Clóvis Steiger de Assis Moura (1925-2003) em seu escritório em 1961.
era uma personalidade contaminada por tais características. Esta C LÓVIS MOURA transitiva, se é que se pode usar tal ex- pressão para definir a sua admirável capaci- foi uma das lutas admiráveis de Clóvis Moura: a luta pela objetividade científica dade de ser, simultaneamente, sem emba- e a luta para não trair, por assim dizer, seus ralhar os limites, branco e negro, militante compromissos políticos com a gente que e intelectual, historiador e sociólogo, jorna- ele elegera como sendo a sua gente. lista e cientista social. Sua derradeira contribuição foi o Dicio- Do ponto de vista racial, ele era mestiço, nário da escravidão negra no Brasil, a ser resultado de duas linhagens: uma nórdica, publicado brevemente pela Edusp. outra afro. Embora seus traços revelassem Clóvis Moura, como que prevendo a muito mais a sua ascendência branca, ele sua morte, que ocorreria às vésperas do preferiu assumir-se como negro. E foi co- Natal, solicitou-me, há alguns meses que, mo tal que participou ativamente de todas pelo menos, lhe desse a conhecer o prefácio as iniciativas que buscavam alterar as con- que a seu pedido eu fizera e que transcrevo dições desfavoráveis do negro na sociedade a seguir: brasileira, entre as quais ganha relevo o Clóvis Moura é um cientista social bri- Movimento Negro Unificado (MNU), no lhante e disciplinado que sempre correu início da última década de 1980. por fora da academia – solto, livre, nas fran- Embora autoconfessadamente negro e jas da interdisciplinaridade –, ainda que a militante, nunca permitiu que a sua refle- academia brasileira tenha constantemente xão intelectual fosse, de alguma forma, solicitado a sua presença em eventos, con-
ESTUDOS AVANÇADOS 18 (50), 2004 311
ferências, seminários e, especialmente, em centenas de verbetes (alguns são verda- exames de teses na qualidade de professor deiras teses) que não apenas sistematizam “notório saber”, título que há anos lhe foi e complementam o que se sabe sobre o outorgado pela Universidade de São Paulo. regime escravocrata, mas trazem informa- E, assim, trabalhando nessa nesga não- ções que irão permitir ao leitor formar uma institucional, onde as costumeiras dificul- opinião mais nuançada a respeito desse dades de pesquisador aumentam, consi- sistema de exclusão – humana, social e deravelmente, Clóvis Moura foi construin- cultural – que dominou, soberano, durante do, ele com ele, nos recantos de sua rica quase quatro séculos da história brasileira. biblioteca, vasta e notável obra – histórica O autor trabalha com dois mundos que e sociológica – sobre a saga heróica do se complementam, embora quase sempre negro-escravo e do negro-quase-cidadão se distanciem num jogo dialético inerente na sociedade nacional. Todos os estudiosos ao próprio sistema. De um lado, o Brasil da questão racial brasileira estão familiari- escravocrata, com seu arcabouço jurídico- zados com seus livros, cujos títulos cons- legal a legitimar o escravismo e as suas pas- tam obrigatoriamente das bibliografias dos sagens históricas – simpáticas e não-simpá- estudos que vão surgindo, por se constituí- ticas ao regime –, com seus atores sociais rem em referências indispensáveis às refle- mais expressivos e seu esquema de poder xões científicas sobre essa temática a um só senhorial hegemônico, quase sempre sinô- tempo tão apaixonada e tão apaixonante. nimo de mundos dos brancos. De outro Como que coroando essa extensa traje- lado, o Brasil escravizado, constituído de tória intelectual, o historiador Clóvis Mou- negros anônimos, que constroem a nação ra presenteia-nos, agora, com o seu Dicio- com seus braços, lutam, a seu modo, pela nário da escravidão negra no Brasil, sua emancipação e pela dissolução do regi- elaborado, solitariamente, ao longo de me servil, enquanto preservam, criam ou trinta anos. Casualmente, esse estudo recriam os elementos culturais que iriam mais parece vir compor uma tendência intelec- tarde, séculos depois, dar a marca do que viria tual-editorial que se observa atualmente a ser a chamada e aclamada cultura brasileira. entre nós, de se publicarem dicionários Jornada difícil para autores que, como sobre aspectos ou temas específicos da vida Clóvis Moura, se propõem a resgatar e dar nacional. Tais são os dicionários de sobre- visibilidade a fatores e atores sociais fugi- nomes, gêneros, fotografias, filosofia, fatos dios, apagados que foram das cenas histó- e personagens de períodos históricos ricas privilegiadas pela historiografia con- brasileiros etc. Embora expressando o vencional. momento atual de preocupações por essa É como se Clóvis Moura trabalhasse espécie de literatura, esses dicionários com o direito e o avesso da história para, a transcendem as históricas questões de lín- partir daí, dar ao leitor uma visão mais gua para se constituírem em inventários orgânica e mais crítica desse cruel período de conhecimentos críticos a respeito de te- da sociedade brasileira, cujas marcas se mas negligenciados pelos registros de uma prolongam até os dias atuais. historiografia linear, ortodoxa. O dicionário elaborado por Clóvis João Baptista Borges Pereira é professor Moura desenha-se, admiravelmente, nesse emérito da USP. Presidente da Comissão painel. O fôlego de historiador, já testado Permanente de Políticas Públicas para a em seus numerosos livros, está presente nas População Negra da USP.