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Relações Entre a Música e a Psicanálise: uma exploração das ideias de


subjetividade e de significante na experiência musical.

Vinícius Manhães1

INTRODUÇÃO

Neste ensaio busco explorar a relação dos significantes em música, mais


especificamente no âmbito da escuta, e através da lente da psicanálise. O interesse
por essa perspectiva surgiu a partir de uma busca por compreender as mais
subjetivas motivações que nos fazem buscar nos relacionarmos com esta forma de
arte, e de que forma seus diferentes elementos adquirem valor ou importância em
nosso cotidiano. Me utilizando de quatro artigos, os quais exploram diferentes
elementos que se relacionam com as grandes áreas da música e da psicanálise,
busco interpretar quais são os aspectos que se relacionam em cada um dos
trabalhos, a fim de iniciar esta busca. Primeiramente exponho um breve resumo dos
pontos que considero relevantes para o tema em cada artigo, numa sequência
voltada para a estruturação do entendimento dessas relações. E posteriormente,
faço uma livre associação entre as ideias expostas que se relacionam.

Música e Psicanálise (Pedro Sobrino Laureano, 2019)

Como referência inicial, Laureano (2019) opta por traçar o paralelo que
considerei o mais abrangente entre os trabalhos lidos para este ensaio. O autor
busca, “através do tema comum da linguagem e de seus limites” (LAUREANO,
2019, p. 183) encontrar primeiramente as relações entre arte e psicanálise, para
posteriormente destacar a relação com a música.
A lente que se destaca aqui é a de afastamento do sentido concreto e objetivo
dos significantes em busca da observação de sua forma. Ou seja, o conteúdo
descritivo dos objetos citados no trabalho é dispensado, e é dado foco nos
elementos subjetivos que dão entorno a este conteúdo.
O primeiro paralelo que o autor destaca é a partir do reconhecimento de
Sigmund Freud, em seu trabalho Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen (2006
[1906] apud LAUREANO, 2019) de que existe similaridade entre a arte e a
psicanálise sobre seu papel em descrever, ou interpretar, o sujeito na cultura e na
sociedade no decorrer da história. Freud ainda menciona como os artistas foram
precursores na percepção do sujeito e sua inserção na cultura, e sua relação com
seus valores e comportamentos. O autor argumenta que:

“[...] Freud se utiliza fartamente, em suas obras, de seu repertório cultural,


constituído principalmente por sua formação literária e seus conhecimentos
1
Licenciatura em Música, Universidade do Estado de Santa Catarina, 2020.
2

em artes plásticas. Basta lembrarmos que um dos conceitos fundamentais


da clínica psicanalítica, o de complexo de Édipo ancora-se no teatro trágico
Grego, e situa a psicanálise em uma espécie de meio caminho entre ciência
e cultura” (LAUREANO, 2019. p. 184)

Ainda relativo aos valores culturais da Grécia clássica, Laureano (2019)


argumenta que a tragédia grega trata do dilaceramento do sujeito perante o conflito
de seus valores “na medida em que o próprio ato artístico poderia ser capaz de
reconhecer a divisão como parte constituinte do sujeito” (LAUREANO, 2019, p. 184).
Sendo assim, arte e psicanálise se assemelham na busca por cura, mediação e
desconstrução das neuroses causadas por este dilaceramento.
Também sobre este paralelo entre arte e psicanálise, o autor se utiliza de
Lacan (1998 apud LAUREANO, 2019) para argumentar que o discurso, a linguagem,
são a matéria prima da psicanálise no âmbito da clínica, o que expressa “afinidade
quase imediata” entre psicanálise e, neste caso, literatura. É importante
compreender neste ponto que, ao falarmos de discurso, temos abertura para atrelar
este termo a significantes diversos, e não somente os citados por Lacan ao
mencionar uma única forma de arte.
Especificamente sobre o paralelo entre música e psicanálise, tendo a
linguagem como tema, o ator afirma:

“Sabemos como a ideia de Lacan (1998), quando retorna a Freud, é pensar


o inconsciente [...] como uma linguagem fora do sentido, isto é, a linguagem
significante. O que nos interessa reter, por ora, da questão do significante é
justamente seu caráter de imagem acústica [...]” (LAUREANO, 2019, p.
187).

Neste trecho o autor busca esclarecer que o objeto da música (o gesto


musical, o som, o fenômeno acústico) se comporta como um significante vazio de
significado. Ou seja, um símbolo imaterial que, pela ausência de um significado
imutável, podemos atribuir diversos significados nossos, que partem de nossa
subjetividade, ou inconsciente.

Transferência: o que é, e o que oferece à música? (Edson Zampronha, 2013)

Ao trazer o conceito de transferência, Zampronha (2013) traz um exemplo de


uma experiência pessoal, para esclarecer o significado do termo dentro da
psicanálise. O autor conta sobre um episódio em que foi a um concerto de
violoncelo, e que, antes do concerto, quando pretendia ler o programa, as luzes se
apagaram para dar início à performance. A única informação que foi retida pelo autor
do que estava no panfleto foi: “o solista tocava em um violoncelo Francesco
Lazzaretti de Vicenza, construído em 1893” (ZAMPRONHA, 2013, p. 8). Ao
mencionar o acontecido, o autor descreve como essa frase, isolada de outros
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elementos que a acompanhavam, afetou a forma como ele vivenciou a experiência


do concerto. O autor descreve:

“Esta frase transformou o modo como escutei aquele concerto. O fato de


saber que o violoncelo era do final do século XIX, o fato de saber que era
um instrumento único, de autor, italiano da região de Vêneto (Itália),
construído artesanalmente com materiais e técnicas da época, tudo isso me
levou a escutar o som que era projetado naquela sala de forma muito
especial. As qualidades, valores e conceitos que atribuí àquele violoncelo
definitivamente foram transferidos à minha experiência musical naquele
concerto” (ZAMPRONHA, 2013, p. 8).

Para descrever as condições necessárias para que se ocorra a transferência,


Zampronha (2013) aponta três elementos que tornam possível que as qualidades,
valores e conceitos2 que preenchem o primeiro significante sejam de fato
transferidos ao novo significante. Portanto compreendemos a partir desta explicação
que existe a necessidade de haver sempre dois objetos (aos quais o autor se refere
como objeto “A” e objeto “B”).
A primeira condição para a ocorrência da transferência é de que as
propriedades do objeto “A” sejam gerais (qualidades, valores e conceitos), e não
particulares (características específicas intrínsecas). A segunda condição é de que o
objeto “‘A’ deve ser conhecido do ouvinte, e deve ser mais conhecido que ‘B’”
(ZAMPRONHA, 2013, p. 15). E a terceira condição, é de que a transferência tem
base em fundamento, ou seja, ela depende de o ouvinte ter conhecimentos com
algum aprofundamento sobre os dois objetos. Para esta terceira, o autor se utiliza do
exemplo da Suíte para Piano de Brinquedo de John Cage, onde o ouvinte se depara
com um piano de brinquedo, muito menor do que o piano de cauda que se espera
ter no palco, e de características acústicas também distintas. Neste caso, a
transferência ocorre porque a escuta é afetada pela expectativa 3, que é baseada
numa familiaridade com o ambiente da sala de concerto.

Beethoven – O Significante Imaginário (Maria de Lourdes Sekeff, 2005)

A prof. Maria de Lourdes Sekeff faz um apanhado biográfico profundo de


Beethoven, trazendo elementos do contexto de sua criação e ilustrando as razões
pelas quais o compositor se torna uma pessoa “amarga. Gozando sempre de
poucas horas felizes” (SEKEFF, 2005, p. 38). Essa descrição de sua personalidade
é essencial para que Sekeff possa ilustrar como a sonoridade de Beethoven
transpõe um valor simbólico totalmente atrelado às suas dores e mazelas, que
incluem inclusive, a famosa perda de audição.
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É interessante pontuar aqui que o autor se utiliza constantemente destes três termos (qualidades, valores e
conceitos) ao falar sobre quais são estes elementos transferidos entre os objetos.
3
Vale notar: o sentimento de expectativa sobre o que se espera de uma sala de concerto é descrito como
fundamental para afetar a escuta, porém, é preciso lembrar que nenhum sentimento, postura, ou valor
sozinhos cumprem papel de influenciar a escuta individual de cada ouvinte. Vige a influência da subjetividade
de cada sujeito.
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Beethoven, como precursor do movimento romântico na primeira metade do


século XIX, imprime em sua obra sonoridades que ilustram as mudanças estilísticas
e os significados que passariam a ser o foco dos compositores que o seguiram. As
harmonias e elementos de agógica e dinâmica que dominaram a sonoridade do
romantismo representam um estilo que aponta para dois valores principais: o drama,
e o místico.
Na música de Beethoven, ambos são presentes na forma em que ele
transfere os eventos da sua vida pessoal à sua música, tendo no imaginário místico
seu lugar de fuga, principalmente quando ele atinge seu segundo período que a
autora chama, entre outras coisas, de sublime. Explica a autora:

“Românticas, as sonatas do 2º período (1801-1811) são acrescidas da


poética da subjetividade, cuja linguagem cheia de claridade e tonalidades
surpreendentes desperta em nós sentimentos ainda obscuros, não podendo
serem apreciadas senão dentro da categoria do sublime. [...] Nesse período
Beethoven se compraz numa arte da expressão, procurando ‘representar’
sentimentos íntimos e objetivando ressonâncias que possibilitem a
percepção da música como ‘uma experiência física na qual [su]a alma (e a
do receptor) seria transportada’ [COOPER, 1996]. Com esse entorno ele
abre o reino do colossal, do imensurável, ratificando a distinção entre
sublime e belo. Vige o ‘significante imaginário’”. (SEKEFF, 2005, p. 53-54)

Portanto, o argumento da autora é de que Beethoven tinha consciência, e


praticava a busca de se expressar através de simbologia subjetiva, de formas e
sonoridades que remetessem o ouvinte a sentimentos específicos. Com isso, é
importante lembrar que não significa que haja controle sobre como um ouvinte
interpreta os significantes presentes na música. Cada sujeito transfere ao fenômeno
acústico aquilo que já o confere.

Educação musical e diversidade cultural: uma incursão pelo viés da


psicanálise (Neide Esperidião e Leny Magalhães Mrech, 2009)

Este artigo abrange diversas pontes existentes entre as grandes áreas da


música e da psicanálise, porém, será destacado aqui somente aquilo que serve de
comparação aos elementos citados nos artigos analisados anteriormente.
No trecho intitulado “Música e Psicanálise” as autoras se referem à evolução
da matéria prima da música ao decorrer dos séculos, fazendo comparações entre
toda a música modal e tonal da idade média até o período romântico, em
contraponto à música moderna do século XX. O comentário neste caso é sobre
como, na busca por expandir as possibilidades da expressão artística através do
som, os compositores começar uma jordana em busca de dar sentido aos
significantes que já se materializam na forma de fenômenos acústicos.
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Sobre a música do século XX, as autoras afirmam que “a ruptura total com o
tonalismo operou-se somente a partir da modificação de concepção de som musical”
(ESPERIDIÃO, MRECH, 2009, p. 88), e sobre essa nova perspectiva sonora:

“É importante assinalar que estamos diante de um novo processo de


subjetivação dos sujeitos e, nesse, compositores e ouvintes são
conclamados a ocuparem novas posições. [...] ousamos dizer que estamos
diante de uma atuação inconsciente de compositores e ouvintes, de
professores e aluno” (ESPERIDIÃO, MRECH, 2009, p. 88).

As autoras ainda trazem Lacan (1998 apud ESPERIDIÃO, MRECH, 2009)


falando sobre o conceito de descontinuidade em relação a quebra histórica da ideia
de que a cultura evolui passando constantemente de uma fase para a outra, e que a
busca da arte do século XX provoca uma descontinuidade dessa lógica. E mais uma
vez, falando sobre significantes:

Ao introduzirmos a descontinuidade, nós também introduzimos a dificuldade


de lidarmos com nossas construções e reconstruções sociais e individuais.
Nesse caso, é preciso fazer uma distinção entre a coisa e a linguagem
utilizada para tentarmos apreendê-la. E isso tanto do ponto de vista do
sujeito ou da sociedade (ESPERIDIÃO, MRECH, 2009, p. 89).

Com esta reflexão, abrimos a possibilidade ainda de expandirmos esta


elaboração para campos além da música, da arte e da cultura. Aqui a autora fala
sobre questões que simbolicamente aparecem na evolução da matéria prima, o som,
mas que representam questões de identidade do sujeito cultural que permeiam
diversos aspectos das sociedades modernas.

CONCLUSÃO

Através desta pesquisa me deparei com diversas relações possíveis entre o


campo da psicanálise com diferentes áreas da música. Alguns trabalhos falam sobre
educação, outros sobre composição, ou sobre a experiência de ouvinte. E em meio
a uma grande pluralidade de assuntos que surgem desta mistura, um dos que com
certeza está mais presente nestes trabalhos 4 é a relação significante/significado e os
diversos caminhos que utilizamos para atribuir valores, qualidades e conceitos à
diversos elementos do cotidiano, inclusive, à música, que é o tema deste ensaio.

4
Vale apontar aqui que, para essa pesquisa, outros trabalhos além dos referenciados foram lidos, porém, não
por completo. Por esse motivo, não os abrangi no presente ensaio. Todavia, estes outros trabalhos não
mencionados também corroboram os pontos gerais desta conclusão.
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A ideia de que o som é um significante independente de sentido (LAUREANO,


2019) abre portas imensas para que possamos indagar sobre o efeito do trabalho de
compositores como Beethoven nos ouvintes, tendo a noção de que este foi um
compositor que fazia questão de lidar com suas subjetividades através de símbolos
abstratos, através dos quais expressava seu subconsciente. O interessante é que, a
partir do momento que estes símbolos chegavam aos ouvintes, estes podem
transferir quaisquer outros significados a partir, desta vez, das suas experiências
como sujeitos (SEKEFF, 2005; ZAMPRONHA, 2013). As possibilidades sobre as
reflexões aqui parecem ser intermináveis, sendo que percebo mais pertinentes ainda
aquelas que questionam os diversos “porquês” sobre como nos relacionamos com
música.

REFERÊNCIAS

ESPERIDIÃO, Neide; MRECH, Leny Magalhães. Educação Musical e Diversidade


Cultural: uma incursão pelo viés da psicanálise. Revista da ABEM, Porto Alegre,
V.21, 84-92, mar. 2009. Disponível em:
http://www.abemeducacaomusical.com.br/revistas/revistaabem/index.php/revistaabe
m/article/view/239. Acessado em: 20 set. 2020.
LAUREANO, Pedro Sobrino. Música e Psicanálise. ECOS: Estudos
Contemporâneos de Subjetividade, LOCAL, V.9 – n.2, p. 183-195, 2019. Disponível
em: http://www.periodicoshumanas.uff.br/ecos/article/view/3008. Acessado em: 16
set. 2020.
SEKEFF, Maria de Lourdes. Beethoven – O Significante Imaginário. OPUS, Brasil,
V.11, 37-62, 2005. Disponível em:
https://www.anppom.com.br/revista/index.php/opus/article/view/520. Acessado em:
20 set. 2020.
ZAMPRONHA, Edson. Transferência: o que é, e o que oferece à música? Revista
Música Hodie, Goiânia, V.13 – n.1, p. 8-18. 2003. Disponível em:
https://www.revistas.ufg.br/musica/article/view/25764. Acessado em: 14 set. 2020.

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