Você está na página 1de 33

Igreja e trabalhadores na Amazônia

setentrional

Sidney Lobato
Organizador

Nepan Editora
Rio Branco - Acre
2018
Nepan Editora
Rio Branco - Acre - Brasil

Diretor administrativo:
Marcelo Alves Ishii
Conselho Editorial
Agenor Sarraf Pacheco - UFPA
Ana Pizarro - Universidade Santiago/Chile
Carlos André Alexandre de Melo - UFAC
Elder Andrade de Paula - UFAC
Francemilda Lopes do Nascimento - UFAC
Francielle Maria Modesto Mendes - UFAC
Francisco Bento da Silva - UFAC
Francisco de Moura Pinheiro - UFAC
Gerson Rodrigues de Albuquerque - UFAC
Hélio Rodrigues da Rocha - UNIR
Hideraldo Lima da Costa - UFAM
João Carlos de Souza Ribeiro - UFAC
Jones Dari Goettert - UFGD
Leopoldo Bernucci - Universidade da Califórnia
Livia Reis - UFF
Luís Balkar Sá Peixoto Pinheiro - UFAM
Marcela Orellana - Universidade Santiago/Chile
Marcello Messina - UFAC
Marcia Paraquett - UFBA
Maria Antonieta Antonacci - PUC/SP
Maria Chavarria - Universidad San Marcos
Maria Cristina Lobregat - IFAC
Maria Nazaré Cavalcante de Souza - UFAC
Miguel Nenevé - UNIR
Raquel Alves Ishii - UFAC
Sérgio Roberto Gomes Souza - UFAC
Sidney da Silva Lobato - UNIFAP
Tânia Mara Rezende Machado - UFAC
Igreja e trabalhadores na
Amazônia setentrional
Nepan Editora
editoranepan@gmail.com

Projeto Gráfico e Arte final: Raquel Alves Ishii


Diagramação: Marcelo Alves Ishii.
Revisão Técnica: Yurgel Pantoja Caldas e Marcelo Conceição da Rocha Campos
Imagem da Capa: Luís Henrique Alves Pinto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


L796i Igreja e trabalhadores na Amazônia setentrional / organizador Sidney Lobato.
– Rio Branco: Nepan, 2018.
148 p.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-68914-30-4

1. Amapá – Historia. 2. Trabalhadores – História. 3. Igreja – História. I. Lo-


bato, Sidney. II. Título.

CDD: 261.6
Bibliotecária Maria do Socorro de O. Cordeiro – CRB 11/667
Sumário
Apresentação.........................................................................................................07
Prefácio.....................................................................................................................11
Jeitos de ser Igreja: debates sobre a
renovação da vida eclesial na Amazônia
setentrional (1966-1983)
Sidney Lobato....................................................................................................... 17

A Igreja dos Pobres no Amapá:


solidariedade, resistência e conflito (1966-
1983)
Walbi Silva Pimentel............................................................................................ 45

“Educação – a escola destribaliza, mata e


come ou a escola indica o caminho”: o Cimi
no processo de escolarização dos povos
indígenas do Oiapoque/AP (1974-1986)
Cecília Maria Chaves Brito Bastos....................................................................... 61

Entre a cruz e a enxada: a CPT e a luta pela


terra no Amapá (1979-1996)
Higor Pereira........................................................................................................ 83

Igreja e jovens trabalhadores: a atuação


da JOC no Amapá (1957-1968)
Jackeline Duarte.................................................................................................. 107

A “colaboração desejada”: aspectos da


dominação masculina no Território
Federal do Amapá
Tatiana Pantoja Oliveira.................................................................................... 125

Sobre os autores.................................................................................................145
Jeitos de ser Igreja:
debates sobre a renovação
da vida eclesial na
Amazônia setentrional
(1966-1983)
Sidney Lobato

Introdução

N
as linhas que se seguem, pretendemos analisar os debates
ocorridos no seio da Igreja Católica durante o conturbado
transcurso da renovação desta instituição, na segunda me-
tade do século XX. O postulado da urgência da renovação da vida eclesial
ganhou força na América Latina a partir da II Assembleia Geral do Conselho
Episcopal Latino-Americano (Celam), ocorrida na cidade colombiana de Me-
dellín (1968). Por razões que apresentaremos adiante, nosso foco recairá so-
bre a Amazônia setentrional, mais precisamente sobre a Prelazia de Macapá.
Durante o episcopado de D. José Maritano1 (1966-1983), esta prelazia passou
por impactantes transformações socioeconômicas: instalação e ampliação de
grandes projetos de exploração agro mineral; rápido crescimento populacio-

1 Missionário italiano do Pontifício Instituto das Missões Estrangeiras (Pime).


nal urbano, decorrente de migrações; e acirramento das desigualdades sociais.
Internamente, a Igreja sofria mudanças norteadas pela agenda de padres e
leigos progressistas, que defendiam: a opção preferencial pelos pobres, o pro-
tagonismo do laicato, assim como a formação e a consolidação de pastorais
sociais e de Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Neste capítulo, focalizamos principalmente os investimentos da Igreja
no processo de formação de CEBs e os debates daí derivados. A partir da
análise de artigos de jornal, entrevistas, cartas pastorais e relatórios, foi possí-
vel abordar mais detidamente três eixos temáticos destes debates: a aceitação
ou não do protagonismo dos leigos; a recíproca complementaridade ou não
entre a vivência da espiritualidade e o enfrentamento dos problemas sociais; e
a relação da Igreja com o tempo histórico. Cotejar leituras de fontes e da his-
toriografia nos permitiu avançar na compreensão de um momento de forte
reflexibilidade do catolicismo – momento em que ele pautava o seu próprio
ser no mundo e em que, no seu seio, se intensificavam embates entre posições
divergentes. O estudo de tais embates é fundamental para entendermos as
díspares respostas que a Igreja deu aos desafios que ela enfrentara na segunda
metade do século XX.
As pesquisas que abordam a história da Igreja Católica, ao longo do
século XX, enfocam a relação entre as estruturas internas dessa instituição
e as mudanças ocorridas no mundo secular. Roberto Romano, no final da
década de 1970, argumentava que, ao longo da história do Brasil, a Igreja ha-
via desempenhado uma função estabilizadora, enfraquecendo tensões entre
Estado e sociedade e se reformando para conservar sua posição de fração da
classe dominante. Segundo Romano, durante a ditadura militar (1964-1985),
estabeleceu-se uma simbiose entre bispos e técnicos em prol da ideologia
nacional desenvolvimentista. Esta apregoava que o subdesenvolvimento era
o resultado de consciências retrógradas, de populações deseducadas, o que
tinha como corolário a necessidade de “imposição do desenvolvimento a par-
tir do cimo da sociedade”, por elites identificadas com o nacionalismo e a
modernidade.2
Num quadro de acelerado êxodo rural e consequente crescimento das
cidades, as agências estatais não tiveram a capacidade de reverter a tendência

2 ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979, p. 158.
18
ao agravamento das desigualdades sociais, conforme afirma Romano. A Igre-
ja então, por meio das CEBs, pôde “ultrapassar o Estado na corrida rumo ao
domínio das populações marginalizadas”. Em última análise, essas comuni-
dades teriam sido mecanismos criados para “desarmar a violência dos nega-
tivamente privilegiados, pela educação e pela operosidade, proporcionando
a segurança coletiva que garantirá a estabilidade das instituições”. Portanto,
neste diapasão, a vida eclesial teria sido reformada para que sua secular eficá-
cia estabilizadora não fosse comprometida pelas abruptas transformações na
estrutura social. Transformações que potencializavam a insatisfação popular,
combustível da vaga comunista ou da radicalização da luta de classes. Agindo
desse modo, a Igreja se autolegitimaria diante de um Estado draconiano, que
não conseguia sozinho realizar a frenagem das forças de contestação do status
quo.3
A linha argumentativa de Romano baseia-se na percepção da Igreja
como um bloco homogêneo e substancialmente vocacionado à conserva-
ção das hierarquias herdadas do passado. Scott Mainwaring, por outro lado,
apresenta-nos uma Igreja cindida em dois pedaços: os conservadores e os
progressistas. Estes últimos teriam se fortalecido após o recrudescimento da
violência promovida pelo governo ditatorial. A partir do AI n. 5, membros do
clero passaram a sofrer ataques mais frequentes e duros. A Conferência Na-
cional dos Bispos do Brasil (CNBB) criticou este Ato “por permitir violações
arbitrárias dos direitos humanos, inclusive sua restrição à autodefesa em tri-
bunal, o direito de expressar opiniões e o direito à informação”. Mainwaring
argumenta que, enquanto no Paraguai e na Argentina a virulenta repressão
enfraqueceu os progressistas, no Brasil ocorreu o contrário.4
Essa linha argumentativa é seguida por Kenneth Serbin no livro Padres,
celibato e conflito social, que dá especial atenção à insatisfação de parte do baixo
clero em relação ao padrão tridentino de sacerdote: isolado da realidade so-
cial, voltado a uma espiritualidade sacramental e resignado ao celibato. Serbin
afirma que, nos anos da ditadura, “seminaristas e padres empenharam-se em
construir um novo modelo de sacerdócio mediante uma profunda reavaliação

3 Ibidem, p. 191, 199.


4 MAINWARING, Scott. Igreja Católica e política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Brasiliense, 1989, p.
122, 130.
19
da vocação e sua função social”.5 Por outro lado, no livro Diálogos na sombra,
este historiador afirma que, apesar da renovação eclesial ter acirrado as dife-
renças entre as visões de mundo da Igreja e dos militares durante a ditadura,
não podemos entender as posições clericais partindo apenas da rígida díade
conservadores versus progressistas. Em Diálogos, Serbin descortina, por meio
de farta documentação, uma Igreja de iniciativas muito matizadas e que era
igualmente capaz de negociar e de ensaiar reconciliações.6
É importante também ter em mente que as tensões entre clérigos e
governo ditatorial não se esgotavam no campo da legitimidade ou não da
repressão violenta sofrida pelos que faziam oposição ao regime. Scott
Mainwaring aponta que a partir de 1968 a Igreja tornou-se cada vez mais
pessimista em relação à crença no capitalismo enquanto motor do amplo
bem estar social. Na contramão do otimismo ufanista dos ditadores, os
bispos do Nordeste “condenaram o milagre brasileiro por exacerbar as
desigualdades, por enriquecer aqueles que já tinham o suficiente e por causar
o empobrecimento relativo ou absoluto da maioria das pessoas mais carentes
da região”. Na Amazônia, membros do clero e agentes de pastoral reavaliaram
a orientação da vida eclesial “devido à extrema penúria da população e ao
índice de violência estatal e privada contra os camponeses”. Depois de
iniciada a Operação Amazônia, as denúncias de violências sofridas por
indígenas e camponeses multiplicaram-se e tornaram-se mais contundentes.
Neste quadro de acirramento das tensões sociais, nem mesmo os bispos da
região amazônica escaparam das ameaças de prisão e morte.7 A experiência
ocorrida na Amazônia concorreu para a conversão da Igreja em favor da
causa dos pobres.
Por séculos vinculada à tradição elitista, que percebia o povo como
carente de tutela em decorrência de sua incapacidade de decidir sobre seu
próprio destino, a Igreja, no contexto do Golpe de 1964, ainda acreditava que
a pobreza era resultado da ausência do capital, e não um derivativo da atuação

5 SERBIN, Kenneth. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja Católica no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, p. 156-157. Sobre este tema, ver também: MAIELLO, Pe. Caetano. Um
exame para a renovação do clero. A Voz Católica. N. 500, de 24 de maio de 1969, p. 5; e AS CRISES do
sacerdote. A Voz Católica. N. 500, de 24 de maio de 1969, p. 5.
6 SERBIN, Kenneth. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 17-133.
7 MAINWARING, Scott. Op. cit., p. 105-123.
20
deste. Mas, como argumenta José de Souza Martins, “a Amazônia pôs a Igreja
diante da evidência de que o capital e o desenvolvimento capitalista maciços,
ao contrário do que se supunha, podiam criar problemas sociais de tal gravi-
dade, que se equiparavam ou superavam os gravíssimos problemas da miséria
rural do Nordeste”. Indígenas tratados como não humanos e vitimados por
expedições punitivas, camponeses expropriados, escravizados e assassinados,
vultoso êxodo rural, segregação urbana e truculência policial são algumas das
contas do rosário de violências experimentadas pelos amazônidas durante a
ditadura. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Comissão Pastoral
da Terra (CPT) e as CEBs eram agências que davam corpo à reorientação
pastoral da Igreja em favor das vítimas do capitalismo tributário, especulativo
e extorsivo.8
As CEBs como meio de renovação da vida eclesial
Ao longo do século XX, a Igreja viu-se desafiada por mudanças de es-
cala planetária que erodiam seu poder. Na América Latina, os debates sobre a
necessidade de renovação da vida eclesial iniciaram antes mesmo do Concílio
Vaticano II. No ano de 1958, o papa João XXIII apontou aos bispos daquele
subcontinente, reunidos em Roma, aquilo que na visão dele seriam os quatro
perigos mortais do catolicismo latino-americano: o naturalismo, o protestan-
tismo proselitista, o espiritismo e o marxismo. Em dezembro de 1961, o papa
lançou um novo apelo a esses bispos no sentido da redefinição dos métodos
pastorais. No Brasil de meado do século XX, a romanização havia criado para
a Igreja um refúgio inseguro contra o pluralismo religioso, solapando nela a
capacidade de atrair as camadas médias e populares.9
O movimento romanizador ganhou força na Amazônia da virada do
século XIX ao XX. Mais de um século antes disto, a política pombalina ha-
via debilitado bastante o processo evangelizador protagonizado pelos jesuítas
(expulsos do Brasil em 1759). A criação do bispado do Amazonas (1872), o

8 MARTINS, José de Souza. Camponeses e índios na renovação da orientação pastoral da Igreja. In:
______. A política do Brasil: lúmpen e místico. São Paulo: Contexto, 2011, p. 160-172. Ver também: BA-
SÍLIO, Sandra Teresa Cadiolli. A luta pela terra e a Igreja Católica no vale do Acre e Purus (1970-1980). Tese
(Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2001; e MAUÉS, Raymundo
Heraldo. Comunidades “no sentido social da evangelização”: CEBs, camponeses e quilombolas na
Amazônia oriental brasileira. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, vol. 30 (2), p. 13-37, 2010.
9 SERBIN, Kenneth. Padres... Op. cit., p. 158.
21
aparecimento de associações piedosas e assistenciais, a chegadas de grande
contingente de missionários ligados a ordens religiosas diversas faziam parte
do empenho da Igreja no sentido da recristianização do espaço amazônico.
Mas, a principal estratégia adotada neste processo foi a criação de novas pre-
lazias e paróquias, onde vigários eram fixados para atuar como expurgadores
das práticas religiosas condenadas pelo clero – sobretudo, a disseminada de-
voção aos santos, que culminava frequentemente em animadas festas. Várias
prelazias foram criadas na Amazônia durante as primeiras décadas do século
XX. Em 1949, foi criada a de Macapá, que compreendia o Território Federal
do Amapá (criado em 1943) e parte das ilhas dos arquipélagos do Marajó e
do Gurupá. Esta prelazia fora confiada aos padres do Pontifício Instituto das
Missões Estrangeiras (Pime), que começaram a chegar no Amapá em 1948.10
Na década de 1940, a população da capital amapaense cresceu vertigi-
nosamente em decorrência da vinda de migrantes (oriundos, sobretudo, das
ilhas paraenses, bem como dos interiores do Pará e do próprio Amapá) que
buscavam empregos nas frentes de trabalho abertas pelo governo territo-
rial.11 Nesse contexto, os padres do Pime esmeraram-se para alterar uma vida
religiosa por eles classificada como imatura e, portanto, carente da sua ação
missionária.12 Esses padres entendiam que no reinante catolicismo popular
ocorria uma inversão que deveria ser urgentemente corrigida: os fiéis valori-
zavam mais os sacramentais (imagens, velas, fitas, água benta etc.) do que os
sacramentos (batismo, comunhão, crisma, matrimônio, ordem, confissão e

10 MATA, Possidônio da. A Igreja Católica na Amazônia da atualidade. In: HOORNAERT, Eduardo
(coord.). História da Igreja na Amazônia. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 341-365.
11 Segundo o relatório Macapá: Plano de Desenvolvimento Urbano, da Fundação João Pinheiro, “o cres-
cimento demográfico da capital se deu, em parte, devido à grande atração que passou a exercer sobre
as populações das demais regiões. Atraídas pela maior oportunidade de emprego, de estudo e pelos
confortos urbanos, a grande leva de migrantes para Macapá provocou sérios problemas. Por um lado,
a cidade recebia um número de pessoas superior à capacidade de criação de empregos, gerando um
contingente de mão-de-obra não aproveitado, ou seja, em situação de desemprego. Por outro lado, o
êxodo rural ocasionou uma queda na produção agrícola” (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Brasil.
Macapá: Plano de Desenvolvimento Urbano. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1973, p. 12).
12 A vinda dos missionários do Pime para o Brasil tem também relação direta com várias transfor-
mações que o Pontifício Instituto sofreu no pós-guerra. Novos seminários e sedes então criados na
Itália passaram a exigir que aí ficasse um número cada vez maior de padres. Alguns dos missionários
recém-ordenados passaram então a protestar, pois queriam partir para áreas de missão. O fechamento
da China para os sacerdotes católicos, ocorrido após a Segunda Guerra Mundial, comprometeu a sus-
tentabilidade da “vocação asiática” do Instituto. Neste quadro, a solução foi a rápida abertura de novas
frentes em áreas antes não consideradas ad gentes (carentes da ação missionária). Sobre estas questões,
ver: GHEDDO, Piero. PIME: 150 annidi missione (1850-2000). Bolonha: EMI, 2000, p. 186-188.
22
unção dos enfermos). A doutrina oficial da Igreja afirmava que os fiéis deve-
riam entrar em contato com Deus prioritariamente através dos sacramentos –
o que era também um modo de afirmação da importância daqueles que iriam
(quase que exclusivamente) ministrá-los: os padres.13
Em 1979, o segundo bispo de Macapá, D. José Maritano, fazendo uma
avaliação do trabalho dos missionários no período que vai de 1948 até 1968,
afirmou que “se buscava ‘sacramentalizar’ os fiéis o mais possível”. Se do
ponto de vista quantitativo o processo de sacramentalização da vida religiosa
macapaense parece ter sido muito bem sucedido, o mesmo não pode ser dito
de um ponto de vista qualitativo. Isto porque comumente os significados
dos sacramentos não eram os mesmos para padres e fiéis. Foi D. Maritano
quem ressaltou: “nota-se entre os nossos católicos o apego radical ao batis-
mo, considerado muitas vezes como um rito mágico para proteger-se contra
o espírito do mal e também como garantia de saúde contra a mortalidade
infantil”.14 Ocorria, portanto, uma ressignificação dos sacramentos no bojo
da experiência dos leigos, cujo conjunto de referências religiosas e morais era
muito mais híbrido do que o dos padres.
Durante seu episcopado, D. José reclamou várias vezes da insuficiência
da pastoral centrada na sacramentalização. Não era, segundo ele, o caso de
abandoná-la, mas de combiná-la com ações que levassem os fiéis a uma com-
preensão mais profunda da doutrina cristã e a uma vivência menos ritualizada
e mais convicta da fé católica.15 Para o prelado, as Comunidades Eclesiais de

13 LOBATO, Sidney. Santos e sacramentos no cotidiano dos trabalhadores de Macapá (1948-1964).


Tempo, vol 21, n. 38, 2015, p. 2-20.
14 Un vescovo in Amazzonia. Mondo e missione, anno 108, n. 20, 15 ottobre 1979, p. 530-532.
15 Em 29 de junho de 1968, José Maritano publicou a carta pastoral sobre a importância dos sacra-
mentos na vida cristã, intitulada Os sacramentos da iniciação cristã: batismos e crisma. Trata-se de uma versão
adaptada da 43ª carta do cardeal D. Jaime Câmara (arcebispo do Rio de Janeiro). Ela evidencia que não
houve uma ruptura com o projeto de sacramentalização da vida religiosa dos fiéis. Pelo contrário, a
sacramentalização foi reforçada por meio de iniciativas no sentido de expurgar percepções heterodo-
xas dos sacramentos (como aquelas oriundas das culturas populares), difundindo a doutrina oficial da
Igreja o máximo possível. Nesse sentido, lemos em Os sacramentos da iniciação cristã que nos encontros
dos sacerdotes “se sentiu a necessidade urgente de fazer uma revisão da pastoral sacramental, a fim de
que os fiéis, ao receberem os sacramentos, façam-no com fé esclarecida e com a consciência certa dos
compromissos que a vida cristã apresenta”. A carta pastoral admite que frequentemente as motivações
da procura pelo batismo estavam distantes do almejado pelos padres: criar uma oportunidade para
fazer festinhas; evitar críticas e cobranças de vizinhos (relativas à “demora do batismo”); ter o “temor
supersticioso de que, por ser ainda pagãzinha, a criança venha a adoecer e sofrer qualquer desgraça”;
querer “arranjar padrinhos ricos e influentes”; desejar “reforçar laços de amizade ou de parentesco”;
ou cumprir uma “formalidade” exigida para a realização do casamento religioso (MARITANO, José.
Os sacramentos da iniciação cristã: batismos e crisma. Macapá: Prelazia de Macapá, 1968, p. 3, 6-7). Diante
23
Base eram o meio ideal para se atingir tal objetivo. Maritano via o fortaleci-
mento das CEBs como uma inovação de seu episcopado e dizia, em 1979,
que seu antecessor, D. Aristides Pirovano, havia estabelecido as estruturas
de base da Prelazia de Macapá, pois “sabia encontrar auxílios e mover-se fa-
cilmente entre vastos horizontes e projetos”, enquanto que ele próprio fora
“feito para a atividade pastoral paroquial, para o contato com as pessoas sim-
ples”. Ainda comparando-se com Pirovano, D. José afirmava ter “um estilo
mais pastoral que administrativo, fundado mais nos contatos de amizade e na
criação de verdadeiras comunidades que nas grandes obras”.16
Em A Igreja dos pobres, Walbi Pimentel afirma que as primeiras comu-
nidades tinham o papel de preparar os moradores dos núcleos populacionais
amapaenses para receber a visita sazonal dos padres (desobrigas). Posterior-
mente, as CEBs começaram a ganhar outro perfil: menos romanizador e mais
assentado no protagonismo do laicato e na luta contra os problemas sociais
que cotidianamente desafiavam a sobrevivência dos trabalhadores.17 Tal mu-
dança iniciou-se a partir de 1968. Esse não é apenas o ano do AI n. 5, mas
também o da assembleia do Celam de Medellín, considerada por muitos o
nascedouro da Teologia da Libertação. Essa Teologia tinha como fundamen-
tos: a condenação do capitalismo como sistema injusto e pecado estrutural;
a utilização do instrumental marxista para o entendimento da origem das de-
sigualdades sociais; a opção preferencial pelos pobres e o compromisso com
sua autolibertação; uma leitura da Bíblia com foco especial no livro do Êxo-
do, transformado em paradigma da libertação de toda forma de exploração;
a luta contra a idolatria do dinheiro e do poder; a libertação humana como
antecipação da salvação em Cristo; a crítica à teologia dualista, que distingue
a história humana da divina; a formação de comunidades de base como um

deste quadro, Maritano conclama os padres a se empenharem na preparação das famílias responsáveis
pelas crianças a serem batizadas, a fim de que ficassem cientes de suas reponsabilidades cristãs. Admitia
que não bastava tornar os sacramentos mais acessíveis e presentes no cotidiano do laicato, pois urgia
igualmente garantir que a recepção deles ocorresse segundo os referenciais doutrinários respeitados e
propalados pelo clero. Além disso, em 06 de junho de 1976, D. José Maritano publicou as Diretrizes de
ação pastoral sacramental para a Prelazia de Macapá, com o objetivo de tornar mais uniforme a ação pastoral
relativa à ministração dos sacramentos (MARITANO, José. Diretrizes de ação pastoral sacramental para a
Prelazia de Macapá. Macapá: Prelazia de Macapá, 1976).
16 Un vescovo in Amazzonia. Op. cit., p. 528.
17 PIMENTEL, Walbi. A Igreja dos pobres: resistências eclesiais no norte do Brasil (1966-1983). Curi-
tiba: Prismas, 2016, p. 136.
24
novo jeito de ser Igreja e como alternativa à vida individualista imposta pelo
capitalismo.18
Impactados pela escalada dos índices relacionados à violência e à ex-
clusão social, vários bispos da Amazônia adotaram as diretrizes de Medellín
e passaram a ver as pastorais sociais e as CEBs como a ponta de lança da luta
contra a pobreza. No Amapá, a proclamação das comunidades como prio-
ridade pastoral ocorreu em 1969, durante o I Congresso do Povo de Deus.
Este encontro, que durante vários meses mobilizou leigos e padres, partiu de
uma avaliação da realidade social e religiosa da Prelazia de Macapá, estabe-
lecendo as diretrizes pastorais a serem nela adotadas. No Documento Final do
Primeiro Congresso, lemos as seguintes palavras: “a comunidade cristã de base
é o primeiro e fundamental núcleo eclesial, que deve, em seu primeiro nível,
responsabilizar-se pela riqueza e expansão da fé como também pelo culto que
é a sua expressão”.19 No clero local, este postulado foi recebido de diferentes
formas. Assim, é elucidativo retomar as palavras do padre Jorge Basile, que,
ao se referir às CEBs, comentou: “uns consideram-nas como a panaceia de
todos os males da sociedade; outros, mais apegados ao passado, delas não
querem nem ouvir falar; a maioria estudam-nas e, na medida do possível,
procuram ‘usá-las’ em seu trabalho”. E Basile aduz: “nós estamos no número
destes últimos”.20
As comunidades de base tornaram-se mais numerosas e vigorosas, so-
bretudo, a partir de 1974. A maioria dos padres que se reuniram na assem-
bleia presbiteral, realizada em dezembro de 1973, definiu que as CEBs seriam
a prioridade pastoral do ano seguinte. A este respeito, o articulista do jornal
A Voz Católica asseverou: “isto quer dizer que, com janeiro [de 1974], todos
os padres que trabalham na prelazia terão como objetivo primário construir
e animar comunidades eclesiais de base”.21 D. José Maritano destacou que
se tratava “simplesmente de traduzir em prática as opções feitas por todos
os bispos da região amazônica em Santarém no ano passado”.22 A reunião
18 LÖWY, Michael. Marxismo e Teologia da Libertação. São Paulo: Cortez, 1991, p. 27-28.
19 DOCUMENTO Final do Primeiro Congresso. A Voz Católica. N. 509, 26 de julho de 1969, p. 6. O
jornal Voz Católica foi criada em 1959 pela Prelazia de Macapá, principalmente, para divulgar as ações
da Igreja local.
20 BASILE, Jorge. Comunidade de base. A Voz Católica. N. 529, de 13 de dezembro de 1969, p. 2.
21 COMUNIDADE de base: vamos começar. A Voz Católica. N. 638, de 25 de dezembro de 1973, p. 6.
22 MARITANO, José. Formação e animação das Comunidades Eclesiais de Base. A Voz Católica. N.
638, de 25 de dezembro de 1973, p. 1.
25
de Santarém também definiu, como linha de ação prioritária, a formação de
agentes de pastoral – pessoas que realizariam na comunidade serviços de ca-
tequese, liturgia, animação de reuniões etc. Em Macapá, a Escola de Agentes
de Pastoral foi implantada em 1974 com o objetivo de oferecer aos leigos
uma formação, ao mesmo tempo, técnica, teórica e vivencial.23
É possível perceber que em 1974 se inicia um esforço para que a ação
dos padres se direcione, de modo coeso, à formação de novas comunidades.
Todavia, isto não dependia exclusivamente da iniciativa deles. Na Prelazia
de Macapá, as CEBs tornaram-se mais numerosas e vigorosas onde já
preexistiam comunidades naturais, ou seja: núcleos populacionais nos quais
a sociabilidade era baseada, sobretudo, na solidariedade horizontal.24 Tal so-
ciabilidade, que não pode ser romanticamente confundida com um modo
de vida no qual os conflitos interpessoais estão absolutamente ausentes25,
era mais comum nas áreas interioranas (ribeirinhas, extrativistas, quilombolas
etc.) e nas periferias dos núcleos urbanos, onde os migrantes procuravam
inventar seu cotidiano a partir da nova realidade, mas também do repertório
de práticas, valores e conhecimentos que traziam das ruralidades amazônicas.
Na capital do Amapá, como não havia emprego para todos e a maio-
ria dos empregados ganhava pouco (salários drasticamente corroídos pela
carestia), o primeiro grande desafio era a sobrevivência. Entretanto, estava
23 Ver: ESCOLA de Agentes de Pastoral: vai ser uma realidade. A Voz Católica. N. 638, de 25 de de-
zembro de 1973, p. 1; e ESCOLA de Agentes de Pastoral: o início da ação concreta. A Voz Católica. N.
640, de 13 de janeiro de 1974, p. 2.
24 Em seu balanço das atividades pastorais realizadas entre 1975 e 1979, D. José observou que as CEBs
“nas cidades são de implantação mais difícil do que no meio rural”, e que “talvez no meio rural sejam
de aceitação mais fácil porque fundamentalmente motivadas pela realização do ‘culto dominical’ e pelo
fato de por lá existirem comunidades naturais ligadas por vínculos de parentesco ou de interesse” (MA-
RITANO, José. Relatório Quinquenal de 1975-1979 da Prelazia de Macapá. Macapá: Prelazia de Macapá,
Mimeo, 1979, fl. 60).
25 ÉmilieStoll e Ricardo T. Folhes exageram ao considerar que a existência de interesses divergentes ou
de clivagens familiares inviabiliza a formação de comunidades. Eles reduzem estas a uma mera ideali-
zação da Igreja sem qualquer correspondência na realidade vivida pelos ribeirinhos da Amazônia. Nas
palavras deles: «la ‘communauté’ est une réalité ambivalente. D’un côté, elle évoque une représentation
idéelle d’un collectif moral et solidaire, de l’autre, elle consiste en une pratique de l’exercice du pouvoir
dans l’ensemble des champs sociaux que la composent (religieux, administratif, politique)». E adiante:
«mais, qu’est-ce au juste cette ‘communauté’? Figure institutionnelle encore floue, concept ambivalent,
force est de constater que son fonctionnement apparent est un leure» (STOLL, Émilie; THEOPHILO
FOLHES, Ricardo. La (dés)illusion communautaire. De l’ambivalence de la notion de «communauté»
en Amazonie brésilienne. Journal de laSocietédesAmericanistes. Tome 100-2, Paris, 2014, p. 73-103). En-
quanto um tipo ideal, o conceito de comunidade nunca terá um correspondente exato na realidade do
vivido. O que não significa que não ache aí elementos que lhe deem alguma consistência.
26
sempre aberta a possibilidade de se contar com a solidariedade da vizinhança.
Era comum os recém-chegados buscarem morar próximo de parentes, de
ex-vizinhos ou de conterrâneos. O reestabelecimento de laços antes rom-
pidos ajudava a minimizar a insegurança quanto à sobrevivência no interior
da crescente população citadina. Para quem chegara primeiro era igualmente
interessante formar um círculo familiar em volta de si para amortecer os im-
pactos da complexa e desafiadora vida urbana. Havia, portanto, nos bairros
populares macapaenses, precondições propícias ao desenvolvimento das co-
munidades de base. Segundo Alessandro Gallazzi, nas paróquias suburbanas
e periféricas, as CEBs surgiram “com força”. Já as paróquias situadas no cen-
tro mais urbanizado e de moradores mais abastados não fomentaram o apa-
recimento de muitas delas.26 O quadro abaixo, elaborado a partir do Relatório
Quinquenal de 1975-1979, de José Maritano, nos permite ter uma visão ampla
do aparecimento destas comunidades no Território Federal do Amapá:
Quadro: Quantidade de CEBs por Paróquia da Prelazia de Macapá
(1979)27
Número Número Média de
Paróquia Localização de de habitantes
habitantes CEBs por CEBs
Nossa Senhora das Graças Oiapoque — 10 —
Espírito Santo Amapá 10.268 22 467
Nossa Senhora da Conceição* Calçoene 3.473 13 267
Nossa Senhora do Brasil Porto Grande 7.362 31 237
Cristo Libertador* S. Joaquim 10.123 69 146

26 Entrevista concedida por Alessandro Gallazzi a Walbi Pimentel em 20 de agosto de 2014.


27 Seguimos aqui, com algumas pequenas ressalvas, as classificações do relatório Macapá:Plano de De-
senvolvimento Urbano, da Fundação João Pinheiro. Segundo este relatório, Macapá poderia ser assim divi-
dida em 1973: áreas urbanizadas (que denominamos de centro) – aquelas que têm vias e quadras bem
definidas, dotadas de água, energia, limpeza pública e outros serviços e com predomínio de edificações
de padrão médio – compostas pelos bairros Central, Santa Rita e parte do Laguinho; áreas semiurbanas
(que chamamos de subúrbio) – as que têm malhas urbanas contínuas, que são predominantemente
residenciais e que são dotadas apenas parcialmente de serviços públicos (mal servidas de iluminação,
transporte público, limpeza etc.) –, que compreendiam os bairros do Trem, parte do Beirol, parte do
Santa Rita, “parte [pequena] do Jesus de Nazaré [que era uma extensão do Bairro Central]”, parte do
Jacareacanga e “quase todo o bairro do Laguinho”; áreas periféricas – aquelas que não são bem defi-
nidas, predominantemente residenciais, com padrão baixo de edificações e que não são assistidas por
serviços, nem dotadas de equipamentos urbanos – compostas por Buritizal, Pacoval, parte do Beirol,
parte do Santa Rita e do Jacareacanga. Em Santana, excetuando-se a Vila Amazonas (company town), que
abrigava apenas uma pequena parte da população da Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro,
os bairros tinham predominantemente características semiurbanas e periféricas (FUNDAÇÃO JOÃO
PINHEIRO. Brasil. Op. cit., p. 54-58).
27
Nossa Senhora d’Assunção Mazagão 16.000 76 210
Serra do 5.124 11 466
Santa Bárbara
Navio
N. Sra. do Perpétuo Santana e 18.000 70 257
Socorro ilhas
Nossa Senhora da Subúrbio de 7.000 10 700
Conceição Santana
Periferia de 15.000 26 577
Nossa Senhora de Fátima
Santana
Periferia de 8.000 — —
São Pedro
Macapá
Periferia de 9.247 40 231
Sagrado Coração de Jesus
Macapá
Nossa Senhora da Concei- Subúrbio de 20.000 42 476
ção Macapá
Subúrbio de 15.000 42 357
São Benedito
Macapá
Subúrbio de 15.000 17 882
Nossa Senhora de Fátima
Macapá
Centro de 10.000 13 769
Jesus de Nazaré
Macapá
Centro de 15.000 28 583
São José
Macapá
Fonte: MARITANO, José. Relatório Quinquenal de 1975-1979 da Prelazia de Macapá. Macapá:
Prelazia de Macapá, Mimeo, 1979, fls. 43-57.
Legendas: * Comunidade autônoma — Informação omitida na fonte
Área rural ou semi rural Área pouco urbanizada Área urbanizada

Percebemos, neste quadro, que as paróquias interioranas (com caracte-


rísticas predominantemente rurais28), excetuando-se a de Espírito Santo (no
município de Amapá), tinham as menores médias de habitantes por CEB. O
contrário observamos nas paróquias das áreas mais urbanizadas (incluindo
aquela situada em Serra do Navio, que era uma company town), onde o núme-
ro de comunidades era muito baixo em relação ao de habitantes. Nas zonas
suburbanas e periféricas, observamos um quadro mais heterogêneo. Em Ma-

28 Segundo o relatório da empresa H. J. Cole Associados, publicado em 1979, “falar de estrutura urba-
na do Território [Federal do Amapá] significa, praticamente, tecer considerações em torno de Macapá.
Os outros assentamentos são apenas núcleos artificiais pré-urbanos ou de equilíbrio” (H. J. COLE
ASSOCIADOS S.A. Brasil. Consultoria de planejamento urbano, arquitetura e turismo. Documento síntese,
Rio de Janeiro, 1979, p. 17).
28
capá, destacam-se, nos extremos, a Paróquia do Sagrado Coração de Jesus
(no bairro Buritizal), com média de habitantes por CEB relativamente baixa,
e a de Nossa Senhora de Fátima (no Santa Rita), com a média mais alta do
quadro.
Em 1974, D. José anotara que os padres responsáveis pela Paróquia
Nossa Senhora de Fátima tinham muitos compromissos em outras áreas (no
interior, em Fazendinha, no Buritizal, no Elesbão e na Escola de Agentes de
Pastoral), e que isso gerava o risco de fazerem dela um mero lugar de mo-
radia.29 A iniciativa e o apoio dos padres eram causas necessárias, ainda que
não suficientes, da germinação e consolidação de CEBs. Paradoxalmente, a
insuficiência de padres para assistir uma população em galopante crescimen-
to gerava o anseio de que as comunidades de base, lideradas por animadores
leigos, proliferassem mais rapidamente. Ou seja, a criação de novas CEBs
deveria atenuar o problema da falta de clérigos, mas a falta destes dificulta-
va que aquela criação ocorresse no ritmo desejado.30 Outro paradoxo é que
as CEBs, enquanto fomentadoras da sacramentalização, acabavam fazendo
crescer a procura pelos serviços clericais. Nas palavras de Maritano, “com a
proliferação das comunidades de base aumentou também o número de luga-
res e de pessoas que reclamam por uma presença mais frequente do padre, es-
pecialmente para celebrações eucarísticas”. Esse bispo acrescentou, em tom
de lamento: “meus padres vivem permanentemente estafados além de a faixa
etária dos mesmos encontrar-se em um nível perigosamente alto”.31
No Buritizal, por dois anos, o próprio bispo capitaneara os esforços no
sentido de formar e consolidar comunidades de base. Conforme destacamos
anteriormente, D. José auto identificava-se como um prelado vocacionado
ao contato direto com os socialmente mais vulneráveis e ao trabalho de vi-
vificação das comunidades. Por vezes, ele era bastante efusivo ao expressar
tal condição, como quando afirmou: “eu sempre fui um pouquinho doido
pelas comunidades e penso que uma das soluções, do ponto de vista social e
espiritual, seja a organização de pequenas comunidades”.32 Segundo o padre
29 MARITANO, J. Caderno de anotações da visita pastoral de 1974. Manuscrito, fl. 8 (verso). Diocese de
Macapá. Protocolo n. A 2 17.
30 A SITUAÇÃO do clero no Brasil. A Voz Católica. N. 444, de 27 de abril de 1968, p. 3
31 MARITANO, José. Relatório Quinquenal de 1975-1979 da Prelazia de Macapá. Macapá: Prelazia de
Macapá, Mimeo, 1979, fl. 59.
32 MARITANO, José. Sinto-me um missionário porque sou um enviado. In: PIGHIN, Cláudio; PIN-
29
Luís Carlini, que assumiu a condução da Paróquia Sagrado Coração de Jesus,
depois de Maritano, os núcleos comunitários aí existentes eram “pequenos
grupos de adultos que moravam próximos e se reuniam para estudar o ca-
tecismo que os filhos frequentavam”. As primeiras apostilas deste catecismo
haviam sido elaboradas pelo próprio bispo.33 Por outro lado, Walbi Pimentel
destaca que “no Buritizal pôde-se perceber um desenvolvimento das CEBs
entrelaçado à formação do próprio bairro”. Exemplificada nos mutirões or-
ganizados para abertura de ruas e construção de casas, a solidariedade de
vizinhança, cimentada pela animação eclesial, possibilitou o enfrentamento
das urgências da sobrevivência cotidiana nas fímbrias da cidade.34
Renovação da vida eclesial: um debate
O leigo deveria ser o protagonista das CEBs. Nas comunidades natu-
rais, alguns fiéis tornavam-se líderes e conduziam as atividades religiosas de
forma autônoma. Eram “donos de santos” (imagens consideradas milagro-
sas) e promoviam festas para homenagear tais santos. O clero esperava que as
comunidades de base pudessem garantir a formação de um laicato não afeito
a estas práticas do catolicismo popular, associadas ao fetichismo, à magia e à
degeneração moral.35 Por isso o trabalho de formação de agentes de pastoral
– os multiplicadores da “verdadeira” doutrina católica – era conduzido com
muito zelo pelos próprios padres. Estes agentes deveriam levar às bases o
aprendizado colhido em cursos de formação que poderiam durar semanas.36
Como destacamos anteriormente, em 1972, a formação de lideranças leigas
tornou-se formalmente prioridade das dioceses da Regional CNBB Norte
2. Na Prelazia de Macapá, a Escola de Agentes de Pastoral deveria ajudar a

TO, Jax Nildo A. (org.). O pastor Dom José Maritano. Belém: Salomão Laredo, 2001, p. 27.
33 CARLINI, Luís. Dom José confiava muito na oração junto a seu povo como apoio no serviço
pastoral. In: PIGHIN, Cláudio; PINTO, Jax Nildo A. (org.). Ibidem, p. 42.
34 PIMENTEL, Walbi. Op. cit., p. 139.
35 Em artigo publicado no jornal A Voz Católica, D. José afirmou: “Estes meses estão marcados por
uma porção de festas em honra dos santos e de Nossa Senhora. Toda vez que se trata de celebrar uma
festa de santo padroeiro ou de santa padroeira de uma localidade sempre surgem sérios problemas de
festa religiosa e de festa não religiosa. Todos nós sentimos que o problema não é fácil de resolver, por-
que para muitos é difícil compreender o sentido verdadeiro das festas dos santos” (MARITANO, José.
Às comunidades do interior. A Voz Católica. N. 586, de 21 de agosto de 1971, p. 4).
36 D. José destacou, em seu relatório quinquenal: “Estamos trabalhando na formação de leigos, com
vistas ao aparecimento de novas lideranças que, aos poucos e a partir do povo, criem novas formas de
manifestações religiosas” (MARITANO, José. Relatório Quinquenal de 1975-1979 da Prelazia de Macapá.
Op. cit., fl. 30).
30
incutir no leigo a consciência do seu papel na vida eclesial, para que ele não
ficasse dependente dos ditames emanados do clero.
Em 1968, o articulista do jornal A Voz Católica, citando o papa Paulo
VI, destacara que “cada leigo católico, cada filho fiel da Igreja pode e deve ser
operante na mesma”.37 Em meado da década de 1960, o Concílio Vaticano II
fizera veemente apelo para que os leigos começassem a ter uma participação
mais decisiva na vida da Igreja, ora substituindo, ora complementando a atua-
ção dos sacerdotes.38 Em entrevista concedida para A Voz Católica, no ano
de 1970, o secretário nacional do apostolado leigo, D. Lucas Moreira Neves,
destacou: “Está chegando, mais rapidamente do que pensamos, o momento
em que os leigos não poderão ficar inertes, passivos à espera de ordens e de
orientações da hierarquia, mas que com liberdade, com criatividade, ofereçam
sem constrangimento, o que de melhor possuam”.39 Os ecos do concílio,
portanto, impulsionavam um crescente movimento de valorização do laicato.
Para dar maior visibilidade ao projeto de uma vida eclesial mais partici-
pativa e menos hierarquizada, novas terminologias foram cunhadas e difundi-
das. A palavra “Igreja” não satisfazia tanto os progressistas, pois remetia a um
imaginário no qual o poder excessivo do clero eclipsava a atuação dos leigos.
O termo “Povo de Deus” passou a ser empregado numa perspectiva mais
horizontal, na qual fiel e padre reconheciam a importância um do outro para
o bem comum.40 Foram criados grandes encontros de animadores de CEBs:
os Congressos do Povo de Deus da Prelazia de Macapá. O primeiro con-
gresso, mencionado acima, ocorreu em 1969 e o segundo (e último) somente
dez anos depois. No documento que condensou as conclusões do segundo
congresso, lemos: “ainda dependemos muito dos padres: achamos que eles
devem fazer tudo. Não tomamos suficiente iniciativa naquilo que é nossa
tarefa. É bom que os padres continuem a incentivar sempre mais os leigos
neste campo”.41 Para dar forma à proposta de uma pastoral menos hierar-
quizada, foram criados órgãos deliberativos de composição mista em âmbito
paroquial e de prelazia. Por exemplo, em 1975 foi criado o Conselho Pastoral
37 MISSÃO do leigo na comunidade eclesial. A Voz Católica. N. 429, de 13 de janeiro de 1968, p. 5.
38 PEDROSA, Pe. Petronilo. A espiritualidade dos leigos. A Voz Católica. N. 365, de 22 de outubro
de 1966, p. 6.
39 Entrevista com D. Lucas. A Voz Católica. N. 539, de 21 de fevereiro de 1970, p. 5.
40 Entrevista concedida por Alessandro Gallazzi a Walbi Pimentel, e citada anteriormente.
41 Conclusões do Congresso. In: MARITANO, J. Chamados a ser povo. Macapá: Prelazia de Macapá,
1979, p. 26.
31
Diocesano com a função “de coordenar os planos paroquiais de pastoral, de
programar o plano pastoral diocesano e [de] realizar a avaliação do mesmo”.
Ele era composto por 30 sacerdotes, 17 religiosas e 72 leigos, todos atuando
“em plano de igualdade”.42
Não foi tímida a resistência de padres e leigos conservadores contra
esse movimento de renovação da vida eclesial. José Benevides, professor de
Latim e Língua Portuguesa no ensino secundário macapaense, além de ar-
ticulista dos jornais Novo Amapá e A Voz Católica, foi um dos mais aguerri-
dos críticos das reformas iniciadas pelo Concílio Vaticano II, e ampliadas na
América Latina pela assembleia episcopal de Medellín. Em 1969 – o ano do
I Congresso do Povo de Deus –, Benevides publicou o livro Progresso e pro-
gressismo, no qual criticava o que para ele era uma traição à verdadeira tradição
católica: “Esse progressismo indesejável desvirtuou também o conceito de
Igreja docente e Igreja discente, com a intromissão exagerada de leigos na
doutrinação cristã, os quais são quase ‘ministros’ de Cristo; esse progressismo
de Igreja ‘dialogante’, quando Cristo é, antes de tudo, doutrinante”.43 Ele rea-
firmava, desse modo, a pétrea autoridade clerical, que sustentava a concepção
hierarquizante de Igreja, convidando os leigos a se resignarem na sua posição
inferior e dependente.
Os debates entre defensores de diferentes concepções de vida eclesial
ocorriam numa arena onde a polifonia dos textos bíblicos e da tradição cristã
oferecia argumentos e contra argumentos. A mais bem elaborada resposta
aos ataques de Benevides foi dada por Rogério Alicino no livro Comunidade,
líder, paróquia, publicado em 1977. Nele, por exemplo, lemos: “Exige-se uma
revisão do ‘esquema hierárquico piramidal’. A autoridade seja considerada
mais como ‘serviço’ e o ministério seja desligado sempre mais da noção de
autoridade”. Alicino, padre do Pime, argumenta que “a visão comunitária do
povo de Deus” era uma genuína mudança de perspectiva, pois “afirmar que
a Igreja é a comunidade daqueles que crêem em Cristo, baseada na mesma

42 MARITANO, José. Relatório Quinquenal de 1975-1979 da Prelazia de Macapá. Op. cit., fl. 13.
43 BENEVIDES, José. Progresso e progressismo. Macapá: Artes Gráficas do Ginásio de Macapá, 1969, p.
35-36. Benevides polemizou vários aspectos das reformas da Igreja em curso nos anos 60 e 70 do sécu-
lo XX. No Relatório Quinquenal de 1975-1979 da Prelazia de Macapá, D. José Maritano afirma que “a
reforma litúrgica tem-se processado na Prelazia sem abalos e agitações, acompanhando as orientações
da Santa Sé e as determinações da CNBB. Apenas um professor de latim tem contestado a abolição
desta língua nas celebrações com circulares periódicas ao bispo e aos padres” (MARITANO, José.
Relatório Quinquenal de 1975-1979 da Prelazia de Macapá. Op. cit., fl. 27).
32
dignidade e responsabilidade dentro da vida da própria Igreja, significa aban-
donar um tipo de Igreja baseado unicamente na hierarquia”. O debate ecle-
siológico colocava os católicos em face de corajosas críticas contra um modo
de ser Igreja de longa duração, a que o autor de Comunidade, líder, paróquia
chamou “esquema hierárquico piramidal”.44
Tal estrutura piramidal não estava baseada apenas na distância entre
clero e leigos. Dentro do próprio laicato havia hierarquizações. Alicino afirma
que o movimento de apostolado leigo “é uma elite que atua para o povo”, di-
ferentemente da comunidade, onde “é o povo de um determinado lugar que
reflete, decide e atua em conjunto para resolver seus problemas”.45 Durante
suas visitas pastorais de 1974, Maritano pôde constatar várias resistências às
CEBs no seio do laicato. Na Paróquia Nossa Senhora da Conceição (Ma-
capá), ele se confrontou com a insatisfação das senhoras do Apostolado da
Oração46 em relação às comunidades de base. Elas entregaram ao bispo um
relatório polêmico, acusando o pároco local de delegar a outros movimentos
atividades desempenhadas até então exclusivamente pelo Apostolado. Na Pa-
róquia Nossa Senhora de Fátima (Macapá), o prelado reuniu-se com cerca de
cinquenta senhoras a quem insistiu “sobre a necessidade de cada movimento
ficar bem dentro do seu carisma próprio em função da comunidade”. Du-
rante sua estada na Paróquia Jesus de Nazaré, Maritano escreveu: “ainda tem
muito espírito ‘bairrista’ nos movimentos, principalmente no MFC [Movi-
mento Familiar Cristão], pois ele tem como primeira preocupação fortalecer
44 ALICINO, Rogério. Comunidade, líder, paróquia. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 29, 69. Lemos em A
Voz Católica de 13 janeiro de 1974: “Na comunidade de base o povo torna-se cada vez mais ‘sujeito’
e menos ‘objeto’ da pastoral. Assim, todo o povo de Deus (portanto os leigos também) deve assumir
a evangelização, a santificação (liturgia), o apostolado, a vida comunitária. Daí surge a pluralidade de
ministérios diversos. O padre deixa de ser aquela pessoa eminente, separada, centro exclusivo de toda a
responsabilidade e de toda a decisão na pastoral. Ele continua sendo líder, mas de maneira diversa. Ani-
mador de uma comunidade corresponsável, intérprete e expressão das aspirações da mesma, se impõe
pelas suas qualidades, pela dedicação, pela competência, tornando-se sinal de unidade (VOLTEMOS a
falar das Comunidades Eclesiais de Base. A Voz Católica. N. 639, de 13 de janeiro de 1974, p. 3).
45 ALICINO, Rogério. Op. cit., p. 67-68.
46 Trata-se de um movimento poderoso no contexto aqui analisado. Em Macapá, ele foi criado no ano
de 1912 e, ao longo de décadas, espalhou-se por todo o Amapá. Segundo o articulista do jornal A Voz
Católica, “o futuro historiador da Prelazia de Macapá deverá dedicar um longo e interessante capítulo
ao Apostolado da Oração”. O mesmo destaca: “particularmente de 1948 [ano da chegada dos padres
do Pime] para cá não houve bem que não fosse partilhado pelo Apostolado da Oração; não houve
iniciativa que não recebesse o apoio das zeladoras e associadas do Apostolado da Oração; não houve
tarefas, por pesada que fosse, que espantasse as velhotas do Apostolado como carinhosamente alguém
nos costuma chamar” (Apostolado da Oração: uma força em nossas paróquias. A Voz Católica. N. 627,
de 15 de julho de 1973, p. 17).
33
e aumentar o movimento”. E exortou os paroquianos dizendo: “a comunida-
de não é um novo movimento moderno para matar os outros movimentos”.47
Dentro do clero, as tensões ganharam grande intensidade durante os
congressos do povo de Deus. Gallazzi considera o segundo deles (que reuniu
representantes de 865 CEBs) um “divisor de águas”, momento em que os
posicionamentos antagônicos tornaram-se muito nítidos. Fiéis das paróquias
do centro urbano macapaense – São José e Jesus de Nazaré – chegaram a
ensaiar um boicote a esse encontro. Pároco da São Benedito, o padre José Bu-
sato liderava o grupo conservador (clericalista) que chegou a tentar impedir
que o documento com as conclusões do congresso fosse votado.48 Na carta
Chamados a ser povo, de 1979, Maritano insistia: “Torno a repetir no fim destas
reflexões, que o êxito do Congresso foi bom, tanto que o demônio tem ten-
tado e continua tentando neutralizá-lo criando divisões”.49 Em outro relato,
o bispo registrou todo o seu desapontamento: “Realizamos o congresso do
povo de Deus. Foi duro. Porque foi uma ocasião escolhida pelo Senhor para
fazer explodir o choque de ideias”. E em seguida: “Quem fez uma imagem
menos bonita fomos nós padres, que temos dado espetáculo de divisão e de
não saber se aceitar reciprocamente”.50
Um tema central do debate eclesial travado durante os anos aqui ana-
lisados é a relação entre Igreja e mundo. Alicino afirma que “sensível aos
problemas que em toda parte angustiam o homem, a Igreja não se considera
alheia, nem indiferente a seus entusiasmos e angústias”.51 Benevides, por ou-
tro lado, escreve em Progresso e progressismo: “O mundo está condenado ao eter-
no ‘choro e ranger de dentes’, ao passo que ‘a suprema sabedoria (para padres
47 MARITANO, J. Caderno de anotações da visita pastoral de 1974, fl. 4-29. Manuscrito. Diocese de Ma-
capá: Protocolo n. A 2 17. Em 1979, D. José Maritano destacou que várias associações laicas existentes
nas paróquias amapaenses viam-se como grupos de fiéis perfeitos e eram resistentes em relação à
formação de CEBs (Un vescovo in Amazzonia. Op. cit., p. 533). Antes da criação da Paróquia Nossa
Senhora de Fátima, já existiam movimentos atuando no bairro da Favela, entre os quais: Apostolado
da Oração, Marianos, Escoteiros Católicos, Cruzada Eucarística, Filhas de Maria e Juventude Operária
Católica (FAVELA: Nossa Senhora de Fátima. A Voz Católica. N. 627, de 15 de julho de 1973, p. 18a).
Na Paróquia Jesus de Nazaré, os movimentos eram os sustentáculos da formação social e espiritual
dos paroquianos (PARÓQUIA Jesus de Nazaré. A Voz Católica. N. 438, de 16 de março de 1968, p. 4).
48 Entrevista concedida por Alessandro Gallazzi a Walbi Pimentel...
49 MARITANO, José. Chamados a ser povo. Macapá: Prelazia de Macapá, 1979, p. 12.
50 MARITANO, José. A oração é o resultado de uma vida de doação ao Senhor através dos irmãos,
onde a mesma oração é fonte de inspiração. In: PIGHIN, Cláudio; PINTO, Jax Nildo A. (org.). Op.
cit., p. 14.
51 ALICINO, Rogério. Op. cit., p. 31.
34
e leigos) consiste em tender para o reino dos céus pelo desprezo do mundo’,
como nos ensina a Imitação de Cristo”.52 E no artigo “‘Vade retro’, falsos pro-
gressistas”, publicado no jornal Novo Amapá de 12 de abril de 1969, Benevi-
des repudia bispos “que criam movimentos políticos que perturbam a ordem
do país”, assim como “bispos e padres que falam em ‘pressões policiais’ e
criam desavenças com as nossas gloriosas Forças Armadas, negando-lhes o
direito e o dever de preservar a ordem pública e de instituições, ameaçadas
pelos fautores da anarquia”.53 Fica evidente que enquanto os clérigos pro-
gressistas (e até mesmo os moderados) tendiam a um crescente engajamento
na contestação da ditadura, o autor de Progresso e progressismo se alinhava à
defesa desse regime.
Nos anos finais da década de 1960, as fricções entre Igreja e classe
dirigente nacional tornaram-se mais frequentes e intensas. Em dezembro
de 1967, o articulista do jornal A Voz Católica destacava: “a opinião pública
brasileira está seguindo com particular interesse a tensão que se estabele-
ceu nas relações entre autoridades civis e religiosas, em algumas cidades do
país”.54 A própria Igreja virara alvo de perseguições e punições levadas a cabo pelos agentes
da ditadura, e se vira obrigada a defender o seu direito de dizer “esta diretiva política
é conforme o evangelho” ou “esta medida educacional ou administrativa [é] contrária à
doutrina de Cristo”.55 O controle social cada vez mais violento desafiava o clero
a assumir um posicionamento mais contundente no debate público sobre os
rumos do regime ditatorial. Reunidos em assembleia geral no mês de julho
de 1968, os bispos do Brasil sofreram pressões multilaterais. A Voz Católica
assim descreveu o que ocorria: “Há quem insista para que a Igreja tome uma
atitude de extrema intransigência com os responsáveis pela atual situação do
continente. Outros exigiriam que a Igreja pregue a submissão e a aceitação da
situação atual sem restrições”.56
Por outro lado, um número crescente de padres e bispos passou a cri-
ticar as políticas desenvolvimentistas do governo ditatorial. Antes da reunião
do Celam em Medellín, os clérigos em geral propalavam que a Igreja deveria

52 BENEVIDES, José. Op. cit., p. 65-66.


53 BENEVIDES, José. “Vade retro”, falsos progressistas! Novo Amapá. Nº 1522, 12 de abril de 1969,
p. 2.
54 EPISCOPADO rejeita acusações. A Voz Católica. N. 424, de 09 de dezembro de 1967, p. 1.
55 IGREJA perseguida e caluniada. A Voz Católica. N. 473, de 16 de novembro de 1968, p. 2.
56 ASSEMBLEIA da CNBB. A Voz Católica. N. 456, de 20 de julho de 1968, p. 1.
35
ser colaboradora dos governos nas ações que visavam o desenvolvimento
econômico.57 Na esteira da encíclica PopulorumProgressio (1967), foi reafirma-
da a fé no desenvolvimento integral do homem por meio do planejamento
socioeconômico e da colaboração entre capital e trabalho.58 Nesse sentido,
o secretário geral da CNBB, D. José Gonçalves da Costa, defendeu que os
bispos brasileiros deveriam exortar dirigentes e operários a que protegessem
e dinamizassem as empresas, “porque é da empresa que vive o patrão e da
empresa é que vivem os operários”.59 Ao longo das décadas de 1970 e 1980, é
possível perceber, sobretudo entre bispos e padres progressistas, o crescente
descrédito das políticas desenvolvimentistas. Estas passaram a ser reputadas
como causadoras da dependência econômica (dos países subdesenvolvidos
em relação aos desenvolvidos), do acirramento da exploração dos trabalha-
dores e da ampliação da degradação ambiental.60
O postulado de que mudanças profundas na estrutura social eram ur-
gentemente necessárias tornou-se cada vez mais corrente nos debates ecle-
siais. Nas suas “Orientações pastorais” de 1979, a Regional CNBB Norte
2 apontou para a necessidade de uma evangelização comprometida com a
transformação pessoal e social. Este documento ressalta que “em Medellín
começa um processo dinâmico de libertação integral” e também cita o do-
cumento de Puebla, que afirma: “A preocupação é para com o homem eter-

57 Ver: IGREJA e desenvolvimento. A Voz Católica. N. 367, de 05 de novembro de 1966, p. 6; DE-


SENVOLVIMENTO é o novo nome da paz. A Voz Católica. N. 390, de 15 de abril de 1967, p. 1; e
PLENO êxito do encontro dos bispos. A Voz Católica. N. 421, de 17 de novembro de 1967, p. 1.
58 DECLARAÇÃO da Conferência Episcopal da Regional Norte II. A Voz Católica. N. 422, de 25 de
novembro de 1967, p. 5.
59 COSTA, José Gonçalves da. Encíclica para o nosso desenvolvimento. A Voz Católica. N. 394, de 13
de maio de 1967, p. 4.
60 DESENVOLVIMENTO. A Voz Católica. N. 536, de 07 de fevereiro de 1970, p. 2. A coletânea His-
tória da Igreja na Amazônia, produzida no seio da Comissão de Estudos da História da Igreja na América
Latina (Cehila) durante os anos 80 do século XX, expressa essa guinada crítica em relação ao desen-
volvimentismo. Nesse livro, os autores fazem o balanço do extermínio das populações indígenas do
espaço amazônico à luz do Marxismo e da Teologia da Libertação. No texto de apresentação, Eduardo
Hoonaert destaca: “Estávamos sentindo que, em torno da Amazônia, ‘o cerco estava se fechando’, para
usar uma expressão de Jean Hébette. Queríamos fazer algo para situar essa atualidade num contexto
histórico, em termos de cristianismo. A ‘operação Amazônia’, iniciada em 1966 e apoiada plenamente
pelos governos militares, estava em pleno curso. Os grandes projetos como Jari, Carajás, Albrás-Alu-
norte, as hidroelétricas de Tucuruí, Balbina e Santa Isabel, as estradas Transamazônica, Cuibá-Santa-
rém, Perimetral Norte, estavam em fase de acelerada implantação, visando a ‘integração’ da Amazônia.
Integração no Brasil ou no capital internacional? As ‘vítimas do milagre’ começaram a aparecer: não
só as populações indígenas, mas também as próprias terras queimadas, sulcadas e tragadas na voragem
da sede do lucro rápido e fácil” (HOORNAERT, Eduardo (coord.). História da Igreja na Amazônia. Op.
cit., p. 9).
36
namente amado e escolhido por Deus, na sua realidade concreta e nas suas
situações de injustiça e opressão”. O documento descreve as várias situações
de opressão do homem da Amazônia, destacando angústias e desequilíbrios,
aumento exagerado do custo de vida, penúria dos salários, precária assistência
às populações, cessão de grandes posses de terra a empresas com consequen-
te expulsão “do povo que as trabalhava”. E aduz: “A Igreja da Amazônia, em
sua ação evangelizadora, tem consciência de que não pode nem deve alhear-
-se a esta situação do povo”.61
No II Congresso do Povo de Deus da Prelazia de Macapá, acabou pre-
valecendo o entendimento de que a Igreja deveria se comprometer cada vez
mais com os esforços de transformação das estruturas sociais, em benefício
dos pobres. “Ninguém que vive numa realidade pode dizer que nada tem a
ver com ela”, afirmou D. José na homilia da missa de abertura deste encon-
tro.62 As “Conclusões do Congresso” expõem claramente as inflexões que
foram ali ensaiadas:
Desde o começo de nosso país, fomos muito mais sacramenta-
lizados do que evangelizados e o que nós aprendemos foi que
as coisas eram divididas em materiais e espirituais, coisas do
corpo e coisas da alma, coisas do céu e coisas da terra e fomos
orientados a pensar que religião é ocupar-se das coisas espiri-
tuais, da alma e do céu. Criou-se uma grande divisão entre fé e
vida, pela qual ainda hoje somos influenciados. Não podemos
esquecer que a religião chegou a ser: educar as pessoas a aguen-
tar o sofrimento de hoje em vista do paraíso [...]. Achamos
que foi por bastante tempo esquecido o anúncio do Evangelho
como salvação integral do homem, também nos seus aspectos
econômicos, sociais e políticos.63

A salvação integral do homem, orientada pelo “ama o próximo como


a ti mesmo”, ganhava força em detrimento de uma visão estritamente espiri-
tualista, que era indiferente ao mundo secular. Entretanto, esta visão encon-
trou refúgio numa divisão eclesial do trabalho de redenção dos homens. De

61 REGIONAL CNBB NORTE 2. Brasil. Orientações pastorais. In: MARITANO, J. Chamados a ser
povo. Macapá: Prelazia de Macapá, 1979, p. 49-50.
62 MARITANO, J. Homilia da missa de abertura do II Congresso. In: ______. Chamados a ser povo.
Macapá: Prelazia de Macapá, 1979, p. 17.
63 Conclusões do Congresso. In: MARITANO, J. Chamados a ser povo. Macapá: Prelazia de Macapá,
1979, p. 27.
37
acordo com esta divisão, aos leigos caberia se ocupar do mundo, enquanto
que aos padres se reservava a vida fora dele. Assim, nas “Conclusões do
Congresso” lemos que “o campo específico da ação do leigo é o mundo”. O
leigo teria, conforme a orientação da assembleia do Celam de Puebla, a tarefa
de construir o Reino de Deus nas suas dimensões temporais, “com ênfase
especial [n]a atividade política, buscando e promovendo o bem comum, a
defesa do homem e seus direitos, a proteção dos mais fracos e necessitados;
a construção da paz, da liberdade e da justiça, a criação de estruturas sem-
pre mais justas e fraternas”. Segundo esse documento, no congresso, os pa-
dres renovaram seu compromisso com a evangelização e com a ministração
dos sacramentos, prometendo apoiar iniciativas populares de luta por direi-
tos “sem violência e de acordo com os critérios evangélicos”, entrosando-se
com os “marginalizados e [os] pobres”. Portanto, os sacerdotes seriam meros
apoiadores das ações laicas no mundo e, desse modo, não estariam direta-
mente envolvidos nas lutas sociais.64
Esse chamamento para que o leigo fosse o braço atuante da Igreja nas
searas seculares começou a se fortalecer antes mesmo das reformas da dé-
cada de 1960. Na primeira metade do século XX, a Ação Católica Brasileira
(ACB) já conclamava os leigos a se envolverem mais e mais nos projetos de
transformação social. Nos anos 40, a ACB iniciara uma guinada, saindo de
uma orientação focada na moral e na religião e passando a outra mais interes-
sada na militância político-social. Em meado do século XX, o Brasil vivia um
momento de forte urbanização, na esteira do êxodo rural, da industrialização
e da materialização de grandes projetos urbanísticos (nas capitais dos territó-
rios federais, criados em 1943, em Brasília e alhures). Baseando-se no método
do ver-julgar-agir, a Ação Católica, a Juventude Universitária Católica (JUC)
e a Juventude Operária Católica representavam o esforço de atualização de
uma Igreja na qual muitos padres e fiéis sentiam-se em descompasso com
relação a uma sociedade rapidamente revolvida pela modernização.65
Como o cristão deveria intervir no mundo? Essa questão motivava ou-
tro debate, pois muitos padres não aceitavam o casamento entre a soterio-
logia católica e a teoria marxista. Nas suas “Orientações pastorais”, a Regio-

64 Conclusões do Congresso. In: MARITANO, J. Chamados a ser povo. Op. cit., p. 36-38.
65 SERBIN, Kenneth. Op. cit., p. 159-161.
38
nal CNBB Norte 2 advertia que a opção preferencial pelos pobres implicava
numa “desvinculação de qualquer compromisso com o poder econômico e
com as estruturas injustas”.66 Mas a quais práticas este compromisso com os
pobres levaria? Existiam várias respostas. Por exemplo, Dom Antônio Fra-
goso, bispo de Crateús (Ceará), afirmava que a luta armada, se necessária,
poderia ser evangélica. Ele propugnou a formação de uma frente de campo-
neses e operários para pressionar o Estado ditatorial.67 Essa não era, porém,
uma resposta apreciada por muitos clérigos. A maioria se dividia entre a luta
pacífica (que se apropriava das sendas de liberdade gradualmente abertas à
contestação da ditadura) e a caridade expressa no cuidado dos necessitados e
na voluntária partilha dos bens.
Dom José Maritano afirmava que pobres e ricos sempre existiriam e
pregava a colaboração entre eles: “uma comunidade cristã, se é autêntica,
terá ricos e pobres (“os pobres estarão sempre convosco”, diz Jesus, Jo. 12,
8)”.68 Na sua primeira carta pastoral, ele exortava: “É vontade de Deus que,
nesse domínio da natureza criada, os indivíduos e os povos mais favorecidos
auxiliem em todas as formas aos menos favorecidos, de maneira a construir
o verdadeiro Povo de Deus, povo de irmãos sobre a Terra”. Ele pregava o
exercício da “caridade para com os irmãos mais necessitados”, os pobres, os
anciãos, os doentes e outros.69 Maritano é um exemplo de bispo que não se
encaixa em conceitos binários como “conservador” ou “progressista”. Ele
mesclava elementos de um e de outro, revelando-se um prelado híbrido e
muito aberto a negociações. Dom Vicente Zico destacou que “nas discussões
sobre a caminhada da Igreja Regional [D. José] preferia o diálogo a posicio-
namentos radicais”.70 Maritano afiançava que (assim como seus padres) se
mantinha na “mais completa neutralidade nas lutas políticas”.71 Ele procurou
zelar por uma boa relação com os militares que governaram o Amapá duran-
te seu episcopado, ao mesmo tempo em que tentou escudar movimentos de
66 REGIONAL CNBB NORTE 2. Brasil. Orientações pastorais. In: MARITANO, J. Chamados a ser
povo. Op. cit., p. 52.
67 SERBIN, Kenneth. Op. cit., p. 193-194.
68 Un vescovo in Amazzonia. Op. cit., p. 524.
69 MARITANO, José. Primeira carta pastoral. Macapá: Diocese de Macapá, 1966, p. 15.
70 ZICO, Vicente Joaquim. Linguagem simples e cheia de imagens, figuras e comparações ricas de
exemplos. In: PIGHIN, Cláudio; PINTO, Jax Nildo A. (org.). Op. cit., p. 14.
ALICINO, Rogério. Op. cit., p. 45.
71 MARITANO, José. Relatório Quinquenal de 1975-1979 da Prelazia de Macapá. Op. cit., fl. 63.
39
contestação não raramente nascidos no seio da Igreja local.
Por outro lado, o bispo da Prelazia de Macapá admitia que poucas eram
as pessoas ricas ou altos funcionários que participavam das CEBs.72 Segundo
ele, “no Amapá os ricos, os cultos, sentem menos a necessidade de uma vida
comunitária, não conseguem entrar no espírito de nossas comunidades”.73
Como destacamos anteriormente, as paróquias situadas nas áreas mais urba-
nizadas (e gentrificadas) de Macapá foram as que menos se mostraram férteis
em termos de formação de novas CEBs. Argumentamos que conservado-
rismo doutrinário e conservadorismo social alimentavam-se reciprocamen-
te. Aqueles por quem a Igreja progressista não fizera sua opção preferencial
identificavam-se mais com o “esquema hierárquico piramidal” e sentiam-se
mais atraídos pelos movimentos de apostolado laico, que também eram per-
cebidos como elite. Nossa argumentação conflui, portanto, para a inferência
de que os marcadores de classe conformavam posições no interior dos deba-
tes sobre a renovação da vida eclesial. Isso, porém, não deve ser visto como
uma determinação inexorável, mas como uma tendência geral.
No II Congresso do Povo de Deus, a visão que preponderou não foi a
de que a caridade é a mais perfeita forma de pôr em prática a opção preferen-
cial pelos pobres. Nas “Conclusões do Congresso”, encontramos a seguinte
afirmação: “Somos tentados de resolver os problemas dos mais necessitados
com esmola, assistencialismo e paternalismo e não com uma verdadeira luta
contra as injustiças”. E adiante: “Lutar por uma sociedade mais justa é a
maneira certa de amar pobres e ricos”. O entendimento da maioria dos con-
gressistas acerca da missão da Igreja no mundo era de que se impunha a ela
(enquanto Povo de Deus) a tarefa de conscientizar e organizar os trabalha-
dores em cooperativas, associações e sindicatos. Estas organizações sociais
tornariam possível aos oprimidos tomar as rédeas de sua própria libertação
social, pois “não são suficientes ajudas momentâneas e às vezes degradantes
que só servem para satisfazer nossas consciências [...]. Os problemas deles
[os trabalhadores] devem ser por eles e com eles solucionados, sem pensar
paternalisticamente que nós sabemos o que seja bom para eles”.74

72 Ibidem, p. 60.
73 Un vescovo in Amazzonia. Op. cit., p. 537-538.
74 Conclusões do Congresso. In: MARITANO, J. Chamados a ser povo. Macapá: Prelazia de Macapá,
1979, p. 23-46.
40
Na perspectiva dos progressistas, a opção preferencial pelos pobres
ocorria num momento histórico que era imperativo bem conhecer. A rea-
lidade vivida, uma vez conhecida, poderia ser objeto de avaliação, segundo
critérios evangélicos. Ver, julgar e, então, agir. A “Carta ao Povo de Deus”, da
Regional CNBB Norte 2, assinada em Belém, no dia 14 de setembro de 1979,
destacou que duas vozes chegavam a esta comissão episcopal. A primeira era
a do povo, que evidenciava uma piora da opressão sofrida: muitos campone-
ses tinham sido expulsos ou estavam sendo ameaçados de perder suas terras
por grileiros e pistoleiros que serviam a patrões e a grandes firmas; os salários
dos empregados continuavam minguando, enquanto a carestia crescia sem
freios; a vida nas periferias das cidades seguia sendo precarizada por falta
de moradias, água tratada, escolas, hospitais etc. Tudo isso ao passo que “os
grandes aumentam as suas terras, os seus lucros e o seu luxo” e a “a polícia
em alguns lugares age para calar o povo que começa a se organizar e começa
a protestar contra as injustiças”. A outra voz era o eco do que Deus dissera a
Moisés: “Eu vi a aflição do meu povo... Por causa dos seus opressores... Vai,
eu te envio, para tirar da escravidão o meu povo”.75 Era o chamado à ação
transformadora.
As inseguranças cotidianamente vividas pelos trabalhadores do Amapá
foram amplamente debatidas durante o II Congresso do Povo de Deus. As
“Conclusões do Congresso” destacam que a grande maioria dos que mora-
vam naquele território era formada por lavradores, pescadores e domésticas,
que se sentiam marginalizados dos bens econômicos, sociais e políticos, sen-
do que muitos, para sobreviver, se viam obrigados a aceitar “salários de fome
até abaixo do salário mínimo”. E denunciam:
Uma pequena minoria tem nas mãos, só para si, o que deveria
ser melhor distribuído entre todos: terra, riquezas, saúde e bem
estar [...]. Enquanto a alta sociedade tem acesso a tudo, sem
nenhuma dificuldade, nós estamos vendo crianças sem escola,
grandes filas às portas dos Institutos Previdências e Assisten-
ciais, velhos marginalizados porque não produzem mais [...].
Estamos conscientes que estes problemas tocam a própria dig-
nidade humana e não podem ser solucionados sem arrancar as
raízes destes mesmos males [...]. Em nosso próprio Território,
assim como no restante da Amazônia e do Brasil, estamos ven-

75 REGIONAL CNBB NORTE 2. Brasil. Carta ao Povo de Deus. In: MARITANO, J. Chamados a ser
povo. Macapá: Prelazia de Macapá, 1979, p. 56-58.
41
do a presença de grandes companhias que com capital estran-
geiro estão tomando conta de grande parte dessa nossa terra,
fazendo pesar os seus interesses na balança política às custas
dos pobres [...]. Temos a impressão de que estas companhias
mandam no país mais do que nós. Elas são muito favorecidas;
nós, pelo contrário, somos sufocados pela lei do mais forte.76

Fazia-se então um amplo diagnóstico que identificava processos de ex-


propriação e de exclusão como raízes da pobreza. Esse olhar interessado em
compreender os desafios enfrentados cotidianamente pelos trabalhadores era
já parte de um movimento de redefinição da relação entre Igreja e mundo
secular. De acordo com a visão progressista, instruída pelas vozes que vi-
nham tanto das leituras edificantes quanto dos “preferidos de Deus”, a Igreja
deveria mudar sua forma de interferir no mundo redefinindo, pari passu, a si
própria. Isso era rechaçado por reacionários e conservadores, que viam as
mudanças em curso como deturpação do dever ser eclesial. Em Progresso e
progressismo, Benevides, citando o Cardeal Suhard, afirma: “O grande perigo
da Igreja é o de querer adaptar-se; que ela resista a essa perpétua tentação!
Não é a ela que cabe adaptar a sua mensagem, mas às civilizações assimilá-la.
Que ela reforce, portanto, sua intransigência”.77 Em sentido oposto, Alicino,
no livro Comunidade, líder, paróquia, argumenta: “Na Igreja o que deve prevale-
cer e marcar a orientação e a autenticidade é o testemunho eficaz, ainda que
isto exija recolocar continuamente em discussão instituições e estruturas”. E
complementa: “O que outrora sustentava e ajudava o desenvolvimento da
missão, hoje pode ser inútil e, portanto, ter que ser abandonado”.78
A necessidade ou não de renovação da vida eclesial foi amplamente de-
batida. Em fevereiro de 1968, o articulista do jornal A Voz Católica argumen-
tava: “Não podemos viver indiferentes nessa época em que tudo evolui”.79

76 Conclusões do Congresso. In: MARITANO, J. Chamados a ser povo. Op. cit., p. 20-22. No Relatório
Quinquenal de 1975-1979 da Prelazia de Macapá, D. J. Maritano destacou: “A situação econômica [dos
habitantes do TFA] é muito precária: 50% da população tem uma renda per capta igual ou inferior a
480 cruzeiros (U$ 10,00), do restante 50%, apenas a metade desfruta de renda superior a 960 Cr$ (U$
20,00)”. E acrescenta: “É uma região subdesenvolvida, embora rica de recursos naturais: minérios,
madeiras e pescados. Explorados porém por umas poucas grandes empresas que importam de fora
técnicos e dirigentes, fica[ndo] para a gente da terra a parte de serventes e de braçais” (MARITANO,
José. Relatório Quinquenal de 1975-1979 da Prelazia de Macapá. Op. cit., fl. 7).
77 BENEVIDES, José. Progresso e progressismo. Op. cit., p. 27.
78 ALICINO, Rogério. Op. cit., p. 34.
79 A IMPORTÂNCIA da renovação catequética. A Voz Católica. N. 433, de 10 de fevereiro de 1968,
42
Não indiferente ao tempo, a Igreja na América Latina passou a sofrer fortes
investidas romanizadoras desde meados da década de 1980. As CEBs então
deixaram de ser uma prioridade pastoral, perdendo visibilidade em benefício
de movimentos mais espiritualistas, como o dos carismáticos. Além do
fortalecimento dos clérigos conservadores, ocorrido durante o papado de João
Paulo II, é necessário destacar como fator importante desse processo a crise
do socialismo real. Certamente estas mudanças não levaram ao fim das CEBs
como chegou a ser vaticinado. Por outro lado, em Macapá, a gentrificação
de áreas suburbanas (e até mesmo periféricas) tornou evanescentes aquelas
características das comunidades naturais (confiança recíproca, convivialidade
e solidariedade) que, ao lado da animação religiosa, sustentavam as CEBs
pioneiras.80
Palavras finais
O percurso que fizemos nos permite inferir que, na Prelazia de Ma-
capá, os ensaios de renovação da vida eclesial foram objeto de forte contenda.
Posições divergentes, cujas nuanças por vezes escapam ao binarismo conser-
vadores versus progressistas, foram analisadas e evidenciam que a Igreja não
é indiferente ao mundo e suas mudanças, nem essencialmente vocacionada a
ser uma força de manutenção do status quo. A dialética interna foi tecida por
conflitos e negociações e influenciada pela estrutura e dinâmica do mundo
social no qual o campo religioso estava inserido. O acirramento dos proces-
sos de exclusão e exploração no espaço amazônico colocaram em xeque as
teses desenvolvimentistas e motivaram o empenho capitaneado por bispos e
padres progressistas de formular e seguir uma agenda de contestações.
Os marcadores sociais concorreram para a moldagem das posições na
seara eclesial. Leigos de classes média e alta, moradores das áreas mais urba-
nizadas de Macapá, via de regra, não se identificaram com a “opção preferen-
cial pelos pobres”, com as transformações da organização da vida eclesial a
partir da formação de CEBs e com a crítica social instruída por pressupostos
do Marxismo. Padres insatisfeitos com o modelo romanizador de sacerdote
p. 6. Ver também: MANNARICH, Mario. Êsses profetas de desgraças. A Voz Católica. N. 468, de 12 de
outubro de 1968, p. 2; e NÃO CONCORDAMOS com a desconfiança dos que combatem a renova-
ção. A Voz Católica. N. 27 de setembro de 1969, p. 1.
80 Sobre os processos de gentrificação, ver: MENDES, Luís Felipe Gonçalves. As novas fronteiras da
gentrificação na teoria urbana crítica. Cidades. Vol 12, n. 20, 2015, p. 207-253.
43
ampliaram o debate em torno do modo certo de ser Igreja. A Eclesiologia
conservadora viu-se contestada em vários flancos. A rígida estrutura hierár-
quica não era mais apresentada apenas como a expressão de uma tradição que
remontava a Cristo, mas também como um equivocado desvio de caminho.
A démarche de fomento do protagonismo do laicato muito concorreu para a
formação da consciência de um novo jeito de ser Igreja, o Povo de Deus.
Ademais, as CEBs deixaram um legado que não se esgota no plano
eclesial. No campo político, muitos agentes de pastoral tornaram-se lideran-
ças de esquerda. As comunidades de base, assim como as pastorais sociais,
foram o ponto de partida para a formação de vários sindicatos e associações
– entidades que, num contexto de ditadura, possibilitaram o agenciamento
de lutas de trabalhadores rurais e urbanos contra as várias inseguranças en-
frentadas no quotidiano. Esse legado transcende, no entanto, a formação de
líderes e de organismos de classe, pois as CEBs foram a sementeira de uma
estrutura de sensibilidade, uma nova forma de perceber a realidade social:
menos fatalista, menos mistificada, mais politizadora e, portanto, socialmente
mais mobilizadora.

44

Você também pode gostar