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O Egito no Livro XVII da Geografia,

de Estrabão: contribuições para o ensino


de História*

Laila Lua Pissinati

Introdução

O
Movimento Negro do Brasil desenvolveu ações e lutas
desde o final do século XX reivindicando maior atenção
ao estudo da história africana e das afrobrasilidades.
A educação sempre atraiu a atenção do movimento devido ao
seu papel estratégico na sociedade. Graças a essa bandeira, em
janeiro de 2003 foi sancionada a Lei 10.639 e, no ano seguinte,
o Parecer CNE/CP 03/2004 e a Resolução CNE/CP 01/2004
foram aprovados pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).
Ambos regulamentam e instituem as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o
ensino de história e cultura afro-brasileira e africana.1
Nilma Lino Gomes afirmou que as leis e diretrizes incluíram
o direito à diferença, mas a sua efetivação como política pública
em educação percorre ainda um caminho grande e complexo no

*
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de
Financiamento 001.
1
GOMES, N. L. Diversidade étnico-racial, inclusão e equidade na educação
brasileira: desafios, políticas e práticas. Revista Brasileira de Política e
Administração da Educação, v. 27, n. 1, p. 109-121, 2011, p. 112, 114-115.

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Brasil.2 É possível perceber o seu potencial indutor de programas


e ações direcionados à sustentação de políticas de direito e de
reforço às questões raciais em uma perspectiva mais ampla e
inclusiva que vêm sendo realizadas pelo Ministério da Educação
e pelos sistemas de ensino, em graus muito diferenciados.
No entanto, as iniciativas para a concretização dessa política
ainda carecem de enraizamento. A sua efetivação depende da
mobilização da sociedade civil a fim de que o direito à diversidade
étnico-racial seja garantido nas escolas, nos currículos, nos
projetos político-pedagógicos, na formação de professores, nas
políticas educacionais e etc.
Apesar da lei ter sido sancionada, tornando obrigatório a
inclusão da diversidade étnico-racial no ensino regular, ela pouco
foi posta em prática. Solange Rocha e José Antônio Novais da
Silva chamaram atenção para o fato de que mesmo depois de
dez anos da lei, muito pouco se avançou no que tange a prática
do ensino de história da África e das africanidades.3 Ainda hoje,
por exemplo, perdura a ideia de um Egito totalmente branco e,
mais que isso, muitos sequer o percebem como pertencente ao
continente africano.
Este capítulo, portanto, se alinha com a tentativa de
transformar o quadro de ensino das identidades étnico-raciais
na educação básica, apresentando a Geografia, de Estrabão,
especificamente o Livro XVII, e alguns aspectos do Egito que
foram abordados pelo autor em sua obra. Buscamos pensar nos
modos como esse conteúdo pode ser usado como fonte didático-
pedagógica nas aulas de História do ensino regular.

2
Ibidem, p. 116.
3
ROCHA, S.; SILVA, J. A. N. da. À luz da Lei 10.639/03, avanços e
desafios: movimentos sociais negros, legislação educacional e experiências
pedagógicas. Revista da ABPN, v. 5, n. 11, p. 55-82, 2013.

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O Egito no Livro XVII da Geografia de Estrabão

Quem foi Estrabão?

Em linhas gerais, praticamente tudo o que se sabe sobre


a figura de Estrabão provém da própria Geografia. Ele foi um
historiador e geógrafo nascido por volta 64 e 50 a.C., em Amaseia,
Ásia Menor, capital do antigo reino do Ponto, região do Norte da
península da Anatólia, ao Sul do mar Negro e morreu por volta de
20 d.C. Entretanto, essas datas são discutíveis. Claude Nicolet4
foi quem determinou os anos de 64-63 a.C. como prováveis
para o nascimento do geógrafo, baseado na interpretação de
expressões utilizadas pelo próprio autor ao longo dos livros: “no
meu tempo” ou “pouco antes do meu tempo de vida”. Sarah
Pothecary5 e Katherine Clarke6 propuseram um recuo para 50
a.C. – fato que tornaria possível estender a morte de Estrabão
para o final da década de 20 d.C., colocando-o como expectador
da passagem da República Romana para o Império e do governo
dos dois primeiros imperadores.7
A identidade, a história genealógica e a formação
intelectual de Estrabão estão ligadas à Ásia Menor. Membro
da elite do Oriente mediterrânico, foi educado à língua e aos
costumes gregos. Amigo de governantes e preceptores de futuros
imperadores, sua avó materna era filha de Dorilau – um general
e amigo de Mitríades V, do Ponto – com uma mulher de Cnossos,

4
NICOLET, C. Space, geography, and politics in the early Roman Empire. Ann
Arbor: The University of Michigan Press, 1988.
5
POTHECARY, S. Strabo, the Tiberian Author: Past, Present and Silence in
Strabo’s “Geography”. Mnemosyne, fourth series, v. 55, n. 4, p. 387-438, 2002.
6
CLARKE, K. In Search of the Author of Strabo’s Geography. Journal of
Roman Studies, v. LXXXVII, p. 92-110, 1997.
7
SILVA, B. dos S. Introdução aos estudos sobre a Geografia, de Estrabão.
Mare Nostrum, v. 1, p. 71-83, 2010, p. 73-74.

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de nome Estérope. Teve como professores figuras ilustres como


Aristodemo de Nisa, Xenarco de Selêucia e Tirânio de Amiso.8
Suas viagens lhe permitiram escrever a obra Geografia.
Esteve em Roma por quatro vezes e ele mesmo resume suas
viagens afirmando que viajou “em direção ao Ocidente da
Armênia até a região da Etrúria oposta à Sardenha, e em direção
ao Sul, do Mar Negro até as fronteiras da Etiópia”. Visitou Roma
pela primeira vez por volta de 44 a.C., ano da morte de Júlio
César. Anos mais tarde, assistiria à ascensão de Augusto e à
implementação do Principado. Visitou o Egito por volta dos seus
30 anos e acompanhou Elio Galo – terceiro governador romano
do Egito (27-25 a.C.), sob Augusto –, a quem chama de amigo, e
seus soldados a uma viagem pelo Egito.9
Claude Nicolet apresenta um Estrabão propagandista e
apologético de Augusto. Para ele, a Geografia seria um panfleto
a favor de Augusto. François Lassere observa em Estrabão um
escritor ambíguo do ponto de vista político, pois percebe certa
hesitação no sentimento pró-romano. Para Lassere, o geógrafo
vê com bons olhos a expansão territorial do Império, mas
também sente certo desconforto diante da suspensão de algumas
liberdades no mundo helênico.10 Já Fabiana Zuliani entende que
o autor pensa o “espaço” e o “tempo” ao longo da Geografia em
duas noções que se complementam.11 Para a autora, Estrabão vê

8
SILVA, B. dos S. Estrabão e as províncias da Gália e da Ibéria: um estudo
sobre a Geografia e o Império Romano. Dissertação (Mestrado em História) –
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2013, p. 52.
9
Ibidem, p. 52.
10
Apud ZULIANI, F. de M. Passado e presente em Estrabão: as estruturas
espaço-temporais da Geografia e suas relações com o Império Romano.
Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999, p. 22-29.
11
Ibidem, p. 22-29.

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O Egito no Livro XVII da Geografia de Estrabão

dois grandes espaços no Império Romano, um que corresponde


às regiões da Península Itálica e da Grécia, e outro que abarca
todas as outras regiões conquistadas pelos romanos. Ao tratar do
primeiro espaço proposto (Itália e Grécia), o autor se concentra
no passado distante, pois destaca os grandes feitos e realizações,
assim como não descreve as mudanças contemporâneas.
Entretanto, ao dirigir seu olhar para as demais regiões, Estrabão
teria a clara intenção de apresentar as mudanças e transformações
benéficas que os romanos, ao dominarem grande parte da
oikumene, trouxeram para as populações dessas áreas.

A Geografia, de Estrabão, e o Livro XVII

A Geografia, de Estrabão, possui dezessete livros que tratam


de diferentes temas e localidades, como podemos observar no
Quadro 1:

Quadro 1 – Livros e conteúdo da Geografia, de Estrabão


Livros Conteúdos
Introdução: assunto, propósito da obra,
I-II
estrutura e fontes
III Ibéria
IV Gália, Bretanha e Alpes
Península itálica, Sicília, Malta e ilhas
V-VI Europa
circundantes
(8 livros)
Germânia, Panônia, Ilíria, Macedônia e
VII
Trácia
VIII-X Grécia

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XI-XIV Ásia Menor


XV Índia Ásia
Mesopotâmia, Síria, Fenícia, Judeia, (3 livros)
XVI
Golfo pérsico e Arábia
África
XVII África; Egito, Etiópia e Líbia
(1 livro)
Fonte: Adaptado de CARREIRA, P.; ALVES-JESUS, S. Ideias de Europa
na Antiguidade Clássica: a Geographia de Estrabão na Roma de Augusto.
CIEDA e CIEJD, n. 4, p. 6-17, 2011.

Estrabão defende a pertinência de sua obra, apesar de


reconhecer a tradição que o antecede. À época de Estrabão, a
Geografia não era uma novidade. Outros autores já tinham
escrito sobre semelhante temática, como Políbio, Posidónio,
Crates, Hiparco e Homero, considerado “o fundador da ciência
geográfica”. A novidade da Geografia prende-se, sobretudo, na
consciência da expansão do Império Romano e a consequente
percepção de alargamento do território habitado. Estrabão
afirma que a Geografia é útil especialmente aos generais e
homens de estado, pois a descrição da geomorfologia ajuda-os
a conhecer o terreno, permitindo conceber melhores estratégias
de abordagem territorial.12
O Livro XVII descreve o Egito, a Etiópia e, por fim, a Líbia,
incluindo as regiões de Mauritânia, de Cartago e de Cirene.
Neste livro, Estrabão faz uma descrição do espaço geográfico,
do terreno, do clima, das cidades, das aldeias, dos portos, dos
aquedutos, do campo, da fauna e flora, dos monumentos, dos
templos, dos cultos e dos governos. Estrabão ressalta que está

12
CARREIRA, P.; ALVES-JESUS, S. Ideias de Europa na Antiguidade
Clássica: a Geographia de Estrabão na Roma de Augusto. CIEDA e CIEJD, n.
4, p. 6-17, 2011, p. 10-11.

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O Egito no Livro XVII da Geografia de Estrabão

descrevendo os limites da oikoumene e, portanto, desconhecido


aos seus contemporâneos.13
As fontes de Estrabão sobre a África provém de viagens e
de leituras de autores diversos que teve acesso na biblioteca de
Alexandria durante sua estadia pela cidade. Os principais autores
que aparecem no Livro XVII são: Eratóstenes Cirene (276-194
a.C.), que foi diretor da biblioteca de Alexandria e que ficou
famoso pelo cálculo da circunferência da Terra. Dele, Estrabão
pegou emprestada a descrição geográfica do curso do Nilo e
seus afluentes, a explicação do mito de Busiris, o nome Lixos
para a cidade que Artemidoro chamou de Lynx e o testemunho
de populações fenícias na costa de Maurusia, dentre outros;
Artemidoro, de quem pega emprestado o nome do Cidade
Lynx em Maurusia, os nomes dos rios da costa da Líbia, dentre
outros; Posidónio, de onde referencia a presença de macacos na
costa mediterrânea da Líbia e os rios da costa da Líbia; além de
Heródoto e Diodoro.
Os principais manuscritos da obra datam dos séculos X e
XV, a saber: o Vaticanus Graecus 482, que possui cópias que podem
ser datadas do século XIV, e o Palatinus Graecus 392, em que o
mais antigo documento é datado paleograficamente do século
IX. No entanto, as versões mais antigas de alguns excertos
dos livros II, VII e IX foram encontradas em papiros egípcios
datados dos séculos II e III. Ainda, há o Palimpsesto, descoberto
no século XIX, contendo partes dos Livros I e do XIII a XVII,
com manuscritos do século V.14

13
SILVA, ibidem, p. 75.
SILVA, B. dos S. Introdução aos estudos sobre a Geografia, de Estrabão.
Mare Nostrum, v. 1, p. 71-83, 2010, p. 75.
14
Ibidem, p. 76.

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Laila Lua Pissinati

O Egito na Geografia, de Estrabão: Livro XVII

No início do Livro XVII de sua Geografia, Estrabão faz


algumas considerações gerais a respeito do Egito. Apesar de chamar
os egípcios de bárbaros em algumas passagens, de forma geral,
Estrabão é positivo em sua avaliação dos egípcios, ao declarar que:

[...] desde o início eles levaram uma vida civilizada e cultural,


se estabeleceram em lugares conhecidos de maneira que suas
disposições políticas são dignas de recordar. Se fala deles porque
são considerados como tendo feito uso correto da riqueza da sua
terra, a repartindo bem e cuidando dela.15

Claro que Estrabão é positivo quando lhe convém. No


que tange à religião, aos sacerdotes e à arquitetura egípcia, o
geógrafo tende ao negativismo, criticando tais aspectos da
cultura egípcia. Contudo, ainda assim, a passagem acima pode
colaborar para uma desconstrução de uma imagem negativa que
se tem na atualidade a respeito dos africanos e de sua história. Da
mesma maneira, Estrabão define a geografia do Egito, exaltando
sua posição entre mar e rio e as vantagens dessa posição para a
navegação e o comércio. Em suas palavras, ele afirma:

[...] Para resumir, o Egito é apenas a margem do rio para ambos


os lados do Nilo, uma estreita faixa de terra que apenas oferece
um espaço habitável contínuo de trezentos estádios de largura,16
começando nas montanhas da Etiópia até a foz do Delta.17

15
Strabo, Geographica, 17, 1, 3. Essa e todas as outras citações diretas são
traduções nossas.
16
Estádio é uma medida de comprimento grega. Não há um acordo fixo
quanto à sua medida, mas ela gira em torno de 180 metros.
17
Strab., Geogr., 17, 1, 4. 

A África no Mundo Antigo 115


O Egito no Livro XVII da Geografia de Estrabão

[...] Das vantagens da cidade, o maior é que o Egito é o único


lugar bem localizado tanto para o comércio pelo mar, pelos seus
bons portos, como para o comércio terra, uma vez que o rio
convenientemente transporta e reúne tal lugar, como é o maior
empório no mundo habitado. E desta cidade poderia se dizer está
em grande virtude.18

Estrabão também apresenta a divisão geral da população e


das terras. A respeito da primeira, diz que os egípcios se dividiam
em três classes de pessoas:

[...] soldados, camponeses e sacerdotes. Estes ocuparam-se dos


assuntos sagrados e os outros dos humanos. Uns gerenciavam os
assuntos da guerra enquanto os outros trabalham com as terras
e as técnicas, nas quais se encontravam os benefícios para o rei.
Os sacerdotes praticavam filosofia e astronomia, e eles eram
companheiros dos reis.19

Já a divisão geral da terra ocorria em função da


produtividade: nomos, toparquías e aruras. Em suas palavras, o
autor diz:

[...] A terra teve uma primeira divisão em nomos, dez em Tebas, dez
no Delta e dezesseis na terra média. [...] Depois foram divididos
os nomos em partes. A maioria se dividiu em toparquías e essas em
outras seções.20
As seções menores são as aruras. Era necessária uma divisão exata
e ao milímetro devido a contínua confusão de fronteiras que o Nilo
produzia com suas crescidas, levando-se em conta e acrescendo
terra e trocando a disposição e escondendo toda a sinalização que

18
Strab., Geogr., 17, 1, 13. 
19
Strab., Geogr., 17, 1, 3.
20
Strab., Geogr., 17, 1, 3.

116 A África no Mundo Antigo


Laila Lua Pissinati

separara uma propriedade de outra. Surgia a necessidade de medir


uma e outra vez.21

A divisão geral da população e das terras elencadas por


Estrabão podem evidenciar em sala de aula a capacidade dos
egípcios antigos de organização, descontruindo tantas imagens
animalescas perpetuadas acerca dos povos africanos, oriundas
de um racismo estrutural. Da mesma forma, pode ser usada,
também, a passagem em que Estrabão atribui, assim como
Heródoto, a invenção da geometria aos egípcios: “[...] aqui
dizem que se originou a geometria, como a contabilidade e a
aritmética surgiram entre os fenícios devido ao comércio”.22
O Nilo e o Delta aparecem com grande relevância na
narrativa presente no Livro XVII. Citando Homero, o autor afirma
que as águas do “rio Egito” são derivadas do céu.23 Antes disso,
se referindo a Eratótenes, o autor situa o Nilo geograficamente
afirmando que “[...] este diz que o Nilo está a mil estádios a
Oeste do Golfo Arábico e sua forma se parece com a letra N,
porém escrita ao contrário. Diz também que sua corrente flui
para o Norte com dois mil e setecentos estádios”.24 Quanto à
geografia do Delta, descreve que “[...] desde das fronteiras da
Etiópia, o Nilo flui em linha reta do Norte em direção zona
chamada Delta, que então se dividindo na cabeceira, como disse
Platão, desemboca o rio na forma de um triângulo”.25 O mapa
de Eratótenes de Cirene, mestre de Estrabão, nos dá ideia do
mundo visto pelo nosso autor (Figura 1).

21
Strab., Geogr., 17, 1, 3, grifo nosso.
22
Strab., Geogr., 17, 1, 3.
23
Strab., Geogr., 17, 1, 5.
24
Strab., Geogr., 17, 1, 2.
25
Strab., Geogr., 17, 1, 5.

A África no Mundo Antigo 117


Figura 1 – O mundo de acordo com Eratótones de Cirene, 220 a.C.

118
O Egito no Livro XVII da Geografia de Estrabão

Fonte: RHYS, E. (Ed.). A literary and historical atlas of Asia. New York: E. P. Dutton & Co., 1912, p. 2.

A África no Mundo Antigo


Laila Lua Pissinati

Ao falar das regiões de Elefantina e Menfis, Estrabão


menciona o nilômetro como “[...] um poço construído no
banco do Nilo com pedra talhada e que se indica com marca
o crescimento maior, menor ou médio do Nilo, pois a água do
poço sobe e baixa de acordo com a água do Nilo”.26 O nilômetro
foi uma construção egípcia para se medir o aumento do fluxo de
águas do Nilo e com isso se retirarem nos momentos das cheias.
A existência do nilômetro demonstra o nível de organização
e tecnologia dos povos egípcios desse contexto, por isso é
importante dar relevância a essa construção.
Após realizar algumas considerações gerais, Estrabão
adentra as particularidades e “virtudes” do Egito, exaltando
a magnitude de Alexandria. Descreve o espaço geográfico ao
mesmo tempo que conta a história da cidade. A narrativa do
geógrafo a respeito de Alexandria também exemplifica a grande
organização e tecnologia dos egípcios. Nas passagens abaixo,
respectivamente, comenta o agradável verão alexandrino e a
grandiosidade da cidade:

[...] Em Alexandria, no entanto, quando o verão começa, a cheia do


Nilo enche o lago e não permite que a agua pantanosa envenene o
ar ao evaporar. Então, os ventos sopram desde o Norte ao extenso
mar de maneira que os alexandrinos passam um verão muito
agradável.27
[...] Toda a cidade está atravessada por ruas acessíveis ao tráfico
de cavalo e carruagens [...]. A cidade tem os mais belos parques e
palácios reais, que constituem um quarto ou mesmo um terço da
área total. E isso deve-se a cada um dos reis, por amor a beleza,
adiciona algum adorno aos monumentos públicos, da mesma
forma que em seu cargo constrói uma residência que soma as que

26
Strab., Geogr., 17, 1, 48.
27
Strab., Geogr., 17, 1, 7.

A África no Mundo Antigo 119


O Egito no Livro XVII da Geografia de Estrabão

já existiam. E assim disse o poeta (Homero – Odisseia): “uma peça


segue as outras”.28

O discurso de Estrabão a respeito do Egito e seu povo


muda de tom quando este compara o governo ptolemaico ao
governo romano. Maldiz a respeito dos governantes ptolomaicos
afirmando que: “[...] todos esses reis, depois do terceiro
Ptolomeu, corruptos por luxo, governaram mal, porém, os
piores de todos foram Ptolomeu, o quarto, o sétimo e o último”
e apresenta César como salvador da ordem: “[...] César então
chegou e mandou matar o jovem rei e restabeleceu Cleópatra no
trono do Egito, fazendo-a retornar do exílio.29
Adiante, a respeito do governo romano sobre a região
egípcia, o autor declara: “[...] está governada por homens
prudentes, prefeitos que são enviados ali sucessivamente”.30
Estrabão dedica grande parte de sua narrativa a expor a
organização e administração do governo romano no Egito e
defende a cobrança de impostos nos seguintes termos:

[...] Ao rei, está subordinado o administrador da justiça


(dikaiodotes), que tem autoridade sobre todos os processos. Outro
cargo é o chamado Idios Logos, que inspeciona as propriedades sem
dono e o que devem ser para César; a eles lhes assistem [...] e
contadores (oikonomoi), a quem lhes confia os assuntos de maior e
menor importância.31
[...] Existem três legiões no exército, uma delas está junto a
cidade e as outras na cora. Além destes, existem também nove
cortes romanas, três na cidade, três na fronteira da Etiópia em
Siene, para monitorar essa região, e três no restante do país. Há

28
Strab., Geogr., 17, 1, 7.
29
Strab., Geogr., 17, 1, 11.
30
Strab., Geogr., 17, 1, 12.
31
Strab., Geogr., 17, 1, 12.

120 A África no Mundo Antigo


Laila Lua Pissinati

também três corpos de cavalaria, igualmente distribuído nos


lugares adequados.32
[...] Se diz que há três classes de habitantes na cidade: uma parte,
os egípcios e a turba indígena, agitados e incívicos; por outra parte
dos mercenários, grosseiros, numerosos e insubordinados [...]
mais empenhados em mandar do que obedecer, devido à nulidade
dos reis. O terceiro grupo é o dos alexandrinos, pela mesma razão
que os acima mencionados, não estavam muito inclinados à vida
civil, no entanto eles eram melhores que os outros.33

Mesmo a narrativa de Estrabão mudando de tom e frisando


que “[...] tal era, se não pior, o estado das coisas durante o
reinado dos últimos monarcas. Porém, se pode dizer que os
romanos, na medida de suas possibilidades, corrigiram muitas
coisas, organizaram a cidade”,34 essas passagens colaboram para
ilustrar as relações entre as diversas regiões do Mundo Antigo,
desconstruindo, assim, a ideia de que as regiões africanas se
encontravam completamente isoladas.
Estrabão discorre ainda sobre o plano de construção de um
templo. Sua descrição é feita em termos gregos. Nas passagens
a seguir é possível perceber a grandiosidade dos templos
egípcios, apesar do discurso ser carregado de críticas à religião e
à arquitetura egípcia:

[...] O plano de construção de um templo é como se segue: a


entrada do recinto sagrado há um solo pavimentado com pedras
[...]. Durante todo o seu comprimento há esfinges de pedras
seguidas a ambos os lados [...], de maneira que há uma fila de
esfinges à direita e outra à esquerda. Depois das esfinges, chega-
se a um grande propileu,35 depois outro propileu, e depois outro.

32
Strab., Geogr., 17, 1, 12.
33
Strab., Geogr., 17, 1, 12.
34
Strab., Geogr., 17, 1, 13.
35
Porta monumental.

A África no Mundo Antigo 121


O Egito no Livro XVII da Geografia de Estrabão

Não há um número definido de propileu nem de esfinges, sendo


diferente em cada templo, como também são suas medidas. Depois
do propileu, chega-se ao naos,36 que tem um grande e significativo
pronaos37 e um grande santuário, embora não tenha estátua, ou
pelo menos não antropomórfica, mas de algum animal irracional.
De cada lado do pronaos, vem as chamadas asas. Se trata de dois
muros de altura igual ao tempo [...], e esse muros tem relevos de
grandes imagens. [...] Há também um grande gabinete colunar,
como em Menfis, que possui uma disposição bárbara, pois com
exceção das muitas e grandes colunas alinhadas em fileiras, nada
tem de agradável nem artístico, sendo que mais parece uma
demonstração de vaidade.38

Ao falar do sacerdócio, da filosofia e da astronomia,


Estrabão critica o sistema que aparentemente esperava conhecer,
mas que segundo ele, não era mais grandioso. Ao falar da região
de Heliópolis, afirma que “[...] nada me foi mostrado aqui
como diretor de tais estudos, mas apenas como sacerdotes que
oferecem sacrifícios e explicam o culto aos estrangeiros”.39 O
autor prossegue:

Platão e Eudoxo disseram que desejavam estudar o princípio da


sua disciplina. Porém os bárbaros lhe ocultaram muitas coisas.
Entretanto, aprenderam as frações do dia e da noite, que se
juntam aos trezentos e sessenta e cinco dias para completar o ciclo
anual. Então, a verdadeira natureza do ano era desconhecida para
os gregos, como também muitas outras coisas, visto que a nova
geração de astrólogos aprendeu com os tradutores ao grego dos
tratados dos sacerdotes. Ainda hoje seguem aprendendo dessa
fonte, como também dos caldeus.40

36
Célula com estátua do deus.
37
Espaço anterior ao naos.
38
Strab., Geogr., 17, 1, 28.
39
Strab., Geogr., 17, 1, 29.
40
Strab., Geogr., 17, 1, 29.

122 A África no Mundo Antigo


Laila Lua Pissinati

Sobre as pirâmides de Gizé, Estrabão declara:

[…] Duas delas se encontram entre as setes maravilhas do mundo.


Medem um estádio de altura e possuem forma quadrada e sua altura
é um pouco maior que cada um de seus lados. Uma delas é um pouco
maior que a outra.41 Tem no topo, a meio caminho entre os lados,
uma rocha que se pode extrair, e quando retiram há uma galeria que
leva a câmara funerária. […] Mas acima, está a terceira, que é muito
menor que as outras,42 ainda que contruida com um gasto maior.43

O autor também critica a adoração de animais nas cidades


e nos conta que as diferenças regionais dos animais adorados
levavam os egípcios a conflitos. Um animal venerado em um
lugar podia ser perseguido em outro. O autor traça uma lista de
cidades e animais que eram adorados nessas cidades:

[...] De fato, alguns animais eram cultuados pelos egípcios de forma


em comum, como por exemplo, três animais terrestres, o boi, o cão
e o gato; as aves, duas, o falcão e o íbis; dos aquáticos, dois, lepidoto
(uma variedade de carpa) e oxirrinco (peixe típico do Nilo, hoje
extinto). Há outros animais que são venerados separadamente,
como os saitas e os tebanos, o carneiro (Amón-Ra), os latopolitanos,
o lato, um peixe do Nilo, os licopolitanos, o lobo, os hermopolitas, o
cinocéfalo (um babuíno que é chamado assim devido a semelhança
de seu crânio com um cachorro. Uma das imagens de Thot), os
babilônios em Menfis, o macaco, que se parece com o rosto de um
sátiro [...]. Os tebanos adoram a águia; os leontopolitas, o leão; os
mendesios, a cabra e a cabra macho; os atribitas, a musaranha (a
manifestação do Horus em Letópolis) [...].44

41
Se refere, respectivamente à pirâmide de Keops (146,5 m de altura) e à
pirâmide de Kefrén (143,5 m de altura).
42
Se refere à pirâmide de Miquerinos (62 m de altura). Construída com um
gasto maior pois, segundo o autor, o material utilizado na construção foi
trazido da Etiópia.
43
Strab., Geogr., 17, 1, 34.
44
Strab., Geogr., 17, 1, 40.

A África no Mundo Antigo 123


O Egito no Livro XVII da Geografia de Estrabão

Considerações finais

A Geografia, de Estrabão, é uma obra de grande magnitude


e que ainda há muito para ser explorada. Ela também abre um
leque de assuntos para serem ministrados em salas de aula no
ensino básico. A Geografia coloca o aluno em contato com quase
todo o Mundo Antigo conhecido por seu autor, permitindo que
os professores façam uma correlação do Egito antigo com outras
áreas do período.
O uso da documentação primária como fonte didático-
metodológica no estudo regular de História precisa e deve ser
mais utilizada. O uso de fontes, antes de tudo, expande o olhar
do aluno sobre as culturas em geral e afasta a ideia de que os
povos e sociedades estudadas flutuavam sobre o tempo histórico.
É muito comum o aluno entender uma determinada cultura de
forma mecânica, sem perceber o quanto ela está ligada com todo
o resto do mundo social e que ela faz parte um processo histórico.
A análise do Livro XVII da Geografia, de Estrabão, contribui para
quebrar alguns preconceitos em relação à história da África como
um todo e descontruir a ideia de um Egito branco, por exemplo.
A narrativa de Estrabão pode servir de ilustração para capacidade
dos antigos egípcios de se organizarem, descontruindo tantas
imagens animalescas perpetuadas acerca dos povos africanos,
oriundas de um racismo estrutural.
Ainda hoje, a História é fortemente marcada por uma
história dos heróis, homens, brancos. É importante desconstruir
a hierarquização das culturas e a naturalização do africano
como inferior. O ato de demonstrar como os egípcios foram
capazes de construir pirâmides e outras construções de grande
magnitude, que as civilizações europeias não foram capazes
de construir, pode contribuir para romper com o racismo que
permeia os estudos históricos na atual sociedade brasileira.

124 A África no Mundo Antigo


Laila Lua Pissinati

O manuseio do Livro XVII da Geografia, de Estrabão, pode


contribuir também para descontruir os estereótipos que giram
em torno da África, como o continente da fome, da miséria, das
doenças, da escravidão. Colocar os alunos em contato com uma
perspectiva que trata da cultura dos povos africanos, das suas
organizações e suas relações com os outros povos permitirá
grandes avanços pedagógicos, como romper também com a
ideia muito difundida pela literatura de que o africano não
conseguiu produzir algo por si só.
É necessário, portanto, mudar nossa metodologia em sala
de aula, produzir e revisar os livros didáticos que tanto renegam a
história afro. É importante buscarmos uma visão equilibrada no
uso dos conceitos a fim de não hierarquizar as culturas e propor
debates a respeito das identidades étnicas. As leis e diretrizes
foram uma resposta do Estado às reivindicações políticas do
movimento negro, mas elas ainda entram em confronto com
as práticas e o imaginário social racial vigente, como o mito da
democracia racial ou a naturalização das desigualdades sociais. É
necessário ir além da adoção de programas e projetos específicos
voltados para a diversidade étnico-racial.

Referências

Documentação primária

ESTRABÓN. Geografía: Libros XV-XVII. Introducción, traducción


y notas de Juan Luis García Alonso, Mª Paz de Hoz García-
Bellido y Sofía Torallas Tovar. Madrid: Gredos, 2015.

A África no Mundo Antigo 125


O Egito no Livro XVII da Geografia de Estrabão

Obras de apoio

CARREIRA, P.; ALVES-JESUS, S. Ideias de Europa na Antiguidade


Clássica: a Geographia de Estrabão na Roma de Augusto.
CIEDA e CIEJD, n. 4, p. 6-17, 2011.
CLARKE, K. In Search of the Author of Strabo’s Geography.
Journal of Roman Studies, v. LXXXVII, p. 92-110, 1997.
GOMES, N. L. Diversidade étnico-racial, inclusão e equidade na
educação brasileira: desafios, políticas e práticas. Revista
Brasileira de Política e Administração da Educação, v. 27, n. 1,
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NICOLET, C. Space, geography, and politics in the early Roman Empire.
Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1988.
POTHECARY, S. Strabo, the Tiberian Author: Past, Present and
Silence in Strabo’s “Geography”. Mnemosyne, fourth series,
v. 55, n. 4, p. 387-438, 2002.
RHYS, E. (Ed.). A literary and historical atlas of Asia. New York: E.
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ROCHA, S.; SILVA, J. A. N. da. À luz da Lei 10.639/03,
avanços e desafios: movimentos sociais negros, legislação
educacional e experiências pedagógicas. Revista da ABPN,
v. 5, n. 11, p. 55-82, 2013.
SILVA, B. dos S. Estrabão e as províncias da Gália e da Ibéria: um
estudo sobre a Geografia e o Império Romano. Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
SILVA, B. dos S. Introdução aos estudos sobre a Geografia, de
Estrabão. Mare Nostrum, v. 1, p. 71-83, 2010.

126 A África no Mundo Antigo


Laila Lua Pissinati

ZULIANI, F. de M. Passado e presente em Estrabão: as estruturas


espaço-temporais da Geografia e suas relações com o
Império Romano. Dissertação (Mestrado em História) –
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1999.

A África no Mundo Antigo 127

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