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Introdução *
Este artigo é inspira-
do no Capítulo 3 de
minha tese de douto-
O projeto inaugural a partir do qual a Academia Brasileira de Letras foi
rado, intitulada Fardos
criada (em 1897, na cidade do Rio de Janeiro), assegurou-lhe uma complei- e fardões: mulheres na
ção marcadamente androcêntrica, característica esta que permaneceu Academia Brasileira de
inalterada por décadas a fio. Com isso, a elegibilidade feminina, ainda que Letras (1897-2003),
tenha integrado a pauta de algumas das incontáveis sessões acadêmicas, foi defendida em 2009 no
Departamento de So-
mantida fora de cogitação, precisamente durante os oitenta primeiros anos
ciologia da USP.
de sua existência, ora em decorrência de um acordo tácito – inicialmente
estabelecido entre seus membros fundadores, mas logo transformado em
legado –, ora respaldada pelo Regimento Interno. Conforme o Art. 2º do
Estatuto da Academia Brasileira de Letras:
1. As subsequentes men- “os membros efetivos da Academia serão eleitos dentre os brasileiros, nas
ções à agremiação apare- condições do art. 2.º dos Estatutos, que se apresentarem candidatos, me-
cerão sob a forma abrevi-
diante carta dirigida ao Presidente e entregue na Secretaria, que da mesma
ada de ABL.
passará recibo”.
2.Carolina Wilhelma
Muito embora infensa à presença feminina durante esses longos anos, a
Michaëlis de Vasconce-
los (1851-1925) nasceu
Academia Brasileira de Letras1 não deixou de sediar algumas discussões
em Berlim, mas morou desencadeadas por propostas e/ou pela cogitação de candidaturas que “desa-
grande parte de sua fiavam” suas origens misóginas. No presente artigo, pretende-se iluminar os
vida em Portugal, ten- bastidores de dois episódios que ilustram muito bem esta situação. O pri-
do falecido na cidade meiro, praticamente desconhecido (o que justifica, de saída, seu tratamen-
do Porto. Em 1916, é
to), diz respeito à cogitação do nome da filóloga Carolina Michaëlis, em
eleita para a Academia
das Ciências, porém, 1911, para concorrer a uma vaga entre os sócios correspondentes da agre-
por se tratar de mulher, miação. Já o segundo acontecimento merece ser descortinado, sobretudo,
seu ingresso suscitou por se tratar da primeira proposta formal de candidatura enviada à ABL, de
discussões e estranha- autoria de uma mulher. Referimo-nos à tentativa da escritora Amélia Bevi-
mento. Ver <http://ww
láqua, em 1930, de obter da entidade a validação de sua inscrição na disputa
w.instituto-camoes.pt/
cvc/hlp/biografias/cm por uma Cadeira entre seus membros efetivos.
vasconcelos.html>. Destarte, pretende-se, neste artigo, abordar a antessala da ABL, no que
3.De acordo com art.
concerne a estas duas, digamos, “ausências institucionais”.
1º dos Estatutos da
ABL, § 1º, “a Academia O veto à candidatura de Carolina Michaëlis: um “insuspeito pretexto”
compõe-se de 40 mem-
bros efetivos e perpé- A partir das informações compulsadas na Biblioteca Lúcio de Mendonça
tuos, dos quais 25, pelo
e no Arquivo ABL, o ano de 1911 foi marcado pela polêmica acerca da
menos, residentes no
Rio de Janeiro, e de 20 (im)possibilidade de candidatura feminina, desencadeada pela cogitação do
membros correspon- nome da filóloga Carolina Michaelis2 para compor o quadro de sócios cor-
dentes estrangeiros, respondentes da entidade, na sucessão do escritor russo, Léon Tolstoi
constituindo-se desde já (1828-1910), que até então ocupava a Cadeira 173. Quanto a isso, o período
com os membros que
abaixo, extraído da Ata da sessão ocorrida em 9 de setembro de 19114 com-
assinarem os presentes
Estatutos” (Estatutos e prova tal indicação, que vem acompanhada pela sugestão do nome do escri-
Regimento Interno da tor francês Anatole France. Ambos são apresentados como potenciais candi-
ABL, 1910). datos para a disputa pela vaga em aberto.
4.Participaram da ses-
são Afonso Celso, José
A ordem do dia é a eleição de um membro correspondente à vaga de Tolstoi.
Veríssimo, João Ribei-
Porque fossem lembrados [sic] os nomes do Sr. Anatole France e D. Carolina
ro, Artur Orlando, Sal-
vador de Mendonça, Michaëlis de Vasconcelos.
Coelho Neto, Carlos de
Vale registrar que o Regimento Interno de 1901, então vigente, não Laet, Silva Ramos,
apresenta qualquer restrição ao ingresso feminino: Rodrigo Octávio, Filin-
to de Almeida, Araripe
Jr., Alberto de Olivei-
Art. 32 – As eleições para preenchimento da vaga de membro correspondente ra, Souza Bandeira e
serão feitas mediante indicações apresentadas por Acadêmicos e após o estudo de Afrânio Peixoto.
uma comissão, especialmente nomeada pelo Presidente para informar a Acade-
mia acerca dos candidatos propostos (Estatutos e Regimento Interno da ABL,
1901, p. 24).
O Sr. Afonso Celso acha que se deve preliminarmente resolver a questão do sexo,
como condição para a elegibilidade. O Sr. Souza Bandeira diz que não considera
Anatole France superior em sexo à D. Carolina, mas a eleição desta não seria
possível por se achar preenchido o número de correspondentes portugueses.
5. Conforme levanta- De acordo com tais critérios foi possível constatar que, no ano de 1910,
mentos documentais dez novos sócios correspondentes foram eleitos, dos quais metade possuía
realizados na Bibliote-
nacionalidade portuguesa5. Levando-se em consideração este quadro, bem
ca Lúcio de Mendon-
ça/ABL, os dezenove como o fato de outras cinco Cadeiras já estarem ocupadas por portugueses,
acadêmicos que então as vagas destinadas ao país estavam, de fato, integralmente preenchidas6.
ocupavam a posição de Assim, vincular a impossibilidade de candidatura de Michaëlis à sua
sócios correspondentes nacionalidade poderia soar como uma excelente justificativa, posto que ofi-
eram: os portugueses
cialmente respaldada, não fosse o fato de a filóloga ter nascido na Alema-
Gonçalves Viana (elei-
to em 1910), Carlos
nha, e não em Portugal, como “supuseram” os acadêmicos.
Malheiros Dias (eleito Fruto de uma inacreditável manobra, o veto à Carolina Michaëlis, ocor-
em 1907), Jaime de Sé- rido durante a presidência de Rui Barbosa, que ocupou o cargo entre 1909 e
guier (eleito em 1910), 1919, é exemplo contundente de que a “questão do sexo”, ainda que profun-
Antônio Correia de Oli- damente partilhada pelos membros da ABL, não chegou a ser explicitamen-
veira (eleito em 1910),
te mobilizada para fundamentar uma inadmissão feminina. Estamos, pois,
Eugênio de Casto (elei-
to em 1898), Guerra diante de uma verdadeira “lacuna institucional”. No lugar de Carolina Mi-
Junqueiro (eleito em chaëlis, foi eleito o austríaco Martin Brussot, em 1912.
1898), Cândido de Fi-
gueiredo (eleito em A Academia, afirma o Dr. Constâncio Alves, não quis aceitar Júlia Lopes de Al-
1901), Ramalho Orti-
meida e mais tarde recusou o [nome] de Carolina Michaëlis para sócia correspon-
gão (eleito em 1910),
Teófilo Braga (eleito em dente. Que prova isso? O ponto de vista errado, o misogenismo da Academia, que
1898), Conde de Mon- não soube fazer justiça à romancista brasileira nem à notável escritora Carolina
saraz (eleito em 1910), Michaëlis, a quem a Academia de Ciências de Lisboa ofereceu uma cadeira. Po-
os poloneses Henrik rém essas escritoras nada propuseram; eu fui oficialmente repelida, e, assim, é
Sienkiewicz (eleito em
muito mais ofensiva a recusa (Beviláqua, 1930, p. 114).
1900) e Jean Finot (elei-
to em 1910), o uru-
guaio Javier de Viana Pouco tempo depois, em trinta de setembro de 1911, nova reunião acon-
(eleito em 1910), o bel- tece, e o assunto vem novamente à baila7. A Ata da sessão assemelhou-se, e
ga Victor Orban (elei- muito, àquela que a antecedeu, especialmente no que concerne às propos-
to em 1910), o perua- tas anteriormente encaminhadas por Afonso Celso, que encontraram eco
no José Santos Choca-
nas então perfilhadas por Salvador de Mendonça:
no (eleito em 1910), o
italiano Guglielmo Fer-
rero (eleito em 1907), Na ordem do dia, entra em discussão, a propósito da candidatura de Carolina
o francês Paul Grous- Michaëlis, a elegibilidade das mulheres à Academia. O Sr. Salvador de Mendonça
sac (eleito em 1898), o levanta questões de princípio e ordem: por que, em tal assunto, não começarmos
argentino Rafael Obli-
pela elegibilidade ou eleição das brasileiras? Refere [sic] controvérsias aos primei-
gado (eleito em 1898)
ros tempos na Academia. Encarece um nome que é do respeito e da admiração de
e o sueco Goran Bjork-
man (eleito em 1910). todos: o da Sra. Júlia Lopes de Almeida. Depois, estaremos em caso de decidir
assunto tão grave, sem a maioria, ao menos, dos acadêmicos residentes?
Percebe-se, facilmente, o mal-estar provocado pelo assunto entre os aca- 6.À guisa de ilustração,
dêmicos, que tendiam, muitas vezes, a solicitar foro especial para seu “ade- os portugueses que já
compunham o quadro
quado” tratamento. Desse modo, e consoante às manifestações polidas, que
de sócios corresponden-
tentavam evidenciar a premência do tema (como que para cumprir proto- tes, antes da eleição de
colos), tratado sempre a conta-gotas, a maioria dos acadêmicos protelava o 1910, eram: Eugênio de
encaminhamento da discussão, lançando mão de justificativas que iam res- Castro (eleito em 1898),
valar, ora na ausência de quórum, ora no manejo enviesado do Regimento Teófilo Braga (eleito em
1898), Guerra Junquei-
Interno, ora no julgamento de que se tratava de questão excepcional, cul-
ro (eleito em 1898),
minando em seu frequente adiamento, transformado em “assunto merece- Carlos Malheiro Dias
dor de sessões especiais”. Por conta disso, a elegibilidade feminina passou, (eleito em 1907) e Cân-
cada vez mais, a adquirir o caráter de “decisão improvável”, de tal maneira dido de Figueiredo (elei-
que apostar na realização de reuniões extraordinárias se tornou uma forma to em 1901).
de manter o assunto em “banho-maria”. 7.Contando com a
presença de Salvador de
Mendonça, Mário de
QUADRO 1
Alencar, Afonso Celso,
Atuais sócios correspondentes da ABL (em destaque, as mulheres) José Veríssimo, Filinto
CADEIRAS PATRONOS ATUAIS OCUPANTES PAÍS DE ORIGEM
de Almeida, Paulo Bar-
(NACIONALIDADE BRASILEIRA) reto, Rodrigo Octávio,
1 Alexandre de Gusmão Antônio Alçada Baptista Portugal Silva Ramos, Carlos de
2 Antônio José da Silva, o judeu Mário Soares Portugal Laet, Arthur Orlando,
3 Botelho de Oliveira Urbano Tavares Rodrigues Portugal João Ribeiro, Dantas
4 Eusébio de Matos António Braz Teixeira Portugal Barreto, Augusto de
5 D. Francisco de Sousa Mia Couto Moçambique Lima, Coelho Neto,
6 Mathias Ayres Arnaldo Saraiva Portugal Alberto de Oliveira e
(na sucessão de Luciana S. Picchio) Afrânio Peixoto,.
7 Nuno Marques Pereira Joaquim Veríssimo Serrão Portugal
8 Rocha Pita Agustin Buzura Romênia
9 Santa Rita Durão Adriano Moreira Portugal
10 Frei Vicente do Salvador Agustina Bessa-Luís Portugal
11 Alexandre Rodrigues Ferreira Curt Meyer-cCason Alemanha
12 Antônio de Morais Silva Fred P. Ellison Estados unidos
13 Domingos Borges de Barros Jean d’Ormesson França
14 Frei Francisco de Mont’Alverne Daysaku Ikeda Japão
15 Frei Gonçalves Ledo Claude L. Hulet Estados Unidos
16 José Bonifácio de Andrada e Silva Maurice Druon França
17 Odorico Mendes Vitorino Magalhães Godinho Portugal
18 Silva Alvarenga José Vitorino de Pina Martins Portugal
19 Sotero dos Reis Alain Touraine França
20 Visconde de Cairu Eduardo Lourenço de Faria Portugal
8.Durante o período de
Um silencioso interregno
criação da ABL, o nome
da escritora Júlia Lopes
de Almeida foi cogita- Em 1920, em virtude do falecimento de Francisca Júlia, Humberto de
do por Lúcio de Men- Campos se incumbe do necrológio da poetisa e, em meio à preleção, tam-
donça para compor seu bém rememora os controversos primeiros anos de existência da ABL, ao
quadro de membros
afirmar que, caso fosse possível a presença de escritoras na agremiação, esta-
fundadores. Com exce-
ção de José Veríssimo, riam todos diante da perda de uma acadêmica, cuja Cadeira estaria coberta
Valentim Magalhães e em crepe (Venâncio Filho, 2006, p. 13). Como se vê, por serem conjecturais,
Filinto de Almeida, este tais homenagens germinam em campo fértil: pelo simples fato de não pas-
último, marido de Júlia sarem de suposições, os preitos como que arrefecem o real pendor misógino
Lopes, a sugestão foi
da agremiação. Ao propor imaginar como seria se Francisca Júlia houvesse
negada, sob a alegação
de que a agremiação,
integrado a instituição, Humberto de Campos transforma a ausência “de
ainda embrionária, se- fato” da escritora em “presença momentânea”, e esse exercício exime, de
guiria os passos da con- certa forma, parte da responsabilidade da Academia, permitindo que o con-
gênere francesa, a Aca- fronto real com o tema seja dissolvido em uma solenidade de enaltecimento
démie Française de Let- que, ao simular uma presença, se pretende “restituidora”.
tres, fundada em 1635,
Passados dois anos, em 1922, a Revista Brasileira publicou um artigo de
cujo Regulamento res-
tringia a candidatura aos Carlos Magalhães de Azeredo (acadêmico que já havia se posicionado favo-
indivíduos do sexo mas- ravelmente ao ingresso de Júlia Lopes de Almeida8, em 1897), com o título
culino. “O feminismo e a Academia: comentário sobre um concurso”. O texto
Imagino que os mais espantados teriam sido juízes mesmo, quando viram a quem
haviam premiado! De fato, ainda não é a entrada das mulheres na Academia que eu
advogava há meses, mas já o reconhecimento estrondoso – tanto mais impressiona-
dor, porque o produziu a força das coisas e não o arbítrio dos homens – de que se con-
tinuam a fechar-lhes as nossas portas, não se podendo alegar que seja por lhes faltar a
elas merecimento para serem admitidas na nossa companhia. Por minha parte, per-
sisto em opinar que seria tão vantajoso, quanto justo consagrar-lhes a elegibilidade.
rotina dos anos seguintes da ABL, e fez com que as discussões em torno da
elegibilidade feminina esfriassem, até que, em 1930, um fato inusitado, im-
previsto e sem precedentes, tomou de assalto os acadêmicos, lembrando-os
da existência de antiga pendência, que remontava ao período de criação da
agremiação. A surpresa em questão ficou por conta da proposta de candida-
tura encaminhada por Amélia Beviláqua ao então presidente, Aloísio de
Castro, intenção oficialmente comunicada aos acadêmicos em sessão ocorri-
da no dia 29 de maio de 1930. Ao anúncio seguiu-se um alvoroço, que fora
sucedido pela realização das já típicas “reuniões extraordinárias”, nas quais
os acadêmicos se viram impelidos a lançar luz sobre aquela sombra vetusta,
que não apenas os acompanhava cotidianamente, mas os mantinha ligados
de forma umbilical ao ano de 1897. Afinal, perguntavam-se atabalhoados,
“deve a mulher pertencer à Academia Brasileira de Letras?”.
As passagens a seguir, de autoria de Amélia Beviláqua, fornecem impor-
tantes indícios acerca do desfecho do episódio por ela protagonizado, cujos
pormenores serão descortinados na próxima seção.
Fiquei indecisa. Não sabia mesmo o que devesse responder; senti uma espécie de
aniquilamento de vida, talvez paralisação das forças imediatamente suspensas pela
hesitação moral. Entretanto, para corresponder à delicadeza da pergunta, concordei
em escrever qualquer coisa, sem alegria nem entusiasmo (Beviláqua, 1930, p. 16).
A Academia, afirma o Dr. Constâncio Alves, não quis aceitar [o nome de] Júlia
Lopes de Almeida e mais tarde recusou o de Carolina Michaëlis para sócia corres-
pondente. Que prova isso? O ponto de vista errado, o misogenismo da Academia,
que não soube fazer justiça à romancista brasileira nem à notável escritora Caro-
lina Michaelis, a quem a Academia de Ciências de Lisboa ofereceu uma cadeira.
Porém essas escritoras nada propuseram; eu fui oficialmente repelida, e, assim, é
muito mais ofensiva a recusa (Idem, p. 114).
Os documentos vários
Que nesse livro vosso agora estão preitos
Não são apenas literários.
Aliás, é preciso salientar que a negativa da ABL foi eclipsada pela docu-
mentação produzida pelos próprios acadêmicos, já que tanto as atas como
os textos que compõem o acervo da agremiação não fazem menção ao inte-
resse de Amélia Beviláqua em integrar o “panteão dos imortais”: seu nome
sequer chega a figurar na lista de candidatos à vaga por ela pleiteada. E,
quanto a isso, não fosse a iniciativa da escritora em registrar o episódio e
publicá-lo, dele não restariam mais do que silêncios, vazios, lacunas – e
muitos poderiam apostar piamente em sua inexistência.
Se, de um lado, o livro A Academia Brasileira de Letras e Amélia Beviláqua
tem como pedra-de-toque o desabafo da escritora, inconformada com a deli-
beração da ABL, ao “homologar” a recusa de sua candidatura, de outro, a
publicação atua como uma forma de garantir ao episódio certa visibilidade e
oficialidade, livrando-o, ao menos em parte, da possibilidade de entoar o
coro dos “vazios institucionais”, cuja inevitável fortuna é o esquecimento,
ou seja, a inexistência histórica produzida pelos “déficits documentais”
(Perrot 2005).
Muito embora inicie a obra tecendo agradecimentos àqueles que apoia-
ram a sua candidatura, Amélia Beviláqua também enxergava na publica-
ção um potente instrumento de delação, por meio do qual poderia insur-
gir-se contra os “imortais misogenistas”, alfinetando e provocando aqueles
que endossaram tal impedimento, ou que foram com ele coniventes. A es-
critora credita à posteridade a reparação desse equívoco, ao vislumbrar a
possibilidade de justiça ser feita ao menos a outras senhoras. Nestes ter-
mos, o livro não pode ser investigado se apartado de uma dimensão que
lhe é crucial: a desforra.
O Sr. Félix Pacheco, dado como presente, não havia comparecido, e fez declara-
ção de voto favorável à entrada das senhoras, na Academia Brasileira de Letras.
[...] a indicação [do nome da escritora] não pode ser aceita, pois corresponde, em
linguagem jurídica, ao que se chama “embargos de declaração”, isto é, o acadêmi-
co Laudelino Freire apela da decisão da Academia para a própria Academia, a fim
de que esta considere a interpretação por ela dada ao vocábulo “brasileiro”. A
matéria é adiada (Venâncio Filho, 2006, p. 21).
A igreja tem seus conventos. Nuns estão os frades, noutros estão as freiras. Nin-
guém briga pela seleção. É natural. Lá, as religiosas trabalham pela glória de
Deus; as nossas escritoras podem também, na sua academia, trabalhar pela glória
das letras (Idem, p. 21).
sexos. Assim está nas constituições federais. Assim está no código civil. Assim o
esclareceria a velha jurisprudência romana (Meira, 1990, pp. 301-302).
Quando se fala de homem, de modo geral, a expressão abrange os dois sexos [...].
Para a Academia, porém, na dicção – brasileiro, o gênero gramatical implica,
necessariamente, o sexo. E, como sua autoridade é grande teremos de concluir
que, no Brasil, as mulheres não têm nacionalidade, nem direitos (Idem, p. 55).
As reticências, em diplomacia,
são recursos melhores que qualquer,
Eu sei de gente má que malicia
pelo que se disser ou não disser
***
ridade para questionar o despiste semântico operado por seus pares acadê-
micos – como jurista e membro fundador da ABL –, sua fala adquiriu certa
expressividade no campo literário, mas foi insuficiente para promover qual-
quer alteração regimental. Diante disso, ao ver-se testemunha do desrespei-
to da agremiação ao que considerava um “preceito elementar da hermenêu-
tica”, Clóvis Beviláqua tornou pública a sua ruptura com o “Silogeu maior”,
deixando de frequentar as reuniões após a inadmissão de sua esposa, tal
como informa a Gazeta de Notícias, de 20 de agosto de 1930. Em que pese
a decisão do jurista, seu desligamento definitivo jamais chegou a ser concre-
tizado, pois o título de membro da ABL é vitalício e irrenunciável.
Por suposto, o rompimento simbólico de Clóvis Beviláqua com a ABL
pode ser entendido como fruto de um processo de reavaliação de sua carrei-
ra, cujos rumos, acertos e percalços o vinculavam diretamente à trajetória
de Amélia Beviláqua e, portanto, à parceria que com ela estabeleceu.
Nestes termos, a atitude de Clóvis Beviláqua, antes de representar um
gesto ferrenho de desaprovação quanto à inelegibilidade feminina, deixa
subentendido que as bases de seu posicionamento assentavam-se no
companheirismo, de modo que sua decisão exprime uma reação pautada
pela dimensão sentimental que emanava de seu vínculo com Amélia Bevi-
láqua. Em suas manifestações públicas, o jurista parecia estar menos empe-
nhado em interceder favoravelmente quanto à presença de mulheres na
ABL, tomada como uma causa geral, do que em externar seu descontenta-
mento perante uma recusa específica: a de sua parceira literária e conjugal.
Até mesmo porque, quando da possibilidade de ingresso de Júlia Lopes, o
“Mestre” manteve-se alheio às discussões, não esboçando qualquer envolvi-
mento com a questão da “admissão feminina”.
Francisco Galvão, por exemplo, que chega a entrevistar Clóvis Bevilá-
qua, faz um comentário que nos transmite esta ideia de parceria e com-
panheirismo que parece ter marcado a trajetória do casal. A entrevista
tem como preâmbulo a apresentação de algumas características do entre-
vistado e é entremeada de informações sobre o cenário em que a conversa
se desenvolverá, no caso, a própria residência dos Beviláqua. Possivel-
mente com o intento de fornecer ao leitor elementos que possibilitem
certa familiarização com o espaço em que vive o acadêmico, Galvão faz
referência à Amélia Beviláqua: “a seu lado, a sua companheira de todas as
horas, a escritora Amélia de Freitas Beviláqua, de certo um nome credenciado
em nossas letras, revê as provas de seu último livro” (Galvão, 1937, p.
84). Vê-se que a escritora é apresentada não menos como a companheira
Assim sendo, e a despeito dos elogios que recebeu da “tríade dos críticos
consagrados” (Eleutério, 2005, p. 175), a saber, Araripe Jr., João Ribeiro e
Sílvio Romero, ou mesmo do convite que recebeu para integrar a Academia
Piauiense de Letras e da homenagem prestada pela “Casa de Juvenal Galeno”
(Fortaleza, CE), ao lhe ser atribuído o título de patrona da Cadeira 48 da
Ala Feminina, Amélia Beviláqua não encontrou acolhida na ABL.
Sem dúvida, tais demonstrações de respeito e reconhecimento, ainda
que a tenham confortado, não foram capazes de arrefecer o sentimento de
alijamento e decepção que a proibição de sua candidatura na ABL lhe cau-
sara. A sensação experimentada por Amélia Beviláqua muito a aproxima da
condição de outsider, conceito utilizado por Norbert Elias e John Scotson
para traduzir a posição daqueles indivíduos preteridos de determinado esta-
blishment, isto é, da “minoria dos melhores”. Nestes termos, o episódio
vivido pela escritora, sintetizado nos significados subjacentes à ideia de “au-
toindicação”, deixa à mostra sua posição desvantajosa no gradiente de po-
der cujo topo é ocupado por aquele “grupo que se autopercebe [...] a partir
de uma combinação singular de tradição, autoridade e influência” (Elias e
Scotson 2000, p. 7). A inadmissão de Amélia Beviláqua foi um golpe des-
ferido contra sua autopercepção, que já se denunciava abalada, haja vista a
declarada submissão da escritora (em termos de talento e cacife) em relação
àqueles escritores renomados, prestigiados.
O que então se passou provocou imenso trauma no casal Beviláqua, pessoas puras e
sem malícia, de um momento para outro envoltas em um aranzel de comentários e
competições desordenadas. E os comentários da imprensa! (Meira, 1990, p. 301).
No entanto, além de a votação não ter sido favorável à emenda, uma vez
que os acadêmicos julgavam se tratar de uma questão estatutária (por sua
vez, impassível de alteração), o ano de 1951 assiste a uma modificação subs-
tancial em seu Regimento Interno – frontalmente infensa à proposta de Ori-
co –, tornando oficial o que até então era velado: a inelegibilidade feminina.
Vale ressaltar que a proibição ao ingresso feminino já aparecia improvi-
sadamente incorporada ao Regimento Interno de 1927, em tinta vermelha,
tal como evidencia a página original do Regimento (Fig. 1), sendo que ape-
nas em 1951 a “Casa de Machado de Assis” promove a inclusão, no corpo
do texto, do aposto “do sexo masculino”, que restringe a própria norma
estatutária e oficializa o pendor misógino da entidade.
Art. 17 – Os membros efetivos serão eleitos, nas condições do art. 2.º dos Estatu-
tos, dentre os brasileiros, do sexo masculino, que tenham publicado, em qualquer
gênero de literatura, obra de reconhecido mérito, ou, fora desses gêneros, livros
de valor literário (Estatutos e Regimento Interno da Academia Brasileira de Le-
tras, 1951, grifos nossos).
Fig. 1 Página original do Regimento Interno da ABL, de 1927. Ao longo da existência da agremiação,
modificações pontuais processaram-se no documento, de modo que o art. 30 passa a corresponder ao art.
17 nas edições posteriores a 1951. Percebe-se aqui o adendo, na margem, que viria a ser oficialmente
incorporado à redação do Regimento de 1951, segundo o qual “a expressão ‘brasileiros’ só se aplica aos
escritores “do sexo masculino”.
Fonte: Biblioteca Lúcio de Mendonça/ABL.
Ignora o público, e ignoram até muitos acadêmicos, que esse Regimento foi
maculado por feia e mesquinha emenda. Esta emenda tornou as cadeiras azuis
dessa Casa um privilégio do “sexo masculino”, com isso deturpando as intenções
dos fundadores, que aludiram somente a brasileiros em geral com obras publicadas
(Venâncio Filho, 2006, p. 32).
Considerações finais
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______. Ata da ABL, 9 set. 1911.
______. Ata da ABL, 30 set. 1911.
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Entrevistas
Resumo
Abstract
Feminine (In)eligibility in the Brazilian Academy of Letters: Carolina Michaëlis and Amélia
Beviláqua’s experiences
The Brazilian Academy of Letters emerged as an environment resistant to the pres-
ence of women. Although it was unthinkable during its first eighty years of exist-
ence, the question of “feminine eligibility” did make the agenda of some of the
academic sessions. The present article seeks to shed light on this issue by taking a
backstage look at two key episodes, from 1911 and 1930, respectively: the consider-
ation of the philologist Carolina Michaëlis as a candidate to the board of non-effec-
tive members of the House of Machado de Assis and the official candidacy of Amélia
Beviláqua, the first woman to vie for a seat among the effective members of the
academy.
Keywords: Sociology of Culture; Carolina Michaëlis; Amélia Beviláqua; Brazilian
Academy of Letters; Feminine eligibility.