 19.09.13). Esse mesmo regramento normativo vale para a lei nova que aumenta
a pena, como é o caso do art. 342 do CP (falso testemunho ou falsa perícia): a pena que era de 1 a 3
anos passou a ser de 2 a 4 anos (lei nova maléfica, portanto, irretroativa).
4. Qual o princípio que rege a lei penal nova mais benéfica? O princípio da irretroatividade da lei
penal maléfica encontra exceção precisamente no seu oposto: lei penal nova benéfica retroage (por
exemplo: a lei nova chega a permitir perdão judicial no caso de colaboração premiada. Nesse ponto,
a lei nova é benéfica, logo, retroage, para alcançar fatos passados). Outro ponto benéfico: a nova lei
reduziu o aumento da pena para a quadrilha armada (associação criminosa armada, do art. 288).
Naquilo que a lei nova é benéfica, tem que retroagir para favorecer o réu. Exemplo: art. 288,
parágrafo único: antes, a quadrilha armada tinha a pena em dobro; agora a associação armada tem
aumento de pena de metade. Lei penal nova mais benéfica, que retroage. Quando o legislador
abranda, de qualquer forma, o poder punitivo estatal, esse abrandamento sempre vai favorecer o réu,
mesmo em relação aos crimes anteriores à nova lei. Essa retroatividade vale inclusive para o
período de “vacatio legis”. A retroatividade da lei penal nova mais benéfica é uma questão de
proporcionalidade e de dignidade e tem amparo constitucional (art. 5º, inc. XL).
5. A coisa julgada constitui obstáculo para a incidência da lei nova favorável? Não. Toda norma
penal nova que favoreça o réu de qualquer modo (diminuindo a pena, criando novas excludentes do
crime, novas causas de não culpabilidade, em suma, que crie obstáculo ou suavize ou impeça a
punibilidade), tem efeito retroativo, mesmo que já existe coisa julgada. Ou seja: a coisa julgada
(decisão contra a qual já não cabe nenhum recurso) não é impedimento para a retroatividade da lei
penal nova mais benéfica, nos termos do art. 2º, parágrafo único, do CP. Exemplo: naqueles casos
em que a quadrilha ou bando foi punida com pena em dobro porque armada, aplica-se a nova lei
penal benéfica para reduzir a pena.
6. Para as normas processuais rege qual princípio?Para as normas genuinamente processuais rege
o princípio da aplicação imediata, nos termos do art. 2º do CPP (tempus regit actum). Normais que
versam sobre procedimento, sobre investigação, sobre meios de obtenção de provas, prazos, atos
processuais, sequência dos atos processuais etc., são normas genuinamente processuais. Aplicam-se
imediatamente. Em outras palavras, são normas eminentemente processuais as que não afetam, de
modo direto e imediato, nenhum substancial right do suspeito, indiciado ou acusado, ligado
diretamente à liberdade. O princípio válido, assim, para essas normas (genuinamente processuais), é
o estabelecido no art. 2.º do CPP, isto é, o da aplicação imediata. Em consequência, a lei nova deve
ser aplicada inclusive os processos ou investigações em curso. E mesmo que o crime (permanente)
tenha tido início antes da lei nova (de se observar que pode haver meios probatórios para
investigação ou instrução penal).
7. Para as normas processuais com conteúdo material rege qual princípio? A terceira categoria de
normas são as chamadas normas processuais de conteúdo material. São normas que afetam de
forma direta o ius libertatis (normas sobre fiança, sobre liberdade provisória etc.) Para essas normas
vale o direito intertemporal penal, ou seja, é como se fossem normas penais. Exemplo: lei nova que
dificulta a fiança, antes cabível amplamente. É uma norma processual, mas tem conteúdo material
imediato, porque afeta diretamente o ius libertatis. Não é, portanto, o locus (o local, a topografia) da
norma que a reveste de caráter penal ou processual, sim, o fundamental é analisar o seu conteúdo.
Norma nova que elimina um recurso (isso ocorreu com o protesto por novo júri) também tem
aplicação imediata (discordamos desse entendimento, mas é a jurisprudência predominante no STJ).
8. Para as normas processuais mistas regem quais princípios? Norma processual mista em sentido
estrito é a que conta, num único dispositivo, com dois comandos normativos: um penal e outro
processual. Exemplo: art. 88 da Lei 9.099/95 (lei dos juizados especiais). A partir da sua vigência os
crimes de lesões corporais leves e lesões culposas passaram a exigir representação (manifestação de
vontade da vítima). A representação é instituto eminentemente processual. Mas ela deve ser
exercida dentro de um prazo, que é decadencial. O instituto da decadência tem nítido caráter penal.
Para crimes novos (cometidos depois da Lei 9.099/95) a aplicação da lei é imediata. Ou seja: a parte
processual (exigência de representação) é imediata. Para crimes antigos (antes da lei), a parte penal
é retroativa, por se tratar de lei penal nova mais benéfica (a própria lei resolveu o tema, no art. 91,
ao determinar a intimação da vítima para manifestar sua vontade em 30 dias). Lei penal nova
benéfica retroage. Em síntese: na norma mista a parte penal retroage se benéfica e não retroage se
maléfica. Mas isso não impede a aplicação imediata da parte processual.
9. Do que cuida a Lei 12.850/13? Este novo diploma legal define a organização criminosa, cria o
crime organizado (art. 2º) e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova,
infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras
providências. O artigo 1º, explicitando ex abundantia o propósito da lei, diz: “Esta Lei define
organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova,
infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado”. De se notar que a nova lei
não apenas definiu o que é organização criminosa, como também criou o delito que podemos
denominar de crime organizado (art. 2º). A organização, como se vê, faz parte do crime organizado,
que conta com verbos específicos (com condutas verbais próprias). Em síntese: uma coisa é a
organização criminosa, outra distinta é o crime organizado (mas aquela faz parte deste). Há uma
relação simbiótica de continente e conteúdo, ou seja, o hospedeiro (crime organizado) se mesclou,
se fundiu, com o hóspede (organização criminosa).
10. De que maneira devemos “combater” (controlar) a criminalidade organizada?São múltiplos
os questionamentos a esse respeito. Do ponto de vista instrumental, pensamos que devemos seguir
as racionalidades do poder punitivo clássico, idealizado pelo Iluminismo (no século XVIII) e
fundado na tutela subsidiária de bens jurídicos individuais (vida, patrimônio etc.). Recorde-se que
se trata de um direito dotado de garantias (nenhuma pena pode ser imposta sem a observância do
devido processo legal), que foi imaginado (no século XVIII, pelos burgueses que ascenderam ao
poder) para limitar o poder punitivo estatal. Essa lógica garantista do Iluminismo (depois secundada
por Ferrajoli) continua vigente, por força da CF. Não há como imaginar de outra forma as leis
penais, mesmo que editadas para o “combate” do poderoso crime organizado.
11. Foi descartado o chamado “direito penal de segunda velocidade” (de Silva Sanchez)? Sim.
Para esse emérito penalista espanhol (da Pompeu Fabre de Barcelona) o direito penal, em relação a
alguns crimes, poderia ser privado da pena de prisão, mas ao mesmo tempo flexibilizado nas
garantias penais e processuais. Não foi isso que foi adotado pela Lei 12.850/13, que não teve o
propósito de flexibilizar as garantias penais e processuais, em razão de se tratar de um crime grave,
como é o crime organizado.
12. Foi descartado o chamado direito penal de terceira velocidade (de Jakobs)? Sim. O que
caracteriza o direito penal de terceira velocidade é a imposição da pena de prisão sem as devidas
garantias (direito penal do inimigo). Não foi propósito do legislador introduzir pela Lei 12.850/13 o
deplorável direito penal ou processual do inimigo. Alguns dispositivos da lei podem até dar margem
para esse tipo de aberrante interpretação, mas desde logo cabe frisar que se trata de algo
absolutamente inconstitucional. O intérprete pode entender os novos dispositivos desde uma
perspectiva do direito penal do inimigo ou não. A primeira é inconstitucional, de acordo com nosso
ponto de vista.
13. Qual foi a opção do legislador? Por força da Lei 12.850/13, editada sob a égide da CF de 1988,
resulta evidente que o legislador brasileiro fez opção pela primeira alternativa, ou seja, seguiu o
modelo clássico do direito penal, com algumas determinações ou omissões questionáveis (que
tangenciam o direito penal ou processual do inimigo). Por exemplo: o juiz que homologa o acordo
de colaboração premiada pode ser o mesmo juiz do processo. Deveria ser outro, para preservar a
imparcialidade. Compete à doutrina revelar o programa concreto de cada norma. Uma coisa é o que
o legislador escreve, outra o que a jurisprudência aceita como válido (com fundamento na CF e nos
tratados internacionais de direitos humanos). Nem toda lei vigente é válida (Ferrajoli). Cabe à
doutrina (à ciência penal) explicitar o rumo adequado de cada dispositivo legal.
14. Do ponto de vista político-criminal, quais possibilidades existem?As alternativas político-
criminais, no campo do crime organizado, teoricamente, são as seguintes:(a) o abolicionismo de
Hulsman, Christie etc. (fim do poder punitivo estatal formalizado);(b) as racionalidades do direito
penal mínimo e garantista, típico de um Estado Democrático de Direito (Baratta, Ferrajoli,
Zaffaroni etc.);(c) o tendencial expansionismo penal, imparável (conforme denúncia de Silva
Sanchez), impulsionado pelo neoconservadorismo punitivo e hoje espelhado no discurso do
populismo penal;(d) a necro-política repressiva (do México, v. G., contra as drogas). Esse é o lado
escatológico do neoconservadorismo penal.
15. Qual linha político-criminal foi seguida pela Lei 12.850/13? A Lei 12.850/13 seguiu, neste
ponto, a segunda alternativa, com mesclas do terceiro. Ela não foge da perspectiva do direito penal
mínimo, mas tem ao mesmo tempo a presença de normas expansionistas e desproporcionais. Por
exemplo: o crime-meio (organização criminosa), com pena de 3 a 8 anos de reclusão, pode ser
punido mais gravemente que os crimes-fins (posto que um crime com pena máxima de 5 anos pode
fazer parte do conceito de organização criminosa).
16. Do ponto de vista dogmático como deve ser interpretada a Lei 12.850/13? As alternativas,
aqui, também são variadas: (a) o funcionalismo moderado de Roxin (o direito penal deve cumprir a
função de tutela fragmentária e subsidiária dos bens jurídicos); (b) o funcionalismo extremado (ou
sistêmico) de Jakobs (o direito penal serve para a estabilização da norma penal); (c) o
funcionalismo reducionista (ou contencionista) de Zaffaroni (o direito penal serve para conter o
estado de polícia, o poder punitivo estatal); (d) o funcionalismo constitucionalista (TCD), que é
nossa síntese dos limites da intervenção penal, dotando a tipicidade de um conteúdo material.
17. Qual seria a opção correta? De acordo com nosso pensamento, não temos nenhuma dúvida de
que a soma dos itens a, c e d é o caminho correto e único válido no Estado constitucional e
democrático de direito. “Garantismo “versus” eficientismo”: a investigação e o processo do crime
organizado não podem fugir dos limites fixados pelo Estado; impõe-se o equilíbrio entre o
garantismo e o eficientismo. Os dois grandes direitos em jogo (liberdade individual “versus”
segurança da sociedade) devem ser conciliados. Não haveria espaço nem para um sistema dotado de
exageradas hipergarantias para o criminoso organizado nem para o chamado direito penal de guerra
contra o inimigo (que admite a duplicidade de processo: um para o cidadão e outro para o inimigo,
este último com garantias reduzidas).
18. Existe o crime organizado? Qual era a tese de Zaffaroni?Há alguns anos ele era mais
contundente no sentido da inexistência do crime organizado, ao menos do ponto de vista conceitual
e criminológico. Trata-se de uma categoria frustrada (in Discursos sediciosos, 1, 1996, p. 45-67),
dizia. Em palestra proferida no dia 11.01.13, na Universidade de Mar del Plata, o professor
argentino explicou que o crime organizado é um crime de mercado, que oferece produtos ou
serviços ilícitos (drogas, exploração sexual dos seres humanos etc.).
19. Qual seria a conformação do crime organizado hoje? Seguindo as explicações do emérito
penalista argentino, tudo depende da demanda. O que for demandado pelo mercado, é oferecido. O
proibicionismo é a fonte do crime organizado. E quando se proíbe algo, o preço sobe. A lavagem de
capitais (concentrada nos EUA e na Europa) faz parte dessa engrenagem. Ela complementa as
atividades organizadas (que precisam legitimar os ganhos ilícitos, valendo-se, para isso, no mundo
todo, sobretudo das estruturas financeiras existentes) [O banco HSBC, só para citar um primeiro
exemplo, recentemente foi flagrado nos EUA em atividades de lavagem de capitais - mais
precisamente, lavagem de dinheiro do narcotráfico mexicano].
20. Continuam os paraísos fiscais? Sim. Os refúgios (paraísos) fiscais continuam funcionando. O
crime organizado faz parte da criminalidade econômica (porque tem fundamentalmente função
econômica). Não faz parte do capitalismo de produção, sim, vende produtos e serviços. A proibição
representa uma plus valia (encarece o serviço ou produto, gerando mais lucros). Os EUA proibiram
o consumo de álcool (década de 20, do século XX) e aí se estruturaram vários crimes organizados.
Os EUA são os maiores consumidores de drogas do mundo. A distribuição da receita com as drogas
se faz da seguinte maneira: produção em um país (fica com 1/3 da receita), processamento e
logística em outro país (outro 1/3) e distribuição difusa (o 1/3 restante). Os EUA são os maiores
vendedores de armas. O crime organizado funciona às vezes como paliativos de crises econômicas
(Baden-Baden na Alemanha é um exemplo). O crime organizado sempre envolve agentes do Estado
(de maneira direta ou indireta).
21. O que pensa Ferrajoli sobre o crime organizado?O professor Luigi Ferrajoli, no dia 27.06.12,
ao receber o título de “Doctor Honoris Causa”, da Universidad Nacional de Tucuman (Argentina),
cuidou em sua “lectio doctoralis” do tema “criminalidade organizada e democracia”. Para ele, não
há como negar a existência do crime organizado. São organizações poderosas. Iniciou sua
intervenção afirmando que o crime organizado é poderoso e, ademais, chega a atentar contra as
raízes do Estado e da Democracia, ou seja, coloca em risco a possibilidade de uma salutar
convivência social [no caso do México, com sua necropolítica repressiva durante anos, existem 25
mil desaparecidos e 60 mil mortos; Honduras, El Salvador e Guatemala, por exemplo, que formam
parte do triângulo da morte: 60 a 90 mortos por 100 mil habitantes]. Ele pode afetar o
funcionamento normal das nossas sociedades? Sim. A América Central assim como alguns
territórios brasileiros, para citar dos exemplos, vivem diariamente esse drama, em razão, sobretudo,
das suas ligações com as autoridades públicas bem como com a criminalidade ordinária. Poder
econômico e poder destrutivo. O crime organizado (qualquer que seja ele) tem hoje um peso
financeiro e econômico sem precedentes, visto que possui caráter local e, muitas vezes, global.
Conta, ademais, com um poder destrutivo impressionante [destruição de seres humanos, da
natureza, das condições necessárias para a vivência democrática etc.].
22. Que se entende por organização criminosa?Por força da Lei 12.850/13 (que entrará em vigor
no dia 19.09.13) a organização criminosa foi regrada da seguinte maneira (veja as primeiras
considerações de Rômulo de Andrade Moreira e Fabrício da Mata Corrêa, no portal
atualidadesdodireito. Com. Br):
“§ 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas
estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com
objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de
infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter
transnacional”.
Está atendido o princípio da legalidade (porém, com reservas, em razão das expressões vagas que
utiliza; voltaremos ao tema mais abaixo). De acordo com nosso entendimento esse novo conceito
revogou o da Lei 12.694/12.
23. A primeira definição de organização criminosa veio com a Lei 12.694/12? Sim. O art. 1º da
Lei 12.694/12 criou a possibilidade de julgamento colegiado em primeiro grau, nos crimes
praticados por organizações criminosas: No seu art. 2º está contemplada a definição de organização
criminosa:
“Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais
pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que
informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza,
mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que
sejam de caráter transnacional.”
Esta lei não cominou nenhum tipo de sanção penal, logo, não criou o crime organizado. Deu o
conceito de organização criminosa, para fins processuais, mas não criou o crime respectivo.
24. O conceito de organização criminosa dado pela Lei 12.694/12 continua válido? Não. Num
primeiro momento cheguei a imaginar o contrário (que os dois conceitos continuariam vigentes).
Refletindo um pouco mais, estou concluindo que houve revogação do primeiro pelo segundo. O
conceito dado pela Lei 12.694/12 visava a permitir o julgamento colegiado em primeira instância.
Essa possibilidade (de julgamento colegiado em primeiro grau) continua (aliás, a Lei 12.694/12
continua intacta na sua totalidade, salvo no que diz respeito ao conceito de organização criminosa).
Mas, agora, o juiz tem que se valer do conceito de organização criminosa da Lei 12.850/13, pelo
seguinte: é com esta nova lei que veio, pela primeira vez no Brasil, o conceito de “crime”
organizado. O processo (julgado por juiz singular ou por juiz colegiado) existe para tornar realidade
a persecução de um crime (ele é o instrumento da persecutio criminis in iuditio). O julgamento
colegiado em primeiro grau é instrumento, não a substância. É a forma, não a matéria. Se o
instrumento processual existe para tornar realidade o material, o substancial (o essencial), claro que
esse instrumento deve estar conectado ao principal. O acessório segue a sorte do principal. Quando
os juízes se reúnem coletivamente é para apurar e julgar um “crime organizado”. Eles não se
reúnem para julgar a organização criminosa, isoladamente, que constitui apenas uma parte do crime
organizado. O que importa para fins penais e processuais é o crime (não a parte dele). Se o conceito
de crime organizado está dado pela nova lei, aos juízes competem seguir a nova lei, respeitando o
seu conceito de crime organizado, que nada mais é que a soma dos requisitos típicos do art. 2º com
a descrição de organização criminosa do art. 1º.
Em síntese: doravante, somente pode haver julgamento colegiado em primeira instância quando
presentes os requisitos do crime organizado dado pela nova lei (Lei 12.850/13). Desapareceu do
ordenamento jurídico válido o conceito dado pela Lei 12.694/12. Concordamos com a tese de Cezar
Roberto Bitencourt, Márcio Alberto Gomes da Silva, Rogério Sanches/Ronaldo B. Pinto etc. A nova
lei regulou a matéria (organização criminosa) de forma integral. Essa é uma das formas de
revogação da lei anterior. Dois conceitos sobre a mesma essência só gera confusão. Também por
esse motivo é melhor a interpretação do conceito único: o novo. Agregue-se um outro argumento,
de política criminal: se o legislador, por razões de política criminal, optou na nova configuração
legal pelo número mínimo de 4 pessoas, é preciso respeitar essa decisão política. E se ela integra o
conceito de crime organizado, não como o juiz aplicar o conceito anterior da Lei 12.684/12, que foi
construído sob a égide de outras escolhas de política criminal. A posterior derroga a anterior.
25. Quais seriam as diferenças principais entre os dois conceitos de organização criminosa? Três
se destacam: a Lei 12.694/12 fala em associação de três ou mais pessoas; a Lei 12.850/13 exige
quatro ou mais pessoas. A primeira é aplicável para crimes com pena máxima igual ou superior a 4
anos; a segunda é aplicável para infrações penais superiores a 4 anos. Note-se: a primeira fala em
crimes (que não abarcam as contravenções penais). A segunda fala em infrações penais (que
compreendem os crimes e as contravenções penais). De qualquer modo, morreu o conceito da Lei
12.694/12.
26. Antes das Leis 12.694/12 e 12.850/13 foi refutada a tese do uso do Tratado de Palermo? Sim.
A Lei 9.034/95 (agora revogada expressamente) não definiu o que se entende por crime organizado
(ou organização criminosa). Diante dessa flagrante lacuna na legislação anterior, pretendeu-se supri-
la com a utilização do Tratado de Palermo, que cuida da criminalidade organizada transnacional.
Era uma maneira escamoteada de tentar burlar a garantia do princípio da legalidade. A tese foi
refutada no HC 97.006, pelo STF. Afirmava-se que referido tratado passou a vigorar no Brasil por
meio do Decreto 5015/2004, logo, assim estaria atendido o princípio da legalidade. Diferentemente
do que fizera o STJ em alguns julgados, STF não aceitou essa tese. Por quais motivos a tese não
foi aceita? Vários motivos: (a) porque só se pode criar crime e pena por meio de uma lei formal
(aprovada pelo Parlamento, consoante o procedimento legislativo constitucional); (b) o decreto
5.015/2004 viola a garantia da “lex populi”, ou seja, lei aprovada pelo parlamento (decreto não é
lei); (c) quando o Congresso aprova um Tratado ele o ratifica, porém, ratificar não é aprovar uma
lei; (d) mesmo que o tratado tivesse validade para o efeito de criar no Brasil o crime organizado,
mesmo assim, ele não contempla nenhum tipo de pena (argumento do ministro Marco Aurélio) e,
sem pena, não existe crime; (e) o tratado foi feito para o crime organizado transnacional, logo, só
poderia ser aplicado para crimes internos por meio de analogia, contra o réu, que é proibida.
27. Quais são os requisitos da definição de organização criminosa na Lei 12.850/13? Primeiras
exigências: “a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas”. Associar-se significa juntar-se, reunir-se,
somar esforços, somar forças (físicas ou intelectuais).
Associação de forma estável, duradoura, permanente, pois do contrário configura uma mera
coautoria (autoria coletiva) para a realização de um determinado delito. Se quatro ou mais pessoas,
num evento cultural (um baile, por exemplo), se reúnem naquele momento para bater ou matar uma
pessoa, estamos diante de uma autoria coletiva (coautoria), não de uma organização criminosa (que
exige estabilidade prévia). A associação de várias pessoas numa passeata, desde que seja ato
isolado, não permanente, não configura a organização criminosa. A permanência e estabilidade do
grupo deve ser firmada antes do cometimento dos delitos planejados (se isso ocorrer depois, trata-se
de mera co-autoria – nesse sentido Rogério Sanches/Ronaldo Pinto).
28. Quatro ou mais pessoas? Sim. Cuida-se de crime de concurso necessário, também chamado de
plurissubjetivo (que afasta a coautoria), de condutas paralelas. Três pessoas são insuficientes para a
caracterização da organização criminosa, nos termos da nova lei. Trata-se de uma decisão de
política criminal do legislador. A associação de três pessoas pode configurar o crime do art. 288 do
CP, com a nova redação. O agente infiltrado (quando isso ocorrer) não pode ser computado para o
número mínimo legal (4 agentes) (concordo com Rogério Sanches/Ronaldo Pinto). Ele não é
“sujeito ativo” desse delito. Ele apenas está infiltrado para descobrir o funcionamento e a dinâmica
do grupo. Uma coisa é quem pertence ao grupo, outra distinta é quem está fiscalizando o grupo.
Andar juntos não significa estar juntos!
Não importa quem são os quatro (ou mais), se imputáveis ou inimputáveis (claro que se todos forem
inimputáveis, menores de 18 anos, o tema vai totalmente para o ECA). Os menores utilizados pelo
grupo organizado como “instrumentos” não são considerados para o número mínimo legal (quatro
pessoas). Instrumento não é “sujeito ativo” do delito. O crime requer no mínimo quatro sujeitos
ativos (não sujeitos instrumentos). A utilização ou participação de menores no crime (crianças ou
adolescentes) configura causa de aumento de pena, nos termos do art. 2º, § 4º, da Lei 12.850/13.
Não importa que todos os sujeitos ativo se reúnam formalmente. Não importa o que cada um faz
(um financia, o outro organiza, outro planeja, outro executa atos etc.). No crime econômico
organizado, sobretudo, a divisão de tarefas é bastante variada. Não é relevante o que cada um faz,
sim, a homogeneidade de vontades (ou seja: a vontade de cada um de participar da obra coletiva).
Havendo essa homogeneidade subjetiva, todos respondem pelo delito (independentemente do que
cada um faz).
Do ponto de vista numérico ficamos então, agora, com o seguinte: a associação para o fim de tráfico
de drogas exige duas pessoas (art. 35 da Lei 11.343/06), a associação criminosa do art. 288 (com
nova redação) requer no mínimo três pessoas e o crime organizado (organização criminosa)
somente se perfaz com no mínimo quatro pessoas.
29. [Associação] estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que
informalmente? Sim. A locução “associação estruturalmente ordenada” revela um conceito
normativo, que depende de interpretação compreensiva do juiz. Ou seja, novamente foi agredido o
princípio da legalidade, mais especificamente a sua garantia da taxatividade, mas não cremos que a
jurisprudência (sobretudo a de sabor populista) vá ter coragem de fazer respeitar referida garantia
(que, nesta altura da expansividade do poder punitivo – Silva Sanchez -, está se transformando em
letra morta ou minúscula). A preponderância do poder punitivo sobre o direito penal (sobre a ciência
do direito penal) está mais do que evidente, em tempos de populismo penal midiático (veja nosso
livro com esse título, Saraiva: 2013).
A crítica de Rogério Taffarello e Pedro de Andrade é acertada (Valor 5/7/13, p. E2): “É lição
primária de técnica legislativa que todo texto normativo deve apresentar máxima objetividade e
clareza. Com efeito, o seu destinatário – que não é o juiz, o promotor ou o defender, mas todo e
qualquer cidadão – deve poder compreender seu significo e, com isso, ter a precisa dimensão do que
está permitido ou proibido. Objetividade e clareza, no entanto, escapam a uma definição legal que
utiliza mais de cinquenta palavras, sendo seis verbos, reunidos de forma que, ao final, o leitor pouco
se recorda do que lera ao início, obrigando-se a rever o texto diversas vezes para (tentar) apreender
algo de seu conteúdo. Tem-se, aqui, a primeira nota de insegurança jurídica”.
30. O que significa associação “estruturalmente ordenada”? Significa, desde logo (veja Ana
Luiza Almeida Ferro, Crime organizado e organizações criminosas mundiais, p. 370 e ss.), não uma
mera reunião de pessoas para o cometimento de ilícitos (isso não passa de concurso de pessoas),
sim, uma conspiração organizada, planejada, coordenada. Não se pode banalizar o conceito de
crime organizado que, com frequência, conta com planejamento “empresarial”, embora isso não
seja rigorosamente necessário. Não há como confundir esse planejamento com o mero programa
delinquencial (que está presente em praticamente todos os crimes dolosos). A presença de itens do
planejamento empresarial (controle do custo das atividades necessárias, recrutamento controlado de
pessoal, modalidade do pagamento, controle do fluxo de caixa, de pessoal e de “mercadorias” ou
“serviços”, planejamento de itinerários, divisão de tarefas, divisão de territórios, contatos com
autoridades etc.) constitui forte indício do crime organizado.
31. Existe hierarquia na organização criminosa? Pode haver hierarquia ou não (não se trata de
requisito formal da lei), embora, na prática, quase sempre ela se faz presente, tendo proeminência
um líder ou líderes (chefes), que conta (contam) com o domínio total da ação/organização,
assumindo a posição de comando. Ele ou eles decidem o curso da ação, a admissão de participantes,
os atos delituosos que serão realizados, os meios a serem empregados, as datas dos fatos, local,
condições etc. A hierarquia, caso existente, constitui um robusto indicativo de algo “organizado”,
mas nenhum item deve ser analisado isoladamente.
32. Quais seriam outras características das organizações criminosas? Ainda são relevantes para a
compreensão da exigência típica aqui enfocada (estrutura ordenada) alguns dados, como os
seguintes: normalmente as organizações criminosas não possuem caráter ideológico, ou seja, “não
contam com agendas políticas”, não pretendem mudar o regime político do país, não representam
terroristas ou seus propósitos de mudanças na governança do Estado; seu propósito é o lucro
(normalmente) e, para isso, o que o grupo visa é a “neutralização do Estado” (mediante ameaça
ou corrupção), para que a organização tenha maior sucesso (para que fique na impunidade).
33. Exige-se um grupo estável e permanente, com intenção de continuidade no tempo?De acordo
com nossa opinião, sim. Mesmo que alguns membros do grupo sejam trocados, o relevante é a
permanência do próprio grupo, que conta com estabilidade, propósitos definidos etc. A substituição
de alguns membros não significa o fim do grupo. A fungibilidade dos seus membros é da essência
do crime organizado, porque muitos deles são presos ou morrem, assim como a divisão de
trabalho, pouco importando se os agentes intermediários ou inferiores na organização tenham ou
não contato com os comandantes. Aliás, eles nem precisam se conhecer. Tampouco tem relevância
se a estrutura ordenada ou mesmo a divisão de trabalho é formal ou informal (tudo pode estar
documentado ou não). O requisito da formalidade da organização foi dispensado
expressamente pela lei.
34. O uso de ameaça ou violência é comum? Sim. É comum, mas não necessário. Há organização
criminosa para ludibriar os cofres públicos que não usa nunca métodos agressivos (violência ou
grave ameaça). Outras contam com o poder de intimidação como eixo central de comando
(organizações que fazem tráfico de drogas, por exemplo). Elas não somente vivem das ameaças
contra seus membros e usuários (fregueses), como contam com tribunais de julgamento, que são os
responsáveis pela decisão das execuções sumárias de pessoas. Muitos grupos chegam a intimidar os
agentes públicos ou seus familiares e até a mesmo a polícia, juízes, membros do Ministério Público
são frequentemente ameaçados. O código do silêncio (omertà) faz parte das regras do grupo
organizado, como regra geral.
35. A seleção dos seus membros e o fim de lucro integram a “organização”? Sim. A seleção dos
seus membros é uma característica importante do grupo organizado. Não é qualquer pessoa que
pode fazer parte dele. Muitas vezes a admissão de um novo membro é antecedida de procedimentos
que revelem confiabilidade. Há, muitas vezes, seleção étnica ou racial. A folha de antecedentes
também é analisada. A finalidade de lucro é a regra nos grupos organizados. Mas essa exigência não
é essencial, para a Lei 12.850/13, visto que o grupo pode ter por objetivo alcançar, direta ou
indiretamente, vantagem de qualquer natureza. Para a lei brasileira qualquer tipo de vantagem
(sexual, por exemplo; ou o monopólio de uma atividade) é suficiente para a existência do crime.
Essa vantagem tem que ser ilícita, porque o crime organizado é planejado para funcionar por meio
de outros ilícitos.
Quando o grupo tem finalidade lucrativa (essa é a regra, quase absoluta) pode ser que esse lucro
venha também de atividades lícitas (o processo de mimetização é muito frequente no crime
organizado, que mescla atividades lícitas com ilícitas, para aparentarem licitude de tudo assim como
dificultarem a apuração dos lucros). A abertura de negócios “lícitos” também facilita a lavagem de
capitais (por meio do processo de mimetização). Tudo vai se mesclando. O lícito com o ilícito. Isso
é feito não apenas pelos grupos que já nascem criminosamente organizados, como também pelas
corporações (nacionais e multinacionais), que contam com maior facilidade para a mimetização dos
lucros ilícitos e lavagem de capitais.
Dentre outras, podem ainda ser citadas as seguintes características do crime organizado: (a)
emprego de recursos tecnológicos avançados, (b) conexão estrutural ou funcional com o Poder
Público (com seus agentes), (c) oferta de prestações sociais para determinados seguimentos da
sociedade, (d) divisão territorial das atividades ilegais, (e) capacitação para a fraude difusa, (f)
conexão local, regional, nacional ou internacional etc.
36. O que as organizações criminosas fazem ou fornecem?Fornecem produtos (bens) ou serviços
proibidos, que contem com demanda de amplos setores da população (drogas, sexo, jogos, tráfico
de pessoas, tráfico de órgãos, animais, pedras preciosas, material pornográfico, desfazimento do
lixo tóxico, armas, bebidas, adoção de bebês etc.). Elas também existem para a prática de fraudes,
sobretudo contra o poder público. Fraude nas concorrências públicas (como a do metrô de SP),
fraude contra o INSS, fraude no recebimento de benefícios, nas licitações etc. Todos esses bens,
serviços e atividades têm por escopo final o lucro (de qualquer modo, recorde-se que, para a Lei
12.850/13, qualquer vantagem constitui o requisito subjetivo do crime). Sempre que possível, os
grupos organizados buscam alcançar suas pretensão de forma monopolística (excluindo-se
concorrentes, em regra, de forma violenta).
37. Mediante a prática de infrações penais?Sim. Aqui temos mais uma exigência típica da
organização criminosa. O escopo do grupo é a obtenção de vantagem, de qualquer natureza. As
infrações pretendidas são indefinidas, em oposição ao propósito inerente à coautoria, que se destina
a um ou vários crimes certos. Mas essa vantagem tem que ser alcançada por um meio
expressamente fixado na lei: mediante a prática de infrações penais. A lei falou em infrações penais,
o que significa que abarca tanto o crime como a contravenção penal. O grupo não necessita praticar
essas infrações penais, basta que o objetivo seja esse. O crime de organização criminosa se consuma
com a associação estável e permanente do grupo, com o escopo de praticas futuras infrações penais.
Crime formal (do ponto de vista naturalístico), se consuma com a associação estável (não com a
prática das infrações planejadas).
38. O grupo tem que planejar a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam
superiores a quatro anos? Sim. Não basta que essa pena máxima seja igual ou inferior a quatro
anos. Tem que ser superior (no sentido crítico veja Sydney Eloy Dalabrida, no portal
atualidadesdodireito. Com. Br). Quando há incidência de uma causa de aumento de pena, ela é
computada para este efeito, se com o aumento a pena máxima passa de quatro anos. Muitos são os
crimes com penas superiores a quatro anos. No que diz respeito às contravenções penais, dois
exemplos podem ser citados: art. 53 do Decreto-lei 6.259/44 (“Colocar, distribuir ou lançar em
circulação bilhetes de loterias relativos a extrações já feitas. Pena: reclusão de 1 a 5 anos”) e art. 54
do mesmo decreto-lei (“Falsificar, emendar ou adulterar bilhetes de loteria. Pena: de um a cinco
anos de reclusão”).
Claro que nestes dois casos o legislador confundiu tudo: chamou as infrações de “contravenções
penais” e aplicou a pena de reclusão (que é típica dos delitos). Confusão total. Mas tudo que se
possa imaginar de confusão existe no ordenamento jurídico brasileiro, cuja inexatidão vem do
direito e costumes portugueses (que jamais foram apegados fidedignamente a regras).
39. Ou que sejam de caráter transnacional? Sim. As infrações penais planejadas podem ter pena
superior a quatro anos ou caráter transnacional (neste último caso, não há exigência de qualquer
quantidade de pena). Se o grupo tem caráter transnacional basta: é o suficiente para a configuração
típica da organização criminosa. Transnacional significa tanto transcender o território nacional
(alto-mar, por exemplo) como alcançar outro país (quando então o grupo ganha conotação
internacional). A transnacionalização ou internacionalização ficou, na atualidade, bastante facilitada
em razão do término das fronteiras, da facilidade de comunicação, a globalização das economias. A
organização criminosa alcança não só a de caráter transnacional como a internacional, podendo-se
citar aqui um exemplo de interpretação extensiva (se é crime o menos, transnacional, também é
crime o mais, o internacional, pouco importando se o crime começou no exterior e terminou aqui ou
o inverso).
Vejamos o seguinte quadro comparativo:
40. Quais são as diferenças entre o crime de associação criminosa (CP, art. 288) e o de
organização criminosa (da Lei 12.850/13)?
São marcantes tais diferenças, destacando-se as seguintes:
(a) só existe a segunda quando a associação pretende praticar crimes com pena máxima superior a
quatro anos ou que tenha caráter transnacional. Se o grupo pretende praticar crimes de menor
intensidade (punido mais brandamente), pode ser enquadrado eventualmente no art. 288;
(b) o art. 288 exige três ou mais pessoas; o novo crime de organização criminosa requer quatro ou
mais pessoas;
(c) a finalidade da associação criminosa (art. 288) é a de cometer crimes; a finalidade da
organização criminosa é a de, direta ou indiretamente, obter vantagem de qualquer natureza,
mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou
que sejam de caráter transnacional;
(d) o art. 288 fala em crimes; a organização criminosa fala em “infrações penais”, que abrange tanto
crimes como contravenções (e há contravenção punida com pena superior a 4 anos – veja o
Decreto-lei 6.259/44);
(e) o art. 288 não exige estrutura ordenada nem divisão de tarefas; isso faz parte da nova
organização criminal.
41. Qual é o âmbito de aplicação da Lei 12.850/13?
Por força do § 2º do artigo 1º, esta Lei se aplica também:
I – às infrações penais previstas em tratado ou convenção internacional quando, iniciada a execução
no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;
II – às organizações terroristas internacionais, reconhecidas segundo as normas de direito
internacional, por foro do qual o Brasil faça parte, cujos atos de suporte ao terrorismo, bem como os
atos preparatórios ou de execução de atos terroristas, ocorram ou possam ocorrer em território
nacional.
A lei nova (com todos os seus meios de investigação e procedimentos judiciais, todas as suas regras
de colaboração premiada, agente infiltrado, ação controlada etc.) aplica-se a três tipos de infração:
(a) às organizações criminosas definidas no § 1º (veja nossos comentários acima);
(b) às infrações penais previstas em tratado ou convenção internacional [tráfico de entorpecentes ou
de pessoas, por exemplo] quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter
ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente (por exemplo: tráfico internacional de pessoas nos
termos do art. 231 do CP, que deve ser interpretado corretamente para respeitar as pessoas maiores
que deliberadamente fazem da prostituição sua atividade) e
(c) às organizações terroristas internacionais, reconhecidas segundo as normas de direito
internacional [tratado de Palermo, por exemplo], por foro do qual o Brasil faça parte [tratado
subscrito pelo Brasil], cujos atos de suporte ao terrorismo [atos de participação neste crime], bem
como os atos preparatórios ou de execução de atos terroristas, ocorram ou possam ocorrer em
território nacional.
Note-se que a lei brasileira não definiu o que se entende por terrorismo. Essa definição deve constar
de normas de direito internacional subscritas pelo Brasil. No nosso país continuamos sem esse
conceito. A mera referência da lei ao terrorismo constante do art. 20 da Lei 7.170/83 não preenche a
exigência constitucional de definição do delito. Definir não é referir. Mera referência não é
definição.
Em se tratando de “atos preparatórios” distantes do âmbito da ofensividade da conduta perigosa não
há que se falar na intervenção penal, sob pena de violação ao princípio da ofensividade. Os atos
preparatórios só justificam a intervenção penal quando revelem periculosidade real (veja sobre este
conceito nosso livro Nova lei seca: Saraiva, 2013).
Nas situações b e c não se requer a presença daqueles requisitos da organização criminosa (quatro
pessoas no mínimo, organização estruturada etc.). O instituto da colaboração premiada (que os
críticos estão chamando de “extorsão premiada”) pode ser aplicado em todas essas hipóteses b e c.
E ainda há uma peculiaridade: na lei de drogas a colaboração premiada não admite o perdão
judicial, que é autorizado na nova lei. Logo, em tese pode-se aplicar esta lei nova, mais favorável,
para o caso de tráfico de drogas, desde preenchidos os requisitos legais da colaboração premiada (e
desde que ela não se transforme em “extorsão premiada”).
42. Em que consiste o crime organizado? O art. 2º da Lei 12.850/13 definiu o crime organizado,
pela primeira vez no Brasil, da seguinte maneira: “Promover, constituir, financiar ou integrar,
pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa”. Tecnicamente não se pode
confundir o crime organizado (o continente) com a organização criminosa (parte do seu conteúdo).
Esta faz parte daquele, ainda que simbioticamente. De qualquer modo, será comum o uso das duas
expressões. Só é fundamental compreender que o crime em termos técnicos vai além da própria
organização (porque ele conta com verbos específicos).
Promover significa estimular, impulsionar, dar força, facilitar, autorizar ou fomentar a organização
criminosa. Constituir significa criar, abrir, colocar em marcha ou em movimento, compor,
estabelecer, dar vida à organização criminosa. Financiar significa arcar com seus custos, pagar suas
despesas, dar ajuda financeira para a movimentação do grupo. Integrar significa fazer parte,
associar-se, agregar, juntar-se (à organização criminosa). O último verbo tem função sintetizadora,
porque abarca os anteriores. São verbos alternativos, ou seja, não precisam estar presentes todos.
Um deles já pode configurar o delito. Tipo penal misto alternativo, regido pelo princípio da
alternatividade (um só verbo já configura o crime; a realização de vários verbos no mesmo contexto
fático significa um único crime).
43. Quais são as outras características do crime organizado? Qualquer pessoa pode ser sujeito
ativo do crime. O agente pode atuar direta ou indiretamente (por interposta pessoa, ou seja, por
meio de “laranja” ou de pessoas com nomes inventados, falsos). Ele mesmo pratica os verbos
núcleos do tipo ou domina a vontade de alguém, que atua em seu nome (sob seu comando). Há,
nessa situação, a autoria mediata. Não se trata de crime de perigo abstrato presumido, sim, perigo
abstrato de perigosidade real (que está mais do que evidente na própria constituição de uma
estrutura organizada para o fim de cometer infrações penais futuras) (sobre o conceito de
perigosidade real veja nosso livro Nova lei seca: Saraiva, 2013). Sujeito passivo é a sociedade
(cuida-se, portanto, de crime vago).
44. Qual são os bens jurídicos protegidos? Os bens jurídicos protegidos no crime organizado não
se limitam à paz ou à tranquilidade pública, senão a própria intangibilidade e preservação material
das instituições. A noção moderna de organização criminosa se desvinculou do seu antigo padrão
genético, que era constituído pela quadrilha ou bando. O crime do colarinho branco pode se
organizar de forma estruturada (para enganar o erário público, por exemplo; para fraudar licitações,
para “comprar” parlamentares etc.). A organização criminosa perdeu aquela noção estrita de
perturbação da ordem levada a cabo por algumas pessoas (quadrilheiras) reunidas de forma estável.
Aquela velha noção de bandoleiros de estrada, piratas, hoje já não corresponde ao espectro amplo
das organizações criminosas, que podem se dedicar somente a crimes fraudulentos, sem o uso de
nenhum tipo de violência ou ameaça. O novo conceito de organização criminosa é muito mais
abrangente que o velho crime de quadrilha ou bando. A paz pública é o bem jurídico que as
modernas organizações menos querem afetar (porque seus “negócios” não convivem bem com a
violência). As organizações criminosas mais avançadas (no Japão, por exemplo) já efetuam nenhum
tipo de disparo contra ninguém. No lugar da violência entrou a fraude, a ganância financeira. Nem
eles querem afetar a paz pública. O que mais lhes interessa são outros bens jurídicos, destacando-se
nitidamente o patrimônio (quem lucros, tanto quanto qualquer multinacional).
45. Qual o aspecto subjetivo do crime? Crime doloso, que não admite a forma culposa. Além do
dolo (de reunião, de associação) o tipo penal ainda exige um requisito subjetivo especial (uma
intenção especial): a de obter vantagem ilícita de qualquer natureza. É um crime permanente?
Sim. Trata-se de crime permanente, que é o crime cuja consumação se prolonga no tempo, de
acordo com a vontade do agente. Por isso não admite tentativa. Cabe prisão em flagrante em
qualquer momento, em razão da permanência. Não necessita a autoridade policial de ordem judicial
para prender em flagrante o agente dentro de uma casa. O crime organizado não depende da
realização dos planos elaborados, ou seja, não requer o cometimento dos crimes planejados. A
periculosidade real da conduta associativa permanente já é o quantum satis para a incidência da
norma punitiva.
46. Qual a pena cominada ao delito de crime organizado? Reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e
multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas. A pena
mínima para o novo crime de organização criminosa é de 3 anos. Teoricamente é possível que a
associação se reúna para a prática de crimes com penas máximas menores. Por exemplo: sonegação
fiscal (punida com pena de 2 a 5 anos). O crime meio, nesse caso, terá pena maior que o crime fim.
É uma questão de proporcionalidade, a ser discutida e ajustada pelo juiz em cada caso concreto.
Nem a pena máxima permite o regime fechado, salvo se se trata de reincidente. Em razão da pena
mínima não cabe suspensão condicional do processo. Em razão da pena máxima não se trata de
infração de menor potencial ofensivo. Crime não violento, cabe substituição da pena privativa de
liberdade por penas alternativas (CP, art. 44). Se o grupo concretiza as infrações planejadas, há um
concurso material de crimes, somando-se as penas (sistema da cumulatividade material).
47. Em que consiste o crime de obstrução da investigação? Nos termos § 1º “Nas mesmas penas
incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que
envolva organização criminosa”. Impedir significa evitar, anteparar, inibir, obstar, tolher,
obstaculizar, bloquear. Embaraçar significa estorvar, perturbar, atrapalhar a investigação. Uma
coisa, portanto, é bloquear o funcionamento da persecução penal, outra apenas atrapalhar (criar
dificuldades). Tipo penal misto alternativo, regido pelo princípio da alternatividade (a realização de
um só verbo já configura o crime; caso as duas condutas sejam praticadas no mesmo contexto
fático, estaremos diante de crime único). Sujeito ativo: qualquer pessoa. Crime comum, doloso (não
pune a forma culposa). Crime formal na forma verbal embaraçar e material no impedir. Neste caso
cabe tentativa.
Para o grupo organizado, tão relevante quanto planejar, é procurar garantir a impunidade dos seus
atos. A impunidade se conquista de várias maneiras: ameaçando testemunhas, matando testemunhas
etc. Ou impedindo a investigação da infração. Trata-se de um crime contra a administração da
Justiça (bem jurídico distinto da paz ou tranquilidade pública, que demarca o crime organizado). A
palavra investigação, na lei, deve ser interpretada de forma extensiva, para abranger não apenas a
investigação estritamente considerada (investigação pela polícia, por exemplo) como o próprio
processo judicial (posição de Nucci e de Rogério Sanches/Ronaldo Pinto, que estamos seguindo).
Este diploma legal, especial, afasta a incidência do art. 344 do CP, que é a regra geral (o paradoxo é
que a regra especial tem punição maior que a geral; sendo regra específica, ela que terá incidência
no caso de organização criminosa).
48. O novo conceito de crime organizado ilumina a compreensão de várias outras leis ou
normas? Sim. Em incontáveis ocasiões o legislador andou fazendo referência à organização
criminosa. Mas ela não tinha definição legal no nosso país, como delito. Agora essa definição
chegou. Dentre outras, ganharam existência jurídica no nosso país as seguintes normas: (a) RDD
(art. 52, § 2º, da LEP); (b) interrogatório por videoconferência (CPP, art. 185, § 2º, I); (c)
impossibilidade da figura do tráfico de drogas privilegiado (Lei 11.343/06, art. 33, § 4º) e (d)
aumento de pena no crime de lavagem de capitais (Lei 9.613/98, art. 1º, § 4º, com redação da Lei
12.683/12 etc.). (veja Marcelo Rodrigues da Silva).
No que diz respeito ao aumento de pena no crime de lavagem de capitais Cezar Bitencourt levanta
uma questão sumamente relevante: a impossibilidade de punir o agente pela lavagem agravada em
razão da organização criminosa, no mesmo contexto fático, e também pelo delito autônomo
respectivo. Haveria bin in idem, que é vedado. Estou de acordo com o ponto de vista do autor
citado. O aumento de pena na lavagem só fica autorizado quando presentes os requisitos da
organização criminosa, dados pela Lei 12.850/13.
49. Variações e dimensões do crime organizado
Três grupos. Ferrajoli, em sua exposição na Universidade de Tucumã (2012), delineou três grupos
de crime organizado:
1º) criminalidade organizada estruturada por poderes criminais privados [organizações
criminosas privadas, do tipo PCC ou CV, por exemplo].
Esse primeiro grupo corresponde ao que a PF (consoante entrevista de Oslain Santana, para o
Estadão) chama de “grupos agressivos”, visto que “apelam para ações armadas, como ocorre no Rio
[CV] e São Paulo [PCC]. Eles são violentos (possuem inclusive Tribunais “internos”, que fazem
uso largamente da pena de “execução sumária”) e contam com apreciável poder econômico. Sua
infiltração no aparelho estatal não é tão profunda” (O Estado de S. Paulo de 30.12.12, p. A3), mas é
praticamente impossível que isso não aconteça de forma intensa. Considerando-se que praticamente
não existe nenhum crime organizado sem a presença dos agentes do Estado, aqui se menciona
“poder privado” mais para efeito classificatório. Estamos nos referindo ao crime organizado sem
“grandes” infiltrações nas fileiras do Estado.
Exploração da miséria. Uma característica relevante desse primeiro grupo de crime organizado
(organizações criminosas privadas) consiste (de forma mais evidente que nos outros grupos), como
sublinha Ferrajoli, na exploração da miséria, ou seja, no uso dos pequenos delinquentes [que,
constituindo apenas “corpos” – braços, pernas e anatomia -, sem qualquer patrimônio cultural ou
econômico ou social, são mais facilmente exploráveis, torturáveis, prisionáveis e extermináveis]. O
crime organizado privado, especialmente no que diz respeito ao mercado das drogas ou das
migrações, explora a mão de obra barata do miserável, do necessitado, otimizando seus lucros e
benefícios [os que contam com maior espaço de liberdade em razão dos seus poderes exploram os
que são mais vulneráveis - jovens desempregados, ex-presidiários, mulheres não empoderadas etc.
-, que ostentam menos espaço de liberdade – Ruggiero 2005]. O cunho parasitário, nesse caso, é
evidente.
As células não são o total do crime organizado. O crime organizado, sobretudo o atrelado
primordialmente aos grupos privados, como se vê, possui suas células ostensivas mais ou menos
organizadas, que fazem o “trabalho” de rua, de entrega, de organização local da distribuição de
drogas etc. Muitas vezes a polícia “combate” essas células ostensivas com a crença de que vai
eliminar o crime organizado (como um todo). Nada mais equivocado.
A política de segurança de São Paulo, por exemplo, não está sabendo distinguir (com precisão) o
crime organizado das células ostensivas do crime organizado, que atuam em nome do primeiro (a
distinção é bem feita por Ricardo Balestreri). O crime organizado – diz o autor citado – não se
confunde com as organizações criminosas ostensivas que atuam nas ruas, nas estradas e nas favelas,
por meio de milhares de “soldados” (pessoas vulneráveis, logo, torturáveis, prisionáveis e
extermináveis).
O crime organizado é camuflado, clandestino, pouco ou nada visível; as células ostensivas do crime
organizado são servis, fragmentos operativos dos interesses daquele. As organizações criminosas
são poderosas e normalmente violentas, ou seja, precisam ser combatidas (não há dúvida sobre
isso), mas é necessário ter consciência de que esse combate está sendo feito ao varejo, não ao
atacado (não à inteligência do grupo). Enquanto se ataca somente o grupo ostensivo, o crime
organizado nunca termina. Atacar os criminosos do Paraisópolis (SP) não significa atingir o crime
organizado, que não reside aí.
Combater a filial não significa atacar a matriz. Guerrear com os lambaris não significa que serão
alcançados os tubarões. As células ostensivas são longa manus dos verdadeiros crimes organizados,
cujos integrantes raramente aparecem. Claro que devem ser investigadas e punidas, mas nunca se
pode perder de vista que elas são apenas a linha de frente. Que o escritório (e a cabeça) de tudo está
por trás. O criminoso organizado ou do colarinho branco não frequenta as favelas.
Aliás, os chefes do crime organizado não habitam as favelas, não transportam drogas, não vão para
dentro dos presídios (normalmente). Do crime organizado faz parte sobretudo a elite, que quase
nunca aparece. É ela que lava o dinheiro sujo, que faz negócios com os bancos “lavadores” (HSBC
e Bank of America, por exemplo, recentemente flagrados), que abre contas internacionais, que
gerencia os narcodólares, que se relaciona com os paraísos fiscais, que fazem os grandes negócios
ilícitos se mesclarem com os lícitos etc. É ela que faz a lavagem dos dinheiros (sujo), por meio do
processo chamado mimetização.
O crime organizado é transversal, não paralelo, ou seja, ele atravessa os poderes constituídos, por
meio da corrupção, tendo poder econômico para comprar políticos, policiais, juízes, fiscais,
ministros etc. As células ostensivas, distintamente, são prioritariamente paralelas, porque se
colocam à margem do poder central (do comando). São mais operacionais que dominiais, ou seja,
não possuem o domínio do fato, apenas operam, dentro dos territórios e da área delimitados.
Sua transversalidade é pequena, geralmente com policiais de baixa patente/de baixa hierarquia (que
passam a fazer parte da organização ou dos benefícios dela). O crime organizado é difícil muitas
vezes de ser combatido porque ele frequenta a cozinha do governante, o gabinete dos parlamentares,
as salas dos ministérios, as representações da presidência da república etc.
As células ostensivas ficam sempre encarregadas do “serviço” sujo, sanguinário, arrecadatório
(arriscado), pagamento efetivo das propinas etc. Por trás de tudo está a estrutura organizacional do
crime estruturado. Que age em função do lucro, logo, normalmente com astúcia. Mas que conta,
ademais, com enorme poder de fogo (e de ameaça), suficiente para intimidar quem apareça em sua
frente.
O crime organizado tem alto poder de infiltração nas mais elevadas instituições públicas e privadas.
Seu escopo é o lucro. Não existe crime organizado para fins benemerentes. Rapinar o dinheiro
alheio, sobretudo o dinheiro público, é um dos escopos prediletos do crime organizado, que muito
contribui para o financiamento das campanhas dos políticos. Normalmente não aparece, tendo gente
que executa para ele as atividades arriscadas e ostensivas. O crime organizado é o agente de trás, o
que tem o domínio dos fatos assim como da vontade alheia.
Quando a polícia invade as favelas, promovendo espetáculos hollywoodianos, sobretudo nas
operações de “saturação”, está atrás das células ostensivas, não dos chefões do crime organizado.
Muitos policiais acham que estão buscando o crime organizado (nessas operações). Nada mais
errado. Se compararmos as operações inteligentes da polícia federal com as operações pedestres das
polícias estaduais (normalmente militares) vemos nitidamente a diferença. A polícia federal vai
sempre atrás do crime organizado, que frequenta ministérios, parlamentos, gabinetes da presidência,
palácios, grandes construtoras, agências governamentais etc. A polícia estadual, em regra, só
consegue atacar, no máximo, as células criminosas filiais (os lambaris). Que não são desprezíveis
(se sabe). Claro que as células também precisam ser “combatidas”, mas falta às vezes consciência
de que isso jamais afeta o verdadeiro crime organizado. Quando um ou cem “soldados” são presos
ou mortos, outros quinhentos estão prontos para assumirem o lugar dos que se foram.
A polícia federal não fica “pedalando” (arrebentando) portas em favelas, tiroteando. Não se trata de
uma polícia sanguinária, nisso se distingue com clareza das demais polícias. Nas favelas e ruas das
cidades não está o crime organizado, sim, as células criminosas. O crime organizado está oculto:
sua forma de investigação e combate, portanto, é bem diferenciada.
Precisamos de muitas polícias federais para debelar o crime organizado. Enquanto isso não
acontece, a população e a mídia vão inventariando as operações de guerra pedestres contra as
células criminosas ostensivas. O crime organizado está agradecido, enquanto não é devidamente
investigado (com inteligência, neurônios e muita tecnologia de ponta).
2º) criminalidade organizada estruturada por poderes econômicos privados (criminalidade
organizada das empresas )
Essa segunda modalidade de crime organizado é uma derivação ou sofisticação ou intensificação da
primeira. Tem como características centrais a utilização de grandes empresas para o cometimento de
crimes e o não uso da violência (como regra). Para a PF, esse segmento da criminalidade organizada
“tem matriz mafiosa, se infiltra no aparelho do Estado e investe mais em corrupção de agentes
públicos do que em atos de violência para realizar seus ‘negócios’ e ampliar cada vez mais seu
poder. Veja o exemplo do Carlinhos Cachoeira. Começou com jogo do bicho e foi se infiltrando no
Estado” (O Estado de S. Paulo de 30.12.12, p. A3), por meio de incontáveis empresas (incluindo-se
uma construtora). Característica central desse segundo grupo, portanto, é nascer fora do Estado,
dentro do mundo empresarial. Depois é que vai se infiltrando no poder público, se enraizando nos
governos, nos parlamentos e no mundo político, a ponto de alcançar a própria impunidade nesse
ambiente do poder político, sendo disso exemplo magistral o resultado da CPI do próprio Carlinhos
Cachoeira (a CPI foi arquivada num documento de 2 páginas, sem indiciar ninguém).
Esse ramo do crime organizado (decorrente dos poderes econômicos nacionais ou transnacionais)
atua contra o meio ambiente, no mundo financeiro e econômico, na lavagem de capitais, nos crimes
empresariais – sonegação, evasão de divisas etc. -, nas licitações públicas, tráfico de armas, tráfico
de seres humanos, tráfico de animais ou de partes de animais etc.
Há grupos nacionais (Carlos Cachoeira e suas empresas conglomeradas, por exemplo) e
internacionais (Siemens, Alston, Bombardier, CAF, Mitsui etc., que atuam na área de fraudes de
concorrência pública). Estas últimas participaram do cartel (da maracutaia) na concorrência do
metrô de São Paulo, construído nos governos Covas, Alckmin e Serra (1998-2008). Prejuízo de 400
a 600 milhões de reais ao erário público (segundo Folhae Estadão). Tudo está sendo investigado
para se saber se e, em caso positivo, quais agentes públicos se locupletaram com mais essa
malandragem (no caso, predominantemente estadual).
Os grupos internacionais contam com uma vantagem adicional: são claramente favorecidos pelo
“vazio de direito público” no plano global, onde então esses poderes se sentem
“desregulamentados” [sobretudo sob o império do neoliberalismo], havendo inversão da equação
Estado/mercado, ou seja, o mercado fala mais forte que o próprio Estado, as empresas competem
com este último, daí decorrendo a exploração da miséria em dimensão globalizada, da saúde pública
etc.
Capitalismo de mercado livre e crime organizado
A bússola moral do homo democraticus está avariada ou danificada. Vivemos extremos de absoluta
penúria moral. O mundo capitalista (mercado econômico e financeiro), em vários setores, tornou-se
fortemente anômico (sem normas, sem regras). Para alcançar lucros excessivos e especulativos,
muitos acham que tudo estaria permitido, inclusive a prática de crimes por meio de organizações
criminosas. Muitas pessoas caíram na trampa do capitalismo selvagem ou parasitário (que gera
muita riqueza para alguns e enorme pobreza para milhões, sem se importar com os meios de
obtenção dessa riqueza). As pessoas que trabalhavam em Wall Street, no momento da eclosão da
crise financeira delitiva de 2008, eram seres humanos (e mais: com excelentes notas escolares).
Esqueceram-se de todos os seus sonhos construtivos, dos valores da concorrência e da competência,
para se dedicaram exclusivamente à acumulação primitiva e ilícita do capital (Stiglitz, El precio de
la desigualdad, p. 33).
As empresas de tabaco foram agregando aditivos químicos nos seus produtos e concomitantemente
tentando convencer todos de que não havia “provas científicas” dos malefícios do fumo, que
constitui a causa da morte de milhões de pessoas anualmente. A Exxon durante muitos anos não fez
outra coisa que negar o aquecimento global. O derramamento de petróleo da BP (no golfo
mexicano) evidenciou o quanto de temeridade está presente no gerenciamento (inclusive) das
grandes empresas.
As corporações produzem riquezas (empregos, oportunidades etc.), mas também geram muitos
danos para o ambiente e para as pessoas. Algumas se converteram em verdadeiros monstros, que
devoram lucros excessivos e especulativos, por meio da prática de crimes. As corporações surgiram
na época da incipiente revolução industrial (1712), mas ganharam força e identidade no final do
século XVIII e começo do século XIX. Naquela época o Estado controlava rigorosamente as
corporações que são, em princípio, bastante úteis para o bem comum.
Mas depois que se transformaram em pessoas jurídicas (com base na 14ª Emenda da Constituição
norte-americana) começaram a exercer um poder incalculável na vida de todas as pessoas do
planeta (veja o documentário Corporation, dirigido por Mark Achbar, com roteiro de Joel Bakan). É
importante não esquecer que são pessoas sem consciência moral, que ostentam como preocupação
central os lucros dos acionistas. Não possuem alma a salvar, nem corpo para ser preso. Seu objetivo
único (ressalvadas as exceções) é faturar, lucrar, acumular riquezas. O lucro não é abominável, sim,
o seu excesso ou a ganância, os meios para alcançá-lo a todo custo. Muitas empresas (corporações)
colocam seus interesses acima de tudo e de todos. Daí o contínuo corte de custos, de empregos,
assim como o desmoronamento dos sindicatos.
Mas o problema, novamente, não está nas corporações, sim, em quem as dirige (e na forma como as
dirige). As corporações, em si, não possuem uma moral intrínseca. Se elas nos fazem mal é porque
seres humanos estão nos fazendo mal. Se elas cometem crimes, é porque seres humanos são
criminosos. Se pelos lucros elas destroem tudo e todos, são seres humanos que estão por trás. No
documentário Corporation são citadas várias corporações que praticaram nocividades à humanidade
(ou seja: praticaram várias infrações criminais): Exxon, GE, Chevron, Mitsubishi, IBM, Pfizer,
Sears, Roche etc.
Nada do que elas fizeram aconteceu sem a intervenção do ser humano. Logo, o problema grave
reside na postura ética deste ser humano. As corporações possuem uma especial incapacidade de
seguirem as normas sociais de conduta dentro da lei. Outra vez, por detrás do descumprimento da
norma está um ser humano.
Denotariam as corporações ou algumas das suas atividades uma personalidade psicopática? Quando
comparamos as psicopatias dos indivíduos com algumas nefastas atividades corporativas não há
como deixar de estabelecer o paralelo: algumas corporações possuem todas as características dos
psicopatas, portadores de um transtorno de personalidade marcado pelo desprezo das obrigações
sociais e falta de empatia para com os outros. Consoante a Wikipedia, “há no psicopata um desvio
considerável entre o comportamento e as normas sociais estabelecidas. O comportamento não é
facilmente modificado pelas experiências adversas, inclusive pelas punições. Existe uma baixa
tolerância à frustração e um baixo limiar de descarga da agressividade, inclusive da violência.
Existe uma tendência a culpar os outros ou a fornecer racionalizações plausíveis para explicar um
comportamento que leva o sujeito a entrar em conflito com a sociedade”.
Se os mercados tivessem cumprido verdadeiramente as promessas de melhorar o nível de vida das
pessoas sem destruí-las, sem destruir a natureza, “todos os pecados das grandes corporações, as
injustiças sociais, as ofensas ao meio ambiente, a exploração dos pobres, poderiam ser perdoados”
(Stiglitz). Os mercados e as corporações se enriqueceram, mas deixaram sem vida ou na miséria
bilhões de pessoas. Por detrás desses mercados e corporações acham-se seres humanos vulgares que
perderam completamente a noção de ética.
3º) a criminalidade organizada estruturada por agentes públicos (dos poderes públicos, dos
políticos, dos parlamentares e prefeitos, dos juízes, policiais, fiscais etc.).
Para a PF esse é o grupo que mais preocupa em razão do seu poder e seu raio de atuação e também
porque é formado “pelas organizações de colarinho branco ou das elites [que fazem parte do poder
público], constituídas de pessoas acima de qualquer suspeita, mas que movimentam grandes
esquemas. Desviam bilhões dos cofres públicos para benefício pessoal ou corporativo ou partidário.
Tiram dinheiro da educação e da saúde” (O Estado de S. Paulo de 30.12.12, p. A3).
Trata-se de uma forma de crime organizado que originalmente já nasce dentro dos poderes públicos
(é o caso do mensalão e da Rosemary, por exemplo). É o mais infame de todos, porque envolve
crimes contra a humanidade, torturas, desaparecimentos forçados, sequestros, guerra e, sobretudo,
corrupção (que tira a possibilidade de realizar serviços e programas de interesse de todos).
A mais séria ameaça contra a democracia (pondera Ferrajoli) é a emanada desses grupos
organizados, que sabem fazer amplo uso da mimetização dos capitais ilícitos, ou seja, sabem, tanto
quanto os poderosos econômicos, mesclar dinheiro lícito com dinheiro ilícito, dando aparência de
legalidade para todo o capital. A corrupção contraria todos os fundamentos da democracia
(transparência, legalidade, moralidade etc.). Afeta de modo grave a esfera pública assim como os
princípios democráticos.
O bem jurídico último que está jogo, quando se trata de crime organizado que envolve o poder
público, é a própria democracia, ou seja, o Estado de Direito. São os fundamentos dos bens públicos
que entram em crise, nesse caso. A capacidade intimidativa e corruptiva do crime organizado afeta,
ademais, a própria função pública de proteção e de garantia. Ela proscreve a garantia das garantias,
que é a função protetiva jurisdicional.
Formas mescladas (interconexão) de atuação. Uma vez delineadas as características dos três
grupos criminais organizados (seguindo a classificação de Ferrajoli) importa sublinhar que eles
podem atuar (e efetivamente atuam) mescladamente, ou seja, há uma interação entre o poder
privado e o poder público, em maior ou menor intensidade. Essa configuração mesclada do crime
organizado é a mais frequente.
O PCC, por exemplo, também se infiltra no poder público, porém, aparentemente, somente em
níveis mais baixos. Nisso ele se distingue dos grupos econômicos fortes (Carlinhos Cachoeira,
Siemens, Alston, por exemplo), que contam com raízes profundas no poder público, envolvendo
políticos, partidos políticos, juízes, fiscais, policiais etc.
A força desses grupos privados, frente ao poder público (frente ao Estado, sua estrutura, seus
agentes) é centrípeta (vai de fora para dentro). Mas existe uma diferença entre eles: o primeiro
grupo é primordialmente “paralelo” em relação ao Estado, enquanto o segundo é “transversal”. O
primeiro poderia (teoricamente) existir sem a participação de agentes do poder público, já o
segundo não. O primeiro é tendencialmente violento, o segundo é predominantemente fraudulento.
O terceiro setor (do crime organizado) nasce dentro do poder público e vai buscando laços com o
mundo econômico ou privado. Sua força é centrífuga, tendo como referência o Estado, sua
organização, sua estrutura (ou seja: vai de dentro para fora). Raramente se vale da violência para
alcançar seus objetivos. A fraude (o surrupiamento do dinheiro público) é da sua essência (é o seu
DNA). Não se trata de um crime organizado nem “paralelo” nem “transversal”, sim, nasce e cresce
dentro do próprio Estado, é eminentemente parasital (produto abjeto do próprio Estado).
Quarta modalidade de crime organizado: grupos mafiosos
Não se pode ignorar, em termos internacionais, a presença de grupos mafiosos fortíssimos, que
dominam parcelas inteiras de alguns setores da ilicitude. Máfias italianas, japoneses, russas etc.
Contam com um poder econômico/financeiro internacional invejável. O crime organizado mafioso é
muito mais tradicional e mais organizado. Sua estrutura é mais complexa. Hoje é tendencialmente
não violento. Seu ponto forte consiste na mesclagem da atividade lícita com a ilícita (mimetização).
Dentre os grupos mafiosos destaca-se a máfia siciliana (a original), que atua em praticamente o
mundo todo. Conta com altíssimo nível de infiltração no domínio político-empresarial e se estrutura
de forma piramidal, no topo está o chefe maior (o capomafioso) e abaixo bem toda uma organização
de pessoas e de funções. Na cabeça do vértice estão os que comandam, poucos “homens de honra”
(que são distintos dos filiados). A hierarquia é da sua essência, que é sustentada pelo elevado grau
de coesão do grupo, obediência às regras e disciplina. Cada grupo atua dentro de determinada área.
50. A arma de fogo aumenta a pena? Sim. § 2º As penas aumentam-se até a metade se na
atuação da organização criminosa houver emprego de arma de fogo
Arma de fogo não se confunde com arma branca (faca, por exemplo). Note-se que não basta portar
a arma. É preciso empregar, usar (concretamente) a arma, para justificar o aumento da pena.
Exemplo: o grupo, para manter seu monopólio ou seu domínio territorial, usa arma de fogo para
ameaçar pessoas. A arma também pode ser usada posteriormente, na prática dos crimes planejados.
O grau de temeridade do crime organizado que emprega arma de fogo é muito maior.
Há aqui maior desvalor da ação (mais perigosidade). Daí a justificativa do aumento de pena. Mas
nesse caso, lógico, não pode a mesma circunstância (emprego de arma de fogo), o mesmo contexto
fático, dar ensejo a uma dupla condenação: crime organizado agravado + crime autônomo de porte
ou posse de arma de fogo. O mesmo contexto fático não autoriza essa dupla condenação.
51. A posição de comando aumenta a pena? Sim. § 3º A pena é agravada para quem exerce o
comando, individual ou coletivo, da organização criminosa, ainda que não pratique
pessoalmente atos de execução.
Quem exerce o comando tem o domínio do fato, ou seja, tem o domínio da ação e do resultado
(teoria do domínio do fato). Quem comanda não precisa praticar concretamente nenhum ato
posterior. Basta ter o domínio do fato, da conduta e do resultado. O comando pode ser exercido
individualmente ou coletivamente. Trata-se de uma circunstância agravante (que já está prevista no
art. 62. I, do CP). Diante desta norma especial, claro que não se aplica a regra geral do art. 62, I, do
CP.
52. Quais outras circunstâncias aumentam a pena? § 4º A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a
2/3 (dois terços):
I - se há participação de criança ou adolescente;
Crianças ou adolescentes são pessoas, respectivamente, com até 12 anos de idade incompletos ou
entre 12 e 18 anos (conforme o ECA). Esse aumento se justifica quando o grupo organizado é
integrado por menores ou se “utiliza” de menores como instrumentos, que não são computados no
número mínimo de quatro pessoas como sujeitos ativos. Qualquer tipo de participação de criança ou
adolescente no grupo organizado justifica o aumento da pena. A dosagem do aumento deve levar em
conta não apenas o número de menores participantes (quanto mais menores, mais aumento), senão
também a forma do aliciamento do menor (mais ou menos reprovável), o tipo de atuação do menor
no grupo etc.
II - se há concurso de funcionário público, valendo-se a organização criminosa dessa condição
para a prática de infração penal;
A aproximação do grupo organizado com o Estado confere-lhe maior capacidade de atuação,
maiores facilidades, mais potencialidade de atuação e eventualmente se garante até a impunidade.
Essa é a razão do aumento de pena quando há concurso de algum funcionário público (CP, art. 327).
Mas não basta essa participação do funcionário no grupo, é preciso que o grupo se valha dessa
condição para a prática de infração penal, qualquer que seja ela (contra a administração pública ou
não). A dosagem do aumento deve ser aferida de acordo com o nível de participação do funcionário
público na atuação da organização criminosa.
III - se o produto ou proveito da infração penal destinar-se, no todo ou em parte, ao exterior;
Se o produto (o que se conquista diretamente com a infração: dinheiro no roubo, por exemplo) ou
seu proveito (aquilo que se conquista com o produto: uma casa que se compra com o dinheiro
alcançado) destina-se, no todo ou em parte, ao exterior, há aumento da pena. A dosagem fica por
conta da natureza do produto, da quantidade etc. Claro que toda organização, quando envolve o
“exterior”, cria mais dificuldades para a investigação, mais embaraços para a atuação do poder
público na repressão do delito. Também deve ser levado em conta o trabalho imenso para recuperar
bens que estão no exterior (os tratados de cooperação muitas vezes não existem ou não funcionam).
Sobretudo se o bem vai parar num paraíso fiscal, a dificuldade de relacionamento com ele é muito
grande (porque eles existem para proteger os bens desviados, não a persecução penal). Muitos
paraísos fiscais não possuem tratado de extradição para o Brasil. Quando os bens se encontram no
exterior existe a possibilidade de se decretar a perda de bens ou valores equivalentes aqui no nosso
país, por força do § 1º do art. 91 do CP. O patrimônio lícito do agente pode ser objeto de medida
acautelatória (sequestro) para garantir a posterior decretação da sua perda.
IV - se a organização criminosa mantém conexão com outras organizações criminosas
independentes;
Se uma organização criminosa se une a outra, independente, sua força é muito maior. O grau de
periculosidade aumenta, daí o agravamento da pena. A união de organizações em qualquer dos seus
campos de atuação (drogas, fraudes ao erário público etc.) não só incrementa o nível do risco como
pode chegar ao extremo de se facilitar a impunidade do grupo. A dosagem do aumento deve levar
em conta várias circunstâncias, como o número de organizações unidas, o patamar da contribuição
delas para uma “obra comum” etc.
V - se as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade da organização
Transnacionalidade não significa necessariamente internacionalidade. Basta que o crime transcenda
os limites territoriais brasileiros (12 milhas). Um crime que tenha começado no Brasil e que alcance
o alto-mar já é transnacional (embora ainda não seja internacional). Nucci entende que essa causa
de aumento de pena é inaplicável, porque a transnacionalidade, quando aparece na estrutura da
organização, já faz parte do tipo delitivo. Um mesmo fato não pode valer como elementar e causa
de agravamento da pena. Pensar de forma contrária é incorrer em bis in idem (vedado no direito
penal).
53. É possível o afastamento cautelar do funcionário público? Sim. § 5º Se houver indícios
suficientes de que o funcionário público integra organização criminosa, poderá o juiz determinar
seu afastamento cautelar do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a
medida se fizer necessária à investigação ou instrução processual.
É uma medida muito salutar. O afastamento cautelar exige fundamentação específica. Trata-se de
um afastamento instrumental, porque vinculado com a necessidade da investigação ou da instrução
processual. Nessas duas situações, como medidas extremas, cabe prisão temporária (para a
investigação) ou preventiva (instrução). Mas antes de se chegar nas medidas de extrema ratio, há o
afastamento (que pode ser suficiente). A suspensão do exercício da função está prevista também no
CPP, art. 319, VI.
Impõe-se a comprovação de indícios suficientes (a) da própria organização criminosa (ou seja, do
crime organizado) e (b) de que o funcionário público integra essa organização, isto é, participa dela.
Para além da demonstração da existência de provas, diretas ou indiciárias (CPP, art. 239), desses
dois fatos, a lei ainda exige evidenciação da necessidade da medida, seja para a investigação, seja
para a instrução processual. Essa medida cautelar menos drástica não afasta a possibilidade de
decretação da prisão preventiva, quando a necessidade desta medida se evidenciar. Por exemplo:
quando o funcionário está ameaçando testemunhas, impedindo, com isso, a devida apuração dos
fatos.
A medida é facultativa, não obrigatória. O juiz não é obrigado a determinar o afastamento cautelar
do funcionário. Se o faz, não haverá prejuízo da remuneração, porque estamos diante de uma
medida cautelar, que não afasta a presunção de inocência.
54. Quais são os efeitos da condenação penal? § 6º A condenação com trânsito em julgado
acarretará ao funcionário público a perda do cargo, função, emprego ou mandato eletivo e a
interdição para o exercício de função ou cargo público pelo prazo de 8 (oito) anos subsequentes
ao cumprimento da pena.
Dois efeitos da condenação penal acontecem quando o funcionário público for condenado por
organização criminosa: perda do cargo, função, emprego ou mandato eletivo e a interdição para o
exercício futuro, pelo prazo de 8 anos, depois do cumprimento da pena. Esses efeitos secundários,
embora não necessitem de fundamentação específica, devem aparecer na sentença do juiz. A
decretação da perda e da interdição passa a ser ato do juiz, não diretamente emanado da lei. Quando
se trata de mandato eletivo no plano federal (deputado federal ou senador) a perda do mandato é
decretada pelo juiz (pelo Judiciário), cabendo à Casa respectiva apenas a declaração dessa perda,
não podendo haver nesse caso nenhum tipo de votação plenário. Trata-se de ato da Mesa. Aqui tem
incidência o disposto no § 3º do art. 55 da CF, porque o condenado tem seus direitos políticos
suspensos. É ato da Mesa, não do plenário.
De se notar (como pondera Nucci) que no § 5º acima (suspensão do cargo, função ou emprego) não
existe referência ao mandato eletivo (porque esse ato compete com exclusividade à Casa
respectiva). Uma coisa, portanto, é o afastamento do parlamentar das suas funções, outra distinta é a
decretação da perda do seu mandato.
No efeito secundário da interdição não existe referência ao mandato eletivo (logo, por analogia, ele
não pode ser alcançado). Depois da interdição, não há impedimento do retorno do condenado ao
mesmo cargo (a lei nada disso nesse sentido).
55. Quem instaura o inquérito quando o autor é policial? “§ 7º Se houver indícios de
participação de policial nos crimes de que trata esta Lei, a Corregedoria de Polícia instaurará
inquérito policial e comunicará ao Ministério Público, que designará membro para acompanhar
o feito até a sua conclusão”.
Quando existem indícios (que não precisam ser inequívocos, profundos) de participação de policial
(civil, militar, federal etc.) nos crimes de que trata esta Lei (não somente o de organização
criminosa, sim, todos os previstos nesta Lei), a Corregedoria da Polícia respectiva (civil, militar,
federal etc.) (a) instaurará inquérito policial e (b) comunicará o fato ao Ministério Público, que
designará membro para acompanhar o feito até a sua conclusão. A designação é obrigatória, não
facultativa, porque se trata de preservação da integridade do Estado e das suas instituições.
É salutar a preservação da iniciativa investigativa com a Corregedoria respectiva (civil, militar,
federal etc.) porque por detrás da infração penal pode haver alguma infração administrativa. Isso,
ademais, reconhece a autonomia de cada Corregedoria, a quem compete tomar as devidas
providências para a imposição de sanções administrativas. É disfuncional, para esse efeito, a
atuação da Corregedoria da Polícia Civil quando se investiga um policial militar. De outro lado, o
que parece, no início, ser um crime não militar, de repente, conforme a investigação avance, pode-
se prontamente descobrir algum crime militar conexo (ou efetivamente se constatar que se está
diante de um crime militar).
O membro do Ministério Público não vai presidir a investigação, sim, apenas acompanhar,
fiscalizar, até sua conclusão, podendo exercer dentro dele todos os seus poderes legais que possui,
de requisitar documentos, presenciar a oitiva de pessoas, sugerir a colheita de depoimentos etc. Está
afastada a Corregedoria da Polícia Judiciária, que é exercida por juiz. A escolha legislativa, neste
caso, de outro lado, foi a de instauração de inquérito policial, o que significa a impossibilidade, em
princípio, de o Ministério Público abrir investigação autônoma e própria (continua pendente de
julgamento no STF a ADIn que questiona o poder investigatório do MP). A razão de o MP
investigar diretamente, quando se trata de policial suspeito, diz respeito ao corporativismo. Com a
presença obrigatória do MP na investigação policial, o risco de corporativismo desaparece, salvo se
ele também participar do conluio protetivo e imoral. A presença do MP na investigação pode
também evitar o corporativismo invertido, qual seja, o fato de a Corregedoria estar perseguindo um
determinado policial. Na hipótese de a Corregedoria não instaurar nenhum procedimento
investigativo quando envolve um policial, aí, sim, consoante a jurisprudência do STF (inconclusa, é
verdade), cabe ao MP abrir investigação por conta própria.
56. Punibilidade do crime organizado
No que concerne à capacidade do sistema penal para controlar o crime organizado o balanço,
conforme o professor Ferrajoli, é negativo. No plano global, estamos neste momento
experimentando a mundialização da economia e do mer2cado (e mundialização do crime
organizado), sem a correspondente globalização da Justiça assim como dos direitos e garantias
fundamentais. A fortaleza do crime organizado (terrorismo interno ou internacional, máfias,
narcotraficantes, exploração ilícita dos jogos etc.) ao se deparar com a fraqueza do sistema jurídico
de controle, sobretudo internacional, conduz a um cenário de regressão social onde vigora a “lei do
mais forte” (a lei selvagem).
No plano interno, o resultado não é muito diferente. Quando vemos o que ocorreu na CPI do
Cachoeira, fica a sensação de que o lado bom do Estado não está conseguindo controlar a
criminalidade organizada dentro dele mesmo. Algum tipo de mudança na estrutura do direito era
previsível para fazer frente às organizações criminosas. E tais mudanças estão acontecendo em
muitas legislações. Mas muitas vezes se apresentam com características irracionais e classistas
(discriminatórias). Incrementam a seletividade do sistema penal, ou seja, a perseguibilidade
prioritária dos pobres, garantindo-se a impunidade dos poderes fortes. O “combate” ao crime
organizado muitas vez não escapa das garras do populismo penal.
Dupla involução. Uma dupla involução cabe ser mencionada: (a) a legislação e o funcionamento do
sistema penal estão garantindo a impunidade da corrupção dos poderosos, seja despenalizando
alguns crimes, seja permitindo a prescrição; (b) as leis frequentemente dirigem suas forças contra os
mais débeis (pobres), aumentando penas, endurecendo os regimes da execução, criando crimes
infundados relacionados com a migração clandestina, com o que forjou “a pessoa penalmente
ilegal”; trata-se de uma legislação demagógica, típica do populismo penal, fundada no medo, com
alta dose de ineficácia, o que coloca em xeque a função dissuasória da pena.
A impunidade dos poderosos é criminógena. De outro lado, a legislação penal repressiva transmite
uma mensagem ideológica nefasta [vinculando, muitas vezes, o delinquente apenas com imagem
estereotipada difundida pela criminologia midiática]. O conceito de segurança divulgado
amplamente na atualidade não significa segurança dos direitos sociais. Segurança é igual segurança
pública, cujas medidas se voltam contra “bodes expiatórios”, escondendo-se grandes tensões sociais
não resolvidas. Confunde-se política penal com política social [menosprezando-se a Justiça social].
Neste cenário de priorização da segurança policial ou penal duas seguranças se perdem: (a)
segurança dos direitos sociais; (b) segurança da liberdade frente ao poder estatal.
57. Duas sugestões (provocações?) de Luigi Ferrajoli
(a) legalização das drogas: a lógica proibicionista estimula o mercado assim como o crime
organizado, até porque o Estado não tem a mínima condição de fazer cumprir a legislação que ele
mesmo aprova. A legalização controlada pode ser uma boa saída (tal como a que está sendo
ventilada, agora, para a maconha no Uruguai; dois estados norte-americanos já aprovaram o uso
recreativo da maconha: Washington e Colorado);
(b) fim do comércio e tráfico de armas: as armas são feitas para matar. A violência, sobretudo
com a utilização de armas de fogo, nos conduz à sociedade natural (selvagem). Se o Estado conta
com o monopólio do uso da força, ninguém mais está permitido utilizá-la [salvo em casos
excepcionais para a defesa da vida, por exemplo]. É preciso vencer a atual crise da razão jurídica
sem ilusões, mas também sem pessimismos. Somos todos responsáveis pela construção de um
mundo melhor.
58. Por detrás do crime organizado pode haver um psicopata/canalha?
Sim. No livro "O delinquente que não existe", de Juan Pablo Mollo (que revisei e que está no prelo,
editora Saraiva) ficou definido quem é o psicopata/canalha dos tempos atuais. "Canalha é aquele
que, sabendo captar as crenças e o ponto de satisfação do outro, exerce promessas, ameaças ou
expectativas em forma explícita ou implícita por meio das quais consegue o consentimento e a
cumplicidade do outro".
Vamos a um exemplo: manipulando incontáveis pessoas da Fininvest e Mediaset (duas empresas do
seu conglomerado), o ex-premier da Itália Silvio Berlusconi "arquitetou, controlou e geriu,
ininterruptamente, todos os crimes (sonegação, lavagem etc.)" pelos quais foi condenado
definitivamente em julho de 2013.
No governo, ele manipulou a vontade de milhões de pessoas para impor sua psicopatia/canalhice
contra milhares de imigrantes inocentes e indefesos. Stálin, consoante a conceituação de Mollo, foi
um psicopata/canalha. Muitos ainda existem nos nossos tempos (tanto fora quanto no Brasil).
Trata-se de um perfil mais comum do que parece. Está presente, por exemplo, em praticamente todo
crime organizado, seja no privado (tipo PCC), seja no misto (que envolve os interesses privados e
os públicos, tal como o que acontece nas concorrências públicas), seja no público puro (que só
envolve setores públicos). Por detrás do crime organizado sempre pode haver um canalha, que
manipula a vontade de outras pessoas.
No campo político a canalhice se apresenta de forma mais sorrateira: é canalha, por exemplo, o
político que faz um duro discurso punitivo (chicote em todo mundo), que propala aos quatro ventos
a festa da vingança (Nietzsche), com o único propósito de manipular a vontade da opinião pública,
muito suscetível a esse tipo de discurso, para ter o prazer de ver outras pessoas castigadas.
Vamos ao imperdível texto de Juan Pablo Mollo (O delinquente que não existe, no prelo),
observando-se que tudo que está entre colchetes é de minha autoria:
“O canalha é aquele que, sabendo captar as crenças e o ponto de satisfação do outro, exerce
promessas, ameaças ou expectativas em forma explícita ou implícita por meio das quais consegue o
consentimento e a cumplicidade do outro. Por isto, propõe-se como um líder nato para hipnotizar ao
neurótico vacilante, que prontamente se converterá religiosamente ao regime do psicopata e suas
ambições pessoais. Sem dúvida, o canalha não faz a cooptação de voluntários repressivamente, mas
com seu carisma e capacidade de persuasão atrás de seus pretextos discursivos variáveis. O canalha
bem-feito não crê em nenhum ordenamento social ou cultural e consegue uma postura de certeza
para conseguir sua própria satisfação à custa dos outros”.
“Um canalha que sempre encontra justificações para seus atos, sem culpa nem responsabilidade
alguma, pode ser perfeitamente compatível com a normalidade social, a política e o poder. Torna-se
frequente que o canalha se mascare atrás de uma autoridade em que não crê, e a partir daí comece a
exercer uma influência sobre o outro. Certamente, os indivíduos manipuladores do desejo não se
correspondem com o delinquente comum nem com o assassino criminoso, mas com pregadores,
pastores, dirigentes, terapeutas, líderes, políticos etc. A respeito, pode se distinguir o pequeno e
ambicioso canalha imerso numa lógica de êxito e fracasso de um canalha maior que, sobre o
império e destruição do desejo próprio e alheio, estrutura-se no exercício do poder para manejar as
realidades dos outros. O perfeito grande canalha é um poderoso como Stalin, o homem de aço,
intocável, fechado em si mesmo, sem escrúpulos nem decência, sem vacilação nem defeito em vida.
O esplendor do canalha e seu brilho maléfico provêm de não aceitar nem o Outro com maiúsculas,
que não é mais que uma ficção, nem os outros semelhantes, que não valem nada”.
“Assim, o canalha de nossos dias é o líder de organizações criminosas cuja atitude é introvertida,
misteriosa e planejada. Portanto, não é o delinquente comum que rouba o automóvel, mas o
administrador do desmanche e do dinheiro daqueles que trabalham para ele ou o delegado de polícia
corrupto que manipula o delinquente a partir da autoridade estatal. A pessoa de colarinho branco
oculta detrás dos ilícitos é o psicopata que não age, senão que faz agir os demais [como se vê, o
delinquente comum não é o canalha que está por detrás da organização, que manipula a vontade dos
outros]”.
“Por outro lado, ofuscado pela ambição, o político corrupto não deixa de camuflar-se nos governos
democráticos, nem de delinquir, nem de fingir ser um homem trabalhador e honesto para aprisionar
o desejo dos outros. O psicopata de nossos dias é compatível com a figura do homem de negócios, o
homem mundano, o cientista, o juiz ou o psiquiatra: sua fachada é normal, porém é a típica máscara
do psicopata. A máscara vela o interesse particular oculto. Assim, atrás das sublimes frases
ideológicas do líder político, da demonstração objetiva do especialista ou da hipnose grupal do
pastor, ocultam-se os interesses ególatras, a violência e as brutais pretensões do poder. O psicopata
político, o homem do poder ou o narcotraficante extraem um ganho pessoal sobre o sacrifício dos
demais”.
“Em suma, e para além das figurações, o psicopata ou canalha é aquele que sabe que o Outro da lei
é um semblante e não se detém na manipulação dos outros, nem em seus interesses, ambições ou
ações de prazer (Lacan). Um canalha bem-feito realiza suas ações sem sustentar-se em nenhum
ideal e sem impedimentos, isto é, não se situa como sujeito de nenhuma lei ou posicionado como
culpado/culpável, mas que avança sem obstáculos nem inibições para sua condição absoluta de
prazer. É aquele indivíduo que, independentemente de qualquer distinção social, pretende existir por
fora de toda lei ou norma, na que não crê, exceto quando ocupa um lugar de poder e impõe as regras
para os demais”.
“Então, a grande canalhice é a ciência estabelecida totalmente como verdade pelo mercado
multinacional, captando o desejo de todos e propondo-se como o novo chefe globalizado sob a
forma tecnológica. E não parece existir alguma política que apresente as condições para estabelecer
um limite ao desencadeamento da tecnociência e o sistema avaliativo na construção da realidade.
Por outro lado, existe a canalhice filosófica como um saber sistemático que se propõe como
verdadeira para os demais, e também a canalhice jurídico-penal, que mediante intelectualizações
acadêmicas sobre a pena tem ocultado desde sempre a irracionalidade do poder punitivo para
sustentar uma ordem desigual e injusta”.
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1, 1996, p. 45-67
[1] “Art. 288 - Associarem-se três ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:
Pena - reclusão, de um a três anos.
Parágrafo único - A pena aplica-se até a metade, se a associação é armada ou se houver a
participação de criança ou adolescente.” (Lei 12.850/13).
[2] Artigo2ºº da Convenção de Palermo:
Para efeitos da presente Convenção, entende-se por:
a) "Grupo criminoso organizado" - grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum
tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou
enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício
econômico ou outro benefício material;
[3] Art.2oo Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três)
ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que
informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza,
mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que
sejam de caráter transnacional.
Disponível em:https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121932382/comentarios-aos-artigos-1-
e-2-da-lei-12850-13-criminalidade-organizada

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