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De que serve construir arranha- céus se não há mais almas humanas

para morar neles? (…) E quando o amor ao dinheiro, ao sucesso nos


estiver deixando cegos, saibamos fazer pausas para olhar os lírios
do campo e as aves do céu. (Trecho da carta de Olívia para Eugênio)

A literatura imita a vida. Essa é uma história de amor e desamor, de conflitos


interiores e familiares, que muitos irão se identificar.

Quando o interesse, o medo, a baixa auto- estima, a ganância, a covardia tomam


decisões ao invés do coração, da alma, da intuição e do amor– o fracasso é certeiro.
Isso é o que aconteceu com Eugênio, o protagonista dessa história– o “Genoca”, na
infância.

“Olhai os lírios do campo” é um clássico da literatura brasileira modernista com


um título poético, que recorda um trecho da Bíblia (Mateus 6,24-34), que é um
resumo perfeito para a história de um materialista que estragou o presente por
medo do futuro:

Olhai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam! Pois Eu vos
digo: Nem Salomão, em toda a sua magnificência, se vestiu como qualquer deles.
Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã será lançada
ao fogo, como não fará muito mais por vós, homens de pouca fé? Não vos
preocupeis, dizendo: ‘Que comeremos, que beberemos, ou que vestiremos?

Érico Veríssimo (Cruz Alta, 17/12/1905 – Porto Alegre, 28/11/1975) publicou


“Olhai os lírios do campo”, seu quinto romance, em 1938. O primeiro, “Clarissa”
(1933), eu quero reler em breve. “O tempo e o vento” (em três partes, escritos entre
1949 e 1962), “O resto é silêncio” (1943) e também “Incidente em Antares” (1971),
foram obras que viraram minisséries na tv (algumas para o cinema também), talvez
as mais conhecidas. No Brasil, os autores ficam “populares” quando suas obras vão
para a televisão, literatura não é popular, o brasileiro está muito distante de ser um
povo leitor.

Vamos à história:

Eugênio menino no internato. Eu gênio rapaz na universidade. Eugênio adulto no


táxi. Três narrativas intercaladas no tempo vão tecendo a história e revelando, aos
poucos, o porquê do protagonista estar num táxi ao encontro de Olívia, que está
morrendo no hospital.

O doutor Eugênio escolheu uma mulher que lhe convinha de acordo com seus
medos e interesses, ele precisava de segurança. As suas más escolhas são
justificadas pela infância pobre e o seu rancor em relação ao pai, que ele não
conseguia admirar nem amar, sentia- se envergonhado, apesar de todos os esforços
do homem, alfaiate, por dar- lhe a melhor educação em um internato privado, um
colégio inglês cristão só para rapazes, o Columbia College.

A recordação da humilhação na infância é o motor da vida de Eugênio, é para fugir


desse sentimento que estão baseadas todas as ações na sua vida adulta. Eugênio
quer ser respeitado socialmente, custe o que custar. Cego.

Eunice, rica, foi a aposta segura. Eugênio formou- se em Medicina, mas não queria
ser médico de subúrbio. Gostava de luxo, de fama e queria fugir da pobreza, o
legado da sua família simples e honesta. Fingia amar Eunice, mas pensava em
Olívia. O tempo todo estava ciente do erro, vivia angustiado e infeliz.

O personagem tem uma visão deformada da vida. Posso citar o caso brasileiro sem
pestanejar. O valor está no ter. As pessoas envergonham- se de serem simples, há
uma necessidade de ostentar, ainda que não tenham nada. Esse livro é espelho.
Esta pode ser uma das funções úteis da literatura.

Apesar que essa é uma tendência já ficando ultrapassada, a da “segurança”.


Universidade, concurso público, propriedades, casamento… A nova geração, a
turma dos 20, já demonstra uma mudança de comportamento aqui e aí. Os jovens
querem comprar experiências e não uma prestação de apartamento por 30 anos.
Alugam, não compram; viajam, não criam limo; juntam- se, não casam. São mais
honestos e espontâneos. A opinião alheia já não influi. São mais livres, sem
hipocrisia. Estão apostando muito mais pelo amor.

Ufa! Evolução do ser. Movimento, conhecimento de outros mundos, do outro e de


si mesmo. O material não é a prioridade. Que vingue essa tendência. Que desfaçam
[um pouco] os estragos do capitalismo, da moral falida (e hipócrita) das sociedades
controladoras, dos casamentos de conveniência e das religiões duvidosas, que
promovem mais guerras do que a paz (a história passada e presente como
respaldo).

Eu cheguei a sentir raiva de Eugênio. É o tipo de pessoa, digo, personagem, que me


provoca repulsa. Um covarde materialista, agarrado, pequeno, que não sabe ver a
beleza da vida, nem das pessoas (quantos Eugênios!).

O seu pai é o máximo e ele sente vergonha do velho. A palavra mais repetida desse
livro é “humilhação”. Eugênio não acredita em Deus, mas entrega- se ao todo
poderoso. Ele quis ser médico para salvar o pai que sofria de tosses intermináveis,
asmático, e porque admirava o Dr. Seixas, que atendia os pobres sem nada cobrar.
Mas ele, formado, não conseguia fazer o mesmo, odiava atender gente miserável.
Eugênio, um ser desprezível, estava com dois amigos “ilustres”, cursava o 2º ano
de Medicina e aconteceu isto, veja:
Eugênio viu um vulto familiar surgir a uma esquina e sentiu um desfalecimento.
Reconheceria aquela figura de longe, no meio de mil… Um homem magro e
encurvado, mal vestido, com um pacote no braço, o pai, o pobre Ângelo. Lá vinha
ele subindo a rua. Eugênio sentiu no corpo um formigamento quente de mal-
estar. Desejou– com que ardor, com que desespero!– que o velho atravessasse a
rua, mudasse de rumo. Seria embaraçosos, constrangedor se Ângelo o visse,
parasse e lhe dirigisse a palavra. (p. 68)

É ou não é desprezível?!

Eugênio considerava- se superior. Mas ele tinha consciência dos seus sentimentos,
sentia remorço. Uma luta interior que não durava muito, é verdade. Logo
comparava as realidades da sua vida e dos amigos ricos, dos livros e da linguagem
do seu pai, e o desprezo voltava. “Odiava a pobreza. Odiava a humildade.” (p. 73)
O pai era bom demais. Sentia pena e raiva ao mesmo tempo.

Olívia era a única mulher da turma de Medicina de Eugênio. Ela também era pobre,
formou- se com sacrifício, trabalhando e estudando ao mesmo tempo. Começaram
um idílio no dia da formatura. Um amor puro. Mas, cada um foi para o seu lado.

O arrependimento veio tarde demais. Olívia está morrendo. Eugênio no


táxi indo despedir- se de Olívia é o ponto central da obra na primeira parte (o livro
é dividido em duas partes). Uma viagem amarga. Uma analogia da dor, do peso do
erro. A sensação de inferioridade destruiu a vida de Eugênio.

O trecho célebre dessa obra, a parte que ficou mais conhecida , talvez o motivo da
popularidade, é a carta que a falecida Olívia deixou para Eugênio. Não é spoiler,
porque é bem fácil de adivinhar” desde o princípio que Olívia vai morrer, o autor
deixou bastante evidente. Só um trechinho pra vocês identificarem, coloquei
também na abertura da resenha (p.198):

(…) Estive pensando muito na fúria cega com que os homens atiram- se à caça ao
dinheiro”

Olívia e Eugênio começaram um relacionamento, mas não colocaram rótulo,


curtiam ficar juntos, sentiam- se bem. Ela decidiu ir para outra cidade trabalhar e
Eugênio ficou centrado no seu projeto de vida: enriquecer e ser respeitado.
Enriqueceu casando com a filha de um industrial, mas continuou sentindo- se
inferior. Pensava o tempo todo em Olívia. Tinha também uma amante, mas o vazio
não acabava, Olívia é que ocupava o seu coração. Essa, por sua vez, foi embora
grávida, mas não disse nada, pensava que Eugênio era feliz. Esse é o tipo de amor
maior que existe, aquele que renuncia pela felicidade do outro.
Duas semanas depois da morte de Olívia, Eugênio contou a verdade, contou sobre
a filha Anamaria de 3 anos e do amor que tinha pela sua mãe. Foi embora da casa
de Eunice.

Depois da morte de Olívia o romance decai junto com a nossa esperança e o ânimo
de começar a leitura. Poderia ter sido o fim, não importou muito o que veio depois.
Mas há mais 200 páginas. Calma nessa hora para não desistir. À essas alturas a
gente já deseja mesmo que Eugênio se dane. Precisou Olívia morrer para começar
uma vida nova, a que deveria ter sido sempre, a redenção. “Antes eu estava cego.”
(Eugênio).

A edição lida foi essa abaixo, portuguesa, com posfácio do próprio Érico. Ele disse
que este livro modificou a sua vida por causa do enorme sucesso. Foi depois de
“Olhai os lírios do campo” que pensou em levar a literatura como profissão.
Confessou que não gosta da obra, a considerava sentimental demais, o que lhe
provocou até constrangimento devido ao seu sucesso. Ele também comenta sobre
a Revolução de 30, “pano de fundo” desse romance.

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