Você está na página 1de 30

Missões científicas, imperialismo e política externa nas fronteiras com as Guianas.

Carlo Romani

Introdução1

Neste texto buscamos apresentar de forma comparativa algumas das questões relativas às
demarcações de limites nacionais nas disputas fronteiriças ocorridas na área das Guianas,
entre o Brasil, a França e o Reino Unido, durante a época imperialista iniciada na segunda
metade do século XIX. Trataremos dos diferentes sentidos dados às missões de exploração
científica que percorreram essa região amazônica, tanto para o entendimento das questões
diplomáticas nas áreas de fronteiras, quanto para compreender os aspectos econômicos e
sociais envolvidos diretamente nelas. Diversas missões reclamando para si um caráter
eminentemente científico dirigiram-se para as áreas interiores das Guianas, principalmente a
partir da década de 1830, até a conclusão de ambos os litígios internacionais (1900:
demarcação de limites com a Guiana Francesa; 1904: de limites com a Guiana Britânica).
Esse recorte espacial e temporal é o resultado de uma investigação em curso cujo objetivo é
compreender melhor as relações que se estabeleceram entre as estratégias de política externa
de alguns Estados nacionais com a Ciência, neste caso a Geografia, desempenhando um papel
de saber legitimador na reconfiguração do mundo contemporâneo ao final dos Oitocentos2.
Neste estudo específico na área de fronteira brasileira com as Guianas, onde se confrontaram
os dois imperialismos neocoloniais europeus e o Império expansionista brasileiro, buscou-se
compreender de que modo ocorreu esse entrelaçamento entre saber e poder, a partir da
contribuição analítica sobre a Geografia, enquanto disciplina instituidora de um determinado
discurso sobre o espaço, trazida por Michel Foucault (1979, p. 153-165). As missões de
exploração científica apresentaram-se como uma deliberada mistura entre a empresa científica

1 Este artigo é uma versão revista e ampliada da conferência apresentada no “Encontro Internacional História,
Fronteiras e Identidades”, realizado em outubro de 2012 na Universidade Federal do Pará – campus de Bragança.
Agradecemos a CAPES, que financiou a ida ao Encontro e também uma parte desta pesquisa com uma bolsa de
estágio pós-doutoral no Centre des Archives d’Outre-Mér, CAOM, na Universitè de Provence, Aix-en-Provence.

2 A pesquisa em curso esta sendo realizada junto ao Departamento de Pesquisa da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro e conta com a contribuição dos estagiários de Iniciação Científica (bolsistas
IC/UNIRIO), Carlos Eduardo Ramos Barbosa e Gabriel Vecchietti Salvaterra Dutra, no levantamento das fontes
documentais da Série “Limites com a Guiana Britânica”, do Arquivo Histórico do Itamaraty, AHI, no Rio de
Janeiro.
e a empresa econômica atendendo aos interesses políticos dos Estados nacionais. Situam-se na
gênese da constituição do nosso moderno sistema de governança que cada vez mais entrelaça
os interesses de Estado aos do Capital, interesses verificados por um conjunto de expertises,
legitimadas como sendo a Ciência e referendadas oficialmente com a anuência do Direito.
O estudo dessas estratégias de exploração praticadas numa região de limites controversos, e
na época ainda juridicamente não demarcados, assume uma especificidade bastante particular
quando se tratam de áreas litigiosas neutralizadas, onde nenhum Estado nacional pôde exercer
legalmente o monopólio da violência coercitiva contra as populações locais (os indígenas, os
ribeirinhos, e os pequenos camponeses). A neutralização da área em disputa consistiu no
aceite bilateral entre duas nações conflitantes de que essa área não seria ocupada por nenhuma
delas até a solução jurídica definitiva do conflito. Os países litigantes propõem-se, a partir
disso, a estabelecer um acordo de divisão e controle mútuo sobre o território, mas sem o
exercício do direito de soberania. Esse instrumento diplomático foi aplicado à região litigiosa
de Pirara, entre Reino Unido e Brasil, desde setembro de 1842, e à região do Território
Contestado do Amapá, entre França e Brasil, desde 1841, até a conclusão final dos conflitos.

Visões histórico-geográficas sobre as Guianas

Figura 1. Mapa Terra Firma, Nuevo Reino de Granada, Audiencias de Panamá, Santa Fe, Venezuela y Guayana.
Detalhe do mapa de Guilielmou de Isle, século XVII.
Fonte: Mapoteca 4, X -65, Archivo General de la Nación, Bogotá. In Credencial Historia, n. 32, Bogotá, 1992.
Guianas é o nome atual pelo qual foram denominadas pelos colonizadores europeus da
América do Sul todas as terras costeiras compreendidas entre os deltas dos rios Orenoco e
Amazonas, incluindo seus interiores até as terras altas nos platôs de mais difícil acesso. Ao
longo de quatro séculos de conquista tivemos as repartições desse amplo território em
diversos setores: Guiana Espanhola, Inglesa, Holandesa, Francesa, Portuguesa (depois
Brasileira), seguindo a faixa costeira do Atlântico em direção ao leste e ao sul. No presente,
uma parte da antiga área das Guianas reclamada pela Espanha, a sudeste do rio Orenoco,
permanece integrada à Venezuela como região Guayana; a antiga porção britânica tornou-se
independente em 1966, com o nome de Guiana; a holandesa com o nome de Suriname, em
1975; a francesa foi incorporada à França como departamento ultramarino da Guiana
Francesa em 1946; e a brasileira, desde 1900, compõem a parte setentrional daquele que é
atualmente o Estado do Amapá. Ainda permanece em litígio uma extensa área a oeste do rio
Essequibo, sob soberania da atual Guiana e reclamada pela Venezuela, e uma pequena área
fronteiriça também entre a Guiana e o Suriname, denominada de New River.
Segundo o antropólogo Lee Drummond, o nome se originaria de uma corruptela da palavra
guayana, ou winna na antiga língua Carib, que significaria terras com muita água
(DRUMMOND, 1977, p. 77; WHITEHEAD, 1988, p. 200). Os pântanos e as terras
alagadiças correspondem de fato a uma boa parte de toda essa extensa região e as primeiras
referências cartográficas a isso remontam ao ano de 1568 no mapa Portulan, do espanhol
Fernando Vaz Dourado. Desde então, seja na busca pela cidade de Manoa, aquela do
imaginário Eldorado dos espanhóis, às margens do também mítico lago de Parima, descrito
nos mapas de De Bry e Hulsius (em 1599), Gerritsz (em 1625), Hondius (em 1635), Sanson
D’Abeville (em 1734), entre outros (ALÉS & POUYLLAU, 1992), seja na busca mais
objetiva pelo sistema hidráulico (de cheias e vazantes nos planaltos) que permitiria a
comunicação aquática entre a bacia do Orenoco e a do Amazonas, empreendida no século
XIX por Humboldt (em 1819), Alexander (em 1832), Schomburgk (em 1835) e Van Heuvel
(em 1844) (BURNETT, 2000, p. 25-66), o tema da água é recorrente desde a antiga literatura
de viagem imortalizada com a célebre expedição de Walter Ralegh, em 1595, e a publicação
de Discoverie of the Large Richie and Bewtiful Empire of Guiana, e persiste mesmo nos
relatórios posteriores das modernas expedições científicas empreendidas no século XIX3.

3 Na língua portuguesa o nome do viajante inglês costuma ser escrito como Raleigh, mas seguimos a grafia
utilizada pelo seu biógrafo Christopher Armitage (1987) e presente na edição inglesa de seu livro impresso pela
Universidade de Manchester (RALEGH, 1997).
A água, o ouro, os diamantes, foram elementos centrais dessa mitologia instituída em torno do
antigo Eldorado, mas não somente a de suas riquezas naturais. As mesmas visões míticas que
compuseram as lendas históricas sobre as Guianas e moveram o interesse, por diferentes
motivos, de exploradores europeus em direção a elas até meados do século XIX (BURNETT,
2000, p. 33-6) ajudaram a conceber, também, um imaginário bastante particular sobre seus
ameríndios nativos, os povos Arawak e Carib. Em particular sobre os Carib, cuja associação
direta do nome dessa população à prática do canibalismo se manteve mesmo após sua
extinção e, em certa medida, justificou-a. Na exibição internacional sobre a Guiana realizada
em Wembley, no ano de 1924, o texto introdutório distribuído aos investidores ainda
descrevia-os como “noted cannibals and fighting men, and did not hesitate to raid the
European settlements in the West Indian Islands in search of their favourite food - human
flesh” (BRITISH GUIANA, 1924, p. 6): ou seja, duplamente selvagens: temidos e
deploráveis.
Imaginários à parte, esses mesmos outrora vorazes comedores da fresca carne humana,
combatidos sistematicamente nas áreas costeiras por holandeses, ingleses e franceses, e
escravizados por espanhóis e portugueses através da política de aldeamentos nas áreas
interioranas, contudo, foram muito mais presentes como aliados desses mesmos europeus do
que quer fazer crer a exótica exposição imperialista. Como afirma Whitehead, no decorrer do
século XVIII houve um contínuo incremento da importância desse grupo indígena para as
autoridades francesa e holandesa na costa das Guianas, tanto como caçadores de escravos
fujões, como forças policiais contra o gentio bravio do interior e, de acordo também com a
pesquisa desenvolvida por Nádia Farage (1991), quanto ao papel militar por eles
desempenhado na colonização do Rio Branco como batedores e rastreadores para tropas de
portugueses e de espanhóis (WHITEHEAD, 1990, p. 366).
Esses escravos fugidos das plantations açucareiras que se estendiam por toda faixa litorânea
desde o Demerara (Georgetown) até Caiena, vieram de diferentes áreas da África ocidental
entre o fim do século XVII e o XVIII. Muitos conseguiram escapar de sua condição cativa nas
plantações costeiras de cana, controladas e exploradas pelos dutches, os colonizadores
holandeses. Fugiram e embrenharam-se na floresta tropical ainda inexplorada vivendo às
margens dos grandes rios Saramacca, Suriname e Maroni. Daí o apelido de bush negroes, ou
negros das matas, com que ficaram especialmente conhecidos os escravos fugitivos nas
Guianas. Genericamente são chamados de marrons todos os negros que escaparam da
escravidão no Novo Mundo. Este termo deriva do espanhol cimarrones, em alusão aos
animais que uma vez domesticados retornaram à condição de selvagens 4. Saramaka, Aluku,
Matawai, Djuka, Paramaka e Kwinti, são as nações que se formaram ao longo desse período
inicial e durante a sucessiva guerrilha de resistência contra as tropas reais holandesas enviadas
para derrotar os negros fugitivos. Mais de cinqüenta anos guerrearam estas populações contra
as forças regulares das colônias resistindo à dominação, até conseguirem assinar, na década de
1760, um primeiro tratado de paz com o governo colonial holandês. Durante o início do
século XIX, garantiram o direito de serem nações autônomas, comandando um vasto território
interior que se estendia selva adentro a partir de uma linha afastada mais ou menos cinqüenta
quilômetros da atual costa do Suriname e parte da Guiana Francesa (PRICE, 1983).
Com seu exemplo, incentivaram os escravos da costa a fugirem. Fato que somado à
independência do Haiti em 1804, está na base do surgimento de uma série de revoltas de
escravos nas áreas produtoras de açúcar, entre elas, a mais famosa, a de 1823, liderada por
John Smith no Demerara inglês (COSTA, 1998). Em grande medida, as revoltas de escravos
foram derrotadas com a ajuda de índios guerreiros e também os bush negroes somente foram
mantidos à distância da faixa costeira, graças à contratação de índios “caçadores de homens”,
ou seja, daqueles mesmos antigos canibais, cujo conhecimento do território foi fundamental
para a sobrevivência econômica da empresa açucareira até firmarem-se os acordos de
pacificação.
Os conflitos não acabaram com as políticas de pacificação forçada. Com a descoberta do ouro
nas cabeceiras dos rios Maroni e Approuague, nos planaltos dos atuais Suriname e Guiana
Francesa, na segunda metade do século XIX, um novo ciclo econômico atraiu exploradores,
empreendedores e aventureiros em geral para essa região, desestabilizando-a novamente.
Reiniciaram-se os conflitos com as tribos afro-americanas, particularmente do lado francês
das Guianas, onde os Saramaka, ou Bonis, como chamados pelos franceses, exímios
navegadores fluviais, controlavam a distribuição do ouro extraído em direção às áreas
costeiras, monopólio tido como contrabando pelo governo colonial francês e que levou a
diversos choques armados entre os negros e as forças militares tricolores em apoio aos
comerciantes regulares, inclusive no limite da linha de litígio fronteiriço com o Brasil ao
longo do rio Oiapoque (PETOT, 1986; EPAILLY, 2011). No caso brasileiro, a região das
Guianas, principalmente a francesa, onde a escravidão havia sido abolida em 1848, tornou-se
4 Segundo Michèle-Baj Strobel (1998, p. 27-8), “le terme de ‘Marron’, parfois remplacé par celui de
bushinengé, (du néerlandais bosnegers, qui devient en anglais bush negroes, nègres des bois), se applique donc
en Guyane aux populations originaires du Surinam, installées depuis plus de deux siècles le long du Maroni et
de ses affluents”. Para mais informações sobre o assunto, ver Marron Societies, a primeira obra de Richard Price
(1973); também. Melville J. Herskovits (1934); e o trabalho geral de Roger Bastide (1974).
caminho de fuga e liberdade para escravos fujões das fazendas paraenses (GOMES, 1999;
BEZERRA NETO, 2001). Além disso, desde a década anterior também era local de abrigo
para os perseguidos da Cabanagem5, revolução que causou milhares de vítimas entre os
extratos mestiços mais pobres da população amazônica (GOMES & QUEIROZ, 2002; RICCI,
2004).
Nessa nossa caminhada pelas Guianas, do antigo Eldorado a oeste chegaremos à ilha do
Diabo ao leste, uma das ilhas Salut, ou da Salvação, nome dado pelos sobreviventes da trágica
expedição francesa realizada em 1763 para promover a colonização da região de Kourou e
que resultou em aproximadamente 10.000 mortos acometidos pelas epidemias de malária,
febre amarela, e outras doenças tropicais (GODFROY-TAYART DE BORMS, 2009). Os
afortunados se salvaram ao buscar abrigo nessas ilhas oceânicas que um século depois não se
mostraram tolerantes com as vidas dos prisioneiros forçados franceses para lá desterrados,
considerados incorrigíveis, e que morreram sem nunca mais voltarem à sua terra natal. Nos
territórios sob controle colonial francês, como prêmio aos súditos revoltosos que destituíram a
antiga monarquia na Revolução de 1848, foi criada pelo ditador-imperador Napoleão III, a
partir de 1852, a instituição até então inexistente dos bagné (presídios) coloniais que perdurou
até a Segunda Guerra. Em resumo, uma dupla estratégia francesa para com os bagnards
(presidiários): excluí-los do convívio social na metrópole civilizada e ocupar a inóspita
colônia ultramarina, com os trabalhos forçados dos desterrados (PIERRE, 2000). O Estado
brasileiro não pode deixar de seguir o exemplo de sua nação favorita e, entre os anos de 1924
e 1927, também instituiu a sua própria colônia penal na selva em Clevelândia, às margens do
rio Oiapoque, numa atitude de represália à Revolução paulista de 1924, enviando os soldados
revoltosos, sindicalistas e anarquistas (ROMANI, 2011a; 2011b; SAMIS, 2002).
Por esse breve sobrevôo sobre as Guianas de índios canibais, cidades e riquezas imaginárias,
escravos fugitivos e guerreiros, cabanos revoltosos, exploradores engajados, febre de ouro e
prisioneiros forçados, percebe-se a riqueza de eventos ocorridos e personagens protagonistas
de uma história global, pode-se dizer, quase que uma contra-história construída à margem da
história oficial. Porém, todo esse conjunto de viagens, expedições, mapas, desenhos e
narrativas em forma de relatórios militares, científicos ou diplomáticos que nos permite
montar e remontar essas múltiplas histórias sobre as Guianas carregam consigo a marca da
lenda, de um fértil imaginário sobre um espaço do outro, sobre outro humano, “selvagem”,
5 Segundo Flávio Gomes, no final de outubro de 1846, o encarregado de negócios do Brasil na Venezuela
informou “que existiam na Província de Guyana mais de quinhentos brasileiros, sendo uns resto de emigrados ao
tempo dos Cabanos, outros criminosos, e desertores, e muitos fugitivos” (GOMES & QUEIROZ, 2002, p. 38).
muito diferente do ocidental e “civilizado” que o produziu. Essas fontes representativas das
concepções e vontades de conquistadores, colonizadores e empreendedores ocidentais
revelam, por outro lado, também as múltiplas formas assumidas durante essa conquista do
desconhecido. Uma conquista que se inicia, antes de tudo, com a necessidade de conhecer, e
de conhecer para dominar.
Não somente a guerra e a luta armada foram utilizadas como instrumento de conquista de
novos territórios. A estratégia de legitimação dos domínios territoriais através da cartografia e
da confecção de volumes, primeiro pelos viajantes e depois pelos exploradores, descrevendo
suas gentes e riquezas naturais, característica comum aos impérios coloniais até fins do século
XIX, já foi bastante estudada por uma historia da cartografia que nas últimas três décadas
dedicou-se a desconstruir seus significados tidos até então como representações objetivas da
realidade. Em grande medida, essa desconstrução foi influenciada pelo trabalho
desconcertante e inovador realizado por Edward Said ao perceber a produção de um tipo de
conhecimento imperialista sobre o outro. Primeiro com um olhar sobre o Oriente (SAID,
1978) e depois sobre todas as colônias (SAID, 1993), seguido pelo trabalho específico para o
Império Britânico de Mary Pratt (1999) e pela crítica contundente feita por Paul Carter (1996)
sobre essa forma de inventar o outro através de um saber pressuposto verdade e, assim, de
estabelecer um poder sobre ele. Ao desviar a reflexão sobre o imperialismo do campo da
economia para o da cultura, Said aproximou-se das reflexões pós-estruturalistas de Foucault e
Jacques Derrida, entendendo a linguagem como um instrumento de poder, sem desfazer-se,
contudo, de seus pressupostos marxistas provindos da leitura gramsciana. A questão do poder
pode ser vista como um exercício da hegemonia, entendida não somente em sua perspectiva
clássica da infraestrutura, mas também como um artefato da superestrutura ideológica.
Da crítica original de Said, foi um breve passo para que a mesma forma interpretativa
alcançasse o campo da Geografia e os estudos históricos sobre a produção cartográfica
colonial e imperialista. Quando descreveu as relações entre o mapa, a produção do
conhecimento e o poder, como um dos pilares da política imperialista britânica, Brian Harley
(1988) inaugurou uma nova leitura para um velho campo de saber. Um esquema interpretativo
de desconstrução de mapas que os mostrou não apenas como representações espaciais, mas
como representações instituidoras de uma vontade de domínio, de um conhecimento que
autoriza e legitima a tomada de posse de uma terra ignota por quem o produziu 6. Uma
produção que mais do que representar uma cultura diferente funcionou como um verdadeiro
discurso inventor do outro pelo Ocidente, tanto na descrição física do território quanto na
invenção desse outro humano. Produção de um saber que ainda continuou sendo usado
durante todo o século XIX, particularmente nas últimas décadas dele, quando o capitalismo
expandiu-se definitivamente de um modo intercontinental. Porém, aquelas explorações dos
antigos viajantes assumiram os contornos de missões científicas complexas e muito bem
aparelhadas. No caso da Geografia, além de prospectarem e descreverem as riquezas naturais
desconhecidas, ao promoverem uma revisão cartográfica fundada nos rigores da “neutralidade
científica”, então em voga naquela segunda metade do XIX, os novos exploradores
sustentaram a defesa militar do território conquistado, municiando as futuras e possíveis
investidas jurídicas da diplomacia.

Limites entre o Brasil e a Guiana Francesa

A mais antiga dessas duas áreas litigiosas envolvendo o Brasil, herdada desde os tempos da
ocupação portuguesa na Amazônia no chamado Cabo Norte (GOMES, 1999), conformou-se
em relação aos limites com o território ultramarino da França. Essa área neutralizada pelas
diplomacias dos dois Estados nacionais em 1841 e conhecida como Contestado franco-
brasileiro, mas também denominada de Guiana Brasileira, foi uma extensa região localizada
na porção centro-norte do atual Estado do Amapá (entre os rios Oiapoque e Araguari). As
linhas de limites reclamadas por ambos os países podem ser observadas no mapa a seguir.
A Comissão Mista franco-brasileira constituída para solucionar esse litígio de modo
diplomático, a partir da confecção de um conjunto documental de provas por ambas as partes,
somente se estabeleceu no ano de 1897, resultado do imprevisto conflito armado conhecido na
historiografia brasileira como “Massacre do Amapá” e negado como tal pela historiografia
francesa. Em maio de 1895, uma discórdia causada pela prisão do líder da vila de Cunani,
Benito Trajano, por uma força paramilitar brasileira chefiada pelo tenente Veiga Cabral, levou
à intervenção armada francesa na vila de Amapá, fato que provocou mais de 40 mortos entre
civis brasileiros e militares franceses (ROMANI, 2010). Somente um conflito dessas
6 Podemos citar ainda o artigo de Harley (1989) e em sequência o trabalho de Denis Wood (1992), para ficarmos
apenas com alguns dos geógrafos referenciais para a virada desconstrutivista sobre a cartografia. O estudo das
relações entre impérios, mapas e ciência moderna recebeu recentemente a excelente contribuição de Neil Safier
(2008), sobre a América do Sul, e da coletânea editada por Akerman (2009) com textos de autores relativos a
diferentes formas de práticas imperialistas e cartografia em todo o mundo.
proporções com a morte de um lieutenent francês (Lunier), capitão da missão militar francesa,
e a repercussão posterior na mídia internacional da destruição da vila habitada apenas por
civis, para obrigar diplomatas do Rio de Janeiro e de Paris a pôr solução ao histórico litígio.
Figura 2. Carte de la Regíon Guyanese. Anexo à 1ª. Memória do Barão do Rio Branco (01/04/1899).
Fonte: Mapoteca. Arquivo Histórico do Itamaraty, AHI, Rio de Janeiro.
A arbitragem final veio com uma decisão favorável ao Brasil, fato muito contestado pelos
habitantes franceses da Guiana e que traz dificuldades de integração regional até o presente
(GRANGER, 2011; MASTEAU, 1998)7. Esta área de fronteira, espaço fundamental para a
definição histórica do Estado brasileiro e para demarcar a presença francesa na Amazônia,
continua sendo um tema contemporâneo que faz parte ativa da realidade dos habitantes locais,
tendo em vista o estreitamento das relações entre o Estado do Amapá e a Guiana Francesa e as
tensões decorrentes do aumento nas últimas duas décadas do fluxo migratório de brasileiros
em direção ao departamento francês de ultramar, (GRANGER, 2011; LÉZY, 1998). Trata-se
de uma estratégia recente de aproximação acordada no âmbito das relações bilaterais entre
França e Brasil como forma de promover uma maior vigilância e controle sobre a área de
fronteira, especialmente sobre o contrabando de animais, espécies vegetais, armas e
entorpecentes e o trânsito ilegal de pessoas na forma estabelecida pelo direito internacional.
No caso do trânsito das gentes, se pensado em perspectiva histórica, denota um fluxo contínuo
de migrantes brasileiros para a Guiana Francesa, proveniente, principalmente, dos Estados do
Pará, Maranhão e do Ceará (SOARES, 1995).
A decisão internacional favorável ao Brasil em 1900 exprimiu um juízo de valor que para ser
emitido, por mais subjetivo que possa ter sido e até influenciado por pressões de norte-
americanos, ingleses e alemães restringindo o campo de atuação imperialista francês na
América do Sul, confrontou um conjunto de provas elaboradas, principalmente, pelas missões
científicas anteriores que estiveram naquele território em disputa. Quando Rio Branco e Vidal
de La Blache as apresentaram no tribunal em Berna, o que se disputava era o conhecimento
produzido por cada país sobre aquela região. Vidal de La Blache, o grande geógrafo francês
da época, apresentou ao júri da contenda internacional um conjunto impressionante de mapas
e documentos. Vários tomos denominados Le contesté franco-brésilien en Guyane que
comprovariam da forma metodológica mais precisa ser a localização da fronteira do Oiapoque
outra que não aquela atual: outro rio, o Araguari, mais ao sul, era o limite reclamado pela
França como sendo a sua divisa meridional, pois assim sendo lhe permitiria alcançar o rio
Amazonas. A questão posta pelos mapas e pela toponímia dos rios seria a de desvendar qual
efetivamente o rio alcançado por Vicente de Pinzón, se o rio Araguari (para franceses) ou o rio
Oiapoque (para brasileiros), marco histórico da divisão de terras na América Portuguesa
segundo o Tratado de Utrecht (ROMANI, 2008).

7 N. E. Ver neste volume o artigo de Stéphane Granger sobre as migrações na fronteira franco-brasileira.
Desde a assinatura do Tratado, em 1713, essa região recebeu pouca atenção, a não ser pela
viagem de Leblond ao Oiapoque (em 1788). Somente com o período napoleônico, a partir de
1797, o Império francês promoveu incursões costeiras por toda a zona litigiosa. Sob a
Restauração bourbônica, no ano de 1817 foi assinado o Tratado de Paris, acordo que
suspendia as demandas de reclamação dos Estados nacionais pela ocupação territorial. Fato
que, todavia, não impediu aos franceses de, bem antes de qualquer tentativa posterior
brasileira, empreender desde a primeira metade do século XIX missões científicas para a
região com o claro intuito de promoverem uma demarcação futura de limites, a começar com
a mal sucedida missão exploratória de Adam de Bauve e seus integrantes acometidos de
malária em 1830 (ROMANI, 2011c). Do ano de 1837, encontramos nas memórias do Baron
Walchenaer um mapa bastante preciso da geografia física e humana do que se tornaria a futura
8
vila de Amapá, apontando para o estabelecimento agrícola de três refugiados cabanos . Em
1847, Le Serrec De Kervilly, retornou de viagem pela costa e pelo interior da Guiana
Francesa, avançando sobre o território que havia sido declarado neutro pelo ajuste feito entre
os dois países em julho de 1841, de onde procedeu a amplas medições registradas em seu
9
relatório científico . E em 1851, foi o engenheiro Alfred de Saint-Quantain quem concluiu sua
10
pesquisa demarcatória na mesma região . Não esgotaremos aqui a lista de missões, pois
nosso objetivo é somente o de estabelecer um termo de comparação com a postura brasileira,
cuja primeira grande obra sobre a região data apenas de 1861. Escrita pelo diplomata Joaquim
Caetano da Silva (2010), cujas memórias foram amplamente utilizadas pelo Barão de Rio
Branco, não foi resultado de uma missão de exploração ao Oiapoque, terras que o autor nunca
pisou, mas sim da análise de um compêndio das obras de viajantes já existentes durante os
11
anos em que viveu na França . Somente em 1877 tivemos o envio de uma missão não militar

8 Memoire du Baron Walchenaer. Série Limites – Guiana Francesa. Lata 544, maço 4, Arquivo Histórico do
Itamaraty, AHI.

9 Delimitations de la Guyane Française, 1847. Série Limites – Guiana Francesa. Lata 544, maço 5, AHI.

10 Recherche sur la fixation des limites de la Guyane Française avec le Brésil, 1851. Série Limites – Guiana
Francesa. Lata 544, maço 6, AHI.

11 Ver o prefácio de Paulo Miceli, organizador da edição em português da obra de Caetano da Silva e que
evidencia a riqueza das informações cartográficas processadas pelo diplomata, sem nunca ter viajado ao lugar.
Concebe o poder do mapa e da cartografia como instituidores de uma verdade física sobre os lugares.
e oficial de reconhecimento da costa norte do Pará encabeçada por José Luiz da Gama e Silva,
que alcançou a baía do Oiapoque e aportou do lado francês em Montanha D’Argent, antigo
12
presídio colonial francês desativado .

Pouco antes do início da aventura imperialista francesa propriamente dita, no último quartel
do século XIX, um explorador pioneiro merece destaque: Jules Crevaux. O relato de sua
viagem e a fantasiosa reinvenção de um mito moderno encontra-se em Le mendiant de
l’Eldorado, de 1878. Para realizar seu percurso, contou com a ajuda de Apatou, um negro
Boni, nativo da Guiana. O outro grande explorador francês dessa região, Henri Coudreau, fez
parte de uma estirpe de geógrafos viajantes, profissionais a serviço dos interesses de
diferentes Estados (foi contratado tanto pelo França quanto pelo governo brasileiro). O seu
antecessor, Crevaux, como médico da Marinha viajava em missões de exploração científica de
caráter militar; na década de 1880, Coudreau veio inaugurar um novo modelo francês de
exploração territorial na América do Sul. Sob o governo do primeiro-ministro Jules Ferry,
incentivador das ciências e da expansão comercial da burguesia metropolitana, o jovem
geógrafo encontrou respaldo para uma missão de exploração das riquezas territoriais que se
tornou, ao mesmo tempo, uma missão política no sentido do interesse nacional e uma
empreitada comercial, pois inauguradora de uma nova era de exploração econômica no
Contestado. A relação que claramente começava a se estabelecer entre a ciência e o poder
nessa época de final do XIX foi a de uma deliberada mistura entre empresa científica e
empresa comercial, apesar de no aspecto discursivo ela buscar se apresentar, ainda, como uma
empresa de interesse meramente científico. Quando de seu encontro com o Visconde de
Maracajú, Presidente da Província do Pará, em 1883, encontro intermediado pelo vice-cônsul
francês em Belém, Coudreau apresentou-lhe claramente suas instruções somente sobre os
13
assuntos científicos e comerciais a serem tratados pela sua missão até o Amazonas . Não por
acaso, o primeiro pedido de apóio a uma missão comercial francesa ao Contestado se deu em
1884, ano tido pelo economista inglês John Hobson como marco do início do imperialismo
burguês da era contemporânea (ARENDT, 2006, p. 147).

12 Do Amazonas ao Oyapock. Relatório da Comissão ao Norte da Costa da Província do Pará. José Luiz da
Gama e Silva, 1877. Typographia do “Futuro”, Pará. Série Limites – Guiana Francesa. Lata 543, maço 9, AHI.

13 Correspondência Reservada 3897 de 14/11/1883 – Missão Coudreau. Série Limites – Guiana Francesa. Lata
543, maço 3, AHI.
De sua parte, o governo brasileiro, como que para mostrar que não havia abandonado
completamente seu interesse pela área em disputa montou uma expedição científica dirigida
por Luis Cruls, do Observatório Imperial do Rio de Janeiro, para observar um eclipse solar na
14
desembocadura do rio Oiapoque, fato que ocorreria em 16 de dezembro de 1889 . Este seria
apenas o início de uma investida científica brasileira mais incisiva, pelo menos no nível do
discurso, sobre a região do Amapá. O Império acabara, mas foi com a chegada da República
que podemos dizer houve o início de um verdadeiro imperialismo brasileiro. Renomeado para
Observatório Nacional ganhou incumbências técnicas cartográficas e topográficas durante o
início do período republicano para auxiliar os trabalhos de demarcação de fronteiras litigiosas
que renderam a ampliação do território nacional sobre o dos vizinhos Peru e Bolívia
(MORIZE, 1987).
Entre os anos de 1895 e 1897, durante o período de montagem da comissão mista franco-
brasileira, deram-se as últimas viagens empreendidas pelos técnicos brasileiros em
reconhecimento ao Território Contestado. Missões científicas menos burguesas, no sentido
moderno que ganha o termo e mais empresa militares de reconhecimento do território
nacional, como a chefiada pelo Major Engenheiro José Faustino da Silva. Seu relatório,
marcado pelo juízo de valor, identifica os franceses como usurpadores de um território que já
seria abrasileirado de fato, em contraste com a autoavaliação de neutralidade emanada das
fontes da comissão francesa, que diziam resguardar apenas os laudos técnicos necessários à
montagem das memórias de defesa jurídica15. As instruções reservadas enviadas de Belém à
comissão brasileira em 1897 demonstram também uma continuidade da estratégia imperial
brasileira em avançar com práticas de colonização militar sobre áreas litigiosas na
Amazônia16. Com a chegada da República o expansionismo brasileiro ganhou ainda mais
força. Tornou-se política de Estado com diplomatas como Joaquim Nabuco e Rio Branco à
frente da Realpolitik de defesa dos domínios territoriais, na avaliação de Vamireh Chacon
(2001, p. 401). A retórica da América para os americanos uniu Nabuco e Groover Cleveland,

14 Serie Geographique SG. Carton 45 E10 (32). CAOM. Com a proclamação da República, o nome do instituto
mudou para Observatório Nacional. Luiz Cruls era o diretor na ocasião. A documentação relativa às observações
de Luis Cruls encontra-se no Fundo Luis Cruls, Museu de Astronomia e Ciências Afins, MAST. Rio de Janeiro.

15 Carta de 28/12/1898 do Major Faustino Silva ao Ministro do Exterior, Olyntho Magalhães. Série Limites –
Guiana Francesa. Correspondência. Lata 463, maço 1, AHI.

16 Protocolo de 10/04/1897. Instruções reservadas. Comissão preparatória. Série Limites – Guiana Francesa.
Lata 463, maço 5, AHI.
presidente estadunidense que intercedeu favoravelmente ao Brasil nesse litígio com a França,
mas que não o repetiu, quatro anos após, com a Inglaterra (NABUCO, 2011).
As memórias da missão de exploração do rio Araguary produzidas em 1895 pelo engenheiro
militar Filinto Alcino Braga Cavalcanti são mais um claro exemplo da diferença entre as
relações de ciência e poder no Brasil daquelas engendradas pelo Estado francês 17. Neste
último, o uso dos empreendedores burgueses em missão de reconhecimento e exploração
comercial diferencia-se da estratégia brasileira, marcadamente estatal e militar. Ainda de
relevante interesse é o relatório do engenheiro militar Antônio Gonçalves Tocantins produzido
no início do ano de 1895, antes mesmo dos sucessos trágicos de maio na vila de Amapá 18. A
missão de levantamento e reconhecimento físico e humano da região serviria como uma prova
documental da ocupação histórica brasileira do Território Contestado para a missão posterior,
ao final desse mesmo ano, encabeçada pelo prestigiado naturalista Emílio Goeldi para
legitimar seu valor científico, já num momento de acirramento da disputa e de sua
transferência para o campo jurídico19. Goeldi retornou a Belém, convencido de que as grandes
riquezas naturais da região em disputa estariam na porção setentrional, até os limites do rio
Oiapoque, e antes de concluir seu relatório escreve ao Ministro do Exterior, Carlos de
Carvalho, explicando-lhe que “o norte do Contestado é tão bom, como o sul é ruim o litígio é
plenamente justificado e o Brasil deve cuidar de seus legítimos direitos20”.
Apesar da fragilidade das expedições brasileiras, ainda engatinhando em seus quesitos de
cientificidade, quase uns remanescentes das antigas tropas de interiorização, em contrapartida,
todo o aparato cartográfico de apoio levado pela missão diplomática francesa a Berna não foi
suficiente para o convencimento dos juízes em sua decisão final quanto ao domínio francês
daquelas terras. La Blache não conhecia as gentes que as habitavam, suas vontades, nem os
interesses que as moviam, “minimizou ou praticamente menosprezou a participação humana
na questão geográfica que tratou, incidindo no erro naturalista que tanto criticara em Ratzel”

17 Memorial Exploração do Rio Araguary e outros. Sr. Filinto Alcino Braga Cavalcanti. Rio de Janeiro
24/10/1895. Série Limites – Guiana Francesa. Lata 540, maço 1, AHI.

18 Carta do engenheiro Tocantins ao governador do Pará, Lauro Sodré, de 23/03/1895. Série Limites – Guiana
Francesa. Lata 542, maço 1, AHI.

19 Relatório de Emilio Goeldi a Lauro Sodré, 29/01/1896. Série Limites – Guiana Francesa. Lata 542, maço 3,
AHI.

20 Ofício reservado 21/11/1895. Fundo: Documentação Rio Branco, Parte III, Códice 340 – 2 – 13, AHI.
(OLIVEIRA, 1997, p. 80). Esse francês inovador da Geografia, contudo, ao fazer a defesa da
pátria, distanciou-se de seu próprio método empírico-dedutivo desenvolvido para combater a
geografia puramente física, ainda predominante naquele tempo, do alemão Friedrich Ratzel.
Retomou conceitos de uma produção de saber que ignorava o habitante nativo e substituiu a
ausência de conhecimento humano pela obra cartográfica, ou seja, pela sua representação.
Talvez, se Henri Coudreau não tivesse morrido um ano e meio antes na expedição que fazia
ao rio Trombetas, a história tivesse sido outra. Coudreau sim, não somente havia construído
sua carreira de geógrafo como empirista, grande explorador dos rios amazônicos, inclusive a
serviço inúmeras vezes do governo brasileiro, mas também havia habitado o lugar. Coudreau
declarava-se domiciliado em Cunani, onde mantinha uma propriedade e empreendimentos de
21
exploração mineral junto a sua esposa Octavie . Coudreau, em seus diversos trabalhos sobre
a Guiana Francesa e o Amapá, havia entrado em contato com as gentes da terra, envolvendo-
se inclusive, na controversa proclamação da República do Cunani independente, na fonte de
toda crise posterior envolvendo Trajano, Cabral e o conflito em Amapá (ROMANI, 2011;
QUEIRÓZ, 1999). Coube-lhe a primazia de ter realizado as primeiras medições sobre as
montanhas do Tumucumaque, que durante muitos anos serviram de referência aos limites
traçados nessa região entre França e Brasil, medições tidas como equivocadas por Jean
Hurault e refeitas na década de 1960 (HURAULT, 1973).
Por outro lado, a defesa do ponto de vista brasileiro, o convencimento que Rio Branco
transmitiu ao júri deveu-se à maneira como conseguiu muito bem descrever os costumes
locais, as relações dos nativos com a natureza e com as formas de poder existentes. Mais do
que isso, citou vários nomes, de pessoas e lugares, falou da importância do meio para a
sobrevivência das gentes e reativou antigos saberes locais, como se fossem conhecimentos já
incorporados e integrados à cultura brasileira como um todo. Não foi o suporte científico e
documental que sensibilizou os jurados em Berna, pois se disto depende-se a decisão, o
aparato evidenciado por La Blache seria invencível. O Barão, ao contrário, comoveu os
jurados por ter sido hábil o suficiente em mostrar um melhor relacionamento com o saber
local. Advogado astuto e flexível, mestre em retórica, já ganhara uma causa anterior contra a
Argentina. Rio Branco pesquisou o assunto durante dois anos, montou seus argumentos
baseados no livro de Joaquim Caetano e nos relatórios das últimas missões nem tão científicas
dos engenheiros-militares brasileiros. No tribunal internacional fugiu do caminho que levava

21 Para mais informações sobre a vida de Coudreau na América do Sul ver a biografia de Sébastien Benoit
(2000); Também o artigo de Eurípides Funes (2008).
à discussão cartográfica sobre a região, terreno pantanoso para enfrentar La Blache,
ingressando no mérito do povoamento anterior feito pelos portugueses, suas missões jesuíticas
e explorações militares. Percorreu o caminho das gentes da terra que o francês desconhecia. O
presidente suíço Walter Hauser, mediador da questão, após ouvir os argumentos do Barão
considerou aquelas terras mais brasileiras do que francesas e, à exceção da fronteira sul, deu
22
um parecer quase que completamente favorável ao reclamo do Brasil .

Limites entre o Brasil e a Guiana Britânica

O mapa a seguir de 1896, apresenta as linhas limítrofes reclamadas pelo Reino Unido em suas
querelas com a Venezuela e o Brasil, num momento em que se constituíam as comissões
binacionais para levar as contendas à arbitragem internacional. O caso dos limites com a
Venezuela teve a mediação de diplomatas dos Estados Unidos da América substituindo os
defensores venezuelanos no tribunal internacional em Paris. O resultado dessa arbitragem de
1899, totalmente favorável à Inglaterra, apesar de ter sido aceito pelo governo venezuelano,
nunca foi bem assimilado.

22 As memórias e os trabalhos históricos sobre a questão de limites entre o Brasil e a França podem ser
consultados na Biblioteca do Arquivo Histórico do Itamaraty no Rio de Janeiro.
Figura 3. Boundary lines of British Guiana.
Fonte: Scottisch Geographical Magazine, 1896, p. 88. Edinburgh Geographical Institute (domínio público).

A historiografia venezuelana sobre o assunto trata-o, no mínimo, como um caso de submissão


aos interesses estrangeiros (NÚÑEZ, 1962), ou como uma “evidente usurpação” imperialista,
nas palavras de Rafael Sureda Delgado (1980). A mesma ideia da cobiça imperialista europeia
encontra-se, por exemplo, na primeira geração de historiadores brasileiros a trabalhar
sistematicamente a Amazônia, a começar por Helio Viana (1948), passando por Arthur Cezar
Ferreira Reis (1982; 1947) e Silvio Meira (1989). Mas, embora problematizada pela nova
historiografia, a ideia da ocupação exótica das Guianas feita por europeus não latinos encontra
eco nos recentes trabalhos de Reginaldo Oliveira (2008) e José Mascarenhas Menck (2009),
adeptos de um modelo de história institucional do Estado, e assume claramente o discurso
anti-imperialista em Thiago Gehre e Alejandro Mendible Zurita (2011)23. Evidências de que,
para boa parte dos trabalhos, há ainda uma compreensão histórica sobre as fronteiras
exclusivamente a partir da lógica do estabelecimento do Estado nacional, com certo
menosprezo pelos interesses das populações locais, nativas ou não, geralmente pouco
aferradas a uma identidade nacional. Essa reflexão sobre os habitantes de áreas de fronteira
está bastante problematizada no campo da Antropologia, mas, no campo da História ainda
patina. À exceção de poucos historiadores, como os já citados Gomes, Queiroz, Bezerra Neto
e Funes, ou ainda na recente obra de Giovani José da Silva em relação às questões indígenas,
quase não encontramos referências sobre esse problema24.
O ponto de partida para o reclamo britânico em relação às fronteiras com o Brasil foram essas
linhas traçadas a sudoeste da Guiana por Schomburgk durante suas três expedições de 1835 a
1839. A autoridade que a cartografia desse geógrafo alemão impôs, somada à sua obra
naturalista descritiva extremamente rica, foi um dos motivos determinantes para o Reino
Unido passar a ter, desde então, maiores pretensões sobre uma região que, como havíamos
explanado anteriormente, fora objeto apenas de um imaginário muito fértil, mas frustrado
(BURNETT, 2000, p. 25-37). Contudo, como mostra o rico levantamento realizado por
Reginaldo Barbosa e Efrem Ferreira (1997), baseado em parte na obra histórica de Ponte
Ribeiro (1876), uma série de expedições científicas alcançou a área de Pirara nesse mesmo
século, precedendo as de Schomburgk. Citamos algumas: a do inglês Charles Waterton (em
1812), desde Demerara até o rio Branco; a do austríaco Johann Natterer (entre 1831/32) no
caminho inverso do rio Branco aos seus tributários Uraricoera e Tacutu. E uma série ainda
maior de exploradores o sucedeu: o zoólogo Wagner (entre 1847/48); o naturalista alemão
Gustav Wallis (em 1863) fez detalhados relatos dos habitantes de Tacutu; a expedição militar
demarcatória com a Venezuela do Barão de Parima (em 1882) que alcançou o extremo
nordeste de Roraima, no rio Maú; o já citado Henri Coudreau (em 1884) que esteve com os

23 N. E. Neste mesmo volume temos o artigo de Alejandro Mendible Zurita apresentando-nos ao explorador
venezuelano Michelana y Rojas, cuja obra publicada em 1867 já denunciava as pretensões imperialistas
britânicas e o expansionismo brasileiro sobre a região do Rio Negro.

24 N. E. Neste mesmo volume temos o artigo de Giovani José da Silva discutindo os problemas causados pelas
divisões nacionais de fronteiras nas áreas habitadas por povos indígenas.
índios Wapishana; o italiano Ermano Stradelli (em 1888) que fez um relatório completo sobre
a área. A esses, poderíamos ainda acrescentar uma série extensa de engenheiros-militares
brasileiros e de outros tantos pesquisadores britânicos que viajaram em visitas oficiais como
membros das comissões mistas montadas tanto para os problemas limítrofes entre o Brasil
com a Venezuela como aqueles com a Guiana Britânica. Porém, toda a controvérsia
historiográfica estabelecida sobre a centralidade de Pirara na questão limítrofe e a
legitimidade dessa representação cartográfica recai, apenas, nas costas de Schomburgk.
Burnett usa a expressão metalepsis para definir essa autoridade geográfica por ele construída
sobre a obra de seus antecessores, dirigindo a obra dos posteriores25.
Para entendermos melhor esse patamar de notoriedade e de credibilidade que alcançou
Schomburgk junto à Geografia e à História internacional, temos que retroceder até o século
XVIII, quando as viagens ao encontro do lago Parima ganharam novamente fôlego, embora
movidas pela busca de uma possível rota de comunicação entre as bacias dos rios Orenoco e
Amazonas. Na década de 1740, Nicholas Horstman, um médico e comerciante holandês
incumbido de investigar o interior da colônia holandesa, sem o saber, foi o primeiro a chegar
nessa localidade mítica descrita por ele como um pequeno lago, chamado Amucu pelos
nativos. Foi Alexander von Humboldt, ao pesquisar manuscritos em Paris, onde encontrou
essa descrição entregue por Horstman a La Condamine em 1743, cujo croqui foi publicado
posteriormente pelo viajante francês, quem percebeu uma possível relação entre o lago
Amucu e o Parima, mas também nunca esteve naquelas margens 26. Essa primazia coube a
Robert Schomburgk, transferido como comerciante para a América, primeiro para a Virginia e
depois para as Ilhas Virgens, onde se dedicou a mapear a região como diletante. Com esse
pequeno currículo, em 1835 foi comissionado a serviço da Royal Geographical Society para
empreender uma expedição de reconhecimento físico e astronômico ao interior da colônia sul-
americana, onde ganhou notoriedade. Mas, além da meta original, Schomburgk, inspirado
pela tradição exploratória de Humboldt, perseguiu a hipótese do mestre e “became the first
European to stand on the shores of Lake Amucu”, com consciência de qual era seu
significado, como escreveu o próprio Humboldt na introdução posterior que fez à obra do

25 Define metalepsis como termo clássico da retórica que descreve ciclos de prioridade e de posteridade sobre os
quais a obra da autoridade geográfica se constrói (BURNETT, 2000, p. 39).

26 Resumimos nesse parágrafo a reconstituição elaborada por Graham Burnett (2000, p. 30-6) com base na
consulta à obra de Humboldt, Personal Narratives. Também como referência auxiliar ao entendimento da
viagem de Horstman ao alto Essequibo, temos o artigo de Reginaldo Oliveira e Maria Magalhães (2008, p. 108-
10). Uma biografia de Schomburgk em língua espanhola foi feita por Pablo Ojer (1969).
jovem geógrafo (BURNETT, 2000, p. 36-37). Ou seja, realiza em 1836 o sonho do
imaginário, não somente dos conhecidos viajantes anteriores, mas de “milhares de
desconhecidos que perseguiram aquelas margens sem sucesso”. A notoriedade de
Schomburgk deriva nem tanto de sua capacidade exploratória para o Reino Unido, mas como
verifica a hipótese de Burnett, pelo fato de ter materializado a realização de uma lenda
simbólica do Novo Mundo, mesmo que, ao refazer sua rota original, tenha encerrado o mito
de Ralegh. Para os olhos do império, pouco importaria agora, ser o Eldorado cravejado ou não
de diamantes, mas sim o fato dessa lenda criada por um britânico permanecer em terras
britânicas.
A versão mais comumente aceita pela historiografia para a emergência do conflito limítrofe
em Pirara é a sucessão de eventos que levou a uma tropa britânica ocupar a vila indígena
Macuxi, que estaria dentro dos domínios brasileiros. O estudo de caso mais detalhado sobre a
questão de Pirara foi realizado por Peter Rivìere (1995) e é principalmente com base em sua
obra, referência também para os estudos de Menck (2009) e Burnett (2000a), que
apresentaremos o episódio. Em sua terceira expedição no ano de 1838, Schomburgk partiu de
Pirara em direção a Esmeralda na Venezuela, fechando a sua linha demarcatória. Em maio de
1838, dirigiu-se ao encontro de Schomburgk em Pirara, um pastor protestante interessado em
estabelecer uma missão junto aos índios Macuxis e Wapishanas. Pela documentação analisada
por Rivière, o missionário Youd estaria empenhado em monitorar as tropas de resgate
brasileiras, que partindo do forte São Joaquim, estabelecido no encontro do rio Uraricoera
com o Tacutu, subiam às cabeceiras deste último, no ponto de passagem para as nascentes do
rio Essequibo, para aprisioná-los27. A vila indígena de Pirara encontrava-se justamente nessa
intersecção, na zona limite de alcance das incursões das tropas brasileiras. A escravização de
índios era obra intolerável aos olhos dos protestantes, num momento em que a Inglaterra já se
punha a combater, inclusive, o tráfico negreiro de navios brasileiros em alto-mar. A notícia do
estabelecimento dessa missão religiosa somada à expedição de Schomburgk ao Pirara gerou
desconfiança no comandante geral do Alto Amazonas, Ambrósio Ayres, num momento em
que boa parte das tropas regulares estava em luta contra os cabanos 28. Mesmo assim,

27 Rivière consultou os arquivos da Church Missionary Society e os documentos da colônia inglesa no Public
Record Office, além dos arquivos da Royal Geographical Society, onde encontrou informações não existentes no
Arquivo do Itamaraty.

28 Assim como o espanhol Pedro de Valdíviafoi morto pelos índios Mapuche durante a conquista do sul do
Chile, às vezes, um comandante militar brasileiro também sucumbe ante a resistência indígena e popular.
Ambrósio Ayres foi morto em combate contra os índios Mura, durante a revolta da Cabanagem, em setembro de
1838 (MOREIRA NETO, 1988, p. 109 apud PEQUENO, 2006).
Ambrósio enviou seu irmão Pedro Ayres a São Joaquim para contatar Schomburgk e Youd,
que lá se encontravam em julho desse ano. Schomburgk hospedou-se em São Joaquim durante
a estação chuvosa e de lá partiu para sua missão científica até o rio Orenoco. Quando retornou
a Pirara, em maio de 1839, encontrou-a militarmente ocupada pelos brasileiros sob o comando
de Pedro Ayres. Em setembro desse ano, Schomburgk, já em Londres, comunicou o fato ao
governo britânico. Youd já havia abandonado Pirara, instalando-se na vila indígena de Urwa,
de onde também foi expulso no ano seguinte pelos brasileiros e quando chegou a Georgetown
relatou a perseguição sofrida pelos índios. Para o governador da Guiana, Henry Light, tratava-
se de uma invasão de território indígena que não pertenceria ao Brasil.
A partir desses fatos, o Ministério das Relações Exteriores britânico comunicou ao Rio de
Janeiro sua vontade de proceder à demarcação fronteiriça da região. O comando brasileiro do
Alto Amazonas fez uma contraproposta ao governo britânico: a de declarar a neutralidade da
área de Pirara até a solução do litígio. Porém, em dezembro de 1841 uma comissão
demarcatória britânica deixou Georgetown com destino Pirara seguida, um mês após, por uma
expedição militar. A notícia levou as tropas militares brasileiras a abandonarem Pirara que foi
ocupada pelas tropas britânicas. A comissão de limites britânica continuou construindo
marcos com base nas linhas definidas por Schomburgk, e apoiados pela força militar da
Coroa, mesmo quando, em maio de 1842, o acordo sobre a neutralização do território
avançava entre os dois governos. O fato foi amplamente contestado pelo governo do Grão-
Pará e pelo do Rio de Janeiro, mas recebeu a irônica resposta do governo britânico colonial de
que aguardavam havia vários meses a chegada de uma comissão demarcatória brasileira que
nunca apareceu e, assim concluíram-na sozinhos. Durante todo o ano de 1842, houve boatos
de uma provável reação militar brasileira à ocupação britânica de Pirara, fato nunca
concretizado, mas que manteve as tropas inglesas em estado de alerta permanente. Com a
ameaça de uma crise diplomática e militar se instalando a Coroa britânica decidiu em agosto
pela suspensão da ocupação e, em novembro desse ano, pela remoção dos marcos instalados.
Contudo, como relata Menck (2009, p. 145-63), somente no ano seguinte, Schomburgk
retornou a Pirara para desfazer as marcações. Durante todo o ano de 1843 houve a tentativa de
se instalar uma comissão mista anglo-brasileira sem resultados. Os ingleses levaram além da
ocupação militar um grande aparato tecnológico para a época que os tornava “mais bem
equipados do que os brasileiros e faziam questão de exibir isso, com estudada hospitalidade”
(Menck, 2009, p. 162). A primeira missão científica brasileira ao Pirara somente saiu de
Belém em julho de 1843 chefiada pelo engenheiro-militar (novamente a relação exército-
ciência) Frederico Carneiro de Campos, e mantida em condições precárias se comparadas à
missão inglesa29. O território permaneceu neutralizado por décadas e a solução final do litígio
somente voltará à baila ao final do século, quando uma nova reconfiguração geopolítica
mundial levaria velhas e novas potências imperialistas a resolverem suas últimas pendências
coloniais na América.
Ao contrário das monarquias ibéricas, o Reino Unido, por circunstâncias históricas
particulares, viveu sua grande aventura expansionista do século XVIII em diante,
praticamente coincidindo-a com o desenvolvimento científico e tecnológico, fundamento da
simultânea Revolução Industrial. Assim, mesmo comparativamente à França, as expedições
inglesas empreendidas a esta região da América do Sul, além de compartilharem o mesmo
gosto pela prospecção das riquezas naturais disponíveis, tiveram, também, uma característica
muito mais pragmática e objetiva, aquela de instituir uma linha demarcatória com
credibilidade científica, acima de qualquer contestação. Mais do que em qualquer outro
Estado nacional, como nos mostrou Said (1993), o Reino Unido, através de sua produção de
conhecimento inventou o outro e também inventou a si próprio, seus próprios limites, os
limites tidos como legítimos para sua expansão.
A fronteira norte do Brasil, particularmente aquela limítrofe com a atual Guiana, ainda tem
sido muito pouco estudada pela historiografia em relação ao período que envolve a segunda
metade do século XIX. De fato, os principais estudos contemporâneos sobre essa região de
fronteira couberam aos antropólogos, a partir da problemática das terras indígenas nas áreas
de fronteira, como os trabalhos de Paulo Santilli (1994) e de Stephen Baines (2004), e
também no estudo de caso mais aprofundado a tratar a questão limítrofe litigiosa de Pirara
(RIVIÈRE, 1995). Recentemente, rastreando suas pegadas e concordando em parte com a
hipótese de Rivière, ou seja, a de que teria havido um real motivo de ordem humanitária (a
escravização dos índios por militares brasileiros) para a emergência do litígio, tivemos
publicado o já citado trabalho de José Theodoro Menck (2009). Dissemos em parte, pois
Menck entende que o Reino Unido pode, assim, unir o necessário ao interessante, expandindo
seus limites até um ponto de contato entre as nascentes do rio Essequibo com os afluentes do
Amazonas. Divergindo destes, apresenta-se a hipótese de Burnett que viu em Schomburgk
mais do que um explorador ou um cientista moderno a serviço da Coroa, mas o interprete do

29 Série Limites – Guiana Britânica. Lata 465, maço 5, AHI.


sonho perseguido por milhares de homens anteriormente, o de alcançar o Eldorado. Não foi
Pirara o objeto do desejo britânico, mas o Eldorado.
A conclusão deste conflito chegou praticamente na mesma época daquele entre Brasil e
França, não porque a febre do ouro tenha antecipado a solução, mas pelo fato de que no início
do século XX os impérios em disputa resolveram diplomaticamente suas diferenças, antes de
elas evoluírem em outra direção. E o Brasil republicano já dispunha de uma importância
muito maior do que a Venezuela no cenário geopolítico, daí o tratamento diferente recebido
nas disputas com a França e agora com o Reino Unido, levada à arbitragem internacional em
Milão, em 1904. A defesa brasileira sobre os limites compreendendo a região de Pirara ficou a
cargo de Joaquim Nabuco, um admirador do mundo anglo-saxônico e da doutrina Monroe.
Acreditava ter ao seu lado o apoio norte-americano, como o Brasil já o tivera na questão do
Oiapoque. Contudo, não foi bem assim. Neste caso, os Estados Unidos, assim como já não
havia feito em relação ao litígio inglês com a Venezuela também não se comprometeram
contra seus velhos pais. A arbitragem do rei italiano Vittorio Emanuele III aceitou em parte a
tese britânica e seguiu a linha demarcatória proposta por Schomburgk que definira Pirara em
território inglês. Essa decisão permitiu o acesso britânico ao rio Tacutu e daí ao Amazonas.
A argumentação da defesa brasileira empreendida por Nabuco sustentou a hipótese de que o
fato de Schomburgk ter fincado a bandeira britânica nas nascentes do rio Essequibo, não
significaria que aquele território fosse britânico, mas que, ao fazê-lo ele atravessou um limite
que era historicamente brasileiro. Além do que, sendo Schomburgk apenas um explorador ele
não teria autoridade jurídica para reclamar territórios para um Estado nacional. O resultado da
arbitragem foi tido como uma derrota por Nabuco que seguindo a linha argumentativa
precedente da diplomacia brasileira procurou demonstrar o histórico da ocupação sobre a
região, antes até de a Guiana ter se tornado colônia britânica. Diferentemente do Amapá na
ocasião da arbitragem precedente, território historicamente habitado por uma população
cabocla de fala portuguesa, na região litigiosa com a Guiana os caboclos rancheiros
brasileiros nunca estiveram estabelecidos, tendo alcançado no limite uma pequena extensão
ao norte do antigo forte de São Joaquim (RIVIÈRE, 1972). A região de Pirara sempre fora
habitada por populações indígenas que, inclusive, lá encontraram refúgio da perseguição das
tropas portuguesas e depois das brasileiras. Portanto, diferentemente da legitimidade da
ocupação do Amapá realizada por escravos fujões, cabanos e outros ribeirinhos em busca de
uma terra para cultivar, no nordeste de Roraima seu povoamento histórico foi realizado pelas
populações indígenas que não tinham identidade brasileira. A penetração luso-brasileira nunca
conseguiu de fato povoar a região, portanto o argumento territorial carecia de legitimidade
histórica e não foi suficiente para sustentar a defesa brasileira em Milão. As terras em disputa
foram entendidas como sendo terra ignota.
Nessas condições o trabalho infatigável do expert na figura de Schomburgk e de seus
sucessores foi o fator decisivo para a definição extrema dos limites. Não sem a acusação
diplomática, amplamente sustentada pela primeira historiografia nacional sobre o caso,
apontando para o interesse político do governo italiano em favorecer o britânico em troca de
antigas e futuras retribuições.

Fechando a página...

As relações entre saber e poder engendradas durante as missões científicas realizadas no


século XIX nessa região norte amazônica, período de forte desenvolvimento do imperialismo
europeu (no caso do inglês e do francês) estendendo as práticas capitalistas de modo mais
intenso aos quatro continentes, ajudaram a remarcar esse espaço de fronteira interétnico e
cultural entre a Amazônia e o Caribe. Ao investigarmos os relatos provenientes das
explorações científicas, percebe-se que objetivos científicos e humanísticos geralmente
mascararam claros interesses comerciais para a burguesia, enquanto que aquelas com perfil
claramente militar basicamente reafirmaram o interesse relativo à soberania nacional sobre os
territórios. A população nativa surge apenas enquanto sujeito de uma defesa retórica contra a
escravidão, por exemplo, em Schomburgk, ou na defesa da ancestralidade brasilófona do
povoamento no Contestado. Mas ao determo-nos com mais calma nos textos dos relatórios
trocados entre exploradores e governantes, a riqueza natural do território em litígio é o que
prevalece como argumento para se levar adiante a luta, como lemos em Goeldi, ou em
Coudreau, que preferiria até criada uma colônia independente no Contestado para melhor se
apossar das riquezas dessa Amazônia do futuro. A população habitante não aparece na
cartografia apresentada em defesa dos limites, não existe enquanto Geografia física e quando
é descrita pela Geografia humana, o é de forma preconceituosa, diminutiva, relés mão-de-obra
brutalizada, quase um empecilho ao progresso da razão, da ciência, da exploração dos
recursos e da acumulação sem fim para satisfazer a riqueza de poucos em detrimento do
confinamento cada vez mais evidente de muitos.

Referências
AKERMAN, James B. (ed.), The Imperial Map. Cartography and the mastery of Empire.
Chicago: The University of Chicago Press, 2009.
ALÉS, Catherine & POUYLLAU, Michel. La conquete de l'inutile: les géographies
imaginaires de l'Eldorado. L'Homme. Paris: tomo 32, n. 122-124, p. 271-308, 1992.
ARMITAGE, Christopher. Sir Walter Ralegh: An annotated Bibliography. Chapel Hill:
University of North Carolina Press, 1987.
BAINES, Stephen G. A fronteira Brasil-Guiana e os povos indígenas. Revista de Estudos e
Pesquisas. Brasília: FUNAI, v.1, n. 1, p. 65-98, 2004.
BARBOSA, Reinaldo e FERREIRA, Efrem. Historiografia das expedições científicas e
exploratórias no Vale do Rio Branco. In Reinaldo Barbosa e J. G. Castellone (Eds.), Homem,
ambiente e ecologia no Estado de Roraima. Manaus: INPA, 1997.
BASTIDE, Roger. As Américas negras. São Paulo: EDUSP, 1974.
BENOIT, Sébastien. Henri Anatole Coudreau (1859-1899). Dernier explorateur français en
Amazonie. Paris: L’Harmattan, 2000.
BEZERRA NETO, José Maia. Ousados e insubordinados: protesto e fugas de escravos na
Província do Grão-Pará – 1840/1860. Topoi. Rio de Janeiro: n. 2, p. 73-112, 2001.
BRITISH EMPIRE EXHIBITION, WEMBLEY. British Guiana. Londres: Sanders Phillips &
Co. 1924.
BURNETT, D. GRAHAM. Masters of all they Surveyed: Explorations, Geography, and a
British Eldorado. Chicago: The University of Chicago Press, 2000 (a).
_____________. Exploration, performance, alliance: Robert Schomburgk in British Guiana,
Journal of Caribbean Studies, Vol. 15 (1&2), p. 11-37, 2000 (b).
CAETANO DA SILVA, Joaquim. O Oiapoque e o Amazonas: uma questão brasileira e
francesa. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2010.
CARTER, Paul. The Lie of the Land. Londres: Faber and Faber, 1996.
CHACON, Vamireh. Realismo e idealismo na política de Joaquim Nabuco. Ciência &
Trópico. Recife. 29, n.2, p.397-404, 2001.
COSTA, Emilia Viotti da. Coroas de Glória, Lágrimas de Sangue: A rebelião dos escravos de
Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
COUDREAU, Henri. Chez nos indiens: Quatre annes dans La Guyane Française (1887 –
1891). Paris: Hachette, 1893.
___________. Voyages atravers les Guyanes et l’Amazonie. La France Équinoxiále Vol. II.
Paris: Chalanel Ainé, 1887.
CREVAUX, Jules. Le mendiant de l’Eldorade: De Cayenne aux Andes (1887-1879). Paris:
Editións Phébus, 1879.
DRUMMOND, Lee. On Being Carib. In E. Basso (ed.), Carib-speaking Societies, p. 76-88.
Tucson: University of Arizona Press, 1977.
EPAILLY, Eugène. La société créole guyanaise en 150 années d’activitée aurifère (1855-
2007). « Découvertes aurifères, Néoformation, Émergences, Épuisement et Effacements ».
Tese de doutorado em História. Universitè de Provence (Aix-Marseille), 2011.
FARAGE, Nádia. As Muralhas dos Sertões. Os povos indígenas no Rio Branco e a
colonização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
FOUCAULT, Michel. Sobre a Geografia. In Microfísica do Poder, p. 153-65. Rio de Janeiro,
Graal, 1979.
FUNES, Eurípides. Os Coudreau e os mocambeiros do Baixo Amazonas. In Francisco R.
Ramos e Meize L. Lucas (org.), Tempo no plural. Fortaleza: UFC/Realce, 2008.
GODFROY-TAYART DE BORMS Marion. Kourou ou l'Ultime Combat de la Monarchie pour
une Amérique Française. Etude d'une entreprise coloniale au siècle des Lumières
1763-1781. Tese de doutorado em História e Civilização. EEHASS, 2009.
GOMES, Flávio (org.). Nas Terras do Cabo Norte. Belém: Governo do Estado do Pará, 1999.
GOMES, Flávio & QUEIRÓZ, Jonas. Amazônia, fronteiras e identidades: Reconfigurações
coloniais e pós-coloniais (Guianas – séculos XVIII-XIX). Lusotopie, 1, p. 25-49, 2002.
GRANGER, Stéphane. Guiana Francesa entre França e Brasil; da colonização à
continentalização. In Jadson Luis Porto & Eleneide Doff Sotta (org.), Reformatações
Fronteiriças no Platô das Guianas: (Re)territorialidades de cooperações em construções. Rio
de Janeiro: Publit, 2011.
HARLEY, J. Brian. Maps, knowledge, and power. In Denis Cosgrove & Stephen Daniels
(ed.), The Iconography of Landscape: Essays on the symbolic representations, design and use
of past environments. Nova Iorque; Cambridge University Press, 1988.
____________. Deconstructing the map. Cartographica, 26, n. 2, p. 1-20, 1989.
HERSKOVITS, Melville e F. S. Rebel destiny: among the Bush Negroes of Dutch Guiana.
Nova Iorque: McGraw-Hill, 1934.
HURAULT, Jean. Une chaine de montagnes imaginaires: les Tumuc-Humac. Revue française
de histoire d’Outre-Mer, n. 219, LX, 1973.
LÉZY, Emmanuel. France-Brésil: L’histoire d’une merveilleuse rupture, Cahiers des
Amériques Latines, 28/29, Paris, IHEAL, 1998.
MASTEAU, Antoinette. La Frontiére Franco-Brésiliene de l’Oyapock – Guyane-Amapá.
Tese de doutorado em Geografia. Universitè de Paris III, 1998.
MEIRA, Silvio. Fronteiras Setentrionais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.
MENCK, José Theodoro Mascarenhas. A Questão do Rio Pirara (1829-1904). Brasília:
Fundação Alexandre de Gusmão, 2009.
MENDIBLE ZURITA, Alejandro e GEHRE, Thiago. As relações Brasil-Venezuela: imagens
internacionais em perspectiva (1810-2010), Anos 90, Porto Alegre, v. 18, n. 33, p. 217-241,
2011.
MOREIRA NETO, Carlos de Araujo. Índios da Amazônia: De maioria à minoria (1750-1850).
Petrópolis: Vozes, 1988.
MORIZE, Henrique. Observatório Astronômico: um século de história (1827-1927). Rio de
Janeiro: Salamandra, 1987.
OJER, Pablo. Robert H. Schomburgk: Explorador de Guayana y sus líneas de frontera.
Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1969.
OLIVEIRA, Reginaldo e MAGALHÃES, Maria. Questão do Pirara. Textos & Debates,
UFRR, vol. 1, no. 14, p.103-17, 2008.
OLIVEIRA, Roberto Monteiro. A última página do Gênesis. Tese de doutorado em Geografia.
FFLCH/USP, 1997.
NABUCO, JOAQUIM. Minha formação. São Paulo: Ed. 34, 2011.
NÚÑEZ, Enrique Bernardo. Tres momentos en la controvérsia de limites de Guayana.
Caracas: Ministério de Educación, 1962.
PEQUENO, Eliane da Silva. Mura, guardiães do caminho fluvial, Revista de Estudos e
Pesquisas, FUNAI, Brasília, v.3, n.1/2, p.133-155, 2006.
PETOT, Jean. L’Or de Guyane. Paris: Caribéenes, 1986.
PIERRE, Michel. Bagnards. La terre de la grande punition Cayenne 1852 – 1953. Paris:
Autrement, 2000.
PRATT, Mary Louise. Os Olhos do Império. Relatos de viagem e transculturação. Bauru:
Edusc, 1999.
PRICE, Richard. Marron Societies. Nova Iorque: Anvhor Books, 1973.
____________. First-time: The historical vision of an Afro-American people. Baltimore: John
Hopkins University Press, 1983.
RALEGH, Walter. The Discoverie of the Large, Rich and Bewtiful Empyre of Guiana.
Manchester: Manchester University Press, 1997.
REIS, Arthur Cezar Ferreira. A Amazônia e a cobiça internacional. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1982.
_____________. Limites e demarcações na Amazônia: a fronteira colonial com a Guiana
Francesa. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1947.
RICCI, Magda. O fim do Grã-Pará e o nascimento do Brasil: Movimentos sociais, levantes e
deserções no alvorecer do Novo Império (180-1840). In Mary Del Priore & Flávio Gomes
(org.), Os Senhores dos Rios. Amazônia, margens e histórias. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.
RIVIÈRE, Peter. Absent-minded imperialism. Britain and the expansion of Empire in
Nineteenth-century Brazil. Londres: Tauris, 1995.
____________. The forgotten frontier: Ranchers of north Brazil. Nova Iorque: Holt, Rinehart
e Winston, 1972.
ROMANI, Carlo. O poder de nomear: Algumas toponímias do Oiapoque. Ameríndia,
Fortaleza, vol. 5, n. 1, 2008.
____________. O “Massacre de Amapá”: a guerra imperialista que não houve, Caravelle,
Toulouse, n. 95, 2010.
____________. Antecipando a era Vargas: a Revolução Paulista de 1924 e a efetivação das
práticas de controle político e social, Topoi, v. 12, n. 23, p. 161-178, 2011 (a).
____________. Clevelândia, Oiapoque: cartografias e heterotopias na década de 1920,
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 6, n. 3, p. 501-524,
2011 (b).
____________. Um Eldorado fora de época: A exploração dos recursos naturais no Amapá,
Projeto História, n. 42, 2011 (c).
SAFIER, Neil. Measuring the New World: Enlightenment, Science and South America.
Chicago: University of Chicago Press, 2008.
SAID, Edward. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia
das letras, 1978.
____________. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SANTILLI, Paulo. Fronteiras da República: história e política entre os Macuxi no vale do
rio Branco. São Paulo: NHII-USP, 1994.
STROBEL, Michèle-Baj. Les Gens de l’Or. Mémoire des orpailleurs créoles du Maroni. Petit-
Bourg, Guadalupe: Ibis Rouge, 1998.
SUREDA DELGADO, Rafael. Venezuela y Gran Bretaña: Historia de una usurpación.
Caracas: Universidad Central de Venezuela, 1980.
VIANA, Hélio. História das fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, 1948.
WHITEHEAD, Neil. Lords of the Tiger Spirit: A history of the Caribs in colonial Venezuela
and Guyana, 1498-1820. Dordrecht: Forus, 1988
____________. Carib Ethnic Soldiering in Venezuela, the Guianas, and the Antilles, 1492-
1820. Ethnohistory, vol. 37, n. 4, p. 357-385, 1990.
WOOD, Denis. The Power of Maps. Nova Iorque: Guilford Press, 1992.

Você também pode gostar