Você está na página 1de 104

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

A Igreja
e as Comunidades
Quilombolas

Estudos da CNBB 105


Estudos da CNBB -105
Coleção Estudos da CNBB

96 - Deixai-vos Reconciliar
97 - Iniciação à Vida Cristã: Um Processo de Inspiração
Catecumenal
98 - Questões de Bioética
99 - Igreja e Questão Agrária no início do Século XXI
100 - Missionários(as) para a amazônia
101 - A Comunicação na vida e missão da Igreja no Brasil
102 - O segmento de Jesus Cristo e a Ação Evangelizadora no
Âmbito Universitário
103 - Pastoral Juvenil no Brasil - Identidade e Horizontes
104 - Comunidade de Comunidades: Uma nova Paróquia
105 - A Igreja e as Comunidades Quilombolas
106 - Orientações para projeto e construção de Igrejas e
disposição do Espaço Ceiebrativo
107a - Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na Sociedade
108 - Missão e Cooperação Missionária
109- O solo urbano e a urgência da paz
110 - Pastoral da Educação: Estudo para diretrizes nacionais
111 - Orientações Pastorais para as Mídias Católicas-Imprensa,
rádio, TV e novas mídias
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL

CNBB

A IGREJA
E AS COMUNIDADES
QUILOMBOLAS
A Igreja e as Comunidades Quilombolas
2a Edição-2018

Diretor Geral: Projeto Gráfico, capa e diagramação:


Mons. Jamil Alves de Souza Henrique Billygran Santos de Jesus
Diretor Editorial: Impressão e acabamento:
Pe. Luis Fernando da Silva Qualytá Gráfica Editora
Revisão:
Leticia Figueiredo

C748i Conferência Nacional dos Bispos do Brasil / A Igreja e as Comunidades Quilombolas. Brasília:
Edições CNBB, 2013.

104p.: 14x21 cm
ISBN: 978-85-7972-260-8

1. Igreja - Escravos - Quilombos;


2. Quilombos - História;
3. Quilombolas - Capitalismo;
4. Quilombos - Políticas Públicas.
CDU - 572.96

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer
meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema
ou banco de dados sem permissão da CNBB. Todos os direitos reservados ©

Edições CNBB
SE/Sul Quadra 801 - Cj. B - CEP 70200-014
Fone: 0800 940 3019 - (61) 2193-3019
E-mail: vendas@edicoescnbb.com.br
www.edicoescnbb.com.br
SUMARIO

Apresentação.................................................................................. 7

Lista de Siglas................................................................................ 9

Introdução ao texto.................................................................... 11

Introdução Geral........................................................................ 13

PARTE 1-VER.......................................................................... 15
1.1. Introdução ....................................................................................... 15
1.2. Como chegaram e como ficaram: Processo histórico de
resistência negra.....................................................
1.3. Escravidão: realidade universal?............................................... 19
1.4. Usos e sentidos do termo quilombo:
o debate acadêmico....................................................................... 21
1.5. Como os negros católicos organizaram-se
nestes 500 anos? ............................................................................. 24
1.6. Situação das comunidades quilombolas no Brasil............... 26
1.7. Quilombo de fato e quilombo de direito: direitos
assegurados e usurpados.............................................................. 33
1.8. As garantias legais à posse da terra aos remanescentes das
comunidades de quilombo.......................................................... 35
1.9. O direito coletivo à terra ............................................................. 37
PARTE 2 - JULGAR.............. 41
2.1. Introdução....................... ..41
2.2. A resistência das comunidades quilombolas
ao avanço avassalador do capital.......... ............ ..42
2.3. Direito à identidade e à diversidade
sem discriminação........... ......................... 45
2.4. As riquezas que as comunidades quilombolas
nos oferecem ............................. 58
2.5. Um apelo à conversão...................... 64
2.6. Quilombolas nos Documentos da Igreja............ ........... 70
2.6.1. Documentos do Magistério da Igreja................ 70
2.6.2. Documentos da Igreja latino-americana............. ........ ....72
2.6.3. Documentos da Igreja no Brasil................. 76
2.6.4. Concluindo: Esperança........... ....................... 77

PARTE 3 - AGIR ........................................................................79


3.1. Território: a defesa da terra............ .....79
3.2. Constituição da família como um grande valor..................... 83
3.3. Defender e valorizar o jeito de ser quilombola sem
reduzi-lo a expressão folclórica ........ .84
3.4. Apoio ao protag mismo dos quilombolas, de suas
organizações e iniciativas........................ 85
3.5. Políticas Públicas................ ..... ...86
3.6. Pistas Pastorais.............................. 87

CONCLUSÃO ........................ .93

REFERÊNCIAS...........................................................................97
APRESENTAÇÃO
"Voltemos para visitar os irmãos em cada cidade onde anunciamos
a palavra do Senhor, para ver como estão" (At 15,36).

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, tem


reiteradamente manifestado a sua preocupação pastoral em
relação às Comunidades Quilombolas. Elas nasceram como
busca da liberdade, como expressão social e como constituição
cultural. Conservando os valores religiosos, os critérios éticos e
as relações sociais, essas Comunidades são a expressão da resis-
tência e da liberdade. Registro vivo da história de um povo, da
história do Brasil.

O Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos


do Brasil - CONSEP, ouvindo a realidade das Comunidades Qui-
lombolas, confiou à Comissão Episcopal Pastoral para o Serviço da
Caridade, da Justiça e da Paz a missão de trazer à luz a realidade
em que vivem esses irmãos e irmãs. Um estudo, uma pesquisa, que
refletisse as dimensões expressivas da vida desses irmãos e irmãs.
O trabalho final do estudo é publicado na Coleção "Estudos da
CNBB", por decisão do mesmo Conselho Pastoral.

A leitura do texto é uma visita "aos irmãos em cada” Comuni-


dade Quilombola "onde a palavra do Senhor" foi anunciada e está
sendo experimentada "para ver como estão" (cf At 15,36).

Com a presente publicação, a CNBB deseja partilhar com


todas as Comunidades eclesiais e grupos sociais a realidade de
nossas Comunidades Quilombolas. A leitura do texto pretende

7
suscitar contribuições de estudiosos, dos quilombolas, das Igrejas
Particulares para o aprimoramento do estudo.

As sugestões serão auxílio para um redescobrimento do


"processo histórico de resistência das comunidades negras, no
Brasil, desde o período da escravidão até os dias atuais" (texto,
n. 3). Suscitarão também gestos concretos para a preservação
da memória histórica do Brasil e, certamente, farão emergir a
riqueza humana e cristã extraordinária que espera ser acolhida
e dinamizada. De posse da "memória histórica será possível
compreender os desdobramentos conceituais, políticos, ideoló-
gicos e sociais que orbitam esta categoria ou que se relacionam
com ela" (texto n. 3).

Agradecemos a Dom Luiz Soares Vieira, bispo emérito de


Manaus e demais membros da Comissão o trabalho realizado.

Nossa Senhora Aparecida nos acompanhe na tarefa de


conhecer, respeitar e apoiar as Comunidades Quilombolas.

Brasília, 13 de junho de 2013.

Festa de Santo Antônio de Pádua ou de Lisboa

+ Leonardo Ulrich Steiner

Bispo Auxiliar de Brasília


Secretário-geral da CNBB

8
LISTA DE SIGLAS

CA Centesimus Annus, Carta Encíclica no centenário da


Rerum Novarum, João Paulo II

DAp Documento de Aparecida

DGAE Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no


Brasil

DSD Documento de Santo Domingo

ECE Ex Corde Ecclesiae, Constituição Apostólica sobre as


Universidades Católicas, João Paulo II

EN Evangelii Nuntiandi, Exortação Apostólica sobre a


Evangelização, Paulo VI

GS Gaudium et Spes, Constituição Pastoral sobre a Igreja no


mundo atual, Concílio Vaticano II

PP Populorum Progressio, Carta Encíclica sobre o desenvol-


vimento dos povos, Paulo VI

RMi Redemptoris Missio, Carta Encíclica sobre a validade


permanente do mandato missionário, João Paulo II
A IGREJA E AS COMUNIDADES QUILOMBOLAS

Equipe de elaboração: Dom Luiz Soares Vieira, Dom


José Valdeci Mendes, Dom Guilherme Antônio Werlang, MSF,
Maria José Pacheco, Rosenilton Oliveira, Jeronimo Treccani,
José Claudio Mandela, Pe. Jurandyr Azevedo Araújo, Pe. Ari
Antônio dos Reis (org.)
INTRODUÇÃO AO TEXTO

A história deste texto começou no dia 25 de outubro de


2011, quando o Conselho Permanente da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil aprovou a constituição de Grupo de
Trabalho para refletir sobre a situação das comunidades qui-
lombolas do Brasil. Em reunião acontecida entre os dias 5 e 7
de março de 2013, o mesmo Conselho Permanente aprovou o
estudo elaborado para ser publicado na série de documentos
de Estudos da CNBB. Na 51â Assembleia Geral da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil houve a apresentação do texto
para o conhecimento do episcopado brasileiro.

Este documento está dividido em três partes. A primeira


trata da realidade das comunidades quilombolas, a começar
pela sua história. Erigidas como resposta organizada não só
contra o processo escravagista como também lugar de manu-
tenção da cultura de origem africana, são ricas em ensinamen-
tos para toda a sociedade brasileira. Considerou-se necessário
esclarecer o uso e o sentido do termo "quilombo", porque a
compreensão dele é fundamental nos processos atuais de rei-
vindicação de títulos dos territórios. Por fim, expõe a situação
das comunidades quilombolas em nossos dias.

A segunda parte nos leva a olhar a realidade dessas


comunidades à luz da Palavra de Deus e dos Documentos do
Magistério Eclesial. Somos cristãos e católicos, e nosso ver ultra-
passa os dados das ciências sociais e humanas; tomamos como
nossos os olhos de Deus.
Na terceira parte são abordadas algumas propostas para
o que fazer diante da situação aflitiva dessas comunidades de
irmãs e irmãos nossos. É fundamental o engajamento das Igrejas
locais na defesa dos territórios em que elas se encontram, por-
que lhes são base de vida e de sobrevivência. Além disso, outros
passos são sugeridos e refletidos no texto. Temos, ao final, algu-
mas pistas pastorais que pretendem ajudar as Igrejas locais a
levar adiante o compromisso evangelizador com as comunida-
des quilombolas.

Que Nossa Senhora Aparecida nos abra os corações para


amar de verdade e em obras os nossos irmãos e irmãs que
sofreram a opressão escravagista e sofrem investidas contra seu
modo de ser e viver!

Dom Luiz Soares Vieira

Arcebispo Emérito de Manaus


INTRODUÇÃO GERAL

A história das comunidades quilombolas está intimamen-


te ligada à história do Brasil quando, no começo da sua estru-
turação econômica, seguiu a opção pelo processo escravagista
que levou ao cativeiro primeiramente os povos indígenas e
posteriormente os povos africanos. Não é possível estudar os
períodos históricos colônia, império e republica desconhecendo
a escravidão e uma das formas originais de reação de parte dos
negros que foram os agrupamentos quilombolas.

Quando a escravidão foi abolida em lei, os quilombos


permaneceram como espaço de manutenção da vida e como
resistência dos afro-brasileiros, até porque a assinatura da Lei
Áurea, em 1^88, não trouxe possibilidades reais de inserção dos
negros na sociedade pós-escravagista.

Respeitando esta história de resistência e sendo solidária


aos enfrentamentos atuais das comunidades quilombolas, a
Igreja deseja oferecer este texto de estudos. É uma palavra dos
pastores da Igreja Católica no Brasil preocupados com a atual
situação das comunidades quilombolas, ameaçadas nos seus
direitos territoriais e culturais. Manifesta-se a partir da convic-
ção de que as comunidades quilombolas são participantes da
formação cultural brasileira e faz-se necessário contribuir para
que tenham seus direitos respeitados. As comunidades quilom-
bolas têm direitos, dentre eles o direito a um território, assegu-
rado pela Constituição Federal de 1988.
O texto apresenta o processo de constituição das comuni-
dades negras quilombolas, ligado à formação histórica econô-
mica do Brasil, e sua situação atual, especialmente no tocante
ao desafio da regularização da posse dos seus territórios. Em
relação a este histórico das comunidades quilombolas, serão
descritos os embates contemporâneos (científicos e jurídicos)
sobre o termo quilombo.

A reflexão proposta será iluminada pela Palavra de Deus e


pelo Magistério eclesial, pois os bispos falam em nome de uma
Igreja, que, fiel Jesus Cristo, se coloca ao lado dos pobres e mar-
ginalizados, e que ao longo da sua história tem se pronuncia-
do em fidelidade às suas origens e dialogando com os desafios
da sociedade. A Igreja também reconhece a riqueza cultural e
religiosa que as comunidades quilombolas trouxeram ao Brasil.
Por isso, trabalhar pela garantia posse de dos territórios das
comunidades quilombolas implica em assegurar esta matriz
cultural que também influenciou a Igreja no Brasil.1

Após o conhecimento da realidade histórica das comuni-


dades quilombolas e a iluminação bíblica e do magistério, serão
sugeridas algumas orientações de ação para que possam apontar
diretrizes de ação que vão ao encontro deste povo tão sofrido, mas
também resistente. Tais orientações partem do reconhecimento
dos muitos valores das comunidades quilombolas apresentados
à nação brasileira em um jeito próprio. O reconhecimento e apoio
dos valores culturais significa reconhecer o protagonismo das
comunidades quilombolas evidenciado nas suas organizações e
iniciativas em busca de políticas públicas. Por fim, serão apresen-
tadas algumas pistas pastorais que visam contribuir para ações
eclesiais voltadas às comunidades quilombolas.

1 CELAM. V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Documento de Aparecida


(DAp). 5. ed. Brasília: Edições CNBB; São Paulo: Paulus/Paulinas, 2008, n. 56.
PARTE 1

VER

1.1. Introdução

Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou


mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus. (G13,28)

1. Cada vez mais as reflexões sobre as comunidades


quilombolas têm colocado imensos problemas teóricos e meto-
dológicos, tanto no campo da investigação científica, quanto no
plano político (e das lutas dos movimentos sociais). No contexto
eclesial, há também desafios pastorais. O primeiro deles, e talvez
o mais urgente, está na ordem dos conceitos, isto é, das cate-
gorias que são acionadas pelos diversos atores envolvidos para
que demandas sejam atendidas ou negadas. Definir, portanto,
é a forma pela qual se evidencia uma relação de poder em que
sujeitos mobilizam discursos e ações em prol de causas distintas.

2. Antes, porém, de assumir uma definição de "quilom-


bo", é importante observar o processo histórico de resistência
das comunidades negras, no Brasil, desde o período da escra-
vidão até os dias atuais. De posse dessa memória histórica será
possível compreender os desdobramentos conceituais, políti-
cos, ideológicos e sociais que orbitam esta categoria ou que se
relacionam com ela.

3. Portanto, nesta primeira parte, após a apresentação do


processo de constituição das comunidades negras quilombolas
e os embates contemporâneos (científicos e jurídicos) sobre o
termo quilombo, será colocado em evidência a situação preocu-
pante em que vivem estas comunidades e algumas das muitas
ameaças que sofrem, para que um exame à luz da Palavra de
Deus e do Magistério possa apontar diretrizes de ação que vão
ao encontro deste povo tão sofrido, mas também resistente.

1.2. Como chegaram e como ficaram:


Processo histórico de resistência negra

4. Estima-se que entre os séculos XVI e XIX mais de 12


milhões de seres humanos, das mais diversas culturas e povos,
foram sequestrados e comercializados na África e traficados
para as potências coloniais e seus territórios na América e em
outros continentes. O Brasil foi o destino do maior contingen-
te de africanos escravizados. Durante a viagem, milhares de
negros morreram devido às péssimas condições de higiene e à
alimentação precária.

5. Em todo o continente americano, esses escravos foram a


base da mão de obra das grandes plantações, que constituíam
a economia colonial. As diferentes nações latino-americanas,
durante vários séculos, dependeram da escravidão negra para
existir economicamente. Existe, por causa disto, uma dívida
histórica não apenas moral, mas também patrimonial com o povo
negro. A manutenção do sistema escravagista, que perdurou
durante séculos, era amparada não só pelo ordenamento jurídico
vigente, mas contava com a adesão da sociedade e das Igrejas.

6. A introdução dos negros no Brasil atendia a duas neces-


sidades básicas: mão de obra e atividades mercantis (tráfico
negreiro). O comércio de escravos africanos para o Brasil iniciou
já nos primeiros tempos da colonização e garantia recursos
volumosos. Na África os negros eram trocados por aguarden-
te de cana, fumo, facões, tecidos, espelhos etc. O comércio de
"peças humanas" era uma atividade extremamente vantajosa,
gerando lucro de até 4.000%.

7. Dessa forma, é correto afirmar que a estrutura social e


produtiva do Brasil colônia foi construída com a exploração da
força do trabalho de homens e mulheres escravizados. Estima-se
que a expectativa de vida de um trabalhador escravo nas lavou-
ras de cana de açúcar muito dificilmente ultrapassava os 40 anos;
nas minas de extração de ouro, esse índice era ainda menor.

8. Esta situação, no entanto, nunca foi aceita pacificamente.


Inúmeras foram as estratégias de subversão: levantes e revoltas,2
negociação de espaços de autonomia, o "fazer corpo mole" no
trabalho, a quebra de ferramentas, os incêndios em plantações,
agressão aos senhores e feitores. Promover, individual e coletiva-
mente, a rebeldia era para os homens e mulheres escravizados a
forma de manter algum tipo de resistência. A "resistência negra"
começava ainda na África com guerras e fugas. Continuava nos
navios negreiros e na chegada ao continente americano. Para
evitar possíveis rebeliões, os africanos que foram trazidos para
o Brasil pertenciam a uma grande variedade de etnias. "No
entanto, a mais significativa e estrutural forma [de resistência]
estava nas fugas e formação de grupos de escravos fugidos3 (...)
essas fugas aconteceram em todo território das Américas".4

9. Resultados, também, destas fugas, os quilombos foram


perseguidos e duramente agredidos por força militar espe-
cializada (capitães do mato), durante todo o período colonial
até as primeiras décadas do Brasil República. Espalhados por
todo território nacional, os quilombos, por desejo próprio de

2 Por exemplo: Malês (BA) em 1835; Balaiada (MA) em 1838-1841 e Queimado (ES) em 1849 etc.
3 Essas organizações sociais receberam nomes diferentes: na América espanhola: Palenques, Cumbes; na
inglesa, Maroons; na francesa, grand Marronage e petit Marronage; no Brasil, Quilombos e Mocambos
e seus membros: Quilombolas, Calhambolas ou Mocambeiros (REIS; GOMES, 1996, p. 47).
4 Idem.

17
segurança ou por omissão do Estado, passaram por um longo
período de esquecimento e invisibilidade, mantendo-se vivos
por força de sua organização social, política, cultural e religiosa.
Alguns deles no decorrer dos anos se constituíram em distritos,
povoados e em municípios, com ampliação e diversificação de
suas populações originais de maioria negra.

10. Estas estratégias de resistência aliadas a uma série de


outros fatores (de ordem política e econômica), obrigaram o
Brasil a incluir na sua pauta a abolição legal da escravidão, a
qual deu-se depois de um processo lento e gradual que demorou
mais de 70 anos. Neste período foram celebrados tratados inter-
nacionais e várias leis:

• Tratado entre Portugal e Inglaterra de 19/02/1810: obri-


gou a gradual abolição do tráfico de escravos para o
Brasil (apesar deste compromisso internacional, o tráfi-
co continuou durante mais quarenta anos);
• Lei de 07/11/1831: proibiu o tráfico negreiro (mais uma
lei ineficaz);
• Lei Eusébio de Queiroz de 04/09/1850: proibiu o tráfico ne-
greiro (só ganhou efetividade depois que a Inglaterra ini-
ciou a vistoriar os navios portugueses coibindo o tráfico);
• Lei do Ventre Livre de 28/09/1871: concedeu a liberda-
de aos que nasciam em cativeiro (as crianças, caso seu
dono não fosse indenizado, permaneciam, porém, tra-
balhando até 21 anos);
• Lei do Sexagenário de 28/9/1885: libertou os que atin-
giam esta idade; os escravos eram, porém, obrigados a
trabalhar por mais três anos para indenizar seu senhor,
ou até que atingissem 65 anos;
• Lei Áurea de 13/05/1888: aboliu legalmente a escravi-
dão no país.

18
11. Percebe-se que, apesar do sentido comum de que as
leis acima teriam garantido a liberdade dos escravos, ou foram
ineficazes, ou a liberdade era condicionada à indenização a ser
paga pelo Estado aos "donos de escravos" ou à prestação de
serviço durante determinado período. A Lei Áurea, tão feste-
jada pelos antigos escravos e pelos abolicionistas, não adotou
qualquer medida compensatória em favor dos escravos, nem
regulou os efeitos maléficos de quatro séculos do perverso
regime escravagista. Não os livrou, porém, do preconceito de
serem considerados seres inferiores. A falta de adoção de qual-
quer política afirmativa que os integrasse à sociedade nacional,
a necessidade de disputar o mercado de trabalho em condições
totalmente desiguais com os brancos, relegou a grande maioria
dos negros à margem da sociedade.

12. Após a abolição legal da escravidão, em 1888, a questão


quilombola foi se diluindo na luta política de lideranças, negras
ou não, por inclusão da população remanescente da escravidão
na sociedade pós-imperial e agora republicana. Entretanto, os
lemas da situação do negro e das comunidades quilombolas
retornam à cena em meados dos anos 1930, já no momento de
industrialização da economia brasileira, ganhando força nos
anos 1970, até chegar, durante o processo de redemocratização
do país, com a sua inclusão na Constituição Federal de 1988.
É, portanto, no bojo dessas transformações políticas e sociais
que a luta das comunidades negras (a princípio extremamente
relacionada com as lutas camponesas) ganha maior visibilidade
e consegue o reconhecimento de alguns direitos.

1.3. Escravidão: realidade universal?

13. A escravidão foi uma realidade aceita universalmen-


te desde os tempos mais antigos. Foi adotada pelos assírios,
egípcios, judeus, gregos e romanos, entre outros povos, tendo
como base legal o direito do vencedor das guerras sobre a vida
dos prisioneiros. O escravo era totalmente submisso ao poder
e domínio ou propriedade de seu dono, privado de todos os
direitos, não tinha possibilidade de representação alguma,
reduzido à condição de coisa (res). Por isso o dono tinha, nos
tempos mais antigos, o direito de açoitar e, até, de matar impu-
nemente seus escravos (jus vitae et necis). A legislação garan-
tia ao senhor o direito de auferir do escravo todo o proveito
possível e obrigava-o a prestar seus serviços gratuitamente em
troca da alimentação, além de poder utilizá-lo como um bem
qualquer de sua propriedade: alugá-lo, emprestá-lo, vendê-lo,
dá-lo, legá-lo, constituí-lo em penhor ou hipoteca.

14. Apesar de ser uma prática presente no ordenamento


jurídico de diferentes países, sendo inclusive comum entre as
tribos do continente africano, esta forma de escravidão antiga
não possuía as mesmas proporções daquela posteriormente
imposta pelos europeus. A novidade perversa implementada
nas Américas e no continente africano, que reverte a forma clás-
sica e medieval da escravidão, está no fato de que o escravo é
despossuído de humanidade. Ou seja, mais do que propriedade
do "senhor", o escravo não é dotado de natureza humana (ou a
possui de modo inferior, próximo à animalidade). Esse tipo de
pensamento foi justificado inclusive por algumas teorias cientí-
ficas como o evolucionismo e permanece de maneira sublimi-
nar em muitas ações e discursos racistas e discriminatórios.

15. No processo de colonização do Brasil, os portugueses


adotaram duas formas de intervenção: usurpação das terras
indígenas e exploração da sua força de trabalho. Os índios,
denominados, nos documentos oficiais, de "negros da terra"
ou "gentio da terra", foram os primeiros a serem escravizados.
Apesar de várias bulas papais cominarem a pena de excomunhão
aos infratores e de inúmeras leis, alvarás, provisões, resoluções
e regimentos expedidos pela coroa portuguesa proibirem esta
prática, a escravidão indígena continuou durante séculos, inclu-
sive coexistindo com a escravidão dos negros. Abolida a escra-
vidão indígena (sem emancipá-los), recaiu sobre os africanos
e seus descendentes o ônus de sustentar a nação por meio da
força de trabalho. Pode-se afirmar que o processo de libertação
dos escravos permanece inacabado até os dias de hoje, quando
muitos trabalhadores, sobretudo negros, vivem em condições
subumanas.

16. A completa reparação dos danos causados à popu-


lação negra obriga a adoção, por parte do Estado e de toda a
sociedade, de medidas de combate ao preconceito e à discrimi-
nação racial.

17. No que concerne às comunidades quilombolas, além


do resgate dessa memória histórica do período da escravi-
dão, faz-se necessário compreender em quais termos se dão os
embates no campo jurídico e acadêmico.

1.4. Usos e sentidos do termo quilombo:


o debate acadêmico

18. De acordo com Arruti,5 o reconhecimento das comuni-


dades quilombolas ocupa um lugar recente na história do Brasil,
sem que isso signifique, necessariamente, que nunca tenha havido
luta. Até meados do século XX, não era conferida nenhuma parti-
cularidade a essas populações, e suas reivindicações integravam
a agenda mais geral do direito à terra, embora a mobilização
negra urbana tivesse grande atuação desde o início do século
passado. "Uma abordagem fundiária centrada na economia e na

5 ARRUTI, José Maurício. Diferenciar, redistribuir, reconhecer: ensaio de atualização dos debates sobre
terra e educação para quilombos. Revista Cadernos de Campo, São Paulo, 2011.
dinâmica da luta de classes excluíra qualquer consideração sobre
as diferenças socioculturais internas ao campesinato".6

19. Foi a partir dos anos 1960, principalmente pela atuação


da Igreja Católica e pelo avanço dos estudos antropológicos, que
se notou certo distanciamento entre as orientações dos movimen-
tos políticos urbanos e campesinos, com a dinâmica de organi-
zação de determinados agrupamentos rurais. No bojo da Nova
República, em que o tema da reforma agrária se colocava com
bastante ênfase, certos grupos evidenciaram outra forma de se
relacionar com a terra que não se enquadrava nos moldes do
parcelamento individualizado da terra, mas no uso comum desses
espaços. Neste contexto, apesar de o texto final da Constituição
Federal Brasileira (CFB) não ter mantido como sujeito "as comuni-
dades remanescentes de quilombos", o artigo 68 do ADCT utiliza
o sujeito no plural. Trata-se, portanto, de um direito que trans-
cende os indivíduos. Não só o direito comparado, mas a própria
análise histórica comprova que "quilombo" nunca foi uma expe-
riência individual, mas sempre uma experiência coletiva.

20. Define-se, hoje, como terras de uso comum:


a área apossada de forma indivisa por um grupo de famí-
lias ligadas entre si por estreitos laços de filiação e aliança.
(...) Os limites físicos destas terras tendem a se confundir
com os limites sociais e mesmo histórico-memoriais de uma
determinada comunidade, na medida em que tal conjunto
de famílias se pensa e age como um grupo social dotado de
uma identidade própria, vinculadas a sistemas simbólicos
particulares e a regras de acesso ao uso das terras.7

21. Uma grande parcela dessas comunidades assume, em


seu nome, a forma como foram constituídas: terra de preto,
terras de herança, terras de santo etc.

6 Ibidem, n. 20, p. 285.


22. Explicitada, portanto, essa realidade, várias ações
passam a ser desenvolvidas, por grupos distintos, na tentati-
va de estabelecer determinados vínculos entre as demandas
específicas do movimento negro urbano, da luta campesina e
as necessidades das comunidades negras rurais. Nesse período,
isto é, desde a década de 1930 (mas, sobretudo na segunda
metade do século XX), o termo quilombo passa a circular
com maior força entre esses agentes; ora como metáfora, ora
como realidade sóciohistórica concreta. De acordo com Glória
Moura,8 o termo quilombo "deriva de kilombo, sociedade iniciá-
tica de jovens guerreiros mbunãu, adotada pelos invasores jaga
(ou imbangalã), formados por agente de vários grupos étnicos
desenraizada de suas comunidades".

23. Se os quilombos inspiraram as reivindicações do movi-


mento negro (a princípio da Frente Negra Brasileira, em 1930,
e, depois, do Teatro Experimental do Negro, em 1950-1960),
sua estrutura como organização social já denunciava a opres-
são sofrida pelos negros no Brasil, isto é, se "após o golpe de
1964, os quilombos serviram de metáfora para organizações
que lutavam contra o autoritarismo",9 é porque ele já se estabe-
lecia como uma forma de luta e resistência à escravidão desde
o século XVII.

24. De fato, para além dos usos politicoideológicos do


termo quilombo, é impossível referir-se a ele sem adjetivá-lo:
seja por meio da fórmula legal que lança mão de "rema-
nescentes", ou das tentativas de ajustes desta, por meio de
"contemporâneos". Seja ainda porque são necessárias dis-
tinções entre estes quando se usa "urbanos" ou “rurais".
Ou, quando se quer tipificá-los, por meio de “agrícola",

8 MOURA, Glória. Festas dos Quilombos. Brasília: Editora UnB, 2012, p. 45.
9 MELLO, Marcelo Moura. Reminiscência dos quilombos: territórios da memória em uma comunidade
negra rural. São Paulo: Terceiro Nome, 2012, p. 35.

23
"extrativista", "nômade" etc. Ou, finalmente, quando se
fala em "histórico", de maneira complementar ou concor-
rente àquelas formas anteriores, já que falar em "quilombo
histórico", tem servido para especificar quanto para deslegi-
timar os "quilombos contemporâneos".111

25. E porque há essa multiplicidade de concepções (combi-


nadas e acionadas para os mais diversos fins) é que se faz neces-
sário ter uma postura clara frente a essas comunidades. Ainda
mais que muitos agentes estatais e empresários têm, cada vez
mais, tentado usurpar os direitos tanto à terra quanto à existên-
cia dessas populações.

26. Cada vez mais, coloca-se em disputa não a realidade


da existência das comunidades quilombolas, mas qual o signifi-
cado desse termo, isto é, a maior ou menor largueza pela qual o
conceito abarcará ou excluirá essas formações sociais. Portanto,
a luta desses povos se dá em vários planos, sendo que o escopo
jurídico está diretamente informado pelos interesses políticos,
os quais os ameaçam diuturnamente.

27. Antes de tratarmos dos embates no campo do direito,


convém ressaltar que as comunidades quilombolas apresentam
uma maneira alternativa legítima de organização social, na qual
as pessoas e as relações humanas são postas em primeiro lugar
em detrimento dos bens materiais.

1.5. Como os negros católicos organizaram-se


nestes 500 anos?

28. Em meio a perseguições, ameaças e violência de todo


tipo, as comunidades quilombolas souberam distinguir os
valores religiosos do direito e da justiça, mesmo com a ação de

10 ARRUTI, J. M. Quilombo. In: SANSONE, Lívio; OSMUNDO, Pinho (Orgs.). Raça: Perspectivas
Antropológica. São Paulo: ABA / Ed. Unicamp; Salvador: EDUFBA, 2008, p. 314.

24
muitos agentes que se utilizavam da Igreja Católica para opri-
mi-los e justificar os atos de violência praticados pela sociedade
e pelos órgãos públicos.

29. Os quilombolas naquele novo espaço de liberdade


poderiam fechar-se em sua compreensão religiosa tradicio-
nal africana. Entretanto, eles sabiam diferenciar Jesus Cristo e
seu Evangelho da prática dos cristãos colonizadores em terras
brasileiras. Os quilombolas reprovavam a prática religiosa dos
cristãos, pois não valorizavam a justiça e o respeito ao diferente,
mas, por outro lado, souberam perceber o potencial libertador
trazido por Jesus e seu Evangelho, e o abraçaram.

30. Os quilombolas desenvolveram outros valores que


deverão estar presentes hoje na atuação de todos os negros(as)
conscientes, independentemente de qualquer religião. São eles:

a) A fé em um Criador
31. A fé em um Criador da vida é uma energia presente em
todos os povos do mundo. A fé desenvolvida pelos afro-brasi-
leiros permitia o surgimento de um novo código de postura
ética a partir da tradição milenar africana. A observação coleti-
va desta fé-tradição canalizando-a para o bem comum do grupo
humano é o que chamamos de "mística".

b) Sociedade igualitária, pluriétnica


32. Os quilombos eram espaços de liberdade onde negros,
índios e brancos pobres, juntos, gestavam o amanhã do Brasil.
Motivou a troca de experiências religiosas, que possibilitou a
troca de experiências religiosas diferenciadas que caracterizam
a religiosidade popular brasileira, Todos os que abraçavam
aquele projeto pluriétnico habilitavam-se a ser construtores da
nova sociedade.
c) Troca intercultural
33. As culturas sempre foram e serão instrumentos de
congraçamento. Só é possível surgir em conflitos culturais
quando um grupo se sente superior a outro, e assim, a todo
custo, insiste em subjugar, limitar, proibir o que imagina ser
ameaça. Por exemplo, no Quilombo dos Palmares encontravam-
-se presentes e convivendo harmoniosamente valores culturais
negros, indígenas e brancos. Todos sabiam dar e receber, pois
se reconheciam filhos do mesmo Deus.

d) Valorização da vida
34. Toda estrutura organizativa, social, política e religiosa
do Quilombo dos Palmares tinha como uma das principais fina-
lidades a valorização da vida. Ela consiste fundamentalmente
em ajudar os quilombolas a crescer com autoestima positiva,
superando toda humilhação passada no contato com o setor
dominante colonizador. Gostar de si, de seu povo, seus traços
físicos, seus cabelos, de seus costumes, de sua identidade cultu-
ral era dizer gosto da vida! Gosto do autor da vida!

e) Integração ecológica
35. Para a mística africana a vida não é um atributo só
da pessoa humana. As plantas, os animais, a terra, a pedra, a
água, o ar, todos têm axé, têm vida. "Consequentemente, havia
grande comunhão com todos os elementos da natureza, onde a
relação era de parceria e corresponsabilidade".11

1.6. Situação das comunidades quilombolas no Brasil

36. Embora situação de conflito e violência contra as comu-


nidades quilombolas não surja na contemporaneidade, mas

11 As religiões são importantes para os afrodescendentes? Disponível em: <http://cenpah.wordpress.


com/2011/04/29/as-religioes-sao-importantes-para-os-afrodescendentes>. Acesso em: 14 de fevereiro de 2013.

26
derive de um processo vivido historicamente desde o período
escravista, preocupa-nos perceber, na atualidade, o aumento
significativo desta violência, a qual é decorrente de um modelo
de desenvolvimento assumido pelos governos e grandes empre-
sas. Este modelo concentra a terra e os lucros nas mãos de poucos
e quer expulsar dos territórios as comunidades negras que histo-
ricamente estabeleceram outro tipo de relação com o território.

37. Há um processo acelerado de estrangeirização das


l erras brasileiras que tem se dado principalmente com o inte-
resse do modelo extrativo-exportador, que descobriu nas terras
ocupadas por quilombolas, indígenas e outras comunidades
l radicionais uma riqueza de minérios, água e vegetação.

38. Há certa visão racista que é intolerante à titulação das


Ierras em favor de comunidades negras rurais que estiveram
subjugadas à violência e exploração durante anos, de certa forma
por temerem a autonomia e libertação das comunidades negras
e a retirada de algumas áreas do mercado de terra, uma vez que
o território ao ser titulado coletivamente não poderá ser mais
comercializado. Preocupa-nos saber que existe a possibilidade
de uma reação mais violenta que aquela desencadeada contra
.1 reforma agrária tradicional que, nas últimas décadas, vitimou
centenas de trabalhadores rurais, lideranças sindicais e religiosas.

39. Assistimos, desde a publicação do Decreto n.


4.887/2003, ao crescimento da violência contra as comunidades
quilombolas. Na medida em que as comunidades têm afirmado
a sua identidade quilombola, tem crescido o processo de violên-
cia, pois a afirmação da identidade gera direitos e conflita com
os interesses de grades latifundiários, de grandes empresas ou
até do próprio governo. É recorrente que comunidades certifi-
cadas pela Fundação Cultural Palmares e que buscam a regula-
rização pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária) passem a sofrer ataques violentos, criminalização,
ações judiciais de reintegração de posse, ataques de pistolei-
ros e policiais, sem que tenham dos órgãos públicos respaldo e
apoio suficiente diante desta situação.

40. Nos últimos anos tem aumentado o número de lideran-


ças assassinadas, criminalizadas, consideradas rés em processos
judiciais. Da mesma forma cresceu o número de ações judiciais
com rápidas decisões de reintegração de posse, de execução de
despejos de comunidades que vivem centenariamente nos seus
territórios. São muitos os empreendimentos que tentam dester-
ritorializar estas comunidades.

41. Todo este processo de violação e criminalização é refor-


çado, sobretudo, quando combina dois fatores: a campanha
depreciativa da mídia, principalmente os grandes veículos de
comunicação que defendem os grandes interesses e a morosi-
dade (falta de orçamento e estrutura para efetivação das políti-
cas públicas), principalmente a de regularização fundiária, por
parte do poder público. A mídia tem reforçado um estigma de
fraude no processo de identificação das comunidades quilom-
bolas, com matérias editadas e manipuladas; assim foi o caso
da comunidade quilombola de São Francisco do Paraguaçu, no
recôncavo baiano, que, devido a uma reportagem, teve por dois
anos o seu processo de regularização interrompido por uma
ação judicial motivada pela falsa reportagem, em que lideran-
ças morreram pelo estresse da agonia da criminalização.

42. A falta de profissionais, de recursos para o processo de


regularização, para as políticas públicas e sociais básicas potenciali-
za a violência sofrida por estas comunidades. As regularizações são
muito burocratizadas e têm durado vários anos. Enquanto isto, a
violência contra os quilombolas é maximizada à medida que suas
terras são certificadas pela Fundação Cultural Palmares. O desman-
lelamento das Superintendências Regionais do Incra nos estados
revela o protagonismo governamental no reforço aos interesses dos
grandes grupos econômicos. Em alguns casos, há também conflitos
de interesse envolvendo as Forças Armadas, entre os quais podemos
citar três casos emblemáticos: Alcântara (MA), Marambaia (RJ) e a
comunidade Rio dos Macacos (BA).

43. Os direitos conquistados pelas comunidades quilombo-


las que tiveram seu coroamento com a Constituição Federal de
1988 e toda a gama de políticas públicas que foram deflagradas
a partir da organização e protagonismo destas comunidades têm
sofrido ataques nas três esferas de poder do Brasil. No Legislativo,
as tentativas de rever a legislação que garante os direitos quilom-
bolas, a tentativa de revisão do artigo 215, a PEC (Proposta de
Emenda à Constituição) n. 215, que intenciona determinar que
o Congresso Nacional tenha a prerrogativa de autorizar o reco-
nhecimento das terras indígenas e quilombolas e a criação de
I Jnidades de Conservação; os projetos e PECs que objetivam
.iIterar o artigo 68 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias); a ação impetrada por partidos e parlamentares
< ontra o decreto quilombola. A dificuldade de entendimento dos
II i reitos quilombolas e a parcialidade de setores do Judiciário no
julgamento das contendas jurídicas entre fazendeiros, empresas
e as comunidades quilombolas, o processo de criminalização das
comunidades quilombolas e, por fim, o Executivo que tem rele-
gado, burocratizado a política quilombola e nos últimos meses
lentado diminuir os direitos através de mudanças de normativas
administrativas de forma a favorecer a exploração por grandes
empreendimentos nos territórios quilombolas. As ações da
ACU (Advocacia-Geral da União), Casa Civil, para diminuir os
direitos territoriais e retroceder na lógica de defesa do território
holístico, que tem como perspectiva a reprodução social, cultu-
ral e ambiental das comunidades, têm dado lugar a uma pers-
pectiva de regularização que siga os moldes da reforma agrária
tradicional não se adéqua à realidade sociocultural destas comu-
nidades e aos direitos constitucionais conquistados.

44. E difícil dizer com precisão quantas comunidades


quilombolas existem no Brasil. Essa dificuldade deve-se a muitos
fatores, dentre os quais destaca-se o fato de não haver um censo
oficial e abrangente sobre o tema,12 e também porque o reconhe-
cimento e tombamento dos territórios podem dar-se no nível
federal e estadual e, por vezes há divergência entre os dados.13

45. Enquanto o governo facilita a ocupação, mesmo


quando ilegal, das terras pelo agronegócio, menos de 4% das
comunidades quilombolas foram tituladas. De acordo com o
levantamento do Incra, divulgado em janeiro de 2013, na atua-
lidade existem 139 títulos emitidos, regularizando 995.009,0875
hectares em benefício de 124 territórios, 207 comunidades e
12.906 famílias quilombolas. Esta área é menos de 10% da área
ocupada pelos 15.012 estabelecimentos rurais com mais de 2.500
hectares cada, em muitos casos ocupados ilegalmente: mais de
98 milhões de hectares (esta área é, também, maior do que a
soma de todas as reservas indígenas). O pensamento comum de
muitos políticos e dos meios de comunicação considera que as
comunidades quilombolas e indígenas têm muita terra. Poucos,
porém, questionam a impressionante quantidade de terras
ocupadas pelo agronegócio. Terra para o agronegócio é consi-
derada fator de crescimento e de progresso. Terra para quilom-
bolas e índios significa atraso e desperdício.14 Este pensamento
é quase sempre comum a capitalistas e socialistas.

12 ARRUTI, José Maurício; FIGUEREDO André. Processos Cruzados: configuração da questão quilombola e
campo jurídico no Rio de Janeiro. In: Territórios Quilombolas. Reconhecimento e Titulação das Terras.
Boletim Informativo do NUER, v. 2, n. 2, 2005. p. 73-93.
13 Enquanto a FCP (Fundação Cultural Palmares) cadastrou 1.749 comunidades (http://www.palmares.
gov.br/quilombola/) a Conaq (Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas) afirma serem
mais de quatro mil. Acesso em: 24 de fevereiro de 2013.
14 O Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva chegou a classificar as questões quilombolas como
"entraves" ao desenvolvimento do país (Estado de São Paulo - 22/11/2006).
46. Embora a legislação atual seja favorável aos quilombo-
las, é flagrante o seu descumprimento. Os interesses escusos de
muitos latifundiários aliados a políticos e profissionais corruptos
têm impedido que territórios sejam demarcados, muitas comu-
nidades perecem no total abandono (sem acesso a saneamen-
to básico, educação), além de sofrerem todo tipo de violência
psicológica (com ameaça de despejo, preconceito) e muitas vezes
física. Num levantamento recente, foram identificadas 148 ações
judiciais propostas e atualmente em curso em defesa dos quilom-
bolas, envolvendo 131 comunidades, localizadas em 20 diferen-
tes estados.15 Quando analisamos os dados sobre o processo de
regularização fundiária realizado pelo governo desde o Decreto
n. 4.887/2003, ficamos espantados com a lentidão do processo e
falta de prioridade, principalmente pelo governo federal. E um
dado alarmante que de 2003 a 2012, dos apenas 89 territórios titu-
lados, 71 foram pelos órgãos daqueles estados que têm leis esta-
duais, sendo que em quase 10 anos pelo governo federal foram
titulados apenas 18 territórios em todo território nacional.16

47. Nota-se que a resistência, que marca o jeito de ser


quilombola, mostra-se cada vez mais operante nos dias de hoje,
em que as ameaças se dão em vários níveis: jurídico, cultural e
psicológico. Cresce também, a cada dia, o número de associa-
ções e organizações que se unem às comunidades.

48. Neste contexto, é importante destacar que, desde a


época da escravidão até os dias atuais, as mulheres quilombo-
las tiveram e têm um papel de extrema importância nas lutas
de resistência, manutenção e regularização de seus territórios.
Estejam no quilombo ou na cidade, estas mulheres têm sido as

15 O levantamento da Comissão Pró-Índio de São Paulo aponta a existência de outras 101 ações ajuizadas
contra comunidades quilombolas. Ver em: <http://www.cpisp.org.br/acoes/html/resultados.aspx>.
Acesso em: outubro de 2013.
16 Monitoramento da política fundiária elaborado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo.
guardiãs das tradições da cultura afro-brasileira, além de cuidar
da casa, dos filhos, dos idosos, da roça, dos animais e da preser-
vação dos recursos naturais. Nos tempos da escravatura, provi-
denciavam alimento e proteção aos refugiados das lutas de
resistência pela liberdade e estavam diretamente envolvidas na
organização do quilombo e de muitas revoltas. Foram e conti-
nuam a ser fundamentais na luta de todos os quilombolas pelos
seus direitos. Atualmente, muitas mães quilombolas enfrentam
a fúria dos fazendeiros e grileiros, por vezes pagando com a
própria vida a defesa de seus territórios; também assistem à
morte de seus filhos nos conflitos agrários.

49. As mulheres negras foram importantes para a manuten-


ção das comunidades negras e seu legado cultural. Suas histó-
rias, personalidades e as diferentes formas de luta que criaram
para enfrentar (e vencer) o domínio senhorial, são alguns dos
elementos forjadores da identidade feminina negra. Nas comu-
nidades quilombolas os valores culturais, sociais e educacionais
são transmitidos aos mais jovens por meio da oralidade, e a
mulher tem um papel fundamental na transmissão e preserva-
ção das tradições das comunidades, principalmente na mani-
pulação das ervas medicinais, no artesanato, na culinária e em
algumas atividades agrícolas. As festas, organizadas principal-
mente por elas, têm papel social relevante para reunir as pessoas
e estabelecer vínculos de solidariedade e para transmitir experi-
ências vividas. Estas mulheres na sua maioria têm pouco estudo,
principalmente as adultas e idosas, sendo poucas as que conse-
guiram sair da comunidade para estudar na cidade.

50. Embora algumas representações, principalmente nacio-


nais, sejam ocupadas por homens, as mulheres quilombolas são a
maioria nas lutas nas comunidades, e cada vez mais acompanha mos
a participação das mulheres quilombolas no cenário público da luta
quilombola. Elas não se intimidam com a violência dos conflitos e o
descaso das autoridades oficiais; enfrentam poderosos para terem o
direito de plantar, acessar os mangues e criar seus filhos.

51. A participação das mulheres quilombolas em espaços


de definição de políticas tem garantido a proposição de polí-
licas públicas que levem em conta o recorte de gênero, raça e
etnia, uma vez que elas ao exercerem papel ativo na sociedade,
levam suas demandas e denunciam o racismo institucional e
ambiental, a invisibilidade, a violência e a ausência do Estado
nas suas comunidades.

52. Outra batalha travada diariamente pelas comunidades


quilombolas dá-se no campo do direito. Compreender os meandros
da legislação brasileira permite uma tomada de posição firme na
defesa dos direitos e na denúncia de abusos e injustiças cometidos.

1.7. Quilombo de fato e quilombo de direito:


direitos assegurados e usurpados

53. A Constituição Federal de 1988 garantiu às comunida-


des quilombolas o reconhecimento de seus direitos territoriais.
O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
prevê: "Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade defi-
nitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos".17

54. E importante sublinhar que a proposta inicial seja apre-


sentada pelo movimento negro, endossada em 20 de agosto de
1987 pelo Deputado Carlos Alberto Caó (PDT-RJ), com o texto
da Comissão de Sistematização, que reconhecia o direito de
propriedade: "às comunidades remanescentes dos quilombos"
e não aos "remanescentes das comunidades dos quilombos".

17 Também as seguintes Constituições estaduais de 1989 apresentam dispositivos similares: Bahia (art. 51
do ADCT); Goiás (art. 16 do ADCT); Maranhão (art. 229); Mato Grosso (art. 33 do ADCT) e Pará (art. 322).
55. Este artigo enseja para os juristas e para toda a socie-
dade a responsabilidade de responder a algumas questões:
"Remanescentes": quem são? Comunidades: podem ter título
individual? Quilombos: qual a melhor definição, utilizam-se as
definições antigas? É reconhecida: trata-se de uma expropria-
ção constitucional que cancela os registros de propriedade já
emitidos? Qual titulação: coletiva, condominial ou individual?
Propriedade definitiva: Pode ter um título com alguma condi-
ção resolutiva? Pode se ter concessão de uso em lugar de título?
Devendo: Preenchidos os requisitos legais pode o Estado se
negar a emitir o título? Estado: Entende-se União ou também os
Estados e Municípios?

56. Antes de tudo precisa-se afirmar que o artigo 68 do


ADCT reconhece um direito fundamental, por isso sua aplica-
ção deve ser considerada como de eficácia plena e aplicação imedia-
ta, não precisando de lei complementar que o regulamente.18 O
Decreto n. 4.887/2003 regulamenta o processo administrativo
de reconhecimento dos direitos territoriais dos remanescentes
das comunidades de quilombo já devidamente consagrado pela
Constituição. Tratando-se de um "reconhecimento de domínio"
prevalece sobre os eventuais direitos de terceiros.19

18 No Acórdão n. 2004.03.99.037453-4/SP, o Tribunal Regional Federal da 3^ Região reconhece o caráter


de "direito fundamental' ao art. 68 do ADCT: "Tratando-se de direito fundamental (art. 68 do ADCT
e art. 5, § 29 da CF) possui aplicação imediata, conforme dicção do § lg, do art. 55, da Constituição
Federal, haurindo-se do próprio texto constitucional o direito dos integrantes da comunidade quilom-
bola de Ivaporunduva de granjearem a titulação da área por eles ocupada, contra tal direito não ca-
bendo opor o domínio de entidade particular" (grifo nosso). Várias outras decisões judiciais, também,
favorecem as comunidades quilombolas. Ver Agravo de Instrumento n. 2008.04.00.010160-5/PR e a
Sentença n. 027/2007/JCM/JF/MA Justiça Federal de 1- Instância Seção Judiciária do Maranhão - 5^
Vara que envolve as terras das comunidades quilombolas de Alcântara.
19 FARIAS, Valdez Adriani. Informação/(VAF)/CPAL/CONJUR/MDA/N°256/2004, 02 de julho de 2004b.
Esta mesma posição foi adotada por unanimidade, pela Quinta Turma do Tribunal Regional Federal
da Primeira Região, nos termos do voto da Exma. Sra. Desembargadora Federal Selene de Almeida.
Brasília, 24 de outubro de 2012 (APELAÇÃO CÍVEL 2009.43.00.007557-4/TO): "É constitucional o
Decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003, pois regulamenta norma constitucional definidora de
direito autoaplicável" (grifo nosso).

34
1.8. As garantias legais à posse da terra aos
remanescentes das comunidades de quilombo

57. Este reconhecimento não pode ser visto com um olhar


vinculado ao passado, mas precisa assegurar que os quilombo-
las ainda têm papel importante nos destinos e na construção da
identidade cultural da nação. Por isso mesmo que a garantia da
propriedade possui um caráter de definitividade que está intrin-
secamente ligada à sua forma comunal de uso. Os títulos emitidos
em favor das comunidades quilombolas pelo governo federal e
pelos governos estaduais, de 1995 a 2012, foram gravados com
cláusula de inalienabilidade. Cabe, portanto, na esfera federal,
ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra,
e nos Estados, Distrito Federal e Municípios, aos seus respectivos
órgãos, estabelecer o processo de reconhecimento e titulação das
I erras aos remanescentes das comunidades quilombolas.

58. Por estarem sendo atribuídos "direitos étnicos e territo-


riais", caberá à Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial - Seppir, da Presidência da República -acom-
panhar a tramitação dos processos (art. 4a). O mesmo acom-
panhamento terá que ser feito pelo Ministério da Cultura, por
meio da Fundação Cultural Palmares para garantir "a preserva-
ção da identidade cultural" (art. 59).

59. É neste contexto de territórios culturais a serem parti-


el ilarmente protegidos que os títulos não só devem ser coleti-
vos, mas neles devem ser inseridas cláusulas de inalienabili-
< Lide, imprescritibilidade e de impenhorabilidade. A titulação
< t >letiva e o estabelecimento destas cláusulas não são limitações
.io direito de propriedade, mas da única forma de titulação
válida para garantir sua sobrevivência, uma forma de proteger
um bem que ganha relevância para toda a sociedade brasileira
(art. 17 do Decreto n. 4.887/2003).20

60.0 uso dos recursos naturais é vinculado ao desenvolvi-


mento sustentável dos territórios quilombolas, que será efetuado
pela implementação de um Plano de Etnodesenvolvimento (art. 19
do Decreto n. 4.887/2003). Mais uma vez se percebe a preocupação
do legislador em caracterizar o uso coletivo e não individual das
terras quilombolas. É esta estreita relação entre as populações tradi-
cionais e o uso dos recursos naturais que lhes deve ser garantida.21

61.0 efetivo reconhecimento dos direitos territoriais


historicamente usurpados e hoje consagrados pela Constituição
de 1988 permitirá a redução dos graves conflitos possessórios
dos quais as comunidades quilombolas são vítimas. Só assim se
alcançará a paz social tão almejada por todos e cuja implemen-
tação é dever do Estado de Direito.

62. Analisando as diferentes legislações se percebe como


alguns países latino-americanos adotaram nomenclaturas dife-
rentes: Brasil (art. 68 do ADCT - 1988): Remanescentes das comu-
nidades dos quilombos; Colômbia (Artículo Transitório 55 de la
Constitución Política de 1991): Comunidades negras; Ecuador
(Artículo 83 de la Constitución Política de 1998): pueblos negros
o afroecuatorianos; Nicaragua (Ley n. 445/2002): comunidades
étnicas. A legislação da Nicarágua (Decreto n. 5.934/2010)22 não

20 Corrêa defende a defesa destes territórios por parte do poder público: "Mas elas são também essenciais
como instrumento de identidade cultural e antropológica das comunidades que nelas se estabeleceram
para escapar à escravização, criando um mundo próprio que cumpre ao Estado defender e preservar, re-
gistrando-o no acervo histórico do seu povo (grifos no original)". Corrêa, Carlos Alberto Lamarão. Parecer
em resposta à consulta do Presidente do Instituto de Terras do Pará - Iterpa, a respeito da utilização do
instituto jurídico da desapropriação por utilidade pública. In: OLIVEIRA, Leinad Ayer de. Quilombos: a
hora e a vez dos sobreviventes, São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo, 2001, p. 34-39.
21 Artigo 15 da Convenção 169 da OIT: "Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existen-
tes nas suas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangem o direito desses
povos a participarem da utilização, administração e conservação dos recursos mencionados".
22 Decreto de aprobación dei Convênio sobre pueblos Indígenas y Tribales 1989 (n. 169) da OIT: Art. 2.
La aplicación de las disposiciones jurídicas contenidas en el Convênio es extensivas para los Pueblos y
Comunidades Afrodescendientes (Garífunas y Creoles) de nuestro país.
só identifica de maneira mais precisa os beneficiários desta
política: Comunidades Afrodescendientes (Garífunas y Creoles), mas
a firma textualmente que a eles se aplica a Convenção 169 da
OIT (Organização Internacional do Trabalho).

63. Uma interpretação do direito comparado permite


.1 firmar: todas as legislações latino-americanas reconhecem
o direito coletivo ou comunal da propriedade da terra e tem
como "sujeitos" comunidades afrodescendentes. As diferentes
normas latino-americanas, incluindo as brasileiras, fazem uma
estreita relação entre a identidade cultural (em alguns casos se
laia expressamente de comunidades étnicas) e a necessidade de
reconhecer os direitos territoriais destas populações.

1.9. O direito coletivo à terra

64. Reconhecidos como agrupamentos sociais pela


('(instituição de 1988, e mais recentemente reafirmado no
I Jecreto n. 6040/2007, os povos e comunidades tradicionais são
i a los como grupos culturalmente diferenciados e que se reco-
nhecem como tais, que possuem formas próprias de organiza-
ção social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais
< onio condição para sua reprodução cultural, social, religiosa,
ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e
I it álicas gerados e transmitidos pela tradição.23

65. Com isso chegamos ao foco central da nossa reflexão.


' ><■ esles povos, reconhecidos pela Constituição como legítimos,
na sua organização sociopolítica e cultural, são cidadãos de
direitos, e, para isso, ocupam um espaço de reprodução socio-
< iillural e econômica, quais as reais causas de estes estarem tão
ameaçados em seus territórios?

I I ><•< reto n. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007 - institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
<!<>•. Povos e Comunidades Tradicionais.
66. Pensar o território como um resultado e não como
um dado implica em admitir que essas comunidades e povos
produziram histórica e culturalmente os seus espaços. E estes
só existem por existirem tais povos.

67. O Estado Democrático de Direito no Brasil deve, de


forma definitiva, incluir os quilombolas no plano de desenvol-
vimento do país, o que não pode ser visto apenas como retórica
eleitoral, pois, para eles, água, terra, vento, sol não são apenas
insumos - fazem parte da vida.

68. Aqui se reafirma que o conceito atual de quilombo


deve estar vinculado à história do povo negro nas suas múlti-
plas expressões: se se retirar este especial enfoque perde-se toda
a riqueza jurídica e social que justifica seu reconhecimento. São
criações históricas que se identificam em determinado território
utilizado em comum.

69. Trata-se, portanto, de comunidades com identidade


socio-histórico-cultural comum.24 As legislações federais25 e
estaduais26 determinam que o título deve ser coletivo e apre-
sentar cláusula de indivisibilidade. A opção do legislador pelo
caráter comunitário deve ser entendida e aplicada como meio de
afirmação da cidadania que se concretiza na diversidade do
reconhecimento de direitos. O artigo 8a da Convenção 169 da

24 0 artigo primeiro da Convenção 169 atesta que ela se aplica a povos que se distinguem dos demais
grupos sociais presentes num país devido a "seus próprios costumes ou tradições".
25 Os artigos 27-34, da Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial,
no capítulo em que é regulamentado o acesso à terra, utilizam as expressões: "população negra" ou
"trabalhadores negros e as comunidades negras rurais", isto é, realidades que reconhecem direitos
coletivos e não individuais.
O Decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003, bem como as diferentes Instruções Normativas do Incra que
o regulamentaram: n. 16, de 24 de março de 2004; n. 20, de 19 de setembro de 2005; n. 49, de 29 de
setembro de 2008; n. 56, de 7 de outubro e n. 57, de 20 de outubro de 2008.
26 Nove estados têm uma legislação específica que determina como deve ser o processo de titulação das
terras de quilombo: Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Pará, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio
Grande do Sul e São Paulo. A eles devem se somar outros dez que estabeleceram políticas públicas
específicas em favor de quilombos: Amapá, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,
Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Sergipe.
OIT27 prevê expressamente a necessidade de os estados respei-
tarem os costumes específicos destes grupos.

70. O território quilombola deve ser visto como uma reali-


dade que detém dimensões culturais, ambientais e econômicas
e não como um bem patrimonial disponível que possa se desti-
nar à especulação.28 Não se pode reduzir a titulação quilombola
à mera expedição de documentos sujeitos às mesmas normas
dos demais imóveis que podem ser alienados a qualquer tempo
sem qualquer restrição. Concebendo a terra como um bem
comunal, o direito territorial reconhecido não pode ser restri-
to no âmbito limitado do direito privado, nem seguir padrões
jurídicos que regulam o estatuto da propriedade privada, suas
formas de aquisição e transmissão.

71. É nesse sentido que a "identidade quilombola" se dá


na configuração do grupo enquanto tal. Os vínculos de solida-
riedade (religiosos, de parentesco e culturais) possibilitam a
coesão do grupo.

27 O texto na íntegra assim expressa: "1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deve-
rão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário; 2. Esses povos
deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam
incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direi-
tos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser estabelecidos
procedimentos para se solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação deste princípio; 3. A
aplicação dos parágrafos 1 e 2 deste Artigo não deverá impedir que os membros desses povos exerçam
os direitos reconhecidos para todos os cidadãos do país e assumam as obrigações correspondentes".
28 Para a UFBA: "A terra e seus recursos naturais são apropriados pelos grupos étnicos - no caso em tela
por quilombolas - como uma espécie de patrimônio coletivo, sem valor comercial e cuja proprieda-
de assegura a manutenção dos marcos de referência de sua história". Ver UNIVERSIDADE FEDERAL
DA BAHIA. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia.
Departamento de Antropologia e Etnologia. Nota Técnica. Salvador/BA, 15 de abril de 2012.

39
PARTE 2

JULGAR

2.1. Introdução

72. A realidade que acabamos de considerar, e que se nos


impõe com evidência e força inquestionável, desafia o nosso
discernimento, que queremos exercer, atentos ao clamor que
nos vem das comunidades quilombolas à luz das Sagradas
Escrituras, na fidelidade ao Magistério eclesial e, sobretudo, à
ação do Espírito Santo.

73. Encontramo-nos diante de três aspectos que precisa-


mos considerar:

a. A resistência das comunidades quilombolas ao avanço


avassalador do capital;
b. A riqueza de valores que as comunidades quilombolas
vivenciam e nos transmitem;
c. O caminho das comunidades quilombolas que querem
viver sua identidade cultural em alteridade dialogante
com as demais culturas e comunidades que vivem no
nosso país.
74. Precisamos, de antemão, afirmar que o caminho de
vida, de resistência, de identidade cultural étnica e de luta pelos
direitos na sociedade, assumido pelas comunidades quilombo-
las, é legítimo em si mesmo, uma vez que é um direito inalie-
nável de todas as comunidades humanas o de viver em seus
territórios, segundo suas culturas e seus costumes. A reflexão
bíblica nos ajuda a compreender que este caminho é parte inte-
grante de uma história que continua sendo de salvação, mesmo
sabendo, pela fé, que a salvação será completa na incorporação
a Jesus o Cristo, quando, no seu nome, "todo joelho se dobre...
e toda língua proclame: Jesus Cristo é o Senhor para a glória de
Deus Pai" (F12,10-11).

2.2. A resistência das comunidades quilombolas


ao avanço avassalador do capital

75. As inúmeras ações de resistência que das comunidades


quilombolas em defesa de seus territórios ameaçados se efeti-
vam, sobretudo nestes últimos anos, pela inaceitável concen-
tração fundiária provocada, de maneira especial, pela ganância
insaciável do agronegócio exportador e pela mineração. Tais
ações são a continuação histórica e atual da memória fundante
do povo de Deus que, justamente no Egito, na África, conheceu
Deus pelo seu nome de Senhor,29 quando recebeu a revelação
e que Deus é o Deus do povo oprimido e ameaçado, do qual
escuta o clamor e conhece o sofrimento; e que a vontade do
nosso Deus é que os oprimidos sejam libertados e conquistem
a terra e que ele entrega em suas mãos a missão de enfrentar os
dominadores, para que deixem livre o povo (Ex 3,7-10).

76. Esta é a memória paradigmática que revela o verda-


deiro rosto/nome do nosso Deus, um nome que assim deverá
ser celebrado para sempre, de geração em geração (Ex 3,15).
Toda vez que os oprimidos buscam sua vida e liberdade, nós

29 A Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos enviou às conferências episcopais do
mundo uma cartam na qual fala sobre o nome de Deus, pedindo que não se use o termo "Javé" nas litur-
gias, nas orações e nos cantos. A carta se refere ao uso do nome "YHWH", que se refere a Deus no Antigo
Testamento e que em português se lê "Javé". O texto explica que esse termo deve ser traduzido de acordo
com o equivalente hebraico "Adonai", e como exemplo de tradução aceitável "Deus" ou "Senhor".
sabemos que o nosso Deus está presente, no meio deles, com
seu poder e seu amor. Lembramos a proclamação de fé firme
que saiu da oração de Judite, cerca de oito séculos depois do
Exodo, e que é uma das mais singelas e profundas sínteses da
fé dos pobres do Senhor: "Tu és o Deus dos humildes, o socorro
dos mais pequenos, o defensor dos fracos, o protetor dos rejei-
tados, o salvador dos desesperados" (Jt 9,11). Esta é a fé que
sustentou os profetas do antigo Israel em sua denúncia e resis-
tência contra o poder opressor do palácio, do mercado, dos
juízes corruptos, dos falsos profetas e dos sacerdotes coniventes
e coautores de uma sociedade construída sobre a dominação e
a exploração. As palavras proféticas, contundentes e seguras,
continuam ressoando aos nossos ouvidos, aquecendo o nosso
coração e provocando nossa fidelidade. Com a mesma força
relembramos as palavras de Maria, mãe de Jesus e nossa mãe:
"Ele mostrou a força do seu braço: dispersou os que têm planos
orgulhosos no coração. Derrubou os poderosos de seus tronos
e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e mandou
embora os ricos de mãos vazias" (Lc 1,51-53).

77. E com este olhar e com esta sabedoria que devemos


discernir o que está acontecendo com as comunidades quilom-
bolas neste momento em que os interesses do mercado se
tornam praticamente absolutos, privilegiando os latifundiários
do agronegócio, os madeireiros e as mineradoras, em detrimen-
to dos territórios dos quilombolas, dos indígenas, dos possei-
ros e dos ribeirinhos que vivem do trabalho na terra para seu
sustento e para abastecer as comunidades vizinhas.

78. Em nome da fidelidade à Palavra de Deus, à tradição


apostólica e ao magistério eclesial, e ouvindo o clamor que sai
das comunidades quilombolas, reafirmamos que tudo isso não
é justo, não é humano, não é cristão. Em hipótese nenhuma os
interesses do mercado podem prevalecer sobre os direitos das

43
pessoas. Em hipótese nenhuma as despesas de um governo
podem privilegiar os compromissos com a dívida financeira,
muitas vezes resultado de inescrupulosas especulações, acima
dos compromissos com a dívida social, exigência principal em
relação à nação que paga os impostos.

79. O respeito rigoroso da Constituição e da legislação ordi-


nária, sobretudo no que diz respeito à ocupação das terras públi-
cas, encontra uma reafirmação paralela em dois princípios que
regem a Doutrina Social da Igreja. O primeiro é que a propriedade
privada não é um direito absoluto, enquanto sobre ele pesa uma
hipoteca social que sempre deve ser considerada em primeiro
lugar. O segundo é que o latifúndio, entendido como proprieda-
de sem limites, é "intrinsecamente ilegítimo".30 A função social
da propriedade, reconhecida pela legislação brasileira, não pode
ser reduzida à mera produtividade - cujos índices, aliás, não são
reajustados há décadas - mas deve contemplar o direito à vida
em todos os seus aspectos, inclusive de ocupação e de uso do
território por parte de inteiras comunidades.

80. E isso que buscam as comunidades quilombolas em


todos os cantos deste país, quando exigem a titulação coletiva
de suas terras, como garantia de vida digna e livre, fruto de
uma relação respeitosa com a terra e do trabalho de suas mãos,
segundo suas tradições, hábitos e costumes. Esta resistência se
faz mais forte quando suas comunidades são seriamente amea-
çadas pela violência do capital, em muitos casos apoiada por
alguns juízes omissos quando não coniventes, pela crônica
inoperância do Incra e de outros órgãos públicos, responsáveis
pelo reconhecimento e pela titulação dos territórios quilombo-
las, e por uma legislação indecisa e ambígua.

30 PAULO VI. Carta Encíclica Populorum Progressio (PP), n. 23,1967; Pontifício Conselho Justiça e Paz: Para
uma melhor distribuição da terra. Os desafios da reforma agrária, n. 32-34, 1997; Pontifício Conselho
Justiça e Paz: Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 300, 2004.
2.3. Direito à identidade e à diversidade
sem discriminação

81. Outra situação que exige o discernimento pastoral é o


direito, reivindicado pelas comunidades quilombolas e pelos
atro-brasileiros, a manter sua identidade cultural, em seu sentido
mais amplo, conforme nos diz a Constituição conciliar Gaudium
et Spes: "Diferentes modos de usar das coisas, de trabalhar e de
se exprimir, de praticar a religião e de formar os costumes, de
estabelecer leis e instituições jurídicas, de desenvolver as ciên-
cias e as artes e de cultivar a beleza, dão origem a diferentes
estilos de vida e diversas escalas de valores. E assim, a partir dos
usos tradicionais, se constitui o patrimônio de cada comunida-
de humana. Define-se também por este modo o meio histórico
determinado no qual se integra o homem, raça ou época e do
qual tira os bens necessários para a promoção da civilização".31

82. Não podemos minimizar o fato que, por muito tempo,


por tempo demais, na América Latina, a partir de um arrogan-
te, equivocado e colonizador eurocentrismo, as culturas de
origem afro, assim como as de origem índia, foram considera-
das, também por grande parte do mundo eclesiástico, culturas
primitivas, irracionais e, por isso, inferiores à cultura dominan-
le. O próprio anúncio do Evangelho foi confundido, muitas
vezes, com a imposição de seu revestimento cultural ocidental,
ofuscando, assim, o essencial do anúncio que é o Reino de Deus,
encarnado em Jesus, do qual todos os povos devem ser discí-
pulos (Mt 28,19). Paulo VI, na Exortação Apostólica Evangelii
Nuntiandi já dizia: "A ruptura entre o Evangelho e a cultura é
sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de
outras épocas. Assim, importa envidar todos os esforços no
sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou mais

31 CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium etSpes (GS), n. 33.


exatamente das culturas. Estas devem ser regeneradas median-
te o impacto da Boa-Nova. Mas tal encontro não virá a dar-se
se a Boa-Nova não for proclamada.32 Dizia, também: "importa
evangelizar, não de maneira decorativa, como que aplicando
um verniz superficial, mas de maneira vital, em profundidade,
e isto até às suas raízes, a civilização e as culturas do homem".33

83. A comunidade cristã deve estar "disposta ao diálogo


e à aprendizagem de qualquer cultura", conforme estabelecia
João Paulo II como princípio para universidades católicas.34
Estas duas dimensões devem orientar nossas relações com as
comunidades quilombolas, dentro das quais já existem muitos
agentes de pastoral que prestam um grande serviço de evange-
lização e de defesa da vida.

84. Esta atitude de diálogo e de aprendizagem com todos


os povos nos leva a reler, com atenção, os textos bíblicos, a partir
dos povos "diferentes", da margem, da periferia. Com efeito,
é comum, em nossa catequese, reduzir as memórias históricas
do povo de Deus aos fatos e às personagens mais marcantes
e deixar de lado fatos e personagens periféricos, considerados
menos importantes e significativos.35 Pôr em destaque somente
estas pessoas pode levar-nos a fixar nossos olhos, sobretudo,
nos poderosos e nos grandes, levando a esquecer a contribui-
ção teológica e histórica que nos veio das mulheres, dos pobres,
dos pequenos e das pequenas que fizeram história: os simples
a quem o Pai, segundo seu beneplácito, quis revelar coisas que
manteve escondidas aos sábios e aos entendidos (Mt 11,25-26;
Lc 10,21). Encontraremos, assim, valores escondidos, mas não

32 PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (EN), n. 40.


33 Idem.
34 JOÃO PAULO II. Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiae (ECE), n. 43.
35 Assim, por exemplo, trabalhou o autor do Livro do Eclesiástico que, nos capítulos 44 a 49, ao fazer
memória do passado, relembrou somente os homens mais importantes esquecendo as mulheres, os
pequenos e deixando de considerar relevantes fatos da história.
menos necessários ao nosso caminho na fé e na fidelidade à
vontade do nosso Pai e ao clamor, muitas vezes abafado, que
sai da vida das populações marginalizadas das comunidades
afrodescendentes.

a) Às margens das tendas dos patriarcas


85. O problema de Abraão era a falta de "primogênito".
Sem primogênito o clã não tinha futuro. Seguindo os costumes
do clã, Sara entregou Agar, sua escrava egípcia, para ter um
filho com Abraão, mas quando ela mesma ficou grávida, não
aceitou que o filho de Agar fosse o primogênito e o herdeiro
do clã e a fez expulsar. À experiência de Agar ficou ligada uma
nova compreensão de Deus. Em Bersabeia (na extrema periferia
sul da terra de Canaã) ela descobriu que "Deus ouviu o choro
do menino" (Gn 21,17). Foi este o fundamento da fé em Deus
que, como vimos, foi proclamada na memória do Êxodo, na
memória fundante do povo de Israel (Ex 2,22; 3,7).

86. Em algumas das mais antigas páginas bíblicas, como


o cântico de Débora e a bênção de Moisés, encontramos deta-
lhes muito estimulantes: Senhor! Quando saíste de Seir, quando
partiste das estepes de Edom, a terra tremeu, os céus se dissol-
veram, as nuvens se desfizeram em água. Os montes derre-
teram à vista do Senhor, o do Sinai, diante do Senhor, Deus
de Israel (Jz 5,4-5). E no cântico de Moisés: O Senhor veio do
monte Sinai, de Seir levantou-se para eles. Resplandeceu na
montanha de Farã e chegou a Meriba de Cades, com centelhas
de fogo em sua mão direita.36 Aquele que ama os povos, todos
os seus santos estão em sua mão (Dt 33,2-3). Farã: um monte,
no deserto, onde morou Ismael, o primogênito de Abraão e de
Agar (Gn 21,21). Seir: outro monte, em Edom, ao leste de Farã,

36 A Nova Vulgata e a Bíblia de Jerusalém optam por outra tradução: desde o sul até as encostas ou até
Asedot.
ao leste do caminho da Arabá, terra de Esaú, o primogênito de
Isaac (Gn 36,8).37

87. Poderíamos até dizer que, antes de ser o Deus de Israel,


o Senhor foi o Deus de Ismael e de Esaú, os irmãos afastados para
longe para não atrapalharem a bênção dos eleitos; assim como
foi afastado Madiã, o meio irmão de Ismael, filho de Abraão e de
Cetura (Gn 25,1-6). Nas terras de Madiã, ao sul do deserto de Farã,
Moisés saberá que o Elohim de Abraão, de Isaac e de Jacó, tem outro
nome, nome já conhecido pelos que foram rejeitados, nome já cele-
brado nas terras de Farã, de Seir, de Edom, de Madiã: seu nome é
Senhor. E um Deus que "veio do sul", dos desertos, e alcançou as
encostas. Um Deus que "ama todos os povos". No Livro do Êxodo
será chamado Deus dos hebreus, dos marginalizados;38 Deus que
resplandecia em Farã, que troava e fazia chover em Seir, Deus de
Ismael, de Esaú, de Edom, de Madiã, de Israel, de todos os povos.

b) Às margens das tribos de Israel


88. Ao longo da história de Israel foram se manifestando
situações e pensamentos diferentes em relação à convivência
entre os diversos povos que habitavam aquela região. Mesmo
que a redação final dos livros sagrados privilegie, de certa forma,
uma perspectiva mais excludente em favor de Israel e desfa-
vorável em relação às outras "nações", não podemos esquecer
páginas magistrais que nos transmitem uma preocupação de
inclusão e de diálogo. As memórias da cananeia Raab que, com
sua família "continuou habitando no meio de Israel até hoje"
(Js 6,25), contrapõem-se, por exemplo, à tradicional interpreta-
ção da maldição lançada por Jacó contra Canaã, o filho de Cam,

37 O profeta Habacuc, mais tarde, também lembrou: "Nosso Deus vem dos lados de Temã, surge o todo
Santo lá na montanha de Farã" (Hab 3,3). Temã era o netinho de Esaú (Gn 36,15).
38 Segundo muitos estudiosos, a palavra 'hebreu' e a palavra hapiru têm a mesma raiz. Nas cartas entre o
faraó do Egito e os reis de Canaã são nomeados os hapirus como sendo pessoas perigosas, às margens
da lei, assaltantes ou mercenários de algum poderoso.

48
condenado, com seus descendentes, a ser o escravo dos escra-
vos de seus irmãos (Gn 9,25-27). Não há dúvida que, por tempo
demais, esta maldição foi aplicada aos povos negros, legitiman-
do, até em nome de Deus,39 a escravidão deles por parte dos
brancos cristãos, descendentes de Sem e de Jafet.40

89. As narrativas da conquista da terra de Canaã também


são diferentes e contraditórias: uma narrativa, mais triunfa-
lista, nos dá a impressão que quase todas as populações de
Canaã foram afastadas; a outra, possivelmente mais realista,
nos fala de muitas nações que tiveram uma convivência com
Israel, mesmo que nem sempre tranquila (Jz 3,3). A vitória
contra Sísara, por exemplo, é fruto da ação de Débora, uma
mulher israelita, e de Jael, mulher de Héber, o quenita, descen-
dente do sogro de Moisés (Jz 4,11.17), descendente de Caim
(Nm 10,29; 24,21). O nome desta mulher cainita é simbólico
deste diálogo intercultural: Jael significa Deus.

c) Às margens dos palácios dos reis


90. O advento da monarquia consolidou o conceito de
nação e de pertença a um povo privilegiado, e os "outros"
povos foram considerados diferentes, a serem tratados como
vassalos e tributados ou como nações inimigas, contra as quais
lutar e se defender. Até as memórias mais antigas foram relidas
de maneira a legitimar esta atitude de separação e de domínio.
A reação dos profetas em defesa dos marginalizados foi um
marco importante nesta situação.

91. Se, de um lado, aparece a preocupação de manter Israel,


povo eleito e privilegiado entre todos os povos, rigidamente "afas-
tado" das outras nações e de seus cultos (Dt 7,1-10.13), do outro,

39 CNBB. Ouvi o clamor deste povo. São Paulo: Editora Ipiranga 1988, n. 73.
40 Hoje, a ciência defende a hipótese da descendência africana comum a todas as raças.
porém, não podemos esquecer as memórias que o próprio Jesus fez
questão de retomar, de Elias com a viúva de Sarepta e de Eliseu com
o sírio Naamã. A preocupação com o "estrangeiro" residente nas
terras de Israel é evidente na legislação de origem profética: "Não
maltrates o estrangeiro nem o oprimas, pois vós fostes estrangeiros
no Egito" (Ex 22,21; 23,9; Lv 19,33-34; Dt 10,18-19; 24,17; 27,10).

92. Para o estrangeiro é reservada uma porção do dízimo


e das oferendas festivas (Dt 14,29; 16,11.14; 26,11-13), e ele tem,
também, o direito de recolher o que sobrou no campo depois
da colheita ou da vindima (Dt 24,19-21). A mesma comunidade
de culto se abre para o israelita e para o estrangeiro que vive no
meio do povo: "Tanto para vós como para o estrangeiro que mora
convosco vale o mesmo decreto, um decreto perpétuo diante do Senhor
para todas as gerações, válido igualmente para vós e para o estrangeiro "
(Nm 15,15; 9,14; 15,14.26.29; 19,10).

93. A presença de africanos na corte ou na cidade de


Jerusalém é registrada diretamente no Livro de Sofonias, o
profeta etíope que, com uma visão muito apurada, sabe analisar
os desmandos e os abusos cometidos pelas classes dominantes:
nobres, sacerdotes, comerciantes não estão dando a mínima à
situação do povo. A eles Sofonias anuncia a chegada devastadora
do "dia do Senhor ", que virá para fazer justiça. Dia de ira da qual
só poderão escapar os "pobres da terra" que buscam a justiça,
que buscam a humildade (Sf 2,3): "A oferta, meus adoradores vão
trazê-la do outro lado dos rios da Etiópia. (...) Em teu meio deixa-
rei apenas um povo humilhado e pobre, um resto de Israel, que
buscará apoio no nome do Senhor " (Sf 3,10.12). Sonho bonito de
inclusão de todos os povos que têm fome e sede de justiça.41 O
profeta Jeremias nos fala de outro etíope, chamado somente de

41 Este último versículo deu origem à palavra hebraica anawim: os pobres do Senhor que aguardavam
ansiosamente a chegada do Reino de Deus.
Ebed-Melec, servo do rei. Foi ele que convenceu o rei a retirar
Jeremias da cisterna na qual tinha sido jogado pela pressão dos
nobres de Jerusalém (Jr 38,7-12). A ele, no momento da devasta-
ção de Jerusalém, Jeremias anunciará a salvação e a libertação,
"porque em mim confiaste, oráculo do Senhor" (Jr 39,18).

d) As margens dos rios de Babilônia


94. A situação ficou muito mais complexa a partir da
destruição de Jerusalém e do exílio de Babilônia. Grupos diver-
sos disputaram entre si a verdadeira identidade de israelitas. A
elite que foi levada, prisioneira, ao cativeiro, perdeu suas terras.
As terras de Judá foram distribuídas aos que ficaram e que não
possuíam nada. Na ocasião, voltaram para as terras de Judá os
que tinham emigrado para os países dos arredores durante os
tempos de guerra e consigo trouxeram esposas e maridos de
outras nações (Jr 39,10; 40,11-13). Todos eles se consideravam
verdadeiros descendentes de Abraão e detentores legítimos dos
direitos à posse da terra. Os conflitos se acirraram, as posições
se endureceram, até chegar a uma verdadeira incapacidade de
convivência, provocando um rompimento definitivo entre os
"filhos do cativeiro", que se consideravam os únicos e verda-
deiros israelitas, e os "povos da terra", considerados impuros
como as nações não judias.

95. No meio deste conflito, econômico e ideológico ao


mesmo tempo, ergueu-se a voz única guardada e transmitida
nos capítulos de 40 a 66 do Livro do profeta Isaías. Abre-se uma
surpreendente visão universalista, uma verdadeira boa nova
que anuncia o único Deus: Deus não só de Israel, mas Deus de
todas as nações, de todos os povos; um Deus com rosto materno
que toma pela mão os pequenos, os desprezados e, no seu poder
imenso, os transforma em seus servos com a missão de implan-
tar o direito e a justiça no meio das nações. As nações deixam
de ser vistas como inimigas e objeto dos impropérios proféti-
cos, para se tornarem as destinatárias do anúncio libertador:
"Ele disse: É bem pouco seres o meu servo só para restaurar as
tribos de Jacó, só para trazer de volta os israelitas que escapa-
ram, quero fazer de ti uma luz para as nações, para que a minha
salvação chegue até os confins da terra" (Is 49,6).

96. A visão se amplia, enxerga longe, enxerga amplo: novos


céus e novas terras se abrem para todos: "Trarão do meio de
todos os povos vossos irmãos que lá estavam (...) Pois do meio
desses vou tomar alguns para serem sacerdotes e levitas - diz o
Senhor" (Is 66,20-21). Também, os que foram excluídos e despre-
zados, reivindicam, com força, a paternidade divina: "O nosso
pai és tu. Abraão nem nos conhece, Jacó não faz caso de nós.
Es tu mesmo, Senhor, nosso pai, o nosso libertador, teu nome é
eterno" (Is 63,16). É por isso que, como nos lembrou Jesus, a casa
de Deus "será chamada casa de oração para todos os povos".
Nela todos os estrangeiros serão aceitos e serão felizes (Is 56,7).

e) Às margens do Templo de Jerusalém


97. Esta perspectiva universalista será minoritária e ficará
escondida e submersa quando, depois do exílio e da recons-
trução do Templo de Jerusalém, a sociedade da Judeia será
governada pelos sumos sacerdotes e as demais classes sacerdo-
tais e levíticas. As palavras parecem ter uma pesada conotação
de exclusão. Da assembleia convocada participam "o restante
do povo, dos sacerdotes, levitas, porteiros, cantores, oblatos e
todos os que evitaram o contato com os estrangeiros da região".
E o primeiro compromisso a ser assumido é claro: "não entre-
garemos nossas filhas em casamento aos habitantes desta terra
nem permitiremos que nossos filhos se casem com as filhas
deles" (Ne 10,29.31). A ruptura é muito forte: não há lugar para
os que não podem provar sua pureza genealógica. É a teologia
dominante do povo santo, separado, puro. Os únicos eleitos.

52
98. Mesmo assim, as Sagradas Escrituras conseguiram
guardar as memórias proféticas celebradas em maneira magistral
nos livros de Rute, a moabita. "O teu povo é o meu povo, o teu
Deus é o meu Deus (...). Que o Senhor me cumule de castigos, se
não for só a morte a nos separar uma da outra" (Rt 1,16.17). Rute,
a avó de Davi, a tataravó de Jesus. Uma memória que nos leva ao
essencial da lei divina42 em favor dos pobres: garantir o direito ao
pão, à terra e à descendência. Na mesma linha se move o Livro de
Jonas, o profeta enviado a anunciar aos ninivitas - entre os piores
de todos os povos na novelística judaica - que suas injustiças
tinham chegado à presença de Deus (Jn 1,2). Depois das conhe-
cidas peripécias, Jonas entrou em Nínive anunciando o que ele
considerava ser o inevitável castigo de Deus: "dentro de quarenta
dias Nínive será destruída" (Jn 3,4). Será o próprio rei de Nínive
a propor aos ninivitas que se convertam, para que Deus tenha
compaixão do povo. E nem precisa se tornar israelita, basta crer
em Deus e "deixar de praticar todo tipo de opressão" (Jn 3,8). O
rei de Nínive conhecia melhor o rosto de Deus do que o profeta
Jonas que, vendo a compaixão de Deus, fica amargurado e irri-
tado: "Eu sabia que és um Deus bondoso demais, sentimental,
lerdo para ficar com raiva, de muita misericórdia e tolerante com
a injustiça" (Jn 4,2). Jonas conhecia o verdadeiro rosto paterno de
Deus, mas, como os sacerdotes de Jerusalém, ele preferia falar de
castigo, de destruição, de medo.

f) Às margens do Lago de Tiberíades


99. "Galileia dos gentios": assim era chamada a terra de
Jesus de Nazaré, desde o século VIII a.C. (Is 8,23). Por mais de
500 anos a Galileia teve uma história separada e diferente da
Judeia. Só com as guerras macabaicas a Galileia voltou a ser

42 Vale lembrar que na tradição talmúdica o Livro de Rute é o livro lido nas casas e nas sinagogas judias
durante a celebração da Festa das Semanas, a festa que os gregos chamaram de "pentecostes", na qual
se celebrava o dom da lei de Deus ao seu povo.

53
anexada à terra de Israel. Os galileus eram vistos com descon-
fiança pelos judeus. Jesus também foi vítima desta desconfian-
ça: "De Nazaré pode sair algo de bom?" (Jo 1,46); "Um profeta
só não é valorizado na sua própria terra, entre os parentes e na
própria casa" (Mc 6,4). "Os escribas vindos de Jerusalém diziam
que ele estava possuído por Belzebu" (Mc 3,22). Até seus fami-
liares acharam que ele tinha ficado louco (Mc 3,21).

100. A desconfiança e a discriminação em relação a Jesus


aumentaram ainda mais quando ele deixou Nazaré para ir a
Cafarnaum, na beira do Lago de Genesaré, e fez questão de
se aproximar dos impuros, dos enfermos, dos pecadores, dos
publicanos, dos pescadores, dos marginalizados e excluídos e
fazer deles seu grupo, sua nova família. É uma escolha decisiva:
"Não é a justos que vim chamar, mas a pecadores" (Mc 2,17).
A fé do centurião romano e da mulher cananeia, dois gentios,
é proclamada por Jesus: "Em verdade, vos digo: em ninguém
em Israel encontrei tanta fé" (Mt 8,10; 15,28). São estas pessoas
que Jesus toca e por elas se deixa tocar. Uma pobre viúva será
modelo para todos (Mc 12,41-44), assim como uma pecadora
(Lc 7,47), um samaritano (Lc 10,37), um publicano (Lc 18,14).
Nem os fariseus, nem os sacerdotes, nem os levitas que se consi-
deravam os melhores, são exemplo para a comunidade.

101. Em ruptura total com uma sociedade baseada na


discriminação, determinada a partir de uma pureza legalista,
Jesus denuncia aos sumos sacerdotes do templo e aos anciãos
do povo: "Em verdade vos digo que os publicanos e as pros-
titutas vos precedem no Reino de Deus" (Mt 21,31). Os escri-
bas e os fariseus são considerados hipócritas, víboras, sepul-
cros caiados (Mt 23). Até na parábola, o filho mais velho e fiel
é censurado por não ter sido capaz de se alegrar com a volta
do irmão pecador (Lc 15,28-32). Com um detalhe importante:
o critério do seguimento de Jesus não é a pertença a um grupo

54
privilegiado, o grupo dos nossos: "Quem não é contra nós, está
a nosso favor" (Mc 9,40). Numa sociedade centrada na pureza
da semente santa, Jesus vai na contramão, esquecendo a carne e
o sangue, para anunciar: "Quem faz a vontade de Deus, esse é
meu irmão, minha irmã e minha mãe" (Mc 3,35).

g) Às margens do Império Romano


102. A memória da maneira de Jesus se relacionar com os
excluídos provocou uma forte e grave tensão nas comunidades
apostólicas: era preciso pertencer ao povo de Israel para estar
no caminho da salvação, ou não era preciso? O primeiro testa-
mento dizia claramente que Israel era o povo escolhido, o povo
santo, com a missão de ser testemunha do Senhor, o único Deus,
o único libertador e, ao redor deste Deus, reunir todas as nações
e todos os povos (Is 43,8-13). Daí, de um lado, o ardor proseli-
tista do movimento fariseu, duramente questionado por Jesus
(Mt 23,15) e, do outro, a atitude elitista e excludente dos movi-
mentos puristas apocalípticos, que já tinham sido criticados por
João Batista (Mt 3,9; Lc 3,8): só nós, os filhos de Abraão, somos
salvos. Não podemos esquecer as palavras polêmicas de Jesus:
"Eu vos digo: muitos virão do oriente e do ocidente e tomarão
lugar à mesa do Reino dos Céus, junto com Abraão, Isaac e Jacó,
enquanto os filhos do Reino serão lançados fora" (Mt 8,11-12).

103. A questão era teológica, mas tinha, também, uma


evidente conotação política: o Império reconhecia como lícitas
todas as religiões "étnicas", próprias de um povo. O judaísmo
era reconhecido e autorizado pelos romanos, por ser a religião
dos judeus. Uma religião supraétnica não era reconhecida pelos
imperadores.43 A proclamação da fé que Paulo apóstolo nos

43 O cristianismo, assim como as religiões mistéricas, que, também, se pretendiam supraétnicas, foram
duramente perseguidas como "superstições" (algo que está acima). A única religião supraétnica, admi-
tida pelo império, era o culto ao divino imperador.

55
transmitiu era clara e possuía uma verdadeira força subversiva:
“Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o Nome que está acima
de todo nome, para que em o Nome de Jesus, todo joelho se
dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua confesse:
Jesus Cristo é o Senhor", para a glória de Deus Pai" (F1 2,9-11).
A certeza que a glória de Deus Pai se manifesta na proclamação
do único senhorio de Jesus tem, como consequência, a supera-
ção da dimensão étnica da fé e, ao mesmo tempo, de todas as
separações sociopolíticas que as diversas religiões provocavam.
"Vós todos sois filhos de Deus pela fé no Cristo Jesus. Vós todos
que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Não
há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher,
pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus. Sendo de Cristo,
sois, então, descendência de Abraão, herdeiros segundo a
promessa" (G13,26-29; Cl 3,11). É o abandono total de qualquer
etnocentrismo. É a declaração inquestionável que não há mais
nenhuma razão de divisão e, sobretudo, é o fim das relações
baseadas na dominação de uns sobre os outros.

104. A proposta paulina da ekklésia (Igreja) é a maneira


de vivenciar esta fé pelo amor: "Com efeito, em Jesus Cristo, o
que vale é a fé agindo pelo amor; ser ou não circuncidado não
tem importância alguma" (G1 5,6). Ser Igreja implica em uma
proposta de relações igualitárias, em que as diferenças devem
ser respeitadas porque se somam para o bem do único corpo,
mas sem privilégios ou superioridades. São relações ministe-
riais, de serviço e não de poder. São relações que se constroem
e se firmam ao redor dos mais fracos, dos últimos, que Deus
escolheu para vencer o mundo: "O que para o mundo é loucura,
Deus o escolheu para envergonhar os sábios, e o que para o
mundo é fraqueza, Deus o escolheu para envergonhar o que é
forte. Deus escolheu o que no mundo não tem nome nem pres-
tígio, aquilo que é nada, para assim mostrar a nulidade dos que

56
são alguma coisa. Assim, ninguém poderá gloriar-se diante de
Deus" (ICor 1,27-29).

105. Esta perspectiva universal e igualitária, sem distin-


ções, separações ou dominações de um grupo sobre o outro, de
um povo sobre o outro, não significa uma homogeneização da
mensagem e da metodologia de evangelização. Vale, sobretudo,
em relação a uma verdadeira pastoral afro, o que disse o mestre
da evangelização: "Assim, livre em relação a todos, eu me tornei
escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível.
Com os judeus, me fiz judeu, para ganhar os judeus. Com os
súditos da Lei, me fiz súdito da Lei - embora não fosse mais
súdito da Lei - para ganhar os súditos da Lei. Com os sem-lei
- me fiz um sem-lei - eu que não era sem a lei de Deus, já que
estava na lei de Cristo -, para ganhar os sem-lei. Com os fracos
me fiz fraco, para ganhar os fracos. Para todos eu me fiz tudo,
para certamente salvar alguns. Por causa do evangelho eu faço
tudo, para dele me tornar participante" (ICor 9,19-23).

106. Este é um critério metodológico da ação evangelizado-


ra: anunciar o que é essencial: a fé, sempre agradecida, no único
senhorio de Jesus Cristo e na opção essencial pelo amor. O resto, o
que é cultural, o que é próprio da vida e da vivência de um povo,
de uma tribo, de uma comunidade, pode e deve ser mantido,
valorizado e "regenerado mediante o impacto da Boa-Nova",44
uma vez que cada realidade ajuda a agregar, a completar, a
reunir até que se realize o mistério do desígnio benevolente do
Pai: "reencabeçar tudo em Cristo, tudo o que existe no céu e na
terra" (Ef 1,10), pois, mediante a sua cruz, Jesus "matou a inimi-
zade. Veio anunciar a paz (...). E por ele que todos nós, judeus e
pagãos, temos acesso ao Pai, num só Espírito" (Ef 2,16-18).

44 EN, n. 20.

57
2.4. As riquezas que as comunidades
quilombolas nos oferecem

107. É com este espírito que precisamos receber as rique-


zas que a vivência das comunidades quilombolas traz para
dentro da Igreja e da sociedade como um todo. Não basta evitar
atitudes racistas, condenando a discriminação e o desprezo em
relação às populações negras. É preciso construir uma atitude
sempre mais ecumênica, capaz de incorporar, valorizar, nos
deixar questionar, pois, sobretudo a cultura dominante precisa
se regenerar mediante o impacto da Boa-Nova presente nas
comunidades quilombolas. Tudo o que for sinal de vivência da
Boa-Nova deve ser vivido por todas e todos.

108. A primeira grande riqueza que nos vem da prática


das comunidades quilombolas é a vivência comunitária. Sem
querer idealizar a realidade e reconhecendo todos os seus
limites, podemos afirmar que as comunidades quilombolas são
bem mais próximas do ideal comunitário que nos é proposto
pelo Livro dos Atos dos Apóstolos: "Entre eles ninguém passava
necessidade" (At 4,34). A fraternidade nas relações, a preocupa-
ção com os mais fracos, com os doentes, com os órfãos questiona
o egoísmo e o individualismo que está corroendo a sociedade
considerada moderna e civilizada. A centralidade e a importân-
cia dada à vida das pessoas questionam uma sociedade que põe,
acima de tudo, os interesses do mercado, do capital e do lucro.
Sua capacidade de repartir e de condividir denuncia a lógica
concentradora, devastadora e violenta de um mundo capitalista
que exclui da mesa da fraternidade milhões de irmãos e irmãs,
enquanto desperdiça quantidades incríveis de alimentos.

109. Outra importante riqueza, sinal da boa nova que nos


é testemunhada pelas comunidades quilombolas, é sua relação
com a terra e com a natureza. A natureza tem uma dimensão

58
sagrada que ultrapassa e questiona a visão mercantilista que
domina o mundo ocidental, seja ele capitalista ou socialista. Em
sintonia com o mais genuíno pensamento bíblico, a terra é vida,
é mãe, é casa de todos e de todas. Como dizia São Francisco em
seu Cântico das Criaturas: a nossa irmã, a mãe terra, nos susten-
ta e nos governa. E sinal benfazejo do amor providente de Deus
que alimenta todos os seres vivos ou "almas viventes",45 como
os chama o Livro do Gênesis. A mãe terra, também, nos governa,
a ela devemos "servir e obedecer".46.As comunidades quilombo-
las nos ajudam, assim, a ultrapassar a visão racionalista, típica
das culturas eurocêntricas que consideram a terra algo inanima-
do, mera matéria prima que só adquire valor quando vira merca-
doria. Encontramos esta dimensão sagrada da terra, também
num antigo texto bíblico: "Durante seis anos semearás a terra
e recolherás os seus frutos. No sétimo ano, porém, deixarás de
preparar e de cultivar a terra, para que se alimentem os pobres
do teu povo, e os animais selvagens comam o resto. O mesmo
farás com a vinha e o olival" (Ex 23,10-11); e o Livro do Levítico
acrescentava: "O sétimo ano será um sábado, um descanso abso-
luto para a terra, um sábado em honra do Senhor" (Lv 25,4). Um
descanso que celebrava a ligação da terra com Deus, conosco,
com os mais pobres no meio de nós e com os animais, até os
selvagens. A terra, a natureza, os seres vivos fazem parte de
uma única vida que, na perspectiva paulina, é a própria vida do
Cristo que circula em todos e em tudo: "Ele é imagem do Deus
invisível, o primogênito de toda a criação" (Cl 1,15).

110. Com esta clareza, Paulo, usando conceitos próprios da


cultura das comunidades da Ásia Menor, dizia: "pois é nele que
foram criadas todas as coisas, no céu e na terra, os seres visíveis

45 A expressão hebraica nefesh haiah (seres vivos - literalmente: almas viventes) é usada igualmente para
os animais e o ser humano (Gn 1,20.21.24.30; 2,7).
46 É um sentido mais costumeiro dos verbos hebraicos 'abad e shamar que em muitos textos bíblicos
descrevem a relação do ser humano com Deus.

59
e os invisíveis, tronos, dominações, principados, potestades; tudo
foi criado por ele e para ele. Ele existe antes de todas as coisas e
nele todas as coisas têm consistência" (Cl 1,16-17). É importante
notar que, em outros textos paulinos, estes seres celestes invisíveis,
próprios da cultura local, foram considerados como forças inimi-
gas a serem vencidas (Ef 2,2; 6,12; Cl 3,15). Esta vitória, porém,
não se dá pela eliminação, mas pelo seu ordenamento em relação
ao Cristo cabeça.47 Esta também é missão da Igreja: "Assim, dora-
vante, os principados e as potestades celestes conhecem, por meio
da Igreja, a multiforme sabedoria de Deus" (Ef 3,10).

111. O território para as comunidades quilombolas signifi-


ca o espaço onde vivenciar a sua relação íntima com a natureza
como um todo, e com a vida da terra, que é origem e fim de
todos os seres vivos. Respeitar e ajudar a garantir este espaço
vital é importante, seja para as comunidades quilombolas, seja
para todas as comunidades eclesiais. E importante relembrar
que, na cultura de origem africana, montes, árvores, poços já
foram e são legítimos lugares de encontro com Deus; cabritos,
panquecas, vinho, óleo e leite já foram e são legítima matéria de
culto e de celebração; pandeiros, cetras, tamborins e trombetas
já serviram e servem legitimamente para cantar os louvores de
Deus; colheitas, semeaduras e vindimas já foram e são ocasião
de grandes festas religiosas. Não podemos, em nome de uma
cultura grecoeuropeia, que fossilizou e eternizou suas media-
ções como únicas e universais, impor às outras culturas gestos,
momentos e lugares sagrados, que violentam e dominam,
esmagam e oprimem. O nosso Deus tem historicamente a capa-
cidade de se manifestar em qualquer cultura, debaixo de qual-
quer mediação, para levar todas as pessoas, de todas as cultu-
ras, a colaborarem com a construção do Reino de Deus.

47 Não esqueçamos que, no imaginário posterior, estes "seres invisíveis" foram identificados com os coros
angélicos.

60
112. E esta é a terceira riqueza que precisamos manter e
alimentar sempre mais. As comunidades quilombolas são, hoje,
como o foram antigamente, sinais de resistência e de luta. Na
história destas comunidades, encontramos memórias que nos
lembram os sinais da libertação presentes em inúmeras memó-
rias da história do povo de Israel. Desde a defesa do território,
que marca as narrativas antigas do Livro dos Juízes, até as lutas
dos macabeus que, além de defender sua terra, lutaram para
defender sua identidade de povo, seu direito de cultuar o seu
Deus conforme seus costumes, e para defender sua liberdade,
diante do avanço avassalador do poder do mercado e da cultura
grega, que centrava a produção de sua riqueza na colonização
e na mercantilização de tudo que era produzido pelo sistema
escravagista do latifúndio.

113. Esta resistência é um fato que se manifesta, também,


por trás dos números que quantificam a violência no campo e
que a CPT (Comissão Pastoral da Terra) vem coletando anual-
mente, desde 1985. Se olharmos com atenção, iremos constatar
que os alvos das ameaças são justamente as pessoas que, como
vimos, o Presidente Lula definiu como "entraves" ao crescimen-
to do País: quilombolas, índios e ambientalistas. Nesse contexto,
18,5% das pessoas estão sendo ameaçadas de morte por ques-
tões ligadas aos territórios quilombolas, e 12,5% estão sendo
ameaçadas por estarem defendendo o ambiente. A defesa das
posses tradicionais ainda é a maior causa de ameaças de morte:
64,2%. Não podemos esquecer que nesta luta já derramaram
seu sangue mártires negros, como o operário Santo Dias da
Silva, a agricultora Margarida Maria Alves, o advogado Paulo
Fontelles Filho e o Padre Josimo Moraes Tavares. A celebração
de sua memória é fonte de vida e de coragem para todos.

114. O que chama muita atenção é a reduzida presença


de sindicalistas ameaçados: 2,2%. Ao contrário, as lideranças
das comunidades tradicionais ameaçadas de morte alcançam
26%. E evidente que o eixo da resistência está mudando signi-
ficativamente. Novas frentes de resistência estão surgindo e
se manifestando. Podemos dizer o mesmo quando olhamos a
que grupos pertencem as pessoas ameaçadas de morte: os sem-
-terra, por exemplo, que já foram um polo de resistência muito
significativo, são 6,9% dos ameaçados; quilombolas, posseiros e
ribeirinhos, por sua vez, representam 39,2% dos que sofreram
ameaças de morte em 2011. A reforma agrária está mudando de
perfil: já não é só conquista de mais terra, é, também, a defesa e
a ampliação dos territórios ocupados pelas comunidades tradi-
cionais e, sobretudo, é a reivindicação e a defesa de um modelo
de produção camponesa que não se sujeita às exigências da
agroindústria, mas tem como prioridade a reprodução da
família camponesa. As mulheres também marcam uma impor-
tante presença na resistência ao avanço da devastação ambiental
e da concentração fundiária: quase 18% das pessoas ameaçadas
de morte, em 2011, eram mulheres, e 17 delas quilombolas!48

115. É por isso que a resistência das comunidades quilom-


bolas em defesa de seu território, de sua identidade cultural, de
sua liberdade e de seus direitos nos parece legítima, necessá-
ria e benéfica para toda a humanidade. Como Igreja, devemos
apoiar esta resistência, pois nossa missão inalienável é a defesa
da vida das pessoas, das comunidades e do planeta em todas
as suas formas e momentos: "Eu vim para que tenham vida, e a
tenham em abundância" (Jo 10,10).

116. A riqueza maior que chegou até nós é a religiosidade


vivida e celebrada nas comunidades quilombolas, que possui
em si riquezas básicas e insubstituíveis: a certeza profunda que
Deus é o Pai dos pobres. O mundo simbólico da religiosidade

48 CPT: Conflitos no campo no Brasil, 2011, p. 118-119.

62
quilombola é o reflexo da realidade sofrida destas comunidades
que se encontram abandonadas e até marginalizadas proposi-
talmente pelos poderes. Herdeiras de longa história de brutal
exploração, elas recorrem a Deus pela mediação de santos e
orixás, ajudadas por benzedores/as, mães e pais de santo, pois
guardam a certeza de que Deus não os abandonou de todo, que,
se há uma justiça, ela deve se manifestar, que não se perde a
vida dos que confiam em Deus. A nossa lógica racionalista nos
levou a falar, talvez rápida e superficialmente, de sincretismo,
animismo, politeísmo ou outras palavras de conotação nega-
tiva, mas não podemos esquecer que o fundamento desta fé
popular é a consciência de que Deus está do lado da vida.

117. A consciência popular é muito mais coletiva do que


o mundo simbólico europeu, implantado na América Latina.
Romarias, festas, novenas, danças são manifestações de um
coletivo que deve ser defendido e garantido. O povo que canta
na praça da aldeia possui a capacidade imediata de ligar a
manifestação religiosa à vida da comunidade. Todos de fato
celebram, não são meros espectadores.

118. Dito isso, sabemos que a cultura das comunidades


quilombolas precisa, também, se regenerar pela Boa-Nova.
Não quer dizer que, por ser legítima, ela seja automaticamen-
te completa e perfeita. É necessário que esta, como todas as
culturas, no diálogo livre e honesto com a Palavra de Deus,
consiga ultrapassar o que ainda contém de mítico e de mágico
e que pode facilmente ser manipulado pelos poderosos e redu-
zido a um folclore que pode manter o povo na submissão. O
diálogo com a Palavra de Deus e com as outras culturas pode
ajudar a fazer da história, com seu caminhar dialético, e não
só da natureza, ciclicamente invariável, a mediação do conheci-
mento do verdadeiro Deus. A partir da realidade histórica das
comunidades, do seu contexto sócio-econômico-político, pode-
remos, assim, redescobrir o rosto de Deus que faz do povo o
encarregado de uma missão histórica: assumir para si o projeto
do Reino de vida e de liberdade.

119. Este processo permanente de diálogo e de conver-


são de quem crê na Boa-Nova pode ser mediado pelo agente
de pastoral, pelo teólogo, mas sabemos que o mais importante
mediador será sempre a comunidade que, com seus agentes de
pastoral,49 e relendo sua história de luta, conseguirá cantar as
"maravilhas" que Deus opera com mão forte e braço estendido,
e apurar, cada vez mais, suas escolhas quotidianas em função
do Reino de Deus e de sua justiça.

2.5. Um apelo à conversão

120. A luz das Sagradas Escrituras, devemos dizer uma


palavra, também, a respeito da escravidão. Nos textos bíbli-
cos encontramos, muitas vezes, a presença dos escravos. Uma
realidade que se tornou comum, sobretudo, a partir da época
monárquica. Poderíamos, é verdade, dizer que se tratava de
algo normal, quando visto em seu contexto cultural; algo que,
mais tarde, à luz do Evangelho, veio sendo paulatinamente
superado. Mas, mesmo assim, não podemos esquecer que a
escravidão nas Américas, sobretudo dos negros, foi organizada
e mantida por cristãos que, em seus países de origem, já tinham
abandonado esta prática. Não poucas vezes, uma leitura funda-
mentalista e alienante das Escrituras Sagradas contribuiu para
legitimar a escravidão. Precisamos aprofundar.

121. Uma equivocada leitura racista. Já falamos, antes, da


maldição de Noé. Esta antiga parábola, guardada no Livro do

49 JOÃO PAULO II. Mensagem aos afro-americanos, n. 5. Texto anexo ao Documento de Santo Domingo.

64
Gênesis (9,18-29), não deve ser lida numa perspectiva racial.
Trata-se de um texto etiológico que explica o conflito cons-
tante entre israelitas e cananeus.50 Canaã, por isso, é o único a
ser amaldiçoado. Não é legítimo estender a mítica maldição a
todos os descendentes de Cam, sobretudo aos que seriam os
ancestrais dos africanos e dos árabes. Os cananeus, com efeito,
são, também, de estirpe semita, como os israelitas. Não há nada
neste texto que possa levar a considerar inferior uma descen-
dência ou uma raça mais do que outra, nem a justificar a escra-
vização de inúmeros negros.

122. Quase sempre os textos bíblicos, quando falam em


escravos, estão falando do escravo individual, alguém que, por
circunstâncias diferentes, sobretudo por causa de dívidas, preci-
sou vender seu trabalho e o de sua família em prol de outro.
Para garantir os direitos deste escravo, existia a possibilidade
do resgate por parte de um familiar que pagasse suas dívidas
(Lv 25,25). No caso em que isso não acontecesse, a dívida e a
escravidão desta pessoa não podiam durar mais do que seis
anos (Ex 21,2; Dt 15,12). O sétimo ano era o ano da redenção. As
disposições a respeito são contundentes: "Ao despedi-lo livre
de tua casa, não o despaches de mãos vazias. Dá-lhe genero-
samente algo do gado miúdo, da colheita de cereais e de uva,
dá-lhe algo dos bens com que o Senhor teu Deus te houver
abençoado. Lembra-te de que foste escravo no Egito e o Senhor
teu Deus te resgatou. E por isso que hoje te prescrevo este
mandamento (...) Não te seja penoso libertá-lo, pois durante
seis anos te serviu pelo preço que se paga a um assalariado"
(Dt 15,13-15.18). O escravo, neste caso, era, mais ou menos,
como o trabalhador assalariado.

50 Esta página, de possível redação javista, justifica a submissão dos povos cananeus que aconteceu com
a chegada da monarquia em Israel e, ao mesmo tempo, a preocupação com os cultos cananeus que
sempre estiveram presentes no meio de Israel.

65
123. Havia, também, a possibilidade de que o escravo
quisesse continuar na casa do patrão, por se sentir bem com ele.
Neste caso, deixava de ser escravo e passava a ter todos os direi-
tos de um membro da família (Ex 21,5-6; Dt 15,16-17). O princí-
pio norteador desta legislação era claro e deve continuar sendo
um referencial, também para nós, em que pesem as mudanças
sociais, econômicas e políticas que tenham acontecido: "para
que não haja pobres em teu meio" (Dt 15,4). Este é o critério que
deve, dialeticamente, orientar a realidade: "uma vez que nunca
deixará de haver pobres na terra, eu te dou este mandamento:
abre tua mão para teu irmão, teu necessitado, teu pobre em tua
terra" (Dt 15,11).

124. Os textos bíblicos, porém, nos trazem, também,


algumas ambiguidades: a primeira é que esta legislação atenta
com os mais pobres, quase nunca se aplica aos não israelitas. Em
segundo lugar, com o passar dos séculos, o tempo da escravi-
dão se amplia, deixa de ser de seis anos para ter como horizonte
o ano jubilar que ocorria a cada cinquenta anos. Ao ingressar,
mesmo que parcialmente, no mercado grego - este, sim, escra-
vagista, como modo de produção -, a escravidão é aceita como
normal. O escravo, mesmo o servo de casa, pode ser tratado com
crueldade, sem que isso seia considerado um excesso ou uma
violação do direito. E o que nos diz o Livro do Eclesiástico que,
junto com muitos conselhos que orientam a vida do piedoso,
não duvida em dizer: "Para o asno, forragem, vara e carga; para
o servo, pão, disciplina e trabalho. Executa o trabalho por meio
do servo, e encontrarás descanso; deixa-lhe as mãos livres e ele
procurará a liberdade. Canga e correia fazem dobrar o pescoço;
tarefas frequentes mantêm o servo submisso. Para o servo malé-
volo, tortura e grilhões; manda-o ao trabalho, para que não fique
ocioso, pois a ociosidade já ensinou muita maldade. Aplica-o ao
trabalho, pois tal lhe convém: se não atender, submete-o com

66
grilhões. Entretanto, não cometas excessos contra ninguém, e
nada faças de grave contra o direito" (Eclo 33,25-30).51

125. Considerando esta realidade, nos resulta ainda mais


clara a atitude de Jesus que assume, em vários momentos, a
atitude do servo de casa: "Afinal, quem é o maior: o que está à
mesa ou o que está servindo? Não é aquele que está à mesa? Eu,
porém, estou no meio de vós como aquele que serve" (Lc 22,27).
"Jesus levantou-se da ceia, tirou o manto, pegou uma toalha e
amarrou-a à cintura. Derramou água numa bacia, pôs-se a lavar
os pés dos discípulos e enxugava-os com a toalha que trazia à
cintura" (Jo 13,4-5). É esta a motivação que norteia toda a vida
de Jesus: "o Filho do Homem não veio para ser servido, mas
para servir e dar a vida em resgate por muitos" (Mc 10,45). E o
que proclamava o mais antigo hino cristológico, que encontra-
mos na Carta aos Filipenses: "despojou-se, assumindo a forma
de escravo" (F12,7).

126. As palavras que mais tiveram interpretações contro-


versas são aquelas de Paulo que, mesmo tendo afirmado que, em
Cristo, não há nem servo nem livre, nem homem nem mulher,
em outros textos afirma que os escravos devem obedecer aos
senhores "como ao próprio Cristo", "como escravos de Cristo",
"servindo ao Senhor" (Ef 6,5-8) ou, como repete na Carta aos
Colossenses: "Ao Cristo e Senhor é que estais servindo" (Cl 3,24).
E evidente que dizer às comunidades gregas da Ásia Menor que
os escravos deviam obedecer aos seus amos não era nenhuma
novidade. Era o pensamento comum. A novidade está em
colocar a relação do escravo com o seu senhor no mesmo nível
da submissão ao Cristo. Este elemento, que pode, numa leitura

51 Trata-se do amo que tem vários servos em sua casa, pois o mesmo texto dá orientações diferentes a
quem possui só um servo: "Se tens um servo só, estima-o como a ti mesmo, pois precisarás dele como
de ti. Se tens um servo só, trata-o como a um irmão, para que não te indisponhas contra o teu próprio
sangue. Se o tratares mal sem motivo, ele te fugirá; se, levantando-se, afastar-se de ti, não saberás por
qual caminho procurá-lo" (Eclo 33,31-33).

67
superficial, parecer legitimador da submissão - como na relação
da mulher com o homem e dos filhos com o os pais52 é na reali-
dade o elemento subversivo, pois a mesma relação com o Cristo
deve ser vivenciada pelos senhores, pelos maridos e pelos pais.
Esta clareza provoca a verdadeira novidade evangélica que ultra-
passa e transforma as relações de dominação: "E vós, senhores,
fazei o mesmo para com os escravos. Deixai de lado as ameaças,
sabendo que o Senhor - Senhor deles e vosso - está nos céus e
não faz acepção de pessoas" (Ef 6,9); e: "senhores, tratai com
justiça e equidade os vossos escravos, sabendo que vós também
tendes um 'Senhor' no céu'" (Cl 4,1). Este o evangelho da mais
livre escravidão: "Sede submissos uns aos outros, no temor de
Cristo" (Ef 5,21). Esta fé levou Paulo a escrever a magistral Carta
a Filêmon, na qual estabelece as verdadeiras relações do amo
com seu escravo, centradas na igualdade, na fraternidade e na
reciprocidade do serviço. A escravidão perde seu sentido.

127. Mas esta relação não é assim tão clara nas cartas pasto-
rais. Nestas, não há nenhum recado para os patrões, só para os
servos: "Todos os que estão sob o jugo, como escravos conside-
rem os seus senhores como dignos de todo apreço, para que o
nome de Deus e a sua doutrina não sejam blasfemados" (lTm
6,1; Tt 2,9). O motivo é importante: para que não se fale mal da
nossa doutrina. Estas cartas apresentam outra preocupação e,
por isso, outra visão: fazer a diferença em relação aos costu-
mes da sociedade pode provocar a rejeição da nossa doutrina, o
afastamento e,53 quem sabe, a perseguição.54

52 As mulheres sejam submissas aos maridos, como ao Senhor (Ef 5,22); "Filhos, obedecei a vossos pais,
no Senhor" (Ef 6,1); "mulheres, sede submissas a vossos maridos, como convém no Senhor" (Cl 3,18);
"filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isto agrada ao Senhor" (Cl 3,20).
53 AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colonial. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 94ss.
54 O mesmo será dito das mulheres em sua relação aos homens (Tt 2,4-5). A preocupação com a convivên-
cia na sociedade romana norteia estas cartas: "para que possamos levar uma vida calma e tranquila,
com toda a piedade e dignidade" (lTm 2,2). A virtude por excelência a ser vivida é a "piedade", que,
para os romanos, consistia no respeito e na reverência a todos que ocupavam um lugar sagrado de
poder (hierarquia): Deus, os antepassados, os governantes, os pais etc.

68
128. Os argumentos usados pela Primeira Carta de Pedro
foram usados, também, aqui no Brasil, em muitas pregações feitas
para justificar a escravidão: "Servos domésticos, submetei-vos
aos patrões com todo o respeito, não só aos bons e afáveis, mas
também aos que são difíceis. Nisto consiste a graça: sofrer injusta-
mente, suportando as aflições, com a consciência da presença de
Deus. Pois que merecimento há em fazer o mal e suportar castigo
por isso? Entretanto, se fazeis o bem e suportais o sofrimento,
isto vos toma agradáveis junto a Deus. De fato, para isto fostes
chamados. Pois também Cristo sofreu por vós deixando-vos um
exemplo, para que sigais os seus passos" (lPd 2,18-21).

129. A ambivalência deste ensinamento continuou ao


longo dos séculos. A mensagem de vida e de liberdade mistu-
rou-se com uma mensagem de conformismo e de submissão. As
nossas terras brasileiras também viveram esta ambivalência. É
importante lembrar que o mais comum ensinamento dos eclesi-
ásticos, junto aos escravos, foi o da submissão e da obediência.
Muitos eclesiásticos e religiosos tinham escravos em suas depen-
dências. A forte denúncia, que foi levantada contra a opressão
e a escravidão das populações indígenas, não se repetiu, com a
mesma força, contra a escravidão dos negros. Em muitos casos,
houve omissão e até conivência. Este pecado do passado não
nos deve impedir, porém, de combatermos hoje, e com veemên-
cia, toda forma de exclusão, de discriminação e de racismo.

130. E o que queremos fazer, também agora, incentivan-


do nossas comunidades a renovarem seu/nosso compromis-
so evangélico com a vida e com a justiça, procurando tirar de
nossa cabeça, de nosso coração e de nossas práticas tudo que
é resquício de uma "senzala" que ainda pode existir dentro de
nós. Quando achamos normal explorar nossos empregados,
quando achamos normal nos submeter sem reagir à opressão e
à violência, quando achamos normal pedir favores aos políticos

69
no lugar de exigir nossos direitos, quando achamos normal
que uns poucos privilegiados concentrem e gozem de riquezas
e privilégios, quando muitos irmãos e irmãs, comunidades, e
até populações inteiras, são obrigados a viver na exclusão e na
humilhação. Que o Espírito Santo nos ilumine para que possa-
mos fazer escolhas coerentes com o Evangelho que anunciamos.

2.6. Quilombolas nos Documentos da Igreja

2.6.1. Documentos do Magistério da Igreja

131.0 compromisso da Igreja com os quilombolas é


inerente a seu compromisso de fidelidade a Deus. Toda pessoa
é imagem e semelhança de Deus. A Igreja vê no homem, em
cada homem, a imagem viva do próprio Deus. A este homem
que recebeu do próprio Deus uma incomparável e inalienável
dignidade, a Igreja se volta e presta o serviço mais alto e singu-
lar, chamando-o constantemente à sua altíssima vocação, para
que dela seja cada vez mais cônscio e digno.55 A Igreja é desa-
fiada a ser solidária e defensora do respeito à dignidade do ser
humano, que implica no compromisso de proteção e desenvol-
vimento integral da sua dignidade. Não admite atos de injus-
tiça e de violência contra as pessoas, pois ferir o ser humano
implica em ferir a Deus.

132. Diante da realidade da escravidão moderna que


afetava os povos de origem africana a Igreja foi assumindo
posicionamentos proféticos de denúncia e pressão para que
tal prática fosse suprimida. Em 1537, o Papa Paulo III publi-
cou a Bula Veritas Ipsa condenando a escravidão não somente
dos indígenas, mas de "todas as mais gentes", mesmo os não

55 PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. Tradução Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). São Paulo: Paulinas, 2005, n. 111 a 113, p. 73-74.

70
cristãos, ou seja, dos negros também. Outras bulas ou cartas,
como Sicut Dudum, de 13 de janeiro de 1434, do Papa Eugênio
IV; o Papa Pio II, 1458-1464, em 7 de outubro de 1462; uma carta
do Papa Pio VII, enviada ao Imperador Napoleão Bonaparte, da
França; o Papa Gregório XIV, 1590-1591, publicou a Cum Sicut;
o Papa Urbano VIII, 1623-1644, Commissum Nobis; o Papa Bento
XIV, 1740-1758, na Bula Immensa Pastorum; o Papa Gregório XVI,
1831-1846, Bula In Supremis; Pio VII, no Congresso Internacional
de Viena, 1814-15, pedia para restituir a liberdade, condenar o
comércio ou os maus tratos de pessoas escravizadas.

133. Posteriormente, em 1888, o Papa Leão XIII, na encícli-


ca In Plurimis, "dirigida aos bispos do Brasil, pediu-lhes apoio
ao Imperador Dom Pedro II e a sua filha Princesa Isabel na luta
que estavam travando pela abolição definitiva da escravidão".
Leão XIII, na encíclica Catholicae Ecclesiae, 1890, "dirigida aos
missionários na África, mostra a importância da luta contra a
escravização dos nativos".

134. No período pós-escravidão, o desafio da Igreja


consistia em compreender a profundidade e a opção por uma
evangelização inculturada. O leque geográfico era maior, pois
implicava nos países africanos superar a colonização europeia
e os países que tinham forte influência da cultura de origem
africana. Em 1967, o Papa Paulo VI, lançou o documento Africae
Terrarum, valorizando as tradições africanas, a visão espiri-
tual da vida, o respeito pela dignidade humana, o sentido de
família, os valores religiosos e morais africanos, a condenação
ao racismo, a luta contra o analfabetismo e a fome. Sobre a reli-
gião africana, coloca-a, lado a lado das outras religiões univer-
salmente conhecidas. O mais importante é o fato de o Papa
reconhecer as religiões de matriz africana como positivas e não
mais como religiões não cristãs. Essa mudança é fundamental
para um diálogo inter-religioso.

71
135. A Igreja percebe na luta das comunidades quilombo-
las um apelo de Deus. A identificação com este povo faz surgir
a dimensão profética da luta. Juntos, com os olhos dos pobres e
a partir deles, lança ao mundo um clamor de justiça, um clamor
de libertação. O Concilio Vaticano II, no Decreto Ad Gentes, de
7 de dezembro de 1965, adverte os cristãos que evitem todo o
racismo. A Igreja também reprova qualquer discriminação por
causa da raça ou da cor, na Declaração Nostra Aetate, de 28 de
outubro de 1965, n. 5, sobre as relações da Igreja com as religiões
não cristãs. A promoção da dignidade da pessoa, o bem mais
precioso que o homem possui, é a tarefa central e unificadora
do serviço que a Igreja é chamada a prestar à humanidade.56
A ação pastoral da Igreja no âmbito social deve testemunhar,
antes de tudo, a verdade sobre a pessoa humana. Como comu-
nidade daqueles que são convocados pelo Cristo Ressuscitado
e se põem no seu seguimento, é o "sinal e a salvaguarda da
dignidade da pessoa humana".57 A ação social dos cristãos
deve inspirar-se no princípio fundamental da centralidade do
homem.58 A pessoa humana, tomada na sua concretude históri-
ca, representa o coração e a alma do ensinamento social.59

2.6.2. Documentos da Igreja latino-americana

136. A Teologia Afro-Americana, desenvolvida por afro-


-americanos na América do Sul, América Central e no Caribe,
é o "caminho percorrido pelas comunidades negras nestes
últimos anos e que produziu reflexões que expressam profun-
das sensibilidades teológicas".60 Constituem fontes desta teolo-
gia as Sagradas Escrituras, a Tradição, o Magistério da Igreja

56 GS, n. 91.
57 Ibidem, n. 76.
58 JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Centesimus Annus (CA), n. 54.
59 Ibidem, n. 11.
60 SILVA, Antônio Aparecido da (Org.). Existe um pensar teológico negro? São Paulo: Paulinas, 1998, p. 5.

72
e toda a experiência do povo negro, desde a escravidão. Este
processo de reflexão contribuiu para as Conferências na Igreja
Latino-Americana.

137. A Conferência de Medellín (Colômbia), de 24 de


agosto a 6 de setembro de 1968, apresentou uma releitura do
Vaticano II para a América Latina; a Conferência de Puebla
(México), de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979, sob o tema
"Evangelização no presente e futuro da América Latina", chama
atenção para o fenômeno da desigualdade e da injustiça que
gera a situação de pobreza desumana e o escândalo da contra-
dição com o ser cristão. Essas Conferências fazem a proposta
de trabalhar a evangelização baseada na situação concreta e
histórica do povo oprimido, configurando, assim, em projetos
de evangelização.

138. Os Documentos de Santo Domingo, de 12 de outubro


de 1992, e o Documento de Aparecida, de 13 a 31 de maio de
2007, atualizam as opções de Medellín e Puebla, apontam
o compromisso de incentivar a participação ativa nas ações
pastorais, apoio ao diálogo entre culturas e fé cristã, na luta por
justiça social e pela evangelização inculturada. As referências
no Documento de Santo Domingo são alvissareiras enquanto
iluminação eclesial para uma pastoral inculturada na realidade
dos povos quilombolas.

139. Pela preocupação com a evangelização das comuni-


dades afro-americanas: da mesma forma, comprometem-se a
dedicar especial atenção à causa das comunidades afro-ameri-
canas no campo pastoral, favorecendo a manifestação das
expressões religiosas próprias de suas culturas.

140. Na defesa dos direitos dos pobres e excluídos:


"Quantas vezes os pobres e os que sofrem nos evangelizam
realmente! No reconhecimento dessa presença e proximidade

73
e na defesa dos direitos dos excluídos encontra-se a fidelidade
da Igreja a Jesus Cristo. O encontro com Jesus Cristo através
dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé em Jesus
Cristo. Da contemplação do rosto sofredor de Cristo neles e
do encontro com Ele nos aflitos e marginalizados, cuja imensa
dignidade Ele mesmo nos revela, surge nossa opção por eles. A
mesma união a Jesus Cristo é a que nos faz amigos dos pobres e
solidários com seu destino".61

141. A importância da evangelização inculturada: "A ação


de Deus, através do seu Espírito, dá-se permanentemente no
interior de todas as culturas. (...) A Igreja defende os autênticos
valores culturais de todos os povos, especialmente dos oprimi-
dos, indefesos e marginalizados, diante da força esmagadora
das estruturas de pecado manifestas na sociedade moderna".62

142. Na necessidade da superação da marginalização e do


racismo, Santo Domingo continua: "conscientes do problema
da marginalização e do racismo que pesa sobre a população
negra, a Igreja, na sua missão evangelizadora, quer participar
dos seus sofrimentos e acompanhá-los em suas legítimas aspi-
rações em busca de uma vida mais justa e digna para todos".63

143. Pela mesma razão, a Igreja na América Latina e no


Caribe quer apoiar os povos afro-americanos na defesa de sua
identidade e no reconhecimento de seus próprios valores; como
também ajudá-los a manter vivos seus usos e costumes compa-
tíveis com a doutrina cristã.64

144. O Documento de Aparecida, por sua vez, parte de


uma leitura positiva de alguns princípios da cultura de origem

61 DAp, n. 257.
62 CELAM. IV Conferência do Episcopado Latino-Americano. Documento de Santo Domingo (DSD).
Tradução oficial da CNBB. 7. ed. 1992, n. 243.
63 Ibidem, n. 249.
64 JOÃO PAULO II. Discurso aos Afro-Americanos, em Santo Domingo.

74
afro-americana, o que fica assim expresso: "os afro-americanos
se caracterizam, entre outros elementos, pela expressividade
corporal, o enraizamento familiar e o sentido de Deus".65

145. Lembra que, "o seguimento de Jesus no Continente


passa também pelo reconhecimento dos afro-americanos como
desafio para (...) conhecer os valores culturais, a história e as
tradições dos afro-americanos, entrar em diálogo fraterno e
respeitoso com eles, é um passo importante na missão evange-
lizadora da Igreja".66

146. A V Conferência Geral do Episcopado Latino-


Americano e do Caribe, realizada em Aparecida, lembra-nos
que "no rosto de Jesus Cristo, morto e ressuscitado, maltratado
por nossos pecados e glorificado pelo Pai, nesse rosto doente e
glorioso, com o olhar da fé podemos ver o rosto humilhado de
tantos homens e mulheres de nossos povos e, ao mesmo tempo,
sua vocação à liberdade dos filhos de Deus, à plena realiza-
ção de sua dignidade pessoal e à fraternidade entre todos. A
Igreja está a serviço de todos os seres humanos, filhos e filhas
de Deus".67

147. "Por isso, a Igreja denuncia a prática da discrimina-


ção e do racismo em suas diferentes expressões, pois ofende no
mais profundo a dignidade humana criada à 'imagem e seme-
lhança de Deus'. Preocupa-nos que poucos afro-americanos
cheguem à educação superior, (...) em sua missão de advogada
da justiça e dos pobres, a Igreja se faz solidária aos afro-ameri-
canos nas reivindicações pela defesa de seus territórios, na afir-
mação de seus direitos, na cidadania, nos projetos próprios de
desenvolvimento e consciência de negritude. A Igreja apoia o

65 DAp, n. 56.
66 Ibidem, n. 532.
67 Ibidem, n. 32.

75
diálogo entre cultura negra e fé cristã e suas lutas pela justiça
social, e incentiva a participação ativa dos afro-americanos nas
ações pastorais de nossas Igrejas e do CELAM".68

148. Recorda que os "indígenas e afro-americanos são,


sobretudo, 'outros' diferentes que exigem respeito e reconhe-
cimento. A sociedade tende a menosprezá-los, desconhecendo
o porquê de suas diferenças. Sua situação social está marcada
pela exclusão e pela pobreza. A Igreja acompanha os indígenas
e afro-americanos nas lutas por seus legítimos direitos".69 "Hoje,
os povos indígenas e afros estão ameaçados em sua existência
física, cultural e espiritual; em seus modos de vida; em suas iden-
tidades; em sua diversidade; em seus territórios e projetos".70

149. O Papa João Paulo II pede perdão pela escravidão: ao


falar contra a escravidão, na visita à Casa dos Escravos, na Ilha
de Gorée, Senegal, em 22 de fevereiro de 1992: "Tais homens,
mulheres e crianças foram vítimas de um vergonhoso comércio
do qual tomaram parte pessoas batizadas, mas que não viviam
sua fé (...). Deste santuário africano da dor negra, imploramos
o perdão do céu. Nós oramos para que no futuro os discípu-
los de Cristo se demonstrem plenamente fiéis à observância
do mandamento do amor fraterno que lhes foi legado pelo seu
Mestre. Nós oramos para que os cristãos nunca mais sejam os
opressores dos próprios irmãos".

2.6.3. Documentos da Igreja no Brasil

150. Da história da Igreja no Brasil temos que lembrar a


participação de Dom Antônio Ferreira Viçoso, 1840, Mariana,
Minas Gerais; Dom João Antônio dos Santos, 1846, Diamantina,

68 Ibidem, n. 533.
69 Ibidem, n. 89.
70 Ibidem, n. 90.

76
Minas Gerais, e Dom Joaquim José Vieira, 1833, Fortaleza,
Ceará, no posicionamento contra a escravidão e a favor da vida
de liberdade do povo negro.

151. Em 1988, a CNBB assume como tema da Campanha


da Fraternidade "A Fraternidade e o Negro", com o lema "Ouvi
o clamor deste Povo" (Ex 3,7-10, como resultado da mobilização
dos grupos pastorais de base. "A CF 88 é mais um importante
alerta em relação à evangélica opção preferencial pelos pobres".71

152. E papel da Igreja apoiar as lutas contra a discrimi-


nação; pela qualidade do conteúdo de formação escolar; pelo
resgate da memória do povo afro-americano; pelo estímulo à
participação na Igreja; trabalhando com as mulheres e a juven-
tude. A Exortação pós-sinodal "Igreja na América", do Papa
João Paulo II, recorda que o provo afro-americano, em alguns
lugares, continua sofrendo preconceitos étnicos, um sério obstá-
culo para o encontro com Cristo. Sugere a promoção de planos
concretos que favoreçam a compreensão e reconciliação entre
os diferentes povos.

2.6.4. Concluindo: Esperança

153. Olhando o momento atual da Igreja, principalmente


nas últimas décadas, nota-se maior consciência da realidade
afro. Assuntos de interesse da população negra são discutidos e
são prioridades pastorais em diversas dioceses e regionais. Em
alguns casos, o apoio da pastoral tem sido importante para que
partes da população negra consigam seus objetivos, como, por
exemplo, no reconhecimento das terras de antigos Quilombos.
Esses são resultados da ação afro-pastoral.

71 CNBB. Ouvi o clamor deste povo. Texto-Base da Campanha da Fraternidade. Brasília: Editora Gráfica
Ipiranga Ltda, 1988, p. 64.
154. "A atuação da Pastoral, na perspectiva atro, tem ocor-
rido não só dentro da Igreja, mas também fora, e como exigência
da sociedade civil, solidarizando-se com as legítimas reivindi-
cações dos movimentos populares, sobretudo os remanescentes
dos Quilombos, que lutam pela democratização da terra e da
moradia, onde os negros são as principais vítimas".72

155. A CNBB constituiu um de Grupo de Trabalho (GT)


sobre os Quilombolas, porque deseja ser "fiel à sua missão e
entende que os povos e culturas constituem a prioridade da
evangelização inculturada. Nos últimos anos, cresce sempre
mais a consciência de que não há ação evangelizadora neutra,
desvinculada da cultura, e que a compreensão desse fenôme-
no é imperativo para um empreendimento autenticamente
evangelizador".73

156. Urge, portanto, que a Igreja no Brasil continue assu-


mindo com um renovado ardor a opção evangélica preferencial
pelos pobres, em continuidade com Medellín, Puebla, Santo
Domingo e Aparecida. Esta opção não exclusiva nem excluden-
te iluminará toda a sua ação evangelizadora. Contribuirá para
nova ordem econômica, social e política, conforme a dignidade
de todas as pessoas, pela implantação da justiça e da solidarie-
dade, abrindo para todos os horizontes de eternidade.74

72 CNBB. Pastoral Afro-brasileira. Estudos da CNBB 85. São Paulo: Paulus, 2002, n. 45.
73 CNBB. Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil 1999-2002 (DGAE), São Paulo, 2002,
n. 174; Estudos da CNBB 85, n. 69.
74 DSD, n. 206.

78
PARTE 3

AGIR

3.1. Território: a defesa da terra

157. A Igreja, fiel à sua índole servidora, tem uma palavra


a dirigir às comunidades quilombolas e à sociedade. Faz isto a
partir de Jesus Cristo, que fez a opção pelos pequenos e pobres.
Na sua missão de advogada da justiça e defensora dos pobres,
a Igreja se faz solidária aos quilombolas nas suas reivindicações
pela defesa de seus territórios, na afirmação de seus direitos, na
cidadania, nos projetos próprios de desenvolvimento e consci-
ência da negritude.75

158. A palavra de apoio e a ação de defensora implicam


em uma condição, a de aprendiz. A Igreja quer aprender sobre
a cultura das comunidades quilombolas compreendendo que
a evangelização supõe o diálogo com a cultura. Assumir um
processo de diálogo implica a condição de mestre e aprendiz.
Supõe também o respeito à diferença, marca de uma história
que é diversa em cada povo, mas contendo as sementes do
verbo de Deus.76

159. Perpassa todo este processo de humildade em pedir


perdão pelos pecados do passado, quando cristãos participaram
da violência contra os negros, pecado que deve ser confessado,

75 DAp, n. 532.
76 JOÃO PAULO II Carta Encíclica Redemptoris Missio (RMi), n. 28.

79
com toda a verdade e humildade.77 Esta caminhada dialogai
desemboca na luta comum pela justiça social, sustentada num
protagonismo que é um verdadeiro kairós para aprofundar o
encontro da Igreja com aqueles que reivindicam o reconheci-
mento pleno de seus direitos individuais e coletivos.78

a) Reconhecimento das Comunidades


160. Um caminho importante para a garantia dos direitos
das comunidades quilombolas é o processo de autoidentifica-
ção das comunidades, perspectiva respaldada pela convenção
169 da OIT, da qual o Brasil é signatário. A identidade quilom-
bola cabe às comunidades quilombolas, bem como a determina-
ção do território necessário para a sua reprodução física, econô-
mica, cultural, material e imaterial.79

b) Ação profética diante dos projetos que ameaçam


as comunidades quilombolas
161. A Igreja assume a sua missão profética diante dos
projetos econômicos que ameaçam a sobrevivência das comuni-
dades quilombolas pela opção irrestrita por um modelo neode-
senvolvimentista que privilegia o agro e hidronegócio. Tais
projetos econômicos contaminam e desequilibram os ecossiste-
mas e objetivam, motivados pela ganância, usurpar o território
das comunidades quilombolas.

162. Os grandes projetos e as obras impactantes80 avançam


sobre a biodiversidade agrícola, ribeirinha, comprometem o
modo de vida das comunidades tradicionais, promovem conflitos
e violência e negação do território das comunidades quilombolas.

77 JOÃO PAULO. Discurso aos afro-americanos por ocasião da Conferência de Santo Domingo.
78 DAp, n. 91.
79 Em 18 de abril de 2013, durante a 50^ Assembleia Geral da CNBB, emitiu-se uma nota em defesa dos
territórios quilombolas.
80 Por exemplo, a Transposição do Rio São Francisco, a Ferrovia Transnordestina, a Ferrovia Leste-Sul, pro-
jetos de mineração. Estaleiro Paraguaçu, a construção das hidrelétricas de Belo Monte e Rio Madeira.

80
163. Causa preocupação a ausência de uma política gover-
namental efetiva de titulação dos territórios quilombolas que
foi e tem sido a principal causa de despejos violentos, da inse-
gurança jurídica, dos deslocamentos forçados, das ameaças, das
agressões físicas e psicológicas, das prisões arbitrárias e proces-
sos criminais direcionados aos quilombolas quando se mobili-
zam para terem garantida a sobrevivência e a permanência no
território historicamente utilizado por seus ancestrais.

164. A sociedade deve estar atenta às inserções veiculadas


pelos meios de comunicação que encampam uma campanha
antiquilombola, buscando criminalizar as comunidades veicu-
lando matérias com o objetivo de combater o critério da autoi-
dentificação e os direitos territoriais.

165. A Igreja reconhece a validade e pertinência de outras


formas de produção e organização que não reproduzem a
lógica capitalista, mantém uma relação de conhecimento e
respeito com a natureza, fugindo à apropriação privada da
terra e dos recursos naturais como acontece com as comunida-
des quilombolas.

c) Reconhecer e legitimar a luta dos quilombolas


166. Reconhecemos e valorizamos a luta das comunidades
quilombolas que, na busca por liberdade, construíram espaços
de sobrevivência denominados Quilombos. As lutas e a resis-
tência das comunidades fizeram com que a Constituição de
1988 reconhecesse o direito dos quilombolas aos territórios que
ocupavam. Diante da lentidão dos processos de legalização da
posse destes territórios, consideramos legítimas a organização
e a articulação para a manutenção e ampliação dos direitos
quilombolas.

81
d) Garantia dos direitos territoriais e regularização
fundiária das comunidades quilombolas
167. Cabe aos órgãos públicos responsáveis agilizar o
processo de reconhecimento, demarcação e titulação dos terri-
tórios das comunidades quilombolas, obedecendo ao princípio
do caráter coletivo da terra. A titulação individual representa
uma ruptura com a identidade cultural do grupo, colocando em
perigo a manutenção dos valores identitários. A Constituição
Federal reconhece o caráter pluriétnico da formação histórico-
-cultural brasileira e garante às comunidades quilombolas
o direito à manutenção de sua cultura própria. O direito dos
quilombolas ao reconhecimento de sua terra está diretamente
associado à preservação de sua organização social específica, à
defesa de direitos culturais imateriais.81

168. Os preceitos constitucionais devem ser respeitados


pelos poderes Executivo, Judiciário e Legislativo, garantindo
os direitos territoriais, políticos e econômicos das comunidades
quilombolas. A garantia dos seus territórios é condição para a
continuidade da tradição cultural quilombola, que contribui
para preservar a diversidade cultural brasileira. A defesa deste
legado é tarefa da Igreja e das organizações sociais.

169. Questionamos os fundamentos da Ação Direta de


Inconstitucionalidade (Adin) n. 3239, que tem por objetivo consi-
derar inconstitucional o Decreto quilombola n. 4.887/2003. "Os
artigos 215 e 216 da Constituição Federal asseguram aos quilom-
bolas o direito à preservação da própria cultura e do seu patri-
mônio imaterial. A garantia constitucional do reconhecimento
de seus territórios é, portanto, fundamental para a manuten-
ção desta trajetória de resistência. Acrescente-se, ainda, que o

81 CNBB. Igreja e Questão Agrária no início do Século XXI. Estudos CNBB 99. Brasília: Edições CNBB, 20109,
n. 255.

82
disposto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias determina que cabe ao Estado garantir a proprieda-
de dos ocupantes das terras remanescentes dos quilombos".82 O
respeito a estes dispositivos legais garantirá a tradição quilombo-
la ligada à posse e à propriedade da terra. Unimo-nos ao conjunto
das comunidades quilombolas, suas articulações e as inúmeras
entidades sociais que fazem a defesa dos direitos quilombolas.

170. No caso de situações de violência e ameaça contra as


comunidades quilombolas, cabe ao Poder Executivo garantir o
devido respeito à integridade física dos quilombolas, considerando
a presença secular destas comunidades nestes territórios. E tarefa
do Poder Executivo mediar conflitos e coibir atos de violência nos
casos de disputas territoriais com instituições da sociedade civil e
do próprio Estado. Que o Estado aja de modo exemplar, garantin-
do o direito territorial integral das comunidades quilombolas.

3.2. Constituição da família como um grande valor

171. E próprio da cultura negra a valorização dos idosos e o


cuidado constante com as crianças. Os primeiros sintetizam o saber
acumulado, o que permite sua perenidade ao longo do tempo;
resguardam as tradições, os valores morais e religiosos; são guardi-
ães da memória do grupo. Quanto às crianças, são elas o futuro das
comunidades, educadas em conjunto; não há órfãos nem desam-
parados. Associadas aos jovens, elas dinamizam a cultura, acessam
as novas tecnologias e permitem que tradição e modernidade se
interconectem, sem, no entanto, uma sucumbir a outra.

172. A Igreja sempre defendeu a família como instituição


querida por Deus, na qual os valores são aprendidos e vividos.
O bem-aventurado João Paulo II nos assevera que "a família é

82 CNBB, 2012.

83
uma comunidade de pessoas, a menor célula social, e como tal é
uma instituição fundamental para a vida de cada sociedade".83
Portanto, é dever de todas as pessoas e instituições públicas
defender a maneira própria da constituição familiar quilombola
na qual todos são responsáveis por todos.

3.3. Defender e valorizar o jeito de ser quilombola


sem reduzi-lo a expressão folclórica

173. Da mesma forma, ao assegurar a continuidade e o


pleno desenvolvimento das famílias quilombolas, cabe aos
órgãos promotores e protetores dos bens culturais resguardar o
patrimônio material e imaterial das comunidades quilombolas
e, em diálogo com seus integrantes, promover o tombamento
de suas manifestações religiosas e culturais, tais como: festas,
folguedos, sambas, artesanato, música, comida etc.

174. De fato, a riqueza das manifestações culturais destas


comunidades contribui sobremaneira para a diversidade brasi-
leira compondo a identidade nacional. É preciso ter em mente
que muitos dos elementos do patrimônio cultural nacional (o
samba e a capoeira, por exemplo), têm estreita relação com o
ethos da população negra, a qual é maioria nos quilombos.

175. Também os quilombos se mostram com espaço de


tolerância ao acolher a multiplicidade étnica e cultural de seus
membros. Conforme apontamos acima, embora a maioria dos
integrantes seja negra, há entre eles pessoas com ascendência
indígena e branca. Isso em nada diminui o valor histórico e
cultural dessas comunidades; pelo contrário, demonstra que é
possível estabelecer concretamente, numa comunidade, laços de
solidariedade que permitem a vida digna de todas as pessoas.

83 JOÃO PAULO II. Carta às Famílias. 2 de fevereiro de 1994.

84
176. Pensar em políticas de preservação do patrimônio
material e imaterial da produção cultural quilombola não signi-
fica cristalizá-las ou tomá-las como folclore. Pelo contrário, é
reconhecer sua importância para a história nacional e assegurar
que elas possam continuar se (re)produzindo dinamicamente.

3.4. Apoio ao protagonismo dos quilombolas,


de suas organizações e iniciativas

177.0 fortalecimento do protagonismo das comunidades


quilombolas é a chave para a garantia dos seus direitos. Estas comu-
nidades organizam-se em associações, conselhos locais, regionais
e estaduais. As articulações locais, regionais, estaduais e nacionais
têm ocupado um papel decisivo na luta pelos direitos, na denún-
cia das violências sofridas e pela conquista de políticas públicas.
Apoiar e fomentar a multiplicação dessas instituições e suas ações
é importante, e a Igreja compromete-se com esta iniciativa.84

178. O protagonismo das comunidades tem permitido


que as conquistas ocorram sem equívocos, pois estas comu-
nidades têm especificidades, modo de vida e cosmovisão que
exigem políticas e programas adaptados e que respeitem prin-
cípios identitários e organizacionais próprios. Assim, torna-se
importante a participação efetiva na formulação das políticas e
programas, através de organizações que os representem.

179. É preciso estar atento, identificar e punir com severi-


dade aqueles que, de maneira inescrupulosa, têm se apropriado
ou influenciado (ou até mesmo fundado à revelia da comunida-
de) instituições que supostamente defendem os interesses dos
quilombolas, mas que na verdade visam obter vantagens para
seus controladores.

84 DAp, n. 533.

85
3.5. Políticas Públicas

180. O apoio às comunidades quilombolas é compromis-


so evangélico. A Igreja coloca-se ao lado das comunidades em
fidelidade ao seguimento de Jesus Cristo, aquele que veio para
que todos vivessem plenamente (Jo 10,10). Compreende que o
diálogo fraterno exige ações concretas em benefício das comuni-
dades quilombolas, o que pode ser viabilizado através do apoio
às suas reivindicações, estas garantidas constitucionalmente.
Neste sentido recordamos algumas iniciativas prioritárias:

181. Cabe aos órgãos governamentais e à sociedade como um


todo assegurar a permanência e subsistência dos remanescentes das
comunidades quilombolas e, ouvindo seus integrantes, garantir:

• Infraestrutura: estradas, saneamento básico, energia


elétrica etc.
• Atendimento de saúde a todos os indivíduos, com pro-
gramas específicos para tratar das enfermidades pró-
prias das comunidades negras, com especial atenção
aos idosos, crianças e mulheres; combater a subnutri-
ção e a desnutrição infantil.
• Acesso aos programas de assitência social e material
para as famílias, idoso, criança, adolescente e pessoas
portadoras de situações especiais; inclusão nos progra-
mas de inclusão digital.
• Educação de qualidade, voltada para os interesses das
comunidades, seja por meio de escolas nos quilombos
com currículo próprio (que articule os saberes tradicio-
nais com os conhecimentos científicos, filosóficos e ar-
tísticos previstos pelos Parâmetros Curriculares Nacio-
nais (PCNs), ou fornecendo condições materiais para
que os jovens e as crianças frequentem estabelecimen-
tos (da pré-escola à graduação) fora dos quilombos.
• Ficalizar a correta aplicação da Lei federal n. 10.639/2003,
alterada pela Lei n. 11.645/2008, que inclui no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
"História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena".
• Combater toda e qualquer forma de preconceito e
racismo contra as comunidades quilombolas e seus
integrantes.
• Garantir recursos e programas que desenvolvam as
capacidades das comunidades: produção agrícola,
agroecológica, pesca e extrativismo sustentáveis e
artesanatos.
• Defesa judicial nas ações possessórias que envolvam
comunidades quilombolas como regra estabelecida no
Decreto n. 4.887/2003.
• Atuação mais célere por parte da Procuradoria-Geral
da República na defesa das comunidades quilombolas
em conflito.
• Garantir proteção pela Polícia Federal para as comuni-
dades que estão sofrendo graves ameaças.
• Garantir a inclusão das lideranças ameaçadas nos pro-
gramas defensores de direitos humanos, adequados à
realidade das comunidades quilombolas.

3.6. Pistas Pastorais

182. Decorrente da opção evangélica pelos pobres, carac-


terística da ação evangelizadora na América Latina, a Igreja
tem como tarefa, inerente à sua missão, apoiar os quilombolas
no processo de recuperação dos seus direitos. A Conferência
de Medellín, ocorrida em 1968, recordava a necessidade de
olhar com atenção o momento histórico do continente Latino-
Americano. Esta memória é referência para que a Igreja no Brasil,

87
nos tempos atuais, ausculte com cuidado a realidade olhando
com carinho maternal os novos protagonistas sociais que estão
emergindo especialmente nas comunidades quilombolas.

183.0 protagonismo dos povos quilombolas emerge


de duas situações inter-relacionadas: primeiro, o processo de
resgate de uma cultura secular no Brasil, que foi negligenciada
enquanto riqueza cultural; segundo, as ameaças constantes ao
território quilombola.85 base da manutenção de uma cultura e
de um modo de vida original.

184. No decorrer deste estudo, tratou-se das ações na pers-


pectiva social, das quais a Igreja é grande apoiadora. Contudo,
há outro foco de interesse para as Igrejas locais. O texto das
Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (2011-
2015) propõe que o anúncio missionário seja dirigido a grupos
humanos específicos na perspectiva da evangelização incultu-
rada, pelas atitudes do serviço, do diálogo, do testemunho e
do anúncio explícito da mensagem cristã.86 Incluem-se nestes
grupos as comunidades quilombolas. Tendo presente este refe-
rencial das Diretrizes e também da rica reflexão dos Documentos
de Santo Domingo e Aparecida, apresentamos algumas pistas
pastorais no que se refere a este compromisso eclesial.

• Apoiar as lutas dos quilombolas na defesa de seus


territórios - Este compromisso compreende a base da
sobrevivência física e cultural dos quilombolas. Jesus
colocou no horizonte do seu projeto situações concretas
de vida. E, diante destas siúiações: doença, fome, opres-
são (Lc 4,16-20), anunciou que o Reino começava pela
superação destas realidades antivida. É importante que
as dioceses compreendam esta necessidade nos seus

85 DAp, n. 53.
86 CNBB. DGAE 2011-2015, n. 78.

88
processos pastorais e se comprometam com a sua trans-
formação. Este compromisso sugere o passo a seguir.
• Colocar as estruturas eclesiais a serviço das comu-
nidades quilombolas - O Documento de Aparecida
menciona a conversão das estruturas pastorais. As dio-
ceses discutem a necessidade de colocarem as estrutu-
ras físicas a serviço dos pobres, dos grupos sociais his-
toricamente alijados destes espaços. Em alguns casos,
o apoio das paróquias e dioceses é fundamental para
que os quilombolas avancem na conquista dos seus di-
reitos. Nestes espaços institucionais de ação evangeli-
zadora é possível concretizar o compromisso de apoio
aos pobres e marginalizados. E um caminho de evange-
lização promissor.
• Suscitar o protagonismo eclesial dos quilombolas -
Eles sabem quem são e o que querem, têm uma iden-
tidade conquistada, cidadãos em luta para dignificar a
vida cidadã, recriar a cultura, daí o protagonismo que,
apesar das tensões, se densifica cada vez mais e tem
provocado o questionamento de como este protagonis-
mo está sendo suscitado em nossas comunidades. O
espaço do protagonismo dos quilombolas e também de
outros grupos étnico-culturais é um caminho de mão
dupla. De um lado está a oportunidade para que os
quilombolas possam viver a profundidade da sua con-
dição de batizados, de membros do povo de Deus com
direitos e deveres enquanto partícipes da comunidade
cristã. "Em outra perspectiva, a participação ativa des-
tes grupos, o que podemos chamar de protagonismo,
enriquece a vida das comunidades por imprimir um
novo dinamismo à comunidade cristã", como assegura
o Documento de Aparecida.

89
• Evangelização inculturada dialogante com a cultura
quilombola - A abertura e acolhida ao protagonismo
dos quilombolas sugere a evangelização inculturada
e o conhecimento dos quilombos contemporâneos e
suas festas. O Papa Paulo VI na Exortação Apostólica
Evangeli Nuntiandi dizia: "o Evangelho e a evangeliza-
ção independentes, em relação às culturas, não são ne-
cessariamente incompatíveis com elas, mas suscetíveis
de as impregnar a todas sem se escravizar a nenhuma
delas".87 Antes, nesta mesma exortação, afirmou que o
Evangelho não se confunde com a cultura, mas a eleva.
A preocupação com a inculturação do Evangelho tam-
bém é manifesta no Documento de Santo Domingo88 e
no Documento de Aparecida.89 A ação evangelizadora
junto aos povos quilombolas é a oportunidade da con-
cretização do que já foi tão ricamente tratado nos do-
cumentos da Igreja. Os quilombolas revelam uma di-
mensão humana, uma vida espiritual e uma tradição
cultural ricas. A aproximação desta cultura rica e diver-
sa na perspectiva evangelizadora é uma tarefa urgen-
te. Compreende os princípios: do cuidado diante das
situações de vulnerabilidade social; do diálogo frente a
uma forma de vida diferenciada; compromisso evangé-
lico, pois o anúncio do Reino é o horizonte último.
• Metodologia de catequese condizente com a cultura
quilombola - A inculturação sugere um pensar a ca-
tequese de uma forma especial. A ação evangelizadora
que compreende a inculturação do Evangelho convida
a um olhar cuidadoso para os interlocutores da ação

87 EN, n. 20.
88 DSD, capítulo III, n. 228-286.
89 Dap, n. 99b.

90
catequética. Daí a necessidade de uma metodologia sin-
tonizada com os valores da cultura quilombola. Cabe a
perspicácia de compreender-se diante de duas grande-
zas que entram em interação via trabalho catequético:
a grandeza da cultura quilombola e a profundidade do
Evangelho de Jesus Cristo, como fonte de luz para esta
cultura.
• Iniciativas na perspectiva de inibir toda a forma de
preconceito e discriminação - O preconceito e a discri-
minação ainda permeiam as relações sociais e nossas co-
munidades não estão alheias a situações de preconceito
e discriminação contra os quilombolas. Diante destes
fatos, muitas vezes velados, cabe compreendermos que
evangelizar significa também apoiar as reivindicações
por políticas de enfrentamento ao racismo e à discrimi-
nação, para superar as práticas que negam a dignidade
humana.90 A superação destas situações convida a uma
situação proativa na perspectiva da solidariedade das
comunidades com as lutas dos povos quilombolas.
• Compreender, em alguns casos, a necessidade do diá-
logo inter-religioso segundo a orientação da DGAE91
- Muitas comunidades quilombolas mantiveram vivos
alguns elementos da religiosidade da matriz africana.
Procuram manter viva esta tradição religiosa. Neste
caso, seriam possíveis iniciativas de diálogo inter-reli-
gioso. Normalmente, as lideranças das religiões de ma-
triz africana têm apreço pela Igreja Católica e não co-
locam impedimento ao diálogo. Neste caso, o diálogo
poderia assumir o caminho da luta pela justiça social,
pois a exclusão de negros e negras é pauta de uma ação

90 DAp, n. 533.
91 CNBB. DGAE 2011-2015, n. 83.

91
cristã consequente. E a ação cristã consequente pode le-
var ao diálogo com outras tradições religiosas em nome
de algo maior.
CONCLUSÃO

A Igreja, inspirada pela Palavra de Deus, pela Tradição


e pelo Magistério, se manifesta neste documento sobre a rea-
lidade das comunidades quilombolas. Este pronunciamento é
necessário devido às ameaças aos territórios quilombolas, que
se intensificam cada vez mais, e atingem por extensão a sua for-
ma de vida e cultura. Justifica este texto de estudos o seguimen-
to da Igreja no Brasil ao Cristo Bom Pastor explicitado no inte-
resse pastoral por todos os que se encontram ameaçados nos
seus direitos fundamentais.

As comunidades quilombolas são um dos referenciais da


presença dos negros no Brasil. Este reconhecimento histórico
leva a entender uma forma de vida constituída como resposta
aos desafios que o projeto escravagista suscitava, estendidos até
a época posterior à abolição da escravatura. Tal forma de orga-
nização é resposta, pela resistência, ao projeto escravagista, mas
também sustenta a manutenção da cosmovisão de origem africa-
na ambientada no território brasileiro. Neste sentido, é possível
compreender as outras formas de organização dos negros, nestas
terras, marcadas pelo sentido religioso, social, cultural e político.

A garantia constitucional do direito de posse coletiva ao


território dada às comunidades quilombolas é fundamental
para assegurar outros direitos e também a implantação de polí-
ticas de apoio às suas formas de vida, próprias da sua identida-
de cultural. Hoje persiste a necessidade de apoio a estes proces-
sos na esfera nacional, mas também nas esferas locais quando

93
se referem à implantação de políticas públicas de apoio às suas
demandas econômicas, sociais e culturais.

A missão da Igreja no Brasil é iluminada pela Palavra


de Deus que criou a humanidade com a marca da diversida-
de, significada nas diferentes culturas. A resistência histórica
das comunidades quilombolas permitiu que não sucumbissem,
no passado, ao projeto escravagista, e, hoje, ao poder avassala-
dor do capitalismo. Tal resistência lembra a luta dos diferen-
tes povos da Bíblia. Os povos foram encontrando, inspirados
por Deus, caminhos para superar os desvios do projeto que
não só imprimiam um rompimento com o plano salvador, mas
também implicavam em dor e sofrimento para muitas pesso-
as devido aos processos de exclusão. Neste sentido, também a
Palavra de Deus é fundamento para o processo de resistência
dos quilombolas e fonte de inspiração para o compromisso da
Igreja Católica no Brasil para com estas comunidades.

Este compromisso eclesial também se fundamenta nos


Documentos do Magistério Universal e Latino-Americano.
Nestes está descrita a opção inequívoca da Igreja em apoiar
os processos das comunidades quilombolas que assegurem o
direito ao território e à sua forma de vida. Isto se evidenciou
no passado pela condenação ao projeto escravagista, manifes-
tada nos Documentos Pontifícios, passando pela proposição da
necessidade de uma evangelização inculturada expressa sobre-
tudo nos Documentos da Igreja na América Latina, com desta-
que para os Documentos de Santo Domingo (1992) e Aparecida
(2007). A Campanha da Fraternidade de 1988 foi um marco
na ação evangelizadora no Brasil, pois evidenciou, apesar de
resistências, o compromisso com a causa dos afro-brasileiros e
abriu caminho para ações pastorais voltadas especificamente às
comunidades quilombolas.
Defender os territórios quilombolas significa defender o
fundamento da forma de vida quilombola devido às tantas ten-
tativas de negar esta garantia constitucional. Daí surgem outras
iniciativas voltadas ao reconhecimento do diálogo e do apoio
às comunidades quilombolas, enquanto protagonistas dos seus
processos sociais, religiosos e políticos. A necessidade de políti-
cas públicas responde ao direito de ter, de parte do Estado, seus
direitos mínimos, enquanto cidadãos, assegurados.

As pistas pastorais sugeridas têm o objetivo de contribuir


com as dioceses para que, pela ação eclesial, dentro de uma pas-
toral de conjunto, respondam aos desafios da ação evangeliza-
dora junto às comunidades quilombolas.

95
REFERÊNCIAS

ARRUTI, José Maurício. Quilombo. In: SANSONE, Livio;


OSMUNDO, Pinho (Orgs.). Raça: Perspectivas
Antropológica. São Paulo: ABA / Ed. Unicamp e
Salvador: EDUFBA, 2008.
______ . Diferenciar, redistribuir, reconhecer: ensaio de atuali-
zação dos debates sobre terra e educação para quilom-
bos. Revista Cadernos de Campo, São Paulo, 2011, n. 20,
p. 285-294; FIGUEREDO, André. Processos Cruzados:
configuração da questão quilombola e campo jurí-
dico no Rio de Janeiro. In: Territórios Quilombolas.
Reconhecimento e Titulação das Terras. Boletim
Informativo do NUER, v. 2, n. 2, 2005, p. 73-93.
AZZI, Riolando. A teologia católica na formação da sociedade colo-
nial. Petrópolis/RJ: Vozes, 2005.
BÍBLIA SAGRADA. 18. reimpr. Brasília: Edições CNBB, 2017.
BRASIL. Lei n. 4.132, de 10 de setembro de 1962: Desapropriação
por interesse social.
______ . Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964: Estatuto da
Terra.
______ . Constituição Federal de 1988.
______ . Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993 e alterações pos-
teriores: Reforma agrária.
______ . Ministério da Cultura. Fundação Cultural Palmares.
Quilombos no Brasil. Revista Palmares, Brasília, n. 5,
2000, p. 19-44.

97
______ . Decreto n. 4.886, de 20 de novembro de 2003: Institui
a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
_____ Decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003: Regulamenta
o procedimento para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocu-
padas por remanescentes das comunidades dos qui-
lombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias.
______ . Decreto n. 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, Institui a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais.
______ . Portaria da Fundação Cultural Palmares n. 98, de 26 de
novembro de 2007, que instituiu o Cadastro Geral de
Remanescentes das Comunidades de Quilombos.
______ . Instrução Normativa INCRA n. 57, de 20 de outubro de
2009.CELAM. II Conferência do Episcopado Latino-
Americano. Conclusões de Medellín. 6. ed. São Paulo:
Edições Paulinas, 1968.
______ . IV Conferência do Episcopado Latino-Americano.
Documento de Santo Domingo. 7. ed. Trad. CNBB. São
Paulo: Edições Paulinas, 1992.
______ . V Conferência do Episcopado Latino-Americano e do
Caribe. Documento de Aparecida. 5. ed. Brasília: Edições
CNBB; São Paulo: Paulus/Paulinas, 2008.
CNBB. Ouvi o clamor deste povo. Texto-Base Campanha da
Fraternidade 1988, São Paulo: Editora Ipiranga, 1988.
______ . Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no campo no Brasil
2011.
______ . Pastoral Afro-brasileira. Estudos da CNBB 85. São Paulo:
Paulus, 2002.

98
______ . Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil
2011-2015. Documentos da CNBB 94. Brasília: Edições
CNBB, 2011.
COLOMBIA. Constitución Política de 1991, Art. 55. Transitório.
COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO - SÃO PAULO, Terras de Quilombos:
nova regulamentação entra em vigor, 2003, mimeo.
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et
Spes. 1965.
CONSTITUIÇÕES ESTADUAIS: Bahia (art. 51 do ADCT); Goiás
(art. 16 do ADCT); Maranhão (art. 229); Mato Grosso
(art. 33 do ADCT) e Pará (art. 322).
Correa, Carlos Alberto Lamarão, Parecer em resposta à consulta
do Presidente do Instituto de Terras do Pará - ITERPA,
a respeito da utilização do instituto jurídico da desa-
propriação por utilidade pública, In: OLIVEIRA,
Leinad Ayer de. Quilombos: a hora e a vez dos sobre-
viventes. São Paulo: Comissão Pró-Índio de São Paulo,
2001, p. 34-39.
ECUADOR. Constitución Política de 1998, Art. 83.
FARIAS, Valdez Adriani. Informação. (VAF)/CPAL/CONJUR/
MDA/N°256/2004, 02 de julho de 2004 (b).
JOÃO PAULO II. Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiae.
1990.
. Carta Encíclica. Redemptoris Missio. 1990.
. Carta Encíclica Centesimus Annus, 1991.
______ . Carta às Famílias, 2 de fevereiro de 1994.
MELLO, Marcelo Moura. Reminiscência dos quilombos: territó-
rios da memória em uma comunidade negra rural. São
Paulo: Terceiro Nome, 2012.

99
MOURA, Glória. Festas dos Quilombos. Brasília: Editora UnB,
2012.
NICARAGUA. Ley n. 445/2002; Decreto n. 5.934/2010.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT).
Convenção Internacional n. 169.
PAULO VI. Carta Encíclica Populorum Progressio.1967.
______ . Exortação Apostólica Evangelli Nuntiandi.1975.
PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Para uma melhor
distribuição da terra. Os desafios da reforma agrária.
______ . Compêndio da Doutrina Social da Igreja. Tradução CNBB.
São Paulo: Paulinas, 2005.
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade
por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
SILVA, Antônio Aparecido da (Org.). Existe um pensar teológico
negro? São Paulo: Paulinas, 1998.
SILVA, de Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense,
2009.
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação
em Antropologia. Departamento de Antropologia e
Etnologia. Nota Técnica. Salvador/BA, 2012.

mn

Você também pode gostar