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Dante Augusto Galeffi

RELIGIÃO E CIÊNCIA: diferença e repetição - uma investigação


a partir da concepção moral e religiosa de Henri Bergson

DOSSIÊ
Dante Augusto Galeffi*

O foco do artigo é a investigação da relação entre religião e ciência, tomando como horizonte de
partida a concepção moral e religiosa do filósofo Henri Bergson. Inicialmente localiza-se o
campo histórico da investigação por meio de traços da vida e das principais obras desse autor,
considerando essa localização como importante para informar sobre os limites históricos de
toda concepção de mundo e de valor. Em seguida, apresenta-se o plano geral da concepção
moral e religiosa em Bergson e, a partir dessa concepção de fundo, procura-se compreender e
descrever o plano criador de sua concepção de religião na evolução histórica da espécie huma-
na. Tomando o vasto acervo bergsoniano como pano de fundo para uma compreensão da moral,
da religião e da ciência hoje, destaca-se a relação entre as formas estáticas e as formas dinâmi-
cas, fechadas e abertas, dessas realizações do ser humano. Interpela-se a Mecânica e a Mística
na sociedade do conhecimento e da informação em suas diferenças e repetições, em suas novas,
surpreendentes e contraditórias expressões sociais mecânicas e místicas, pois a mecânica da
sociedade do conhecimento e da informação global enseja também novas místicas e novas
formas de comoção coletiva e engajamento social.
PALAVRAS-CHAVE: Religião e Ciência. Filosofia Moral. Henri Bergson. Mecânica e Mística. Religião
e Mística.

LOCALIZANDO A INVESTIGAÇÃO: traços da Para delimitar sua investigação sobre a mo-


vida e do pensamento filosófico de Henri ral e a religião, Bergson parte do pressuposto de
Bergson uma Evolução Criadora que não teria seguido uma
única via de desenvolvimento, mas múltiplas vias,
Trata-se de uma investigação e de uma con- inclusive aquela da espécie humana. Como ele
sideração relativas à relação entre ciência e religião a escreve na Introdução de L’evolution Créatrice:
partir da releitura da obra moral de Henri Bergson,
As duas fontes da moral e da religião (1932; 1945d; A história da evolução da vida, por incompleta

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que ainda esteja, nos deixa já entrever como a
2005). A principal intenção é a de investigar a dife- inteligência se constituiu por um progresso
rença e a repetição dos constructos sociais assinala- ininterrupto ao longo de uma linha que, através
da série dos vertebrados, se eleva até o homem
dos pelas palavras ciência e religião. Procuro uma
(1945c, p.11; 2005, p.X).
linha de condução compreensiva de tais instâncias
na vida humana em seu processo histórico e exis- Há, pois, uma multiplicidade de caminhos
tencial contemporâneo. É uma procura que começa evolutivos da vida animal que alcançam, no ser
por suspender a obrigação moral concernente ao humano, um desenvolvimento diferenciado da in-
comportamento bipolar do sim ou do não, configu- teligência a partir das condições mesmas que gera-
rando a compreensão a partir da diferença e da re- ram a vida. Nesse sentido, a teoria do conhecimen-
petição entre Religião e Ciência como formas distin- to e a teoria da vida se mostram inseparáveis uma
tas de criação das sociedades humanas em seus de- da outra: o conhecimento humano é resultado da
senvolvimentos materiais e espirituais no tempo. evolução da vida ocorrida na Terra. Assim também
são a moral e a religião: se assentam na base biológi-
* Doutor em Educação. Professor da Faculdade de Educa-
ção da Universidade Federal da Bahia-UFBA. ca da inteligência em seu caráter social.
Av. Reitor Miguel Calmon, s/n. Vale do Canela. Canela. Localizando seu contexto histórico, Henri-
Cep.: 40110-100. Salvador – Bahia – Brasil.
dgaleffi@uol.com.br Louis Bergson nasceu em 18 de outubro de 1859 e

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morreu em três de janeiro de 1941 em Paris. Filho Deixando de lado o estrato biográfico apre-
de judeus, a mãe inglesa e o pai polaco. Pequeno, sentado, a seguir procuro descrever os traços
viveu com seus pais em Londres, regressando de- marcantes da filosofia de Bergson. De imediato e
finitivamente para Paris aos nove anos. Em sua imprescindível, seu pensamento se desenvolve a
formação elementar, frequentando o Liceu Fontanes, partir da intuição da duração real que se revela fon-
chegou a ganhar o primeiro lugar do prêmio de te de uma metafísica universalmente válida (Galeffi,
matemática do Concours Géneral da França, resol- 1961). Ao intuir a duração real como campo do
vendo um problema de Pascal. Como nos informa acontecimento cósmico e humano na deriva evolutiva
Galeffi (1949; 1961), fez seus estudos secundários das espécies, Bergson considera que o acesso ao
no Lycée Condorcet, tendo ingressado na sessão mundo da liberdade, em contraposição ao mundo
de letras da École Normale Superieure em 1878, da necessidade, está aberto à experiência humana
obtendo a licenciatura em filosofia em 1880, exer- desde sua mais remota e inalcançável origem. Esse
cendo desde 1881 o cargo de professor de filosofia acesso abre para o ser humano uma fenda evolutiva
nas escolas de Angers e de Carcassonne, até ser criadora que foi experimentada em diversas linhas
nomeado catedrático de filosofia na escola Bleise de fuga na história das sociedades e civilizações.
Pascal de Clermont-Ferrand em 1883, aí permane- Há uma natureza humana similar à nature-
cendo até 1888. Nesse mesmo ano, foi nomeado za das outras espécies biológicas existentes. E tam-
professor do Lysée Rollin e, em 1889, obteve o tí- bém há, no ser humano, um tipo de inteligência
tulo de docteur ès lettre tendo defendido a tese que se contrapõe ao estado de natureza como parte
que o tornará conhecido no cenário intelectual da dela. Uma inteligência aberta ao acontecimento cri-
época, “Essai sur lês données immédiates de la ador e que se experimenta sem cessar na vida
conscience” (Ensaio sobre os dados imediatos da diversificada da espécie espalhada por todo o pla-
consciência), além de uma tese secundária escrita neta. Um empirismo radical, como condição de
em latim “Quid Aristoteles de loco senserit” (O toda teoria do conhecimento, que prime pela pre-
que é para Aristóteles o lugar das sensações). Em cisão, porque também é uma teoria da vida, da
seguida, foi professor do Lycée Henri IV até 1897 vida em sua duração e da duração como acontece
e, ao mesmo tempo, maitre de conférences na Es- aperceber-se o ser humano em geral, enquanto exis-
cola Normal Superior até 1900, ano em que foi te, enquanto eu encarnado. Um empirismo radical
nomeado professor do Collège de France, vindo como meio de acesso a uma metafísica universal-
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mais tarde a ocupar a cátedra de filosofia moder- mente válida.


na, função exercida até 1921. Abrindo o campo empírico como plano de
Em 1901, foi eleito membro da Académia imanência do exercício filosófico, Bergson enfatiza o
des Sciences Morales et Politiques, tornando-se diferencial epistemológico de sua investigação do
membro da Académie Française em 1914. Como conhecimento humano em relação às leis e métodos
reconhecimento do seu trabalho de pensamento, das ciências físicas. Põe em evidência como o mun-
foi contemplado com a distinção de Grade oficial do da vida e do psiquismo humano é o domínio do
da Légion d’honneur e com a de membro do imprevisível e do radicalmente variável e novo. E,
Conseil de l’Ordre. Chegou a ser presidente da para entender esse mundo da variedade e da
primeira comissão de cooperação intelectual da multiplicidade, Bergson postulou um método para
Sociedade das Nações, cargo que abandona em 1925 alcançar a precisão do conhecimento sem a media-
por motivo de saúde. Em 1927, ganha o Prêmio ção do esprit de geómetrie. Chamou esse ato de intui-
Nobel de Literatura, e sua saúde, já muito debilita- ção, postulando e elaborando um método intuitivo.
da, o impedirá de viajar. Daí em diante até a sua Para chegar ao método intuitivo, Bergson
morte, em três de janeiro de 1941, Bergson se man- critica a imprecisão dos sistemas filosóficos. Diz,
teve mais recolhido e contemplativo. logo no início de La pensée et le mouvant:

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O que mais tem faltado à filosofia é a precisão. do caminhos contrários à coisificação humana. Afir-
Os sistemas filosóficos não são recortados sobre a
medida da realidade em que vivemos. São de- ma a liberdade humana em oposição às correntes
masiadamente largos para ela. Examinai algum, científicas e filosóficas que insistem em reduzir a
convenientemente escolhido: vereis que se apli-
dimensão espiritual do humano a leis previsíveis e
caria também a um mundo em que não se en-
contrassem nem plantas nem animais, mas so- manipuláveis da natureza macrofísica, biológica e
mente homens; em que os homens deixassem de social, determinismo físico, biológico e social. Por-
comer e de beber; em que eles não dormissem,
não sonhassem, não se distraíssem, em que nas- tanto, para se compreender Bergson, é preciso par-
cessem decrépitos para acabar latentes (Bergson, tir de sua intuição da duração real, como ele mes-
1945e, p.13).
mo sugeria a quem se interessasse por sua obra.
Nesse sentido, para Bergson, um sistema Dizendo de outro modo, a duração pode
acaba sendo um conjunto de concepções tão abs- ser compreendida como o fluxo do tempo uno e
tratas e tão vastas, que se pode nele encaixar toda indivisível em seus momentos temporais coesos,
e qualquer possibilidade e também aquilo que é momentos que vão se somando na duração e for-
impossível junto ao real. Assim, a explicação que mando uma unidade no vivido que corresponde
se pode considerar satisfatória é aquela que adere ao eu que dura continuando o passado no presen-
ao seu objeto sem deixar margem para qualquer te e projetando-se no futuro. Assim, esse tempo
outra explicação. Como algo assim é possível? real, vivido, psicológico, não é alcançável pela ló-
A raiz do método da intuição é a duração gica da mensuração quantitativa por ser ele de na-
real, compreendida como o próprio eu intuído em tureza qualitativa. Não há como reduzi-lo ao espa-
sua temporalidade qualitativa, em sua consistência ço mensurável e previsível. Não sendo da ordem
fática física, biológica e psicológica. Uma duração da inteligência colada aos dados objetivos e pro-
que é um eu capaz de conhecer diretamente um porcionais ao corpo físico, o que caracterizaria o
determinado objeto por ele visado. Pode-se dizer plano da razão, o tempo da duração por ser dife-
que Bergson rompe a barreira de uma teoria do co- rente do tempo espacializado, antes de ser irracio-
nhecimento que encontra o seu limite de validade nal é suprarracional.
no campo fenomênico. Ele descobre a possibilida- Portanto, Bergson considera a diferença de
de de uma experiência metafísica generalizada, con- natureza entre o tempo e o espaço, afirmando que
trariando a gnosiologia kantiana. Consequentemente, a duração interna (consciência) e o tempo
intui uma dimensão do tempo qualitativo, que não espacializado seguem leis distintas e opostas. Para

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é o tempo quantitativamente divisível em partes ele, tudo que pertence ao espaço pode ser traduzi-
iguais e abstratas, mas o tempo indivisível e radi- do, medido e dominado pela lógica científica, mas
calmente novo da duração do eu vivente. o tempo real, a duração, só pode ser experimenta-
Trata-se do que ele chama de “tempo psico- do espiritualmente. A duração interna, o tempo
lógico”, em contraposição ao “tempo do relógio”. vivido e a consciência são o passado vivo no pre-
Na dimensão do tempo psicológico, o ser humano sente e devir futuro. O fator t (tempo) da física
alcança a intuição absoluta da duração real: seu clássica não dá conta do tempo como duração.
próprio existir como fluir contínuo, com início e Assim, a duração não é nunca alcançada pela inte-
fim. Admite, assim, até mesmo uma sobrevivência ligência técnica, previsível, repetível, pois ela não
da alma após a morte do corpo, em uma duração é uma sucessão linear de intervalos e, como tal, é
que também encontrará um fim, posto ser uma da ordem do imprevisível e do radicalmente novo.
duração, um tempo psicológico e indiviso, mas Só a experiência física pode ser prevista e repeti-
um tempo que passa em seu acontecimento. da, mas a experiência espiritual não.
Pode-se também dizer que a filosofia de Desse modo, a intuição é compreendida por
Bergson se constitui como uma crítica à tendência Bergson como apreensão imediata da realidade
determinista da ciência moderna e da razão, abrin- espiritual por uma coincidência com o objeto visa-

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do pela consciência, uma realidade sentida e com- separado. Uma teoria do conhecimento e uma teo-
preendida absolutamente, sem a mediação das fer- ria da vida em indefinido diálogo.
ramentas lógicas do entendimento, não sendo nem Usando como pano de fundo a teoria da
análise e nem tradução. É, portanto, diferente da vida perpassada por uma crítica radical da teoria
inteligência intelectual, pois ela se apropria do do conhecimento, o problema moral e religioso em
mundo por meio de ferramentas, calculando e pre- Bergson se mostra uma linha de fuga que desenha
vendo intervalos do tempo espacializado. Já a in- um salto de natureza entre a experiência da inteli-
tuição penetra no interior da vida, alcançando o gência e o acontecimento da intuição. Com isso,
real imediatamente. A intuição é, pois, o meio de ele pode apresentar a experiência mística como
acesso ao próprio plano metafísico, um meio uni- criação espiritual aberta e imprevisível, configu-
versal, acessível a todo ser humano, pelo menos rando a passagem da sociedade fechada (a cidade)
em estado virtual e possível. A intuição é, como para a sociedade aberta (a humanidade).
tal, uma experiência metafísica. Considerando a moral e a religião como
Na visada da evolução criadora, o que leva constructos históricos das sociedades humanas,
também a compreender a moral, a religião, a ciên- Bergson procura mostrar como duas fontes distin-
cia, a arte, a filosofia etc., Bergson enfatizou a in- tas coexistem no processo de configuração moral e
tuição como a faculdade por excelência do élan religiosa desde a mais remota idade. Partindo de
vital, assim como o meio adequado para o exercí- uma visão empírica da evolução da vida no planeta
cio filosófico de precisão. Como ele diz na Intro- terra, demarca o aparecimento da espécie humana
dução de sua principal obra, A Evolução criadora: como diferença ontológica na linha da evolução cri-
adora da natureza, reconhecendo seu estatuto divi-
Uma teoria da vida que não vem acompanhada no, sobrenatural, como plano de realização de um
de uma crítica do conhecimento é forçada a acei-
tar, tais e quais, os conceitos que o entendimento universo que tem a função essencial de ser “uma
põe à sua disposição: não pode fazer mais que máquina de fazer deuses” (Bergson, 2005, p. 262).
encerrar os fatos, por bem ou por mal, em qua-
Partindo, pois, do pressuposto de uma rea-
dros preexistentes que ela considera como defi-
nitivos. Obtém assim um simbolismo cômodo, lidade espiritual que se alcança com o desenvolvi-
talvez mesmo necessário à ciência positiva, mas mento do psiquismo humano, Bergson afirma o
não uma visão direta de seu objeto. Por outro lado,
uma teoria do conhecimento que não reinsere a primado da existência do eu como intuição da
vida na evolução geral da vida não nos ensinará duração real. O fluxo da consciência humana en-
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nem como os quadros do conhecimento se cons-


carnada é a prova viva de que o eu que se percebe
tituíram, nem como podemos ampliá-los ou
ultrapassá-los. É preciso que essas duas investi- como existente não é uma substância predefinida
gações, teoria do conhecimento e teoria da vida, e fechada no espaço, mas um acontecimento espi-
se encontrem e, por um processo circular, se
impulsionem uma à outra indefinidamente ritual que não encontra paralelo no mundo dos
(2005, p.13-14). objetos delimitados pelos sentidos e pelo intelec-
to. A única maneira de ultrapassar os interstícios
As palavras citadas de Bergson mostram infinitesimais existentes na inter-relação e na con-
com precisão o método intuitivo que ele exercita tinuidade dos objetos físicos é estabelecendo uma
em todas as suas investigações filosóficas. Sua abor- relação direta com o que se quer conhecer.
dagem da moral e da religião parte, portanto, do O conhecimento humano, assim, oscila entre
pressuposto da intuição da duração, como meio a percepção mediada pelos aparatos biocerebrais e o
preciso para a distinção entre duas morais e duas salto de natureza, que é o estado de intuição, também
religiões, entre uma moral fechada e uma moral experimentado na vivência mística. E a intuição não
aberta, uma religião estática e uma religião dinâmi- procede geometricamente, porque justamente ela é da
ca. Uma mecânica e uma mística. Uma física e ou- ordem do imprevisível e do absolutamente instante
tra metafísica. Mas uma com a outra, e não em que está sempre adiante do mensurável e conhecido.

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O PLANO GERAL DA CONCEPÇÃO DA MO- Trata-se de caracterizar a obrigação moral


RAL E DA RELIGIÃO EM BERGSON como um comportamento que responde a uma
pressão social, portanto, externa e impessoal, que
A obra As duas fontes da moral e da religião mal se define quando se procura explicá-la. Mas o
é dividida em quatro longos capítulos contínuos: fato é que toda sociedade é perpassada pela obri-
1. A obrigação moral; 2. A religião estática; 3. A gação moral. Por que isso? Para Bergson a alma da
religião dinâmica; 4. Mecânica e mística. sociedade é imanente à linguagem que fala, e em
Observando essas imagens ou palavras, de- vão tentaríamos representar-nos como um indiví-
paro-me com o fio condutor que perpassa a obra duo desprendido de toda a vida social. É a socie-
do início ao fim, o que permite destacar a tese de dade que traça ao indivíduo o programa de sua
Bergson em sua consistência argumentativa e em existência cotidiana, e, por isso, o dever é cumpri-
sua condizência desveladora do fenômeno moral do de forma quase automática. Todos obedecem
e religioso em sua dinâmica histórica. compulsoriamente, e “a obediência ao dever é uma
O esquema da obra permite ir direto ao que, resistência de cada um de nós a si mesmo”
nesta ocasião, interessa destacar: a concepção da (Bergson, 2005, p.32). Essa pode ser considerada
moral e da religião apresentada por Bergson, como uma máxima prática.
pano de fundo da investigação que procura com- Se bem examinado, o argumento da razão
preender, sempre de um ponto de vista singular e em relação à obrigação moral – tem de ser porque
comum, as relações, repetições e diferenças entre tem de ser – parece ser algo aparentemente indis-
ciência e religião no presente vivo. cutível, uma obrigação, portanto. Afirma-se, assim,
Vou descrever o fluxo da caracterização que uma força que seria o todo da obrigação. Sua re-
Bergson realiza acerca da moral e da religião, bus- sultante. E o todo da obrigação seria um extrato
cando evidenciar sua tese de uma mística criadora concentrado, uma quintessência dos mil hábitos
de outra possibilidade humana: da cidade fecha- especiais, contraídos ao se obedecer às mil exigên-
da para a humanidade aberta. E, antes de abordar cias particulares da vida social. Assim, a essência
o tema da religião diretamente, sigo o desvio de da obrigação é coisa bem diferente de uma exigên-
iniciar pela descrição da “obrigação moral”, o que cia da razão.
mostra a moralidade humana em sua transição do
instinto para o hábito e em sua retroação do hábito Em suma, um imperativo absolutamente categó-

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rico é de natureza instintiva ou sonambúlica:
para o instinto, fundamentando, de modo consis- desempenhado como tal no estado normal, re-
tente, a criação das formas de cultura religiosa que presentado como tal se a reflexão despertar pelo
tempo de que precisa para se formular, mas não
marcam a história humana desde seus primórdios.
por tempo que lhe permita procurar razões
É algo evidente como a moral humana se viu desde (Bergson, 2005, p.36).
muito cedo atrelada à religião, compreendendo a
religião como sistema de princípios reguladores da Assim, o hábito como atividade de imitação
conduta através de mandado divino, sobrenatural. de um ato inteligente é também uma imitação do
Há, portanto, um campo “fabuloso” ligado ao hábi- instinto: um dispositivo vital. E, para analisar o
to religioso das sociedades humanas e que se vin- hábito e sua imitação do instinto, Bergson consi-
cula ao campo emocional do ser humano vivente. dera duas linhas divergentes de evolução, e socie-
Só por meio da comoção, do terror, do pânico e da dades no extremo uma da outra – argumento am-
submissão se dá o hábito religioso. plamente desenvolvido no livro A Evolução Cria-
Começo com algumas perguntas que Bergson dora (2005).
procura responder: Qual é o sentido da obediên- O tipo de sociedade que parecerá mais na-
cia? Por que obedecemos? É a sociedade o funda- tural será evidentemente o instintivo. Dá o exem-
mento da obrigação moral? plo das abelhas para dizer que o laço que une as

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RELIGIÃO E CIÊNCIA: diferença e repetição ...

abelhas de uma colmeia assemelha-se muito mais ao regra é imposta pela natureza como necessária, ao
que as mantém ligadas, coordenadas e subordinadas passo que, no caso das sociedades humanas, uma
umas às outras, como as células de um organismo. só coisa é natural: a necessidade de uma regra.
Em síntese, o “todo da obrigação”, seja em
um extremo ou em outro da linha evolutiva consi- Quanto mais numa sociedade humana escavarmos
até à raiz das obrigações diversas para chegarmos à
derada, será o instinto, por um lado, e o hábito no obrigação em geral, mais a obrigação tenderá a tor-
outro extremo. Quanto mais habitual for determi- nar-se necessidade, mais se aproximará do instin-
to no que tem de imperioso (2005, p.38).
nado hábito mais se assemelhará ao instinto.
Observando as duas linhas evolutivas dis-
Entretanto, o instinto não se refere a nenhu-
tintas das sociedades de animais, aquela dos
ma obrigação particular. Assim, o todo da obriga-
artrópodes1 e aquela dos vertebrados, Bergson des-
ção moral seria apenas instinto se as sociedades
taca como no topo da primeira linha está o instin-
humanas tivessem permanecido no mesmo plano
to dos insetos, particularmente dos himenópteros,2
das outras espécies animais; mas elas desenvolve-
e, no segundo extremo, encontra-se a inteligência
ram um lastro de variabilidade e de inteligência.
humana. Como afirma:
Bergson considera esse “um instinto virtual”, como
Instinto e inteligência têm por objeto essencial é aquele que está por trás do hábito de falar. As-
utilizar instrumentos: aqui utensílios inventados sim, “a moral de uma sociedade humana é, com
e, por conseguinte, variáveis e imprevistos; ali
efeito, comparável à sua linguagem” (p. 38). E tudo
órgãos fornecidos pela natureza e, por conseguin-
te, imutáveis (2005, p.37). na linguagem humana vem do artifício, da fabrica-
ção e do engenho.
Consequentemente, a vida social é imanente Contudo, mesmo nas sociedades humanas
tanto ao instinto como à inteligência. E, na escala mais avançadas, o natural se mantém vivo e pode,
evolutiva da vida, encontra sua realização mais a qualquer momento, eclodir. Basta pensar em uma
completa na colmeia ou no formigueiro por um catástrofe qualquer que alcance uma cidade e po-
lado e, por outro, nas sociedades humanas. Uma nha em risco a sobrevivência de seus indivíduos,
sociedade pede sempre uma organização, seja ela para ver eclodir a barbárie e o mais cru instinto de
humana ou animal. Toda organização implica uma autopreservação.
coordenação e, na maioria das vezes, uma subor- Assim, nossas obrigações se traduzem em
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dinação dos elementos uns aos outros. deveres, e nossos deveres sociais visam à coesão
Em toda sociedade, pois, há um conjunto social. Em suma, diz Bergson: “[...] o instinto so-
de regras ou leis, sejam elas apenas vividas ou cial de que nos apercebemos no fundo da obriga-
representadas discursivamente. No caso das col- ção social visa sempre – uma vez que o instinto é
meias ou formigueiros, o indivíduo é fixado na relativamente imutável – uma sociedade fechada,
sua atividade pela sua estrutura, e a organização é por mais vasta que esta seja” (p. 41). Portanto, esse
relativamente invariável. Já a “cidade humana” é, instinto não visa à humanidade. “Entre a nação,
de forma variável, aberta a todos os progressos. por mais vasta que seja, e a humanidade, há toda
No topo das sociedades dos himenópteros, cada a distância que vai do finito ao indefinido, do fe-
1
chado ao aberto” (p. 41).
Filo de animais invertebrados, que se caracteriza pela
presença de corpo segmentado, membros locomotores Nesse ponto, Bergson critica a ilusão
articulados em número par e exoesqueleto quitinoso; os
crustáceos, insetos, diplópodes, quilópodes e aracnídeos racionalista e intelectual de um progresso contí-
são as principais classes componentes. Contém mais de nuo da moral fechada à moral aberta.
75% das espécies animais descritas.
2
Ordem de insetos holometábolos, com cerca de 130.000
espécies descritas, que reúne as conhecidas formigas, [...] entre a sociedade em que vivemos e a huma-
vespas e abelhas; os adultos são mandibulados, com nidade em geral há o mesmo contraste que entre
quatro asas membranosas, sendo as posteriores tipica-
mente guarnecidas de ganchos. o fechado e o aberto; a diferença entre os dois

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objetos é de natureza, e não simplesmente de sábios da Grécia, os profetas de Israel, os monges


grau (2005, p.41).
budistas, os santos cristãos etc. são casos dessa mo-
ral aberta e de uma religião dinâmica.
Assim, a coesão social se deve, em grande
Desse modo, enquanto a moral fechada se
parte, à necessidade de uma sociedade se defen-
realiza na impessoalidade, a moral aberta aparece
der contra as outras, e o amor que se tem por aque-
em personalidades que a vivem e se fazem exem-
les com os quais se convive começa por ser contra
plo para os outros. A própria existência de pesso-
todos os outros homens. Há, portanto, um instin-
as com essa qualidade espiritual difunde o apelo
to egoísta na impessoal recusa do outro, uma in-
por um amor incondicional por suas simples pre-
disposição para o amor universal.
senças. E o apelo não precisa recorrer a artifícios
Desse modo, é o instinto primitivo. Nossa
retóricos, o que ocorre nas formas de moral e de
moral geral é fechada. E só se chega ao amor ao
religião baseadas no cálculo e no controle racio-
próximo como humanidade por um desvio:
nal. O caráter exemplar das grandes personalida-
des morais provoca o apelo que suscita um salto
Porque é somente através de Deus, em Deus, que
a religião convida o homem a amar o gênero hu- de natureza na atitude moral humana: do amor
mano, como é também somente através da Ra- fechado ao amor pela humanidade, estendido ao
zão, na Razão por meio da qual todos nos comu-
nicamos. Que os filósofos nos fazem olhar a hu- amor à vida em todas as suas formas. Com pala-
manidade e nos mostram nela a eminente digni- vras de Bergson:
dade da pessoa humana, o direito de todos ao
respeito. Nem num caso nem no outro se chega à
A natureza deste apelo, só a conheceram inteira-
humanidade por etapas, atravessando a família
mente os que experimentaram a presença de
e a nação. É preciso que, de um salto, nos trans-
uma grande personalidade moral. Mas cada um
portemos mais longe que ela e a atinjamos sem a
de nós, nos momentos em que as suas máximas
termos tomado por fim, ultrapassando-a.
habituais de conduta lhe parecem insuficientes,
(Bergson, 2005, p.42)
se perguntou já o que este ou aquele teria dele
esperado em semelhante ocasião. Poderá ter sido
O fio condutor da investigação procura com- um familiar, um amigo, quem assim evocáva-
mos por meio do pensamento. Mas poderá tra-
preender a essência da moral e da religião em sua tar-se também de um homem que nunca vimos,
expressão mais simples, a obrigação, para eviden- cuja vida nos foi simplesmente contada, e a cujo
juízo submetemos depois em imaginação a nos-
ciar a passagem de uma moral fechada a uma mo- sa conduta, temendo da sua parte uma censura
ral aberta, que tem, na aspiração e no apelo, sua ou orgulhando-nos sua aprovação. (2005, p.43)

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expressão essencial. O florescimento das religiões
nas sociedades humanas tem origens emotivas Ora, no plano da moral impessoal, o ser
profundas que acrescentam à obrigação a aspira- humano faz corpo com a sociedade, havendo uma
ção pelo divino como um élan vital criador de novas total identificação na tarefa comum de conserva-
possibilidades espirituais. Enquanto, em geral, a ção individual e social. Nessa identificação, a alma
moral comum é fechada, para alguns ela se tornou roda em círculos, fechada em si mesma na
o caminho da santidade e da bondade universal. impessoalidade individual e social. Mas, em
Assim, é pelo impulso religioso que se alcança por contraposição à alma fechada, vê-se também o
primeiro o plano da humanidade, e o amor uni- florescimento da alma aberta. Trata-se, aqui, de uma
versal, antes de ser um tema tratado pela razão, foi atitude de adesão a um plano de imanência aberto
vivido pelos que incorporaram o apelo do supre- ao projeto humano em conexão com o todo da vida
mo bem comum. e da natureza. Uma atitude que é também uma dis-
Bergson observa como, em todos os tempos, posição para a transcendência do mundo dado por
apareceram seres humanos excepcionais, encarnando meio de uma experiência de imersão no estado de
essa forma de moral que ultrapassa o domínio da compaixão por tudo o que vive e sofre em seu
obrigação e alcança o reino da absoluta liberdade. Os viver. Esse sentimento de compaixão transcende o

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RELIGIÃO E CIÊNCIA: diferença e repetição ...

instinto biológico da obrigação moral e alcança o es- lam aos nossos olhos os maiores, todos estão pre-
sentes: arrastados pelo seu exemplo juntamo-nos
tado místico de fusão do indivíduo com a totalidade a eles como a um exército de conquistadores.
absoluta. Essa não é uma decisão da razão, que vive São conquistadores, com efeito, quebraram a re-
sistência da natureza e elevaram a humanidade
nos limites da espacialidade macrofísica, porque se
a novos destinos. Assim, quando dissipamos as
trata de uma ação que se antecipa aos domínios da aparências para tocar as realidades, quando fa-
análise e da computação de dados mensuráveis, e zemos abstração da forma comum que as duas
morais, graças a trocas recíprocas, tomaram no
que, não sendo irracional, como pretendem alguns, pensamento conceitual e na linguagem, encon-
é suprarracional em sua força criadora. tramos nos dois extremos desta moral única a
pressão e a aspiração: a primeira tanto mais per-
Nesse ponto, encontramos a dimensão da
feita quanto mais impessoal, mais próxima des-
sensibilidade como plano de imanência de uma sas forças naturais a que chamamos hábitos e até
moral aberta pela experiência da alma que se abre. mesmo instinto, a segunda, tanto mais poderosa
quanto mais visivelmente suscitada em nós por
Pergunta Bergson: pessoas, e quanto mais pareça triunfar sobre a
natureza (2005, p. 55).
De onde vem que os homens que deram o seu
exemplo tenham encontrado outros homens para
O que Bergson apresenta para a moral e a
os seguir? E que força é a que contrabalança aqui
a pressão social? (2005, p.47). religião desvela, de modo condizente, o comporta-
mento humano, enfatizando a presença de duas
Ora, com exceção do instinto e do hábito, não forças opostas e complementares. Exercendo-se em
há outra ação direta sobre o querer senão a da sensi- diferentes regiões da alma, as duas forças proje-
bilidade. A sensibilidade carrega de emoção o acon- tam-se no plano intermediário da inteligência. E,
tecimento do sentido pelo ser tocado por algo. Para por isso, está fora de questão fundar a moral no
Bergson, “criação significa, acima de tudo, emoção.” culto da razão e conceber a religião sem a emotiva
(p. 51). Ou ainda, “[...] é ela que impele a inteligência capacidade fabuladora da inteligência.
em frente, apesar dos obstáculos. É ela, sobretudo, Com efeito, afirma o filósofo,
que vivifica, ou, antes vitaliza, os elementos intelec-
seja qual for a filosofia a que nos liguemos, somos
tuais com os quais fará corpo” (p. 52). forçados a reconhecer que o homem é um ser
Assim, a emoção é supraintelectual, como a vivo, que a evolução da vida, nas suas duas linhas
principais, se cumpriu na direção da vida social
obrigação é infraintelectual. A eficácia do apelo liga-
(2005, p.89).
se à força de uma emoção originária a partir da
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 69, p. 449-467, Set./Dez. 2013

qual se é tocado por uma expansão do próprio ser Nesse ponto, poder-se-ia dizer que, na evo-
em um progresso contínuo. A moral, assim, pro- lução da vida, o intuito criador da natureza pode-
gride pela emoção incorporada e vivida, o que não ria ter estacionado nas sociedades fechadas cujos
significa afirmar uma “moral do sentimento”. Isso membros se encontrassem ligados uns aos outros
porque se trata de emoção capaz de se cristalizar por obrigações estritas. Compostas de seres inteli-
em representações e até mesmo dar origem a dou- gentes, essas sociedades apresentariam uma com-
trinas morais. Mas de nenhuma doutrina, em sua plexidade maior do que aquela das sociedades ani-
formalização, se poderia extrair o impulso emotivo mais, regidas pelo instinto. Entretanto, a variação
que a originou. Nenhuma teoria, por mais bela que não teria alcançado a força criadora capaz de enco-
seja, está em grau de arrebatar o ser humano se ele rajar e plasmar o sonho de uma transformação radi-
não for tocado pela emoção incorporada que o faz cal: “[...] a humanidade não se teria modificado a
ultrapassar os próprios limites impostos pela na- ponto de fazer parecer possível uma sociedade úni-
tureza material. Desse modo, diz Bergson: ca, compreendendo todos os homens” (p.89).
É evidente que essa sociedade única se ex-
Fundadores e reformadores de religião, místicos
prime ainda como aspiração, não tendo minima-
e santos, heróis obscuros da vida moral que pu-
demos encontrar no nosso caminho e que igua- mente se realizado, e talvez nunca venha a se rea-

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Dante Augusto Galeffi

lizar plenamente. Mas, de novo, na atual socieda- MORAL, RELIGIÃO E CIÊNCIA: entre o aberto
de globalizada, a aspiração por uma humanidade e o fechado, o estático e o dinâmico, o
única volta a incendiar alguns corações sedentos previsível e o imprevisível, a repetição e a
de justiça que clamam pela iminente transforma- diferença, o fato medido e o acontecimento
ção humana triética como expressão de amor à vida,
indicando com o termo as dimensões ambiental, A moralidade humana também se faz reli-
social e mental do ser humano. gião pela experiência mística. Há, além do “ades-
Olhando para a evolução moral e religiosa tramento” moral que toda sociedade impõe a seus
nas sociedades humanas, pode-se destacar o tipo membros como regra comum, também o desejo de
de ser humano que alcança a santidade em seus alguns por uma vida mística, contemplativa e
atos e palavras e como esses “iluminados” incen- extasiante. A mística eclode na sua impetuosida-
deiam, com suas realizações, muitos outros seres de criadora quando amplia os limites da experiên-
humanos que, mergulhados no exemplo, acabam cia espiritual para além da impessoalidade moral.
por realizar caminhos criadores próprios e apro- O constructo religioso, em todas as suas formas
priados. O surgimento de almas que se sentiam de expressão já realizadas, tem sempre um pé na
aparentadas a todas as outras almas projeta-as para mística, mesmo quando se trata da simples misti-
além do próprio grupo social, com sua solidarie- ficação para fins de cumprimento de obrigações
dade estabelecida pela natureza, passando a visar morais. Mas há também uma mística que cria no-
a algo maior: o todo da humanidade com suas vos arranjos para a experiência espiritual huma-
infindáveis singularidades pelo impulso de amor na, ampliada ao todo da humanidade como limite
ao próximo como a si mesmo. inatingível, mas sempre alcançável por uma direta
O aparecimento dessas almas privilegiadas intuição antecipadora de sua potência infinita e
faz surgir algo similar à criação de uma espécie indeterminada.
nova, composta de um indivíduo único, concen- Mas a religião também pode ser o lugar da
trando-se o ímpeto vital criador em um único in- oclusão e do atraso moral quando ela não alcança
divíduo, um resultado que não poderia ocorrer de o plano da mística criadora e transformadora de
uma só vez para o todo da humanidade. A mani- hábitos ancestrais que definem as sociedades como
festação do amor expandido para além dos limites submetidas ao estado de guerra perene de umas
da natureza mecânica, nessas almas distintas, pa- contra as outras. É o caso também das religiões

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rece ser a própria essência do esforço criador. Eis estáticas, que se organizaram em torno de nações e
aqui o acontecimento da mística como estados contra todas as outras nações e estados
ultrapassamento da mecânica sem a anulação de reais ou apenas virtuais, não ultrapassando o pla-
suas funções essenciais. Contudo, é incontornável no da obrigação ao que se considera, sem
que a essência de toda moral, seja ela fechada ou questionamentos possíveis, a ordem imperante
aberta, pressão ou aspiração, é biológica. E, assim, desde sempre.
não se deveriam dissociar os constructos religio- Bergson, em seu itinerário descritivo e den-
sos do âmbito da vida onde ocorre o acontecimen- so, acentua o espantoso espetáculo que as religi-
to evolutivo da espiritualidade humana. E a meta ões apresentam em sua constituição fabulosa per-
é sempre o alcance de uma plenitude vivente com- sistente ao longo de sua história e, por isso mes-
partilhada e preservada em sua força protetora. O mo, em sua capacidade de apresentar um real na-
que sempre requer uma prática ética para além de tural perpassado pelo sobrenatural suprarreal. É
toda mera consolação metafísica. espantoso ver a força da crença nos mitos e nas
fabulações reveladoras de novos estados espiritu-
ais e novos horizontes ontológicos. Na perspecti-
va do “homem racional”, toda forma de religião

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RELIGIÃO E CIÊNCIA: diferença e repetição ...

não passaria da perpetuação de uma suposta “men- os, a função da efabulação é preciso imaginar por
talidade primitiva”, que seria aquela das “raças que a natureza dotaria o ser humano de uma fun-
inferiores” ou que teriam ficado para trás na evo- ção que o levaria à superstição.
lução moral do suposto homem civilizado. Nessa Parece que a natureza usa a efabulação como
perspectiva, toda superstição não passaria da per- estratégia para o desenvolvimento de sociedades
petuação de um hábito deixado para trás com o falantes, portanto inteligentes. A natureza, ao criar
surgimento da civilização racional moderna. E essa a inteligência, a teria dotado de uma capacidade
forma de argumentação se impõe como um racio- de simulação e de falseamento com objetivos mui-
cínio apoiado nos fatos, quer dizer, na forma in- to precisos. Como diz Bergson:
compreensível e estranha como os supostos “es-
Uma ficção, se a imagem, for viva e obstinada,
píritos primitivos” realizam seus rituais mágicos e poderá precisamente imitar a percepção e, por
de como seus hábitos são quase iguais aos de ani- isso, impedir ou modificar a ação. Uma experiên-
cia sistematicamente falsa, erguendo-se perante
mais em comparação com a “polidez” e sofistica-
a inteligência, poderá detê-la no momento em que
ção dos hábitos dos civilizados. ela estivesse a ir longe demais nas consequências
Ora, na verdade, toda aparência de civiliza- que tira da experiência verdadeira. Assim teria,
pois, a natureza procedido. Em tais condições não
ção e evolução moral guiada pela razão não passa nos surpreenderia descobrir que a inteligência,
de uma tênue película que, quando rompida, re- ao acabar de formar-se, fora invadida pela supers-
tição, que um ser essencialmente inteligente é
vela o fundo primitivo de todos. Desde os primei-
naturalmente supersticioso, e que só os seres inte-
ros humanos até aqui, a revolução moral se res- ligentes podem ser supersticiosos (2005, p.100).
tringiu a alguns indivíduos, nunca alcançando o
todo dos humanos viventes. Por que isso? Como Então, para que serve a função efabuladora
puderam e como podem ainda superstições ab- e que perigo da natureza ela tem por tarefa preve-
surdas governarem a vida de seres humanos inte- nir? Uma longa argumentação se desdobra desse
ligentes? Qual é a origem dessas superstições tão questionamento e aqui procuro sintetizá-la ao máxi-
persistentes? mo, tendo em vista o foco da investigação empre-
Para Bergson, “[...] as representações que endida. A capacidade efabuladora seria um
engendram superstições têm por caráter comum substitutivo do instinto para garantir a coesão so-
ser fantasmáticas.” (2005, p.99). Chama de cial. A percepção ilusória estaria compensando a
“efabulação” ou “ficção” ao ato que as faz surgir. lacuna deixada pela função mecânica do instinto.
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Trata-se da faculdade da “imaginação” em seu do- E aí também aparece a religião. Segundo Bergson
mínio artificialmente delimitado. A “efabulação” “[...] a religião é, portanto, uma reação defensiva
se encontra na origem da linguagem humana e se da natureza contra o poder dissolvente da inteli-
mostra fundamental na construção social da ima- gência” (2005, p.110).
gem de si mesmo, do outro e do mundo com to- Entretanto, isso não passa de uma figuração
dos os entes que o habitam. Trata-se de uma fun- estilizada do que efetivamente se passa com a fun-
ção essencial da inteligência que parece plantada ção efabuladora que engendra a religião. “Na ori-
naturalmente, pois aparece em todos os casos de gem, o costume é toda a moral; e como a religião
sociedades humanas das mais remotas àquelas proíbe que nos afastemos dela, a moral é
contemporâneas. E a efabulação logo se liga ao sen- coextensiva à religião.” (Bergson, 2005, p.111).
timento religioso, e ele se mostra presente em to- Assim, a religião primitiva é uma precaução con-
das as sociedades humanas do passado mais re- tra o perigo que cada um corre a partir do momen-
moto ao presente. O poder imaginário da efabulação to em que pensa. Pensando, há sempre o risco do
deu origem aos mitos e à literatura, à poesia e à isolamento em si mesmo. Portanto, a religião seria,
arte em geral, igualmente à ciência e à astronomia. em uma instância primeira, uma reação defensiva
E para que se possa compreender, sem subterfúgi- da natureza contra a inteligência. Isso já caracteri-

458
Dante Augusto Galeffi

za a forma mais básica da religião. Mas há também ções às coisas e aos acontecimentos, como se a
uma segunda via do desenvolvimento religioso natureza tivesse por toda parte olhos que virassem
primitivo: “... a religião é uma reação defensiva da para o homem” (2005, p.152).
natureza contra a representação, pela inteligência, A religião, pois, teria uma função bem defi-
da inevitabilidade da morte” (2005, p.118). nida no plano estratégico da natureza em alcançar
Esse segundo argumento para a definição seus intuitos evolutivos no plano da vida. E não é
da religião em suas formas primeiras pressupõe o pertinente pretender reduzir a religião às formas
desenvolvimento cultural de compreensões da ideais de conduta humana, porque, antes de ser
condição humana finita e mortal. A morte, sendo racionalizada, ela foi plenamente vivida. Assim,
inevitável e incontornável, sempre ocupou a ima- “[...] antes de filosofar é preciso viver: é de uma
ginação e o pensamento humano e continua sen- necessidade vital que devem ter saído as disposi-
do o mais denso e protegido mistério da existên- ções e as convicções originais” (p.152). Portanto, é
cia. E foi através da função religiosa que o proble- inadequado ligar a religião originariamente a um
ma da morte alcançou a sofisticação espiritual que sistema de ideias, a uma determinada lógica, ou
existe nas múltiplas sociedades humanas contem- mesmo “pré-lógica”. A religião, antes de ser um
porâneas. Há aí também o fator “medo do fim”, problema filosófico e teológico, se deu como for-
que está presente no florescimento da crença reli- ma-função vinculada às necessidades da vida hu-
giosa, começando por ser uma crença em forças mana em seus primórdios como espécie animal
vivas naturais que se tornam sobrenaturais, até al- falante. O acervo fantasmagórico aí produzido ao
cançar as formas antropomórficas de apresentação longo de toda a evolução social humana é algo da
dos deuses, chegando ao extremo de um Deus magnitude das mais complexas constelações
único, onipotente, onipresente e imortal, em opo- cosmológicas disponíveis nos registros materiali-
sição à multiplicidade das potestades divinas. zados. Algo que ainda está por ser investigado de
Se, como afirmou Bergson, a religião é uma maneira mais demorada e aprofundada, mas, sem
forma defensiva da natureza contra a representa- dúvida, algo sem fundo, sem “fundamento”.
ção da inevitabilidade da morte, aí também se en- Nessa perspectiva, a religião seria coextensiva
contra a gênese da concepção de uma imortalida- à espécie humana e estaria ligada à sua estrutura
de da alma e de uma sobrevivência da alma além fundamental. Essa linha de pensamento se
da morte física. Se for ou não imortal a alma hu- descortina diante da multiplicidade das religiões e

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mana, do ponto de vista da individualidade, essa suas expressões politeístas e monoteístas. Mas é
é uma questão de crença e de fé coletiva, o que preciso incluir o ser humano no conjunto dos se-
ultrapassa qualquer possibilidade de explicação res vivos, assim como incluir a psicologia na biolo-
linear e de certificação fatual. gia para se compreender, intuitivamente, como a
Há também de se destacar a relação entre religião é coextensiva à espécie humana a partir de
magia e religião. Inclusive destacar o animismo duas fontes principais. A primeira delas é
como uma forma de filosofia natural que teria dado infraintelectual e a segunda supraintelectual. Há,
origem à religião. Ou ainda se falou sobre uma fase assim, formas de religião estática e formas de reli-
“pré-animista” ou “animalista”, na qual a humani- gião dinâmica coexistindo na história das socieda-
dade teria alcançado a representação de uma força des. Formas de repetição e formas de diferença, for-
impessoal, como o mana polinésio, que em tudo mas mecânicas e formas místicas.
se difundiria em diferentes graus de intensidade. De modo similar, considerando a relação de
Só mais tarde essa força teria dado lugar aos espí- ciência e religião, as formas de conhecimento cien-
ritos. E, inicialmente, os espíritos não eram forças tífico se sobrepõem às formas de conhecimento
impessoais e nem individualizados. Como aponta religioso, também a partir de duas fontes princi-
Bergson, “ter-se-ia simplesmente atribuído inten- pais. Mas, nesse ponto, já não é mais a palavra de

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RELIGIÃO E CIÊNCIA: diferença e repetição ...

Bergson aquela que se destaca, porque ele não tra- Assim como a natureza parece ter dotado o
tou explicitamente dessa questão, mas fica implíci- ser humano do sentimento religioso como uma
ta a diferença entre as duas formas de criação espi- estratégia para a sua evolução espiritual, parece
ritual. Trata-se, agora, da palavra própria e apropri- também ter fornecido os instrumentos inteligentes
ada, que interroga a ciência em sua forma moderna para o desenvolvimento do conhecimento científi-
e vigente, segundo suas fontes estáticas e dinâmi- co além dos limites da efabulação teológica. E é
cas, para compreender o renovado diálogo entre os evidente que a ciência teve de se desvincular do
religiosos e os cientistas na contemporaneidade e imaginário religioso para realizar suas conquistas
ultrapassar o grande preconceito produzido pela e desenvolvimentos, como também é verdade que,
racionalidade tecnocientífica em relação ao senti- para muitos seres humanos, a religião e a crença
mento religioso e à fé religiosa. intenção é aquela em deuses não têm e nunca tiveram importância
de agregar o conhecimento religioso ao conheci- em suas vidas corriqueiras.
mento científico e vice-versa, compreendendo, as- Claro, então, como religião e ciência são
sim, limites tanto da ciência como da religião em regidas por princípios distintos, e como é inade-
uma perspectiva filosófica. Mas, ao mesmo tem- quado querer reduzir uma à outra, ou pretender
po, fazendo justiça ao valor da religião na concreta submeter uma à outra, o que é pior. Sem o acervo
existência de seres humanos encarnados, sem per- dramático e trágico fornecido pelo sentimento reli-
der de vista a radical diferença e a persistente re- gioso, o possível sentido de uma investigação
petição de formas estáticas e dinâmicas de ciência ontológica não faria nenhum efeito, porque a in-
e de religião, como atividades de criação do espírito vestigação ontológica alcança o nível de
humano. Também porque não é possível alcançar o questionamento do próprio ser humano em rela-
amplo campo da experiência religiosa, extremamen- ção a si mesmo, numa evidente luta contra o esta-
te subjetiva, tanto impessoal como pessoal, com a do de natureza.
métrica da ciência macrofísica, assim como não é Procuro, agora, ampliar um pouco mais as-
possível falar do tempo real através do tempo crono- pectos da religião em suas duas vias de evolução,
lógico e nem submeter os procedimentos de verifica- a estática e a dinâmica, uma exterior e impessoal e
ção da ciência aos cânones da fé suprarracional. a outra interior e pessoal. É possível, então, tomar
Sim, cada coisa no seu devido lugar e tem- como condizente que, na origem da religião, duas
po, segundo sua necessidade e sua repetição. Reu- vias opostas foram percorridas: uma infraintelectual
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nindo a via religiosa com a via científica, o que e outra supraintelectual. Para Bergson, é um erro
vemos é o âmbito mais abrangente da história hu- considerar uma passagem gradual de um estado
mana em suas grandes linhas de evolução no tem- religioso inferior (infraintelectual) para um superi-
po-espaço terreno, na imensidão de um cosmos or (supraintelectual) por meio de formas interme-
ainda silencioso para os ouvidos humanos. diárias de religião. Contudo, não se podem des-
Deixando de lado qualquer pretensão de so- prezar as formas intermediárias porque elas tam-
berania da racionalidade tecnocientífica em relação bém estão presentes no imaginário coletivo de
ao sentimento religioso e à experiência mística, tor- muitos povos. Pois, entre a religião “animalista” e
na-se possível reconhecer o grande acervo imaginífico “animista” e a religião dos deuses, ocorre uma pro-
que compõe a ecologia afetiva e emocional da huma- funda mudança de plano de referência. Mas é sem-
nidade pela reunião de todas as suas singularida- pre da forma estática de religião de que se está tratan-
des, formando um amplo “zoológico” de entidades do quando se visualizam os grandes sistemas religi-
imaginárias, que compõe uma das dimensões da com- osos da antiguidade, que se encontram no presente
plexa estrutura humana. E isso pela via do diálogo com suas majestosas representações de deuses e
aberto e franco, além de todo fundamentalismo e de semideuses. Estão todos distantes da interioridade
toda afirmação dogmática de uns contra os outros. humana que ainda está em formação. Quando a fun-

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Dante Augusto Galeffi

ção efabuladora possibilitou o florescimento da reli- que se faria o apego à vida em geral. Mas, deverí-
amos continuar então a falar de religião? Ou de-
gião, ela se fixou como representação coletiva através veríamos continuar a aplicar já o termo a todo o
das histórias contadas ao modo dos infantes, cum- anterior? As duas coisas não diferirão a ponto de
se excluírem, e de não ser possível dar-lhes o
prindo a função de apegar o ser humano à vida, agre-
mesmo nome? (2005, p.181-182).
gando o indivíduo na sociedade.
Esse traço que caracteriza a religião estática Para Bergson, haveria muitas razões que jus-
vai ser transposto pela religião dinâmica. Trata-se tificariam o uso do termo religião em ambos os
do acontecimento da interioridade reflexiva. No casos. A começar pelo misticismo que, quando
plano das sociedades humanas, a inteligência foi autêntico, o que é muito raro, encontraria sua ga-
constituindo uma temporalidade que projeta a ex- rantia assegurada na própria experiência excepci-
periência mental humana reflexivamente, permi- onal dos místicos reais. Mas, na maioria das ve-
tindo prever, imaginar, evocar e atualizar aconteci- zes, o que se encontra é o misticismo diluído que,
mentos interligados a um contínuo, e implicando mesmo em doses pequenas, tem ainda o poder de
a inquietação que assinala algum perigo em rela- comunicar-se às massas e provocar efeitos notá-
ção à própria vida de quem passa a ter consciência veis. Contudo o místico autêntico parece ser de
de algum clamor vital. uma espécie que não pode encontrar origem na
Mas será que o acontecimento social da reli- religião estática, apresentando-se não como uma
gião dinâmica não poria em questão se continua- variação de grau, e sim como um verdadeiro salto
ria a se tratar de religião e não de outra coisa? É de natureza. Por isso, para Bergson:
interessante aqui enfatizar dois sentidos distintos
Se todos os homens, se muitos homens pudes-
de “religião”. A religião estática é religião como arti- sem subir tão alto como esse homem privilegia-
fício efabulador em prol da vida social, “é o que do, não seria na espécie humana que a natureza
se teria detido, porque estamos na realidade di-
deve preencher, em seres dotados de reflexão, um
ante de algo mais que o homem (2005, p.182).
déficit eventual do apego à vida” (Bergson, 2005,
p.180). A religião dinâmica apresenta-se como o Isso demarca a diferença de natureza entre
acontecimento do ser humano interior, requerendo a religião e a mística. E, então, por que a mística
o exemplo encarnado, a personalização individual continua sendo religião? Sim, trata-se ainda de re-
de uma experiência autenticamente vivida. ligião, mas de uma religião radicalmente nova.
Não mais se trata de uma religião exterior, Porque “o grande místico seria uma individualida-

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mas de uma revelação que, de algum modo, atuali- de que transporia os limites marcados à espécie
za um estado de ser que ultrapassa os muros da pela sua materialidade, que continuaria e prolon-
cidade e marcha em direção à humanidade em seu garia a ação divina” (p.187).
conjunto universal. E aqui o apego à vida se refere Em síntese, observando-se a história do
à vida espiritual, o que provoca um desequilíbrio misticismo, para Bergson, o misticismo completo
em relação aos dispositivos habituais de proteção é aquele dos grandes místicos cristãos. “Porque o
vital. Esse desequilíbrio é decorrente de um novo amor que os consome já não é simplesmente o
movimento criador que começa por vencer a inér- amor de um homem por Deus, é o amor de Deus
cia do campo de força formado pelos hábitos corri- por todos os homens.” (p.197). Assim, através de
queiros pré-reflexivos. Como diz Bergson: Deus, por Deus, o místico ama a humanidade in-
teira com um divino amor. E essa atitude do mís-
A confiança que a religião estática trazia ao ho- tico é algo bem diferente da fraternidade recomen-
mem achar-se-ia transfigurada: acabaria a preo-
cupação com o futuro, o seu virar-se inquieto para dada pelos filósofos em nome da razão, justifican-
si mesmo; o objeto deixaria de se justificar mate- do-se, aí, que todos os humanos participam origi-
rialmente, e assumiria moralmente uma signifi-
nariamente de uma mesma essência razoável: “[...]
cação demasiadamente elevada. Seria agora de
um desprendimento de cada coisa em particular diante de um ideal tão nobre inclinar-nos-emos

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RELIGIÃO E CIÊNCIA: diferença e repetição ...

com respeito; esforçar-nos-emos por realizá-lo” ta o humano e que, por isso mesmo, precisa des-
(Bergson, 2005), mas sem muito empenho indivi- velar-se em sua concretude. Esse Deus nunca mais
dual ou coletivo e sem nenhuma paixão, apenas será o mesmo: não tem limites, não tem forma, não
por dever ou respeito em nome da razoabilidade. pesa e nem dorme. Ora, o que entende o místico
Coisa bem diferente ocorre com a mística quando afirma o amor de Deus? Sabemos, simples-
autêntica. Não há limites nas representações da mente, que ele está possuído, que não faz coisas
vida racional, com suas teleologias bem claras e normais e ordinárias. Tudo o que faz aparece como
distintas, porque há um ser vivo que clama por o absurdo do extraordinário. Como a razão da ciên-
cuidado amoroso e sofre a indigência de um mun- cia tolera tamanha ousadia imaginante e criadora?
do material abandonado à própria sorte entrópica Simplesmente não tolera, nem considera.
inevitável. É contra o ceticismo cego da razão clara A ciência se afastou da religião por ques-
que a mística aqui apresentada desvela sua nature- tões de método, porque seu caminho não é a con-
za criadora para outras e infinitas maneiras de sem- templação divina, e sim a operacionalização do
pre sermos cada vez mais perpassados pelo incon- imediatamente à mão como artifício para o domí-
dicional amor de Deus. Mas, agora, esse Deus não nio da natureza pela inteligência empreendedora.
se encontra fora, no altar das igrejas ou em santuá- E isso está a serviço inevitável do capitalismo vo-
rios consagrados, mas é a própria espiritualização raz e insustentável pelo seu próprio modo de pro-
humana em sua marcha infinita para frente! dução desigual e, no fundo, irresponsável, como
Ora, o ato de ir “para frente” indica o estado se atendendo a um suposto instinto natural para o
de natureza da condição humana participante do uso indiscriminado dos recursos disponíveis.
mundo da vida; é um “progresso” em relação ao Então, não nos deve assustar o fato de se poder
que se encontra em desenvolvimento, como orga- operar uma filosofia metafísica que não segue o
nismo vivo. Portanto, não se trata de ideal desco- método da ciência positiva para alcançar os seus
lado do concreto e real mundo da vida, mas do fins também relativos ao conhecimento humano.
acontecimento comum, pertencente da potência E como, através do método intuitivo, esforcei-me
divina no âmago da “alma” humana, como élan por apresentar uma visão sintética da religião em
vital, portanto, como força criada e criadora. As- suas formas estáticas e dinâmicas, caminho que
sim como, para o místico autêntico, Deus não é requer uma imersão no universo da mística e que
uma metáfora, e sim uma intuição direta e encar- exige do investigador deixar para trás muitas de
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nada do Uno em seu poder-ser – e isso só faz sen- suas convicções habituais e tão profundamente
tido para os que já viveram estados extáticos con- enraizadas no psiquismo humano. Procurarei, ago-
sistentes –, para o simples crente, Deus é ainda ra, dar um desfecho a tudo que foi tratado até aqui.
distante e desencarnado. E porque essa não é uma
questão de ciência, só por meio da experiência
mística autêntica se pode compreender a amplitu- CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS: mecânica
de da dação divina, que é sempre também uma e mística na contemporaneidade – as duas
experiência corporal e de incorporação. Para, en- vias da globalização
fim, dizer: Deus não é apenas uma questão de fé,
mas o acontecimento do encontro de cada um com Muito mais longe poderia ter levado o
o seu poder-ser mais próprio, pela intuição direta aprofundamento da religião dinâmica em sua ver-
do amor vital e sempre surpreendentemente novo, tente mais radical: o cristianismo. Mas, de repen-
em cada gesto, em cada passo, a cada instante re- te, parece que o tempo da mística vislumbrada pela
novado. Sempre voltando à fonte divinal do amor reflexão de Bergson perdeu completamente seus
à vida, sempre além do simplesmente razoável, encantos na atual sociedade do conhecimento e
indo ao encontro do Deus desconhecido que habi- da informação global. Tudo agora parece girar em

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Dante Augusto Galeffi

torno de valores muito mais imediatos e concre- No mundo atual, convivem diversos regi-
tos, como o bem-estar material, o acúmulo de ri- mes morais e diversas crenças religiosas. Significa
queza, o luxo e a luxúria como seu extremo mais que toda sociedade humana se edifica em valores
absurdo, porém almejado por muitos. e práticas produtivas e que toda sociedade é for-
Vivemos na época da tecnociência, comple- mada por seus indivíduos, que realizam o plano
tamente adequada para o alcance dos fins criador da vida espiritual. Esse plano não se en-
produtivistas estabelecidos no plano global pelas contra ao alcance da razão, porque é suprarracional,
organizações capitalistas. Os valores morais e reli- compreendendo o infrarracional. Trata-se, também,
giosos ficam também oprimidos diante da ambi- de uma afirmação de liberdade a partir de si mes-
ção ilimitada pelo progresso material, não impor- mo, sem que seja possível medir ou calcular sua
tado o preço que se haverá de pagar ao longo do intensidade duradora, tampouco provar sua con-
tempo e as consequências que isso imporá às futu- sistência neuropsíquica, uma matéria-energia ain-
ras gerações. da muito pouco estudada pela ciência. Mas tam-
A tecnociência exitosa lida com a mecânica bém parecia impossível medir a energia do núcleo
do previsível e do controlável, e tudo parece se atômico até que se descobriu ou se inventou o seu
submeter ao império de uma razão instrumental uso energético, atendendo, em primeiro lugar, ao
inescrupulosa e amoral, muitas vezes até mesmo ímpeto bélico que caracteriza as sociedades fecha-
imoral, sem sentimento de culpa ou de responsa- das e que é ainda a tônica da normalidade humana
bilidade. Ela oferece ao ser humano o sonho de planetária; só secundariamente a energia atômica
um progresso material infinito, e perde de vista o será utilizada como fonte de energia elétrica. A guerra
âmbito de uma evolução qualitativa do espírito em ainda é praticada em nome da pilhagem e da mais
direção a formas de vida mais inteligentes e cria- bruta matança de inocentes, comandada por profis-
doras de uma inclusão de tudo em tudo: um amor sionais altamente qualificados para matar, sempre
incondicional pela vida vivida e vivente. em nome do seu próprio clã, em nome de seus pró-
Contudo, a passagem da sociedade fechada prios interesses ideológicos que, muitas vezes, al-
à sociedade aberta, da cidade à humanidade, não cança também o nível do fundamentalismo religio-
poderá acontecer por meio de um alargamento pro- so. E, em nome da máxima divindade, crimes são
gressivo e gradual, passo a passo. Bergson assina- cometidos contra o todo da humanidade.
la que não são da mesma essência. A sociedade E o pior: a religião também se fez um gran-

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aberta é a que compreenderia, por princípio, a de negócio e se mantém, na maioria dos casos,
humanidade inteira, e não partes separadas e iso- arrastando as massas fechadas para os primeiros
ladas. E não se chega à humanidade através de passos de sua individuação efabuladora. Quer di-
etapas, mas por um salto de natureza pelo qual se zer, cumpre ainda a função das religiões estáticas.
ultrapassaria o plano de imanência anterior. Esse Mas a ciência também fechou os olhos para a evo-
salto delineia, para a humanidade, uma tarefa muito lução espiritual humana, encantando-se em dema-
mais complexa do que aquela que se impunha e se sia com sua própria potência técnica calculadora e
impõe nas sociedades fechadas. Dada a complexi- controladora de tudo, o que tem ocorrido graças
dade da tarefa, é preciso equalizar condizentemen- aos investimentos de pesquisa ainda de uns con-
te os diversos planos estruturais que atravessam o tra os outros, ainda soberanos e colonos. E ainda
ser humano em sua constituição vital, para daí dos que em momento algum estão pensando na
caminhar na direção do salto de natureza, que con- humanidade, e sim inventando novas armadilhas
siste na “formação de deuses”. Um horizonte de de captura para aprisionar e submeter os conquis-
possibilidades muito distante dos reais mortais tados. É ainda um jogo de conquistas ao modo do
humanos encerrados em suas sociedades fecha- grande Júlio César, que ficou famoso por sua am-
das e religiões estáticas. bição de ser o homem mais rico do mundo por

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RELIGIÃO E CIÊNCIA: diferença e repetição ...

suas pilhagens deliberadas e sua inclemência com uma fechada e outra aberta. Uma mira o comércio e
os “tomados de assalto”. a produção de bens para o consumo imperativo,
A ciência, já como tecnociência, parece não sem ater-se aos efeitos catastróficos de seu modo de
ter problemas morais a resolver, dado que seus produção insustentável, tendo em vista o todo eco-
fundamentos são aqueles da objetividade indiscu- lógico e ético do planeta e das sociedades huma-
tível. Grande ilusão! Nem só de mecânica vive o nos. A outra visa à totalidade vital da condição
ser humano, pois vive também de mística, arte e humana por meio do incondicional amor aos acon-
filosofia. Ora, na mecânica da atualidade, a místi- tecimentos conectados. A globalização fechada é
ca foi apropriada em seus trejeitos imagéticos e mecânica, e a globalização aberta é mística. A pri-
hoje se confunde facilmente com a estetização que meira visa apenas ao tipo humano padrão e adapta-
caracteriza a cultura do consumo e do espetáculo. do ao imediatamente útil. A segunda se abre para a
Trata-se da modelagem do projeto humano para aventura criadora do espírito para além dos limites
uma sociedade do prazer, do luxo e da luxúria, da “aldeia global”.
inconsciente de suas possibilidades como ser so- Entretanto, não mais se trata da mística religi-
cial aberto ao mundo imprevisível e sempre novo osa, com sua configuração teológica imprescindível,
do espírito criador, irrequieto, sempre oscilante, porque agora parece haver outro salto de natureza na
tateante, mas sempre firme em seu fincar pé na suposta evolução espiritual da humanidade. Trata-
realidade supraintelectual. se de um salto que alia a espiritualidade à mecânica
Essa é, entretanto, uma linha de fuga que de maneira definitiva. Pois não se trata mais de ape-
tem de ser realizada singularmente e não alcançará nas dramaticamente se contrapor ao antigo, manten-
a humanidade em seu além-humano por meio de do-se a polarização das forças em ação. Pelo contrá-
decretos e representações efabuladoras, ou através rio, trata-se de reunir tudo em um mesmo âmbito
de certificações formativas, porque ela já foi vital, sem deixar nada de fora. Todo o conhecimento
alcançada pelo salto de natureza realizado pelos adquirido pelo labor humano precisa se aliar à sabe-
grandes místicos da história humana. Mas trata-se doria que considera sempre o amor à vida como mola
de um alcance parcial, porque ocorreu em indiví- propulsora de tudo o que vive.
duos isolados da espécie. Cabe a cada um ainda Talvez se esteja próximo de alcançar a místi-
decidir se lhe basta apenas sobreviver, ou se tam- ca de um conhecimento do conhecimento e do des-
bém encontra em si o desejo para saltar de um conhecimento, também da consciência da consci-
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estado de natureza indigente para um plano da ência e da inconsciência. Uma mística que projete a
vida aberto a suas próprias revoluções espirituais espécie humana para além de todos os limites
visando ao todo da humanidade que vai sendo construídos até aqui pelo conjunto da humanida-
formada e transformada no transcurso evolutivo de, como se cada indivíduo da espécie pudesse
da vida, de acordo com suas condições de origem. iniciar uma saga semelhante à das novas estrelas
Pensar hoje a relação da mecânica com a mís- gestadas nos berçários cósmicos, hoje divisados
tica parece ser uma tarefa vã e até mesmo arriscada, graças às próteses da visão que são os grandes teles-
porque prevalece o ímpeto invasivo da razão ins- cópios: cada indivíduo poderá visualizar para si
trumental em querer reduzir tudo a cifras e núme- uma gênese que se expande indefinidamente para
ros manipuláveis, passando por cima da dimensão sempre mais vida em revoluções cíclicas. Deus, fi-
qualitativa do espírito humano sem nenhuma pie- nalmente, teria alcançado o coração da humanida-
dade, como uma escavadeira voraz, tudo destruin- de e estaria presente em toda parte, inclusive virtu-
do à sua volta. Entretanto, olhando de maneira mais almente. Seria, então, uma mística da popularização
atenta para o que se configura no mundo globalizado divina, uma mística também democrática.
como tendência, vê-se logo também uma via de mão Nessa direção, novos clamores eclodem do
dupla. Assim, há duas globalizações em vigência: coração altivo, e uma nova luta se prefigura. O que

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Dante Augusto Galeffi

antes se reunia em nome do Senhor e para o Se- tecimento da evolução espiritual. Já no seu tempo ele
nhor torna-se a força que combate a corrupção ge- anteviu o poder da ciência de alcançar a simulação e
neralizada para garantir justiça no plano social, a reprodução operativa de todos os mecanismos
igualdade no plano político e fraternidade no pla- autopoéticos da matéria e da energia, do sistema atô-
no afetivo. O Senhor, agora, é cada um em sua mico como dos sistemas molecular e celular. Ele quase
concretude. O Senhor é cada um em sua singula- chegou perto de ver acontecer uma mística além da
ridade social. O Senhor se fez carne e sangue e religião, pelo ultrapassamento da dicotomia entre razão
habita entre nós. e fé e pelo acontecimento definitivo do homem-téc-
É verdade que estamos ainda muito longe nica, homem-máquina. Cada visionário surpreende
de algo assim tão elevado e deliberado. Tudo está com sua antevisão de acontecimentos futuros. Mas
por ser feito para a saída da humanidade do esta- os próprios contemporâneos do visionário o toma-
do de indigência espiritual em que se encontra. ram sempre como um “delirante”, para dizer o prin-
Sim, porque a indigência material é a consequência cipal do que acham dele.
do uso impróprio da inteligência vital. Por isso, a Com qual escuta os contemporâneos de
intuição mística me assinala que estamos presen- Bergson receberam sua concepção mística tão apai-
ciando a passagem para um novo mundo, no qual xonada para um filósofo e um homem de ciência?
o ser humano finalmente alcança seu lugar de O seu exemplo me faz aprender ou apreender a
mediador inteligente e sensível no conjunto da vida solidão dos que seguem adiante do seu tempo.
que agora se expande para além da Terra. Sendo o Quero ainda escutá-lo, certo de alcançar sempre
ser humano apenas mais uma espécie inteligente mais longe no tempo os passos dos criadores que
no conjunto infinito de espécies que povoam o se deixam enamorar pelo mais radical sentimento
universo e os multi universos que já habitam o de amor pelo todo da vida vivente e por viver.
imaginário cosmológico
Mesmo assim, a ninguém será poupada a Que um gênio místico surja; arrastará atrás de si
uma humanidade com o corpo já imensamente
tragédia que é a existência fática. Uma condição aumentado, com a alma transfigurada por ele.
trágica que agora pode ser vivida na perspectiva Quererá fazer dela uma espécie nova, ou antes
livrá-la da necessidade de ser uma espécie: quem
da compaixão e do compartilhamento afetivo radi-
diz espécie diz estacionamento coletivo, e a exis-
cal, o que torna o fardo ontológico de cada um a tência completa é mobilidade na individualida-
condição mesma do nascimento de Deus no cora- de. O grande sopro de vida que passou sobre o

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nosso planeta levara a organização tão longe como
ção. Sim, também os deuses morrem, mas voltam a permitia uma natureza ao mesmo tempo dócil
sempre a nascer de suas próprias cinzas. e rebelde. Sabe-se que designamos assim o con-
junto das complacências e das resistências que a
A nova mística tem a democracia como solo
vida encontra na matéria bruta [...]. Um corpo
para o lançamento de seus arranjos sociais funda- que comportava a inteligência fabricadora,
dos na justiça como fundamento vital para a rodeada por uma franja de intuição, era o que a
natureza pudera fazer de mais completo. Tal era
erradicação de toda pobreza e de toda desigualda- o corpo humano. A evolução da vida detinha-se
de social. Ora, mas quem estará em grau de reali- aí. Mas eis que a inteligência, elevando o fabrico
dos seus instrumentos a um grau de complica-
zar esse grande feito criador? A política fundada
ção e de perfeição que a natureza (tão inapta para
no Estado e na nação, sendo deliberadamente fe- a construção mecânica) não previra sequer, der-
chada, não tem meios inteligentes para realizar ta- ramando nessas máquinas reservas de energia
em que a natureza (tão ignorante da economia)
manho salto de natureza. não pensara sequer, nos dotou de forças por com-
Chamando ainda Bergson para falar dessa paração com as quais a do nosso corpo mal chega
a contar: serão ilimitadas quando a ciência sou-
possibilidade revolucionária e heterotópica de uma
ber libertar a força condensada da mais pequena
mudança radical no comportamento das sociedades parcela de matéria ponderável (Bergson, 2005,
presentes, é surpreendente vê-lo assumir uma radi- p. 258).
cal recusa de toda explicação mecânica para o acon-

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RELIGIÃO E CIÊNCIA: diferença e repetição ...

A dificuldade, pois, não está na mecânica, REFERÊNCIAS


porque o ser humano hoje se estende até onde
alcançam os aparelhos de ampliação dos sentidos BERGSON, Henri. Essai sur les données immédiates de la
conscience. Genève: Éditions Albert Skira, [1888] 1945a.
corporais já incorporados e naturalizados. O ho- _______. Ensaio sobre os dados imediatos da consciên-
mem-máquina não é mais nenhuma ficção e o cia. Trad. João da Silva Gama. Lisboa: Edições 70, 1988.
ciborgue já se oferece como protótipo de futuros _______. Matière et mémoire: essai sur la relation du corps
a l’ esprit. Genève: Éditions Albert Skira, [1896] 1945b.
negócios da China. O maior problema é a mística, _______. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do
porque ela está fora da medida e da métrica calcu- corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves da Silva. São Pau-
lo: Martins Fontes, 1990.
ladora e previsível.
_______. L’evolution créatrice. Genève: Éditions Albert
Tenho de encerrar o que seria apenas uma Skira, [1911] 1945c.
introdução ao tema da religião e da ciência na _______. A evolução criadora. Trad. Bento Prado Neto.
São Paulo: Martins Fontes, 2005.
contemporaneidade. Por ora, contento-me em fi-
_______. Les deuux sources de la morale et de la religion.
nalizar com as seguintes questões, o que também Genève: Éditions Albert Skira, [1932] 1945d.
joga com a relação entre mecânica e mística e a _______. As duas fontes da moral e da religião. Trad. Miguel
diferença entre religião estática e dinâmica, ciência Serras Pereira. Coimbra: Almedina, 2005.
e mística. Os que têm o ímpeto de tocar o papa o _______. La pensée et le mouvant. Genève: Éditions Albert
Skira, [1918] 1945e.
fazem por ser todo papa santo, ou querem, antes, GALEFFI, Romano. Presença de Bergson. Salvador: Uni-
tocá-lo porque é santo homem? Quem haverá de versidade da Bahia, 1961.
_______. La filosofia di Bergson. Roma: Stabilimento
nos salvar de nossa indigência metafísica como Tipografico nell’Instituto Statale dei Sordomuti, 1949.
seres ligados indelevelmente às teias da vida? Deus,
por que nos abandonaste?

Recebido para publicação em 02 de julho de 2013


Aceito em 30 de agosto de 2013
CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 69, p. 449-467, Set./Dez. 2013

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Dante Augusto Galeffi

RELIGION AND SCIENCE: DIFFERENCE AND RELIGION ET SCIENCE: DIFFÉRENCE ET


REPETITION – an investigation starting from the RÉPÉTITION - une investigation à partir de la
moral and religious conception of Henri Bergson conception morale et religieuse de Henri Bergson

Dante Augusto Galeffi Dante Augusto Galeffi

The focus of this article is the investigation L’objectif de l’article est d’étudier la relation
of the relation between religion and science, taking qui existe entre la religion et les sciences, en partant
as the horizon of departure the moral and religious de la conception morale et religieuse du philosophe
conceptions of the philosopher Henri Bergson. The Henri Bergson. Le champ historique de cette
historical field of the investigation will initially be recherche est tout d’abord délimité par les
located via the traces of Bergson’s life and works, caractéristiques de la vie de cet auteur et ses œuvres
considering this localization as important for majeures étant donné que cette délimitation est
delimiting the historical limits of all conceptions considérée importante pour permettre de saisir les
regarding world and value. Following this, the limites historiques de toute conception de monde
general plan of moral and religious conceptions in et de valeur. Nous présentons ensuite le plan
Bergson will be presented, from which we will général de la conception morale et religieuse chez
seek to comprehend and describe the creative pla- Bergson et c’est à partir de cette conception de fond
ne of his religious conception in the historical que l’on essaie de comprendre et de décrire le plan
evolution of the human species. Taking the vast créateur de sa conception de religion dans
Bergsonian corpus as the starting point for a l’évolution historique de l’espèce humaine.
comprehension of morality, religion, and science L’immense œuvre bergsonienne servant d’arrière
today, we will highlight the relation between static plan pour comprendre la morale, la religion et les
and dynamic, and the closed and open forms of sciences d’aujourd’hui, on met en évidence la
the human being. One interpolates the Mechanical relation entre les formes statiques et les formes
and Mystical into the knowledge and information dynamiques, ouvertes et fermées de ces réalisations
society, into its differences and repetitions, into de l’espèce humaine. On interpelle la Mécanique
its new, surprising, and contradictory expressions, et la Mystique dans le monde de la connaissance
be they mechanical, or mystical. The mechanics et de l’information dans ses différences et ses
of the global knowledge and information society, répétitions, dans ses expressions sociales
also entail new mysticisms, and new forms of mécaniques et mystiques nouvelles, surprenantes
collective commotion and social engagement. et contradictoires puisqu’en effet la mécanique de
la société des connaissances et de l’information
mondiale aspire aussi à de nouvelles mystiques et
à de nouvelles formes de commotion collective et
d’engagement social.

KEY-WORDS: Religion and Science. Moral philosophy, MOTS-CLÉS: Religion et Science. Philosophie Morale.
Henri Bergson. Mechanics and Mysticism. Religion Henri Bergson. Mécanique et Mystique. Religion
and the Mystical. et Mystique.

CADERNO CRH, Salvador, v. 26, n. 69, p. 449-467, Set./Dez. 2013

Dante Augusto Galeffi - Doutor em Educação. Professor da da Faculdade de Educação da Universidade


Federal da Bahia. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia da Educação, atuando
principalmente nos seguintes temas: ensino de filosofia, filosofia da educação, epistemologia do educar,
fenomenologia, hermenêutica, linguagem, educação transdisciplinar, estética e ética. Professor permanente
do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) e do Doutorado Multi-
institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento (DMMDC), ambos da UFBA. Líder do Grupo
de Pesquisa Epistemologia do Educar e Práxis Pedagógica. Atualmente desenvolve pesquisas de epistemologia
da complexidade, transdisciplinaridade, epistemologia do educar transdisciplinar, ética, estética, antropologia
cultural do ponto de vista pedagógico instrumental-apropriativo. Publicações recentes: Anticoncepção de
ensino de filosofia: o refazer-aprender a filosofar. Global Education Magazine, v. 2, p. 1-12, 2013; Utilizando
o Moodle para avaliar o desenvolvimento da habilidade de visualização espacial em alunos que participaram
de curso sobre BIM. POIÉSIS - Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação (Unisul), v. 5, p. 67-87,
2012; Apresentação poiésis dossiê ambientes virtuais: educação e difusão do conhecimento na sociedade
contemporânea. POIÉSIS - Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação (Unisul), v. 5, p. 4-7, 2012.

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