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Eduardo Bastos
2“L’êtreinsuffisant, ne cherche pas à s’associer à un autre pour former une substance d’integrité. La
conscience de l’insuffisance vient de sa propre mise en question, laquelle a besoin de l’autre ou d’un
autre pour être effectuée. Seul, l’être se ferme, s’endort et se tranquilize” (BLANCHOT, 2009, p. 15-
16).
(ROCHA, 1994, p. 05). E, se considerarmos os lugares onde o sistema educacional
e o acesso a culturas artísticas recebem menos investimentos, como as cidades do
interior do Brasil e as periferias, principalmente as do Norte e as do Nordeste, a
situação é ainda mais perturbadora.
A religiosidade proveniente de muitas seitas e igrejas protestantes, igrejas
neopentecostais, igrejas de pastores midiáticos, tem provido à cena cotidiana de
nossas cidades pequenas e médias, geralmente interioranas e de economia
ruralista, bem como a bairros pobres e subúrbios, um panorama hostilizante. Desse
modo, a coerção do indivíduo à submissão ao regime proselitista deve-se, em
grande parte, à condição de risco social. Ele vê no ambiente religioso o espaço de
consolação para o vazio de suas buscas diante de uma sociedade que não lhe abre
oportunidades. O resultado disso é uma banalização quase completa do mundo
referencial e de suas possibilidades individuais em detrimento de alguma chance de
reconhecimento a partir de sua postura social, principalmente enquanto convertido
religioso nos métiers de sua igreja. Quando esse indivíduo ingressa na universidade,
ele apenas estende o seu regime cultural igrejista, recusando de muitas formas a
experiência artística em sala de aula. Também vai existir a recusa no contato com
outros conhecimentos de cunho filosófico, antropológico e sociológico, pois tais
conhecimentos tornam-se, para esses grupos de obreiros, meras afirmações
contraditórias às proposições bíblicas. O devir artístico e a sua epistemologia
transformam-se em uma insidiosa agressão para o estudante cristão.
Prematuramente, os prosélitos não dialogam, apenas utilizam a literatura
bíblica como instrumento de enfrentamento. Hoje, na universidade, não é raro
presenciarmos estudantes evangélicos recusando-se a participar de trabalhos,
intrínsecos à arte contemporânea, que incorporem simbologias de outras crenças ou
atividades de contatos com o corpo, tais como: exercícios teatrais, desenho de
observação diante do modelo vivo nu, trabalhos com textos poéticos considerados
mais incitantes à liberdade humana, dentre muitas outras atividades acadêmicas. É
recorrente observar os prosélitos agitando a opinião pública de seus diversos
contextos contra as iniciativas e projetos acadêmicos que carregam pontos críticos
sobre questões que envolvem a sexualidade humana, a pesquisa científica, o papel
da mulher na sociedade contemporânea, o aborto, o pluralismo religioso e também
as obras artísticas. Nesse cenário, os católicos parecem ser mais tranquilos, as
evidências históricas de seus ícones, dados os aspectos do seminu escultural
enquanto relevo frequente nas peças que ornam suas igrejas, parece tê-los
abrandado relativamente a esta apreciação estética.
O proselitismo religioso é um movimento no qual a Sociologia e a
Antropologia têm apoiado seus cotovelos para estudar, dedicando particular
interesse em nosso tempo, uma vez que o fenômeno alastrou-se pelo país nas
últimas duas décadas. Não é o objetivo compor uma vasta discussão sobre o fluxo
de tal fenômeno em nossa sociedade. Aqui se pondera apenas a problemática
enquanto algo que promove uma camada a ser violenta, que, em nome de
microguerras santas, movimenta-se para descaracterizar a laicidade e a democracia
dos espaços de conhecimento em arte, principalmente o universitário. A realidade
agressiva e antiética é colocada como fator comportamental e discursivo de
elementos radicais, inserida numa hermenêutica bíblica difusa e confusa, anulando,
assim, a compreensão e a possibilidade do aprendizado de arte.
Trata-se de um problema dramático vivido no Brasil, nas novas Universidades
situadas em territórios remotos do país. Esta problemática revela-se renitente,
principalmente quando projetada sobre o campo de aprendizado das Artes Cênicas
enquanto manifestação da obra livre, tendo como platô principal o trabalho com o
corpo e, às vezes, representações iconoclastas. A desconstrução pela arte do teor
imagético de elementos religiosos incita, nesse sentido, a necessária postura
questionadora. Através da obra artística, podemos desconstruir aspectos tiranos da
religiosidade, porém, sendo radicalmente diferente de um pastor chutando a imagem
de uma santa na televisão ou queimando uma bíblia em contexto diverso.
A produção artística, enquanto devir, é capaz de ampliar a função
psicossocial, plenificando nossos sentidos, reelaborando o paradoxismo
contemporâneo do imaginário antigo e suas reproduções na atualidade. Ela pode
ferir uma hegemonia constituída e alheia a outro grupo que não o da sua
representação – na verdade, a arte não pode responder pela instituição hegemônica
de qualquer simbologia, religiosa ou não, simplesmente porque esta simbologia
pertence a uma esfera dominante. A arte, enquanto fenômeno e função social,
possui a vocação de desconstruir, recriar, deslocar as funções de um real
constituído, transformando ou alterando para outras formas de realidade.
A esteira pedagógica das Artes Cênicas, cujo trabalho corporal é uma das
principais metodologias, abraça organicamente as matérias do imaginário: a filosofia
do imaginário, a pedagogia do imaginário, as poéticas do imaginário; construindo
uma esfera possível para conduzir ritos de passagem de um real enfadonho,
sistêmico e positivista à compreensão cada vez mais poética e subjetiva de nossos
interiores e cercanias. E, neste caso, a compreensão subjetiva do ideário fantástico.
Um fantástico, aqui analisado, que tem a representação de uma vontade humana de
unir o seu corpo ao corpo místico de Cristo. Nesse processo, o conjunto de
aspirações fantásticas ocorre justamente no campo estético que nos coloca, desde o
século XIX, na fronteira precisa entre o real e o irreal, o normal e o paranormal, o
natural e o sobrenatural (SAUDANE, 2012, p. 07). Para esse quadro, a religião é a
sala de visitas.
A mitologia cristã nos trouxe, portanto, a excitação do ente divino que
pertence aos dois mundos e caracteriza a projeção do fantástico, uma vez que ele
pertence à terra e ao céu. O traçado histórico e teológico apresentou à humanidade
algo nada fácil para digerir: um Deus feito em carne e osso, cujo legado reúne, hoje,
bilhões de pessoas, mas é invisível. Ele não existe de outra maneira senão a partir
de fontes absolutas de escritos sobre sua provável existência ou de vestígios
sensoriais, como o sentir a presença de Jesus, conforme dizem alguns. Um dos
desafios é saber lidar, na atualidade, com esse fenômeno que arrasta multidões e
promove modelos comportamentais e valores impositivos tão conflituantes no
espaço do ensino de Arte.
O confronto, no espaço do aprender artístico entre posicionamentos religiosos
versus as proposições da arte, tem, em alguns conhecimentos4 e na pedagogia do
imaginário, a possibilidade de tornar esse tema movediço. Essa movência pode
indicar fragmentos de percepção ao indivíduo sobre o lugar ocupado pelo processo
de subjetivação singular (GUATTARI, 1986). Mas a subjetivação singular não é um
princípio egóico de concentração num “eu”, “essa construção satanizada e satirizada
amplamente na história humana” (GALEFFI, 2009, p. 12). Essa aproximação
singular de si traz a relevância de oportunizar, ao ser, tornar-se o que ele é, não no
sentido de cada um ser algo pronto para ser desenvolvido, mas que “cada um tem a
potência de destinar-se como humano, tendo como medida o extraordinário”
(GALEFFI, 2009, p. 132).
4 Entre a condição da história das imagens hegemônicas, o imaginário e suas conexões com a
dimensão poética da existência, as estruturas antropológicas do imaginário (DURAND, 2002), as
estratégias para escapar do neopositivismo unidimensional e do estruturalismo formal, o imaginário
das palavras, a fenomenologia bachelardiana, as qualidades da imaginação no espaço da arte e do
devaneio, a obra de arte como manifestação original da função psicossocial e sentido pleno, aspectos
da psicologia analítica (JUNG, 2011), o paradoxismo contemporâneo do imaginário arcaico e suas
reproduções na atualidade. Essas composições epistemológicas fazem parte da disciplina Poéticas
do Imaginário, ofertada em caráter optativo no Centro Multidisciplinar de Santa Maria da Vitória, da
Universidade Federal do Oeste da Bahia, que atende aos cursos de Artes Visuais e Publicidade.
Além disso, nesta disciplina são pretendidos estados performáticos, trazendo
elementos, a princípio, de uma intimidade material (BACHELARD, 2015) para o fluxo
de uma imaginação performática, poética e criativa. A proposição repercute
rebaixando fronteiras de intolerância e de fúria religiosa, dando lugar, assim, à
recepção de modos de alteridade, movimentando o corpo em função de um
processo poético de subjetivação singular, dirimindo reflexos anômalos no espaço
do aprender cênico. É, portanto, uma estratégia para recusa dos “modos de
encodificação preestabelecidos, modos de manipulação e telecomando”
(GUATTARI, 1986, p. 17), tão próprios de movimentos segregários e capitalísticos.
Desta forma, o estudante parte em busca de si, de seu espaço sonhador e
devaneante, e com estes aspectos ele exercitará a sua criatividade e observação,
mirando sempre o estado poético. De modo impulsivo, a imagem invade o âmago do
indivíduo a imaginar, ela o absorve e o apresenta a si mesmo. Os aspectos
peculiares imaginados são ranhuras que estabelecem no sonhador mediações vivas,
ativas e concretizantes. São imagens realizadoras de ações e materialidades. Seu
ser é a um tempo o ser da imagem e o ser da adesão à imagem que provoca
admiração. A imagem nos fornece “uma ilustração da nossa admiração”
(BACHELARD, 1996, p. 147).
A estabilidade diante do embate em sala de aula, a partir de qualquer questão
religiosa, não é sonhadora e está sempre por um fio. A qualquer momento a
perspectiva de discussão contrária sobre o tema pode se tornar desastrosa. Na sala
de aula, cabe um processo desestabilizador, mas pertence ao professor, ou aos
mediadores, a atenção na condução de todo e qualquer propósito, principalmente a
respeito dos trabalhos que incitam os modos de sensibilidade do aprendiz. É sempre
saudável trazer para a sala de aula o aspecto econômico de uma não agressão, “a
sensação que fere não nos ensina nada” (BACHELARD, 2015, p. 17). E também ao
professor, no aprendizado artístico, cabe a sobriedade discursiva na qualidade do
que expõe e questiona no âmbito da religiosidade; do contrário, as devolutivas
inflamadas por parte dos indivíduos serão, no geral, passionais e recheadas de
citações bíblicas. Neste evento estará montado um dos quadros mais enfadonhos de
discussão para uma sala de aula, embora sempre existam aqueles favoráveis a uma
boa intriga sem qualquer deferência pelo outro.
Um dos elementos observados é que a poética do imaginário talvez seja
capaz de oferecer o rebaixamento às resistências ferozes trazidas pelo proselitismo,
afinal o contexto bíblico também está ornado em tal dimensão. O jogo entre a
poética e a estética desarma o caos incutindo um outro caos, porém a nova
condição caótica surge como uma bramura, uma curiosidade quase que travessa em
busca de contemplar algo inscrito em nosso imaginário, em nossas lembranças
atávicas, em desejos subterrâneos dispostos a aflorar.
Não é gratuito que, no primeiro encontro da disciplina Poéticas do Imaginário,5
as emoções se coloquem à flor da pele. O estado de penumbra, colocado em sala a
partir da dinâmica sobre os escritos de Gaston Bachelard, “A chama de uma vela”
(1989), eleva nosso campo sensorial. Ao centro da sala, disposta, sem outras luzes,
uma vela está acesa. Por um tempo considerável, todos são colocados no
enfrentamento da cena única que realiza seu jogo de sombras, resplandece a
minúscula centelha feito chama, numa quietude diferenciada da agitação cotidiana
habitual do campus. A sala surpreende, pois está sem cadeiras, sem luzes brancas
esquizoides, sem usos de equipamentos, apenas um elemento cintila um pequeno
fogo cálido. Todos estão sentados ou despojados no chão, com os olhares fixos ao
centro. Em pausas, alguns trechos do livro são lidos ou citados pelo professor. Logo
aparecem os primeiros soluços. O que acontece?
REFERÊNCIAS
CALVINO, Ítalo. O Cavaleiro Inexistente. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
PELBART, Peter Pál. Vida Capital: Ensaios de biopolítica. São Paulo. Ed.
Iluminuras, 2003.