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ARTE, COMUNICAÇÃO

E O TERRITÓRIO INTERMIDIAL
DO LIVRO DE ARTISTA
Paulo Silveira

Resumo: O livro de artista (em sentido estrito) é uma obra de arte con-
temporânea que compartilha ou ocupa territórios da comunicação so-
cial e do projeto gráfico, disponibilizando-se como uma mídia alter-
nativa para ampla circulação entre o grande público ou entre públicos
específicos, dentro ou às vezes fora do mercado de arte.
Palavras-chave: livro de artista, livro-objeto, arte, arte contemporânea,
intermídia, comunicação visual.

Abstract: The artist’s book (in a strict sense) is a contemporary art work
that shares or occupies the territories of social communication and
graphic design, making itself available as an alternative media for full
circulation within the general public or specific audiences, inside or
sometimes outside the art market.
Key words: artist’s book, book-object, art, contemporary art, intermedia,
visual communication.

A arte (especialmente as artes visuais, como o desenho, a pintura, a escultura


etc.) e a comunicação (jornalismo, publicidade, edição e editoração de livros etc.)
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Paulo Silveira é doutorando em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAVI/UFRGS).
paulo.silveira@ufrgs.br.

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operam sobre discursos éticos e morais diferentes, freqüentemente antagônicos, às
vezes chegando a ser conflituosos, outras vezes criando relações da mais íntima de-
pendência. Perverter as funções de uma dessas atividades pode revelar a eventual
necessidade de socorro por parte da outra. As estratégias de atuação e as particula-
res concepções do que seja um empreendimento criam necessidades objetivas es-
pecíficas, ao mesmo tempo em que revelam a existência de muitos elos de coabita-
ção. Esses liames de comunhão nem sempre são óbvios, podendo estar escondidos
pelos equívocos a que são propensos os orgulhos profissionais ou oferecer um espe-
táculo intencionalmente sutil.
Isso é especialmente observável em uma das mídias mais antigas, o livro, tal-
vez o suporte de discurso mais universal, sob os pontos de vista geográfico, históri-
co ou cultural. Seus fundamentos de ordem e credibilidade (aceitos como impera-
tivos e inerentes) parecem ter-lhe agregado respeitabilidade do mais alto grau den-
tre os veículos de comunicação. A informação agregada à obra (informação direta
textual ou ilustrativa, descritiva ou narrativa, ou reflexões dissertativas) estabeleceu
atividades, normas, gostos e critérios de artesania agrupados nas assim chamadas
(por séculos) artes do livro: da caligrafia e da iluminura à encadernação, antes; da
concepção ao acabamento, agora. Hoje a formação profissional organizada especi-
fica as atividades: edição, projeto gráfico, programação visual, diagramação, ilustra-
ção, editoração eletrônica etc. Ainda que esses detalhes venham a ser comentados
adiante, o que de fato pretende-se nestas reflexões é uma apresentação ao fenôme-
no de troca acontecido entre as artes visuais e a publicação de livros, que gerou uma
obra de vanguarda simultaneamente artística e editorial no final do século XX: o
livro de artista. Surgido na arte, ele fundou uma categoria que herdou o seu nome,
e que reúne o próprio livro de artista, o livro-objeto e outras obras assemelhadas,
relacionadas ou mesmo remotamente referentes ao livro.

O CONCEITO DE INTERMÍDIA
Podemos considerar os territórios de ligação, de sobreposição e de interseção
(ou interpenetração) dos mundos da arte e da comunicação como sendo constituí-
dos pelo tecido de uma relação que não pode ser reduzida a um número finito (mes-
mo que enorme) de eventos. Porém, se insistirmos em buscar uma hipotética pure-
za identitária nas ocorrências fora do espaço interdisciplinar, ainda assim percorre-
remos territórios não-comuns a ambos os campos que, mesmo que pareçam de ex-
trema autonomia, têm em si um ou outro sinal de um contato remoto. Isso é tão
mais verdade quanto mais perto estivermos do nosso momento histórico presente.
É impossível falarmos de autonomia da comunicação em relação à arte. Os pressu-
postos estilísticos do trabalho criador, os legados histórico e cultural, as considera-

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ções estéticas, o gosto, as técnicas e as ferramentas estão no corpo das mídias, cons-
truindo-as, dando-lhes forma. O movimento oposto de influências também ocor-
re, mas não é tão evidente, já que a criação artística é inequivocamente mais autô-
noma, podendo até mesmo reivindicar seu extremado e controverso direito à inco-
municabilidade. De fato, parece ser mais freqüente o discurso estético atacar as pa-
tologias da comunicação de massa do que elogiar suas insuficientemente discutidas
virtudes. Não se trata de a arte ser uma epifania, o que ela não é. Ela pode, de fato,
oferecer-se em uma liberdade invejável, quase sublime, o clássico pelo clássico. Mas
o mundo não pertence a semideuses solitários. E os últimos cento e poucos anos
viram surgir um contingente crescente de artistas que acreditavam ver nessa soli-
dão uma postura onanista quase cega, a ser evitada, se não combatida, através de
ações multiplicadoras e da conquista ou criação de espaços alternativos.
Embora existam muitos estudos gerais voltados aos problemas formais (especial-
mente os da percepção e da comunicação visual), ainda pouco foi aprofundado sobre
as novas mídias ou o reaproveitamento de veículos já existentes, mas utilizados pelos
artistas modernos e contemporâneos, às vezes com propostas transgressivas. Nossa
atenção é despertada, aqui, pelo que é recente, mesmo que já não seja tão novo quan-
to pareceria à primeira vista. No espaço comum (ou no espaço do “entre”), além dos
bens e serviços culturais que não são arte, interagem os atores e gestores das artes vi-
suais, das atitudes performáticas, do teatro, da dança, do cinema, da literatura, da
música. É um grande e multifacetado círculo de idéias, motor da cultura dinâmica
típica de nosso tempo e de nosso espaço urbano, renovador ou criador de linguagens,
gerador de diálogos e encontros, comentarista das contradições entre as artes de pon-
ta e os canais de vulgarização. Estão nesse fluxo o espetáculo marginal, a poesia con-
creta, a performance, o happening, a arte postal, o cinema experimental, a videoarte, a
arte digital, o impresso alternativo. Ali o artista olha um pouco menos para o próprio
umbigo, vê ao redor e redescobre a atenção: ali existe trânsito. Estamos falando do
espaço da intermídia e das manifestações sob sua influência.
O conceito de intermídia (não confundir com multimídia) pode ser procura-
do num veículo por excelência para transportá-lo, uma obra gráfica alternativa. Está
muito bem-apresentado pelo inglês Dick Higgins (1938-1998) no seu livro
Foew&ombwhnw: a grammar of the mind and a phenomenology of love and a science of
the arts as seem by a stalker of the wild mushroom, publicado em 1969. Com a aparên-
cia de uma pequena bíblia, a obra é toda dividida em duas colunas descontínuas,
com artigos, experimentos gráficos, poesia visual, desenhos, roteiros para perfor-
mances e escritos diversos, numa disposição diferente da esperada pelo leitor co-
mum. O artigo “Intermídia” (no original, Intermedia), inicia afirmando: “Muito do
que de melhor está sendo produzido hoje parece cair entre mídias. Isso não é aci-
dente.” Foi publicado antes no primeiro número do boletim de sua editora, The

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Something Else Newsletter, em fevereiro de 1966. Higgins foi um dos fundadores do
grupo Fluxus, formado por artistas de diversos países que pregavam a intensa cir-
culação do pensamento artístico através de qualquer meio disponível na sociedade
urbana (o uso intenso de correio foi uma de suas estratégias), utilizando qualquer
suporte ágil quanto à difusão (publicações e múltiplos gráficos, por exemplo). Em-
bora o grupo original esteja hoje extinto, artistas remanescentes e adeptos mantêm
vivo o espírito original. A editora de Higgins, Something Else Press, com sedes em
Londres e em Nova York, publicou importantes livros de vanguarda elaborados por
escritores, artistas plásticos, músicos, dramaturgos etc., como John Cage, Merce
Cunningham, Robert Filliou, Allan Kaprow, Alison Knowles, Dieter Roth,
Daniel Spoerri, Gertrude Stein, Emmett Wiliams e muitos outros, incluindo, ain-
da, Marshall McLuhan (Verbi-Voco-Visual Explorations, 1967).
No artigo Intermedia, como em outros textos do período, a palavra “mídia” (em
inglês, media), é utilizada no sentido amplo, “meio” como veículo e não apenas como
técnica ou substrato, dentro da lógica semântica (desde então dominante) dos mei-
os de comunicação, e hoje integrada no dia-a-dia de muitos idiomas. O próprio li-
vro de Higgins acima citado é um produto particularmente interessante desse es-
paço intermidial. É um livro de artista, uma obra de arte de vanguarda, característi-
ca do século XX, mas que tem suas raízes em um passado bastante remoto. É certa-
mente devedor dos artefatos de leitura que registravam as primeiras escritas. É tam-
bém devedor das evoluções técnicas que permitiram a mobilidade de volumes e a
codificação de sinais e caracteres, possibilitando o estabelecimento do conceito de
difusão. Mas também pode ser um ferrenho preservador de tradições artesanais,
como as do desenho, da pintura e da escultura. Daí uma característica importante:
livro de artista é ao mesmo tempo o nome de uma categoria artística e de um dos
produtos dessa categoria. O que surgiu primeiro? A coisa ou o conceito?

AS IDENTIDADES DA CATEGORIA ARTÍSTICA


Antes de qualquer conclusão apressada (e incorreta), deve ficar claro que um li-
vro de arte não é um livro de artista. Um livro de arte é não mais que um livro comum
que tem como assunto a arte, ou seus agentes, ou seus produtos, ou sua história. É
uma classificação comercial utilizada pelos mercados editorial e livreiro, e pode até
mesmo ser utilizada para as edições de luxo, os chamados “livros de mesa”, volumes
requintados de temas diversos (com freqüência estranhos à arte), de maior valor de-
corativo do que intelectual. Esse livro não nos interessa neste instante, já que não se
trata de obra de arte, por mais esplendoroso que possa ser. É apenas suporte de infor-
mação e, como tal, pertence quase exclusivamente ao mundo da comunicação (e, às
vezes, da bibliofilia). Interessa-nos, aqui, o livro de artista, mesmo, livro ou quase-li-

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vro concebido pelo artista para ser uma obra de arte inserida no circuito da mídia, e
por si só transgressivo ao mundo da arte por inseminá-la com conceitos da comuni-
cação, antes tidos como vulgarizantes. Com o entendimento que temos hoje, essa
designação foi registrada em uma de suas primeiras vezes para uma exposição no
College of Art, ocorrida em 1973, na Filadélfia. Era o momento de desenvolvimento
da arte conceitual internacional e de outros movimentos, tendências e escolas que re-
posicionaram os papéis e as estratégias dos principais agentes do mercado das artes:
artistas, críticos, estudiosos, galeristas, público etc. Problemas como valor, circulação
e documentação foram muito discutidos, gerando uma produção artística sem prece-
dentes. Os livros de artista daquele momento podiam ser livros de fato, mas, muitas
vezes, eram livretos de baixíssimo custo, ou simples folhetos, ou peças impressas so-
bre os suportes mais variados. Sempre ou quase sempre múltiplos.
Ao mesmo tempo se multiplicavam as experiências bibliomórficas artesanais
sem tiragem, com aparência de estudos ou ensaios plásticos. Era o ressurgimento
dos livros-objetos e dos livros escultóricos, obras de arte com ocorrências apenas
eventuais antes disso, mas que, agora, exigiam seu lugar num espaço valorizado. Com
a vantagem de normalmente serem exemplares únicos, e portanto de mais baixo custo
de produção, os livros-objetos podiam oferecer ao artista um caminho para a sua
inclusão nesses movimentos, ainda que de uma forma paralela e sem compromisso
com a transgressão de mercado. Livros-objetos, livros escultóricos e não-livros (es-
culturas e ações que remetem ao livro, por exemplo) importam muito pouco aos
estudos de comunicação por serem obras muito passivas, que se dão em espetáculo
quase que apenas pelos critérios de um só mercado, o mercado de arte. Já os livros
de artista propriamente ditos são obras ativas, constituídas de um valor político e
social mais evidente, agregando uma, digamos, mundanidade qualificada. Por ve-
zes se intrometem com determinação e desenvoltura no mercado, mimetizadas com
o livro comum. Caso de alguns trabalhos de Bruno Munari conhecidíssimos de es-
tudantes de comunicação ou de projeto gráfico (e, claro, de artes), como Design e
comunicazione visiva (1968, em português Design e comunicação visual) ou Disegna-
re un albero (1978, aqui Desenhar uma árvore), hoje melhor compreendidos em sua
dimensão artística (Dematteis e Maffei, 1998, p. 168-171).
A energia entre esses pólos (publicações gráficas de um lado e objetos plásti-
cos de outro) gerou formas artísticas híbridas, “remoçou” as técnicas de encaderna-
ção artística, gestou muitos periódicos alternativos (jornais, revistas e boletins) e
propiciou o surgimento e a difusão de posturas críticas. E, além disso, como num
movimento de olhar para trás, fez reconhecer as diferentes origens modernas ou pré-
modernas desses produtos. Cito, como exemplo, os então caros (hoje preciosos itens
em leilões de arte) livros artísticos da passagem do século XIX para o XX, chama-
dos pomposamente de livres de peintres (livros de pintores, aqui no conservador si-

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nônimo de artista, mesmo em países de línguas não-francesas), designação que re-
alçava sua especificidade formal e seu valor comercial. Com freqüência são parce-
rias entre pintores e poetas (como no encontro de Stéphane Mallarmé e Edouard
Manet em Le Corbeau, de 1875, tradução francesa para The Raven, poema de Ed-
gar Allan Poe) ou grandes volumes ilustrados (como os álbuns editados por Am-
broise Vollard). Simultaneamente ou após o lançamento dessas obras mais conven-
cionais, produtos mais ousados foram emprestando novos ares a esse mercado es-
pecífico. É o caso dos livros eslavos (antes apenas russos e, depois, soviéticos) e de
sua influência, com tipografia experimental (Sobre dois quadrados, de El Lissitzky,
1922, por exemplo); os livros-objetos e os álbuns dadás e surrealistas (a chamada
Caixa verde, 1934, como ficou conhecida La Mariée mise à nu par ses célibataires, même,
de Marcel Duchamp, coletânea de reproduções de projetos e anotações para a sua
obra homônima realizada vinte anos antes); as diversificadas experiências do futu-
rismo (Parole in libertà futuriste: tattili-termiche olfative, 1932, de Tullio d’Albisola
e Filippo Tommaso Marinetti) e de outros movimentos (notadamente a arte pos-
tal), além das experiências gráficas propiciadas por manifestos, produtos ou even-
tos contestatórios ou libertários (o catálogo da exposição surrealista de 1947 é um
exemplo bastante pitoresco, tendo, na capa, um seio de borracha esponjosa sobre
veludo negro e uma etiqueta com os dizeres “favor tocar”).
Essa reavaliação histórica, somada à consciência do momento presente (pre-
sente, esse, que nasce nos anos 60), consumou a constatação de que uma nova ca-
tegoria artística estava estabelecida, já tendo produzido uma quantidade signifi-
cativa de obras com repertório e público. Com naturalidade, a categoria passou a
ser designada pelo nome de seu mais ativo representante, o livro de artista, uma
obra entendida no seu todo, conteúdo e contenedor (também participam da ca-
tegoria as inserções em publicações não-seriadas e em revistas coletivas, forma-
das por páginas criadas especialmente, a page art, além de diversas criações mis-
tas). Um pouco de polêmica ainda restou, mas quase que apenas para aqueles que
defendem o livro-objeto como sendo o verdadeiro livro de artista. Mas são pou-
cos, já que essa idéia não tem encontrado fundamentação aceitável. Além disso,
os conceitos do que cada coisa é, já estão formalmente registrados. Vejam-se a esse
respeito algumas publicações reguladoras, formuladas para serem seguidas por
bibliotecas, museus, acervos, centros de pesquisa e outras instituições culturais.
Examine-se, por exemplo, o boletim Art Documentation de dezembro de 1982 (da
Art Libraries Society of North America), ou no internacional Art Libraries Journal/
Revue de Bibliothèques d’Art/ Zeitschrift für Kunstbibliotheken/ Revista de Bibliote-
cas de Arte, número 18, de 1993 (Silveira, 2001, p. 49-51 e bibliografia). A cate-
goria artística do livro de artista engloba o livro de artista propriamente dito, o
livro-objeto e outras obras semelhantes.

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A CRÍTICA E A AVALIAÇÃO DOS PAPÉIS SIMBÓLICOS
Mesmo que a maior parte de seus produtos seja constituída por bens de con-
sumo autônomos, é necessário lembrar que a categoria do livro de artista pertence
sobretudo ao mundo da arte, abrangendo grande variação de projetos e experimen-
tos múltiplos, não se restringindo a um suporte específico que seja apenas rotulado
como livro. É justo e necessário que o estudioso examine instalações e performan-
ces lado a lado com os volumes que as acompanham como integrantes de um mes-
mo empreendimento artístico. Para um exemplo recente, lembro as salas ocupadas
pela artista alemã Hanne Darboven na Documenta 11, em Kassel, Alemanha, du-
rante o verão europeu de 2002. Darboven ocupou três andares em mezaninos se-
micirculares com quase quatro mil páginas de seus livros dispostas lado a lado nas
paredes, livros únicos (em vitrinas) e vídeos. Complementando a exibição, foi dis-
tribuído gratuitamente para o público um impresso no formato tablóide com oito
páginas coloridas, numa apresentação assemelhada a um encarte de jornal, repro-
duzindo uma seqüência de pares de páginas (sem texto explicativo). Tanto o todo
como os detalhes precisam ser pensados como interligados, mesmo estando distantes
de um livro mesmo (ou o objeto que denominamos popularmente de livro). Ainda
que o livro-objeto e o livro de artista não compartilhem precisamente o mesmo es-
paço artístico (definido pelo projeto e pela estratégia), ou o compartilhem, mas apon-
tando um as contradições do outro, o crítico e o historiador necessitam estar aten-
tos para o fato de que essas obras, seus efeitos e seus conflitos interagem entre si
numa categoria mais ou menos bipartida, mas com identidade distinta da escultura
ou da pintura, por exemplo. Se por um lado poderá ser difícil para um estudioso de
comunicação aceitar essa dissociação disruptiva da forma consagrada do livro, para
um pesquisador de arte não haverá nenhuma estranheza maior. A arte, como foi
tantas vezes dito, pode quase tudo.
Para uma análise interdisciplinar com a comunicação, toda a categoria pode-
ria ser considerada. Mas a atenção deve incidir, sobretudo, no conhecimento do li-
vro de artista no sentido estrito da palavra. O motivo é simples, como já visto: ele é
normalmente um objeto gráfico múltiplo (editado), uma publicação que traz con-
sigo os conceitos de mídia e de mercado. É verdade que também existem livros-
objetos múltiplos, mas são proporcionalmente poucos. Por exemplo: Poemóbiles, de
Augusto de Campos e Julio Plaza, 1974, é apresentado por Plaza (1982, parte I,
não-paginado) como sendo um livro-objeto, embora tenha tido uma feição inte-
gralmente gráfica e uma tiragem comercial (não é, por isso, incorreto nem exclu-
dente designá-lo como livro de artista “mesmo”, no sentido estrito do termo). Apre-
senta-se como uma embalagem em caixa ou pasta cartonada, contendo diversos
impressos avulsos. Mas livros-objetos são, geralmente, peças únicas do agrado das

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galerias de arte e dos museus, guardando o apelo fetichista das obras artísticas tra-
dicionais. Sob esse ponto de vista, podemos dizer, ironicamente, que os grandes li-
vros que fazem parte da produção plástica de Anselm Kiefer (obras-primas indis-
cutíveis da arte ocidental contemporânea) têm sua potencialidade semântica um
pouco abafada pelo seu papel social redirecionado pelos agentes de mercado. São
objetos artísticos nobres, apropriados (socialmente adequados) para eventos expo-
sitivos conservadores. Essa é uma característica vista com reservas por grande parte
dos artistas e dos comentaristas das novas mídias. Anne Moeglin-Delcroix, impor-
tante pesquisadora do assunto, demonstra esse ponto, mas com justeza, preservan-
do o imenso brilho de Kiefer. Ela explica ser pouco interessada no livro-objeto.

[...] e porque os livros-objetos [...] raramente são grandes obras plásticas. É claro
que há alguns êxitos excepcionais, como os livros em chumbo de Kiefer, na
Alemanha. Não creio, porém, que o livro-objeto tenha alguma importância
artística atualmente como fenômeno de conjunto (não me refiro à importân-
cia que pode ter na obra de um artista em particular). (Silveira, 2001, p. 287).

Anne Moeglin-Delcroix reconhece outras funções do livro ou do quase-livro


que, em geral, não é múltiplo (e que não atua fora do mercado da arte). Mas suas
constatações estão inseridas apenas (por decisão sua) em problemas das vanguar-
das artísticas do livro “de edição”, do livro publicado, que difunde o pensamento
artístico e que considera qualitativa e intelectualmente muito distanciado do livro-
objeto. Ela considera a recusa à multiplicação e à difusão como um despropósito à
finalidade básica do livro.
A propósito de outras considerações semelhantes, lembro Alvaro de Sá, um
dos articuladores do movimento poema-processo e teórico das relações entre a poesia
visual brasileira e a comunicação (1977, p. 83): “Uma pintura retratando um operá-
rio em trabalho, embora aparente, não terá vínculo socialista com a realidade. É um
produto artesanal único, para consumo individual ou no máximo museológico, e
portanto com a alienação da aura.” Ainda segundo Sá, o livro de artista (por ele e
seus companheiros chamado de livro-poema) impõe a leitura como processo inse-
parável da existência do objeto.

A função do livro é ser gerador de informações através de seu processo. En-


quanto numa poesia simbólica ou em um poema estrutural a leitura esgota a
comunicação do poeta com o consumidor, no livro-poema a comunicação
primeira inicia um novo universo para o consumidor, levando-o à posição de
criador e distinguindo radicalmente a “leitura” da “escrita”, ou seja, o ato
mental de captar a intencionalidade do poeta do ato físico exploratório do
consumidor. (Sá, 1977, p. 94).

86 Silveira, P. Arte, comunicação e o território intermidial do livro de artista


O livro de artista “mesmo”, repito, tem a consciência de ser veículo. Ou me-
lhor, “também” veículo, já que antes de mais nada é um projeto artístico inteiro. É
uma obra de arte com a forma direta ou indiretamente inspirada nas conforma-
ções do livro (códice, rolo, sanfona etc.). É quase sempre um produto gráfico,
impresso, embora possa se apresentar também em variações eletrônicas 1 e digi-
tais.2 Apresenta-se como um livro ou livreto de qualquer formato ou número de
páginas, mesmo que seja um simples rolo, ou uma sanfona, ou apenas uma folha
de papel com algumas dobras. Possuir textos não é uma obrigatoriedade e, quan-
do acontece, pode ser de qualquer natureza, mas de classificação recusada ou ig-
norada pela literatura (salvo exceções) ou pelo comércio livreiro. É também usual
que o preço de cada exemplar seja equivalente ao dos seus companheiros de loja
ou livraria. Portanto, acessível a qualquer um. Isso cria um espaço complementar
(ou alternativo) ao complexo tradicional de galerias, oferecendo arte a preços baixos
ou baixíssimos, ao mesmo tempo em que impõe conceitos transgressivos a valo-
res tradicionais da arte como qualidade artesanal, nobreza da matéria-prima e
reserva de mercado profissional. Por outro lado, propõe estratégias operativas para
sua existência como objeto artístico que se aceita como mercadoria não-aristo-
crática, como peça promocional e como registro documental, recusando alguns
cinismos institucionalizados pelo sistema. Traz para as artes visuais a possibilida-
de do uso de fato da palavra escrita, não apenas discreta ou decorativamente, mas
oferecendo novos universos discursivos, emprestados (ou furtados) da literatura
e da imprensa. E se multiplica, e viaja, e entra em lares de todo tipo. O livro de
artista é, por isso, deliciosamente insidioso. Você quer uma obra de arte? Ela pode
até mesmo ser mandada pelo correio.

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1
Muitos trabalhos projetados para mídias eletrônicas ou digitais permitem a análise e a avaliação
por estudiosos e críticos de arte tendo como parâmetro a bibliomorfia explícita ou o comentário
metafórico ao livro. Será ingenuidade, por exemplo, pensar a instalação Beyond pages, de Masaki
Fujihata, apresentada em Porto Alegre durante a 2ª Bienal do Mercosul, em 1999, como apenas uma
obra da informática. Ela é objetivamente pensada a partir da projeção do livro que é o seu núcleo
visual e intelectual. Pressupõe-se que o crítico seja habilitado para fazer as necessárias ligações entre
os campos simbólicos percorridos pelo artista.
2
Na internet existem endereços com trabalhos específicos para a rede, muitos deles inspirados em
concepções bibliomórficas. Para ir direto a essa produção, procure um sítio de busca e utilize pala-
vras-chave como livro de artista, artist’s book, artists’ books, livre d’artiste ou suas equivalentes varia-
ções nos diversos idiomas. Para o Brasil a busca poderá revelar poucos resultados. Mas esse quadro
está em mudança. Como bom exemplo de obras brasileiras integralmente digitais, procure endere-
ços com a participação de Regina Célia Pinto, que não só trabalha como artista, mas também como
promotora de experimentos interdisciplinares das artes visuais com a palavra.

Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 1, n. 2, p. 79-94, 2002 87


A OCUPAÇÃO E OS USUÁRIOS DO ESPAÇO ALTERNATIVO
Por suas particularidades, além de ser um veículo natural para artistas plásti-
cos, o livro de artista também ofereceu (e ainda oferece) espaço para um grande
contingente de egressos de outras atividades artísticas e culturais, além de progra-
madores visuais e projetistas gráficos, que dificilmente encontrariam, na arte, um
veículo tão apropriado para suas expressões, e que são altamente especializados em
problemas de percepção e composição.
Uma ênfase muito particular deve ser dada ao aporte da literatura, principal-
mente através da poesia e da prosa formalmente livres. A poesia visual, principal-
mente, teve (e continua a ter,3 ainda que mais raramente) um papel importantíssi-
mo na definição de rumos, sobretudo pelos exercícios textuais e pela revitalização
da diagramação de página, silenciosa desde os experimentos eslavos do pré e entre
guerras. O Brasil ofereceu contribuição importante nesse seguimento, com reco-
nhecimento internacional. Os experimentos gráficos na publicação de livros for-
malmente diferenciados tiveram poucos editores, mas de notável presença, como
Alumbramento, Invenção, O Gráfico Amador e Massao Ohno, ao lado dos con-
sórcios entre interessados e dos empreendimentos pessoais dos próprios autores ou
artistas. Livros de poesia visual em geral (e concreta, em particular) circularam com
certa desenvoltura em mercados livreiros de outros idiomas e participaram de im-
portantes salões retrospectivos e bienais. Saliente-se que das experiências forma-
doras dessa produção foi gerado A ave, 1956 (ano de lançamento, pronto no ano
anterior), de Wlademir Dias Pino, um dos mais relevantes e pouco conhecidos li-
vros de artista editados no país (em Mato Grosso), anterior a muitas das obras mes-
tras de Edward Ruscha e Dieter Roth, dois dos mais importantes nomes da cate-
goria. É um volume composto por páginas mais ou menos transparentes, brancas
ou coloridas, que permitem entrever diagramas, letras e vocábulos, propondo uma
leitura dependente do gesto de folhear o livro. Raramente descrito e com a quase
totalidade de seus exemplares desaparecida, A ave sofreu, por muito tempo, um in-
justo esquecimento, pouco a pouco em reparação.
O estabelecimento desse espaço alternativo, disponibilizado a todos que de al-
guma forma pudessem produzir peças gráficas multiplicáveis, gerou reflexões que dis-
solveram a precisão dos limites que demarcam a arte, levantando questões como a forma

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3
Qualquer pesquisador terá o direito de classificar como livro de artista tanto obras que sequer te-
nham tido, originalmente, essa intenção de seus autores, como obras que tenham nascido direcio-
nadas exclusivamente para o campo literário. Livros com textos ou tipografias experimentais, por
exemplo, podem, perfeitamente, ser seqüestrados da literatura e “sofrer” nossa análise crítica a partir
de sua construção verbo-visual e sob o ponto de vista das artes plásticas.

88 Silveira, P. Arte, comunicação e o território intermidial do livro de artista


de produção e a prioridade dada aos valores comunicativos da expressão estética. Se
as linhas de separação entre gêneros de produtos artísticos são pouco definidas, há
que se ter cuidado redobrado com a aplicação de distinções entre baixa e alta culturas.
Existe a obra a serviço do comércio, sim, como existe a artisticidade do projeto. Exa-
mine com atenção o pequeno livreto em preto-e-branco The medium is the massage:
an inventory of effects, de Marshall McLuhan e Quentin Fiore, onde a construção das
páginas une a fotografia de estética ora jornalística, ora publicitária, e o texto objetivo
num todo que o habilita a transitar com brilho e independência entre a comunicação
e a arte. O livro seduz pela surpresa de ainda reservar pequenos exercícios de compo-
sição, personalíssimos apesar de parecerem modismos ou herdados de estéticas antes
assimétricas ao gosto. Publicado em 1967, de formato de bolso, ele herda um passado
de livros notáveis (como, por exemplo, Malerei, Photographie, Film, de László Moholy-
Nagy, 1925), ao mesmo tempo em que é prenúncio da abertura de mercados para os
novos agentes produtores. Mercados, esses, abertos conscientemente através de ati-
tudes objetivas, como manifestadas por Roth.

EM VEZ DE MOSTRAR QUALIDADE (qualidade que surpreende),


NÓS MOSTRAMOS QUANTIDADE (quantidade que surpreende). Tive
essa idéia (Quantidade em vez de Qualidade) desse modo: QUALIDADE
no NEGÓCIO (por exemplo, publicidade) é só uma maneira sutil de ser
propenso à Quantidade: Qualidade na publicidade deseja expansão e (ao fi-
nal) poder = Quantidade. Assim, deixe-nos produzir Quantidades desta vez.4

A pesquisadora Lucy Lippard, em um artigo para a revista Art in America, em


1977, sintetizou com clareza o cenário vislumbrado ao seu redor.

O livro de artista é o produto de vários fenômenos artísticos e não-artísticos


da última década, entre eles uma elevada consciência social, a imensa popu-
laridade dos livros em brochura, uma nova percepção sobre como a arte (es-
pecialmente o dispendioso “objeto precioso”) pode ser usada como um arti-
go de conveniência por uma sociedade capitalista, nova preocupação extra-
arte e uma rebelião contra o crescente elitismo do mundo da arte e sua obso-
lescência dirigida. Não obstante McLuhan, o livro permanece sendo a mais
barata e acessível maneira de transmitir idéias – mesmo idéias visuais. A adap-
tação pelo artista do formato do livro para obra de arte constitui uma crítica
da crítica, tanto como da arte como um “grande negócio”. (“The artist’s book
goes public”, em Lyons, 1987, p. 45; originalmente publicado em Art in

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

4
Dieter Roth, 1965. Foram mantidas as maiúsculas como na fonte citada (o original foi datilografa-
do). Poetry Intermedia: Kunstlerbücher nach 1960. Berlin: Staatliche Museen zu Berlin, 2002. p. 26.

Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 1, n. 2, p. 79-94, 2002 89


America, jan.-fev. 1997; partes do artigo teriam sido publicadas antes em
Artweek, no artigo “Going over the books”, 30 out. 1976.)

Durante o período citado, o circuito publicador de livros mais ou menos al-


ternativos estava sendo formado por pequenos editores de vanguarda que reprodu-
ziram o tom renovador característico da época (Kostelanetz, 1993, p. 202, princi-
palmente). Mas lentamente eles cederam lugar (ou prepararam o terreno) para pro-
dutores com tecnologia e métodos mais requintados, aprendidos, nos anos 80 e 90,
do ensino regular ou oficial. A importância desses recém-chegados tem sofrido um
esforço sério de avaliação pelo meio artístico, sem se cair na facilidade da fábula da
volta do filho pródigo. Foi ressaltada numa exposição interdisciplinar nos Estados
Unidos (1998), envolvendo livros de artistas, projeto gráfico e poesia visual. Para
Johanna Drucker, artista e pesquisadora, curadora da mostra, a arte estaria sendo
empurrada para o reino da atividade industrial, ao mesmo tempo em que os proje-
tistas gráficos e industriais, com mais e mais freqüência, colocam seus talentos em
empreendimentos pessoais, sejam artísticos, sejam sociais.

O trabalho dos projetistas gráficos estabelece as formas que encontramos na


nossa experiência diária com os meios de comunicação de massa, as publica-
ções comerciais e a sinalização do mundo a nossa volta. Projetistas gráficos
trabalham com limitantes muito diferentes daqueles das artes visuais. Eles
precisam atender demandas de mercado e as necessidades de seus clientes,
ao mesmo tempo em que se empenham em produzir uma obra de qualidade
estética e estilo reconhecível sob pressões de prazos e orçamentos. Muitos
artistas gráficos estão também interessados em usar suas habilidades para
contribuir para os debates públicos sobre idéias e problemas políticos. Ou-
tros criam trabalhos para sua própria satisfação, explorando as convenções
da tipografia, legibilidade e comunicação de uma maneira expressiva normal-
mente associada com as artes. (Drucker, 1998, p. 16)

Na comunicação visual é inquestionável a importância do livro – um dos mais


conservadores e permanentes artefatos projetados pela humanidade – como um dos
caminhos para a obra de arte. Projetistas industriais, ilustradores comerciais, dese-
nhistas técnicos, diretores de arte, fotógrafos jornalísticos e publicitários, entre tantos
profissionais da mídia e da indústria, têm conseguido aqui um útil canal para suas
aspirações artísticas pessoais, primeiramente através da arte aplicada, agora também
pela arte em si mesma. E como contrapartida ao espaço reivindicado, eles têm con-
tribuído muito para a evolução do meio, desde o oferecimento de seu conhecimen-
to tecnológico atualizado, até o seu olhar personalíssimo sobre a sociedade e o mer-
cado, passando por questionamentos operativos da arte. Isso parece ser tão mais efe-
tivo quanto mais industrializada e competitiva for a sociedade, ou possua maior oferta

90 Silveira, P. Arte, comunicação e o território intermidial do livro de artista


de recursos financeiros para produção e reprodução da obra. Não custa lembrar que,
na contramão dessas constatações, em mercados subdesenvolvidos ou em desenvol-
vimento a presença do livro-objeto único e escultórico é proporcionalmente mais
relevante que a peça múltipla e gráfica. O livro de artista será tão mais presente quan-
to menos economicamente periférica for uma sociedade ou mais vigorosos forem
os mercados intelectual e artístico.
Para a arte percorrer o caminho rumo à publicação, foi necessário, portanto,
agregar experiência técnica específica. No que diz respeito ao uso das tecnologias
gráficas, foi buscado o equipamento e o conhecimento mais antigo, disponível des-
de o Renascimento. Foram muito úteis as velhas máquinas tipográficas, num certo
momento, para a produção de trabalhos com grandes tiragens, sofisticados ou de
aparência rude, ou para impressões complementares às gravuras artesanais (litografia
colorida, especialmente). Nesse caso, são atendidas exigências mais conservadoras
e que envolvem custos médios ou altos. Em oposição a esse acabamento precioso e
oneroso, o final do século XX disponibilizou aos artistas a revolucionária reprodu-
ção eletrostática, com pequenas máquinas concebidas para uso em escritórios. Os
agentes culturais as tornaram em valentes guerrilheiras. No período mais intenso
da arte postal, quando as inserções no mercado precisavam ser ágeis, as fotocopia-
doras foram usadas até a exaustão, embora seu limite de cópias fosse pequeno. Atual-
mente, a tecnologia das empresas líderes e a informatização de sistemas disponibi-
liza tiragens maiores e com melhor controle de qualidade. Mas para o maior con-
trole do acabamento do projeto, o conhecimento do uso criativo dos principais pro-
gramas de editoração eletrônica é obrigatório. Esse saber é o mesmo utilizado para
a produção dos originais para a impressão ofsete, utilizada em nove entre dez livros
de artista contemporâneos. Criadores das décadas passadas, acostumados às cha-
madas artes-finais (originais em papel a partir de montagens com desenhos, fotos e
colagens, para a posterior obtenção de fotolitos), trocaram a habilidade manual pelo
saber computacional. E acaba mesmo sendo curioso notar que relativamente pou-
cos artistas utilizaram diretamente os filmes e chapas da impressão em ofsete.
Dieter Roth foi um dos pioneiros desses primeiros tempos de ofsete. Seu trabalho
é admirado por uma legião de artistas que incrementam seus talentos com o co-
nhecimento da realidade digital, mas com os pés firmes no legado cultural. Hoje,
também, estamos mais conciliadores. Mas a proposta de Roth (e de muitos outros)
ao mundo da arte ainda está de pé.

ALGUNS ASPECTOS DO MOMENTO ATUAL


Hoje o panorama da produção e da circulação de livros de artista demonstra
ajustamentos e acomodações. Um certo desvanecimento afetou as aspirações dos

Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 1, n. 2, p. 79-94, 2002 91


artistas que promoveram o cruzamento da arte conceitual com a produção de li-
vros. Seus volumes, tão neutros e simples quanto era possível, foram decaindo em
número até quase desaparecer. O seu lugar foi sendo ocupado por uma produção
menor, mas não menos interessante, certamente menos inocente e mais pragmáti-
ca nos seus objetivos. Os livros mais recentes, conceituais ou não, são em menor
quantidade, mas oferecem novas experiências para o olhar, sendo menos mesqui-
nhos quanto ao uso de cores e imagens. Muitas tiragens são subvencionadas por
instituições públicas, às vezes mesmo por galerias particulares, projetando o pensa-
mento artístico em territórios novos ou trazendo-o de volta para lugares que tinham
sido inadvertidamente abandonados. E a circulação ficou mais ágil com a entrada
das livrarias e centros culturais na internet. Por outro lado, certas conformações tra-
zem consigo algumas soluções que podem ser consideradas renovadoras por alguns
comentaristas ou apenas cacoetes fashion, por outros.5 Alerta-se, aqui, para a ne-
cessidade de aperfeiçoamento dos críticos de arte.
Por fim, observaremos que outro nicho de mercado ocupado agora com mais
decisão pelo livro de artista é o das obras multiplicadas a partir de um exemplar in-
dividual que passa a assumir, então, o papel de protótipo. Não se trata de conceber
desde o princípio um original múltiplo, mas de produzir a sua cópia, mesmo. Na
linguagem editorial, o fac-símile. Se tínhamos obras majoritariamente concebidas
desde a origem para a multiplicação, especialmente nos anos 70 e 80, a sedimenta-
ção de mercado e a evolução tecnológica propiciaram a prospecção de alguns ca-
dernos, diários e livros, peças exclusivas e íntimas, agora reproduzidas e multiplica-
das posteriormente ao seu contexto histórico. Além disso, as reimpressões torna-
ram-se menos onerosas. Que amante da arte não quer rever os livros publicados por
Bruno Munari quando em vida? Pois basta esperar. Um a um eles estão sendo re-
publicados. E por preços razoáveis, compatíveis com o comércio livreiro e suas ex-
pectativas de consumo (em geral discretas se comparadas com títulos teóricos e téc-
nicos). À disposição do grande público, para simples desfrute ou para pesquisa, es-
tão obras tão diferentes e originais quanto as de Henri Matisse, Frida Kahlo, El

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

5
Veja o confronto de opiniões com relação a novidades ou modismos, lendo o elogio de Cornelia
Lauf (em catálogo para a exposição Artist/Author, 1998, p. 79, com muitas ilustrações) a uma nova
safra de livros de artista com o aporte do projeto de programadores visuais que trabalham com o
gosto contemporâneo. Lauf chega a citar a entrada, no campo do livro de artista, de alguns catálo-
gos de moda, como os de Romeo Gigli, Karl Lagerfeld, Christian Lacroix e, especialmente, Donna
Karan. Compare com as críticas de Brad Freeman, editor da revista JAB, Journal of Artists’ Books,
feitas à Lauf. Freeman é muito severo com os critérios da curadoria, não aceitando a amplitude da
seleção de obras e abominando a flexibilização excessiva das fronteiras do livro de artista, alertando
para um entendimento que considera distorcido (JAB 11, 1999, p. 27).

92 Silveira, P. Arte, comunicação e o território intermidial do livro de artista


Lissitisky ou John Cage. Às vezes, esses livros são financiados por agentes fomen-
tadores de pesquisa. Outras vezes, o interesse comercial é a única mola possível. Ao
leitor ou ao vedor importará sobretudo a disponibilidade da obra.
No original ou em fac-símile, o livro de artista instituiu uma das mais interes-
santes especializações no mercado de bens culturais. Arte quase sempre barata, quase
sempre múltipla, em todos os lugares. Esse fluxo de mercadorias muito específicas
tem pouco mais de um século, sendo, portanto, recente. Teve expansões e retrações,
mas está consolidado. O produto oferecido é atraente: ler e ver o artista através de
seus próprios sinais, sem tradutores e a qualquer momento.
Os melhores e mais originais artistas do século XX abduziram do mais rele-
vante e eficiente veículo de informação seus procedimentos, seus preceitos e suas
estratégias. Ao fazer isso, propiciaram uma lufada de ar puro sobre estruturas vi-
ciadas por séculos de devoção ao produto luxuoso. Em retorno, a arte ofereceu
para o mundo editorial mais que simples conhecimento compositivo ou juízos ul-
trapassados de valor. Ofereceu a ousadia e novidade que antes só poderia ser en-
contrada na dimensão da simples leitura do texto, do assunto. O próprio livro, aqui
mais afastado da funcionalidade da comunicação, mas traficando essa funciona-
lidade à arte, se pensa, se reconsidera. Aceitou-se e nega-se como suporte, conti-
nuamente, num conflito fértil. E ainda oferece um pouco mais. Refletir sobre a
paisagem do território intermidial deixa ainda um último e irônico pensamento,
por certo impertinente. Não seria despropositado inferir que, ao buscar a arte em
seus modelos mais puros ou sentidos mais elevados, o profissional de criação rei-
vindique algum tipo de ascensão moral ou espiritual. E que, por sua vez, o artista,
ao buscar a comunicação (através de suas teorias, de suas ferramentas e de seus
procedimentos), almeje algum grau de vulgarização, de mundanismo positivo, aqui
traduzido pela luta contra a alienação social ou política da qual ele é tão freqüen-
temente acusado. Por que não dizer, situações geradoras de um composto fértil,
um verdadeiro húmus, rico em aspirações. Desse substrato brotam linguagens da
mais alta qualidade e obras de arte da mais absoluta contemporaneidade. Aqui, aí
e em qualquer parte, acessível em todo lugar.

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