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O jansenismo, nas palavras de Giacomo Martina, pode ser considerado,

por um lado, como reação ao laxismo teórico e prático do séc. XVII e, po outro,
como a exarcebação das controvérsias sobre a graça, tão vivas nos sécs. XVI
e XVII (2003, p. 195). Trata-se de um fenômeno religioso de origem europeia
interpretado como movimento, heresia, seita, cisma, partido de oposição contra
o Estado absolutista (MELO, 2014, p. 9).
Miguel Baio (1513-1589), professor de filosofia e exegese, era um
severo crítico da escolástica, motivo pelo qual tratou da questão da graça
apelando para Santo Agostinho. A partir de 1563 ele interpretou
unilateralmente o pensamento de Agostinho em chave anti-pelagiana. De
acordo com a sua reflexão, o ideal originário antes do pecado original e a
situação produzida em consequência do pecado de Adão. Se no Éden o omem
era livre ante a graça, depois do pecado, a natureza humana teria ficado
completamente escrava, não de uma força exterior, mas do invencível impulso
interior da concupiscência que o induziria sem parada a pecar. Só a graça de
Deus sem, antes, contra a liberdade humana, pode livrar o homem deste
estado de escravidão. Portanto, Baio, ainda que não admitisse esta acusação,
seria imputado de sustentar teses próximas àquelas luteranas, que negavam a
liberdade humana, tornando o indivíduo igualmente culpado do mal que
irremediavelmente devia fazer.
Baio tinha também uma concepção assaz polêmica do primado do
sucessor de Pedro, que relativizava, reduzindo o Sumo Pontífice a um patriarca
universal, não investido de uma autoridade que lhe consentisse de intervir nas
dioceses particulares ou de ter o poder de conceder a um bispo sua jurisdição.
Baio passou por uma condenação estendida a 76 pontos, codificados pelo
Papa Pio V (1504-1572) na bula Ex omnibus afflictionibus (1º de outubro de
1567), ainda que não o citasse diretamente. Baio apelou de novo em 1569,
mas teve confirmada a heterodoxia das suas ideias.
Lessio ensinava teologia em Louvain, e mais tarde, em 1621, publicará
em Anversa a obra De justititia et jure actionum humanarum libri quatuor, pela
qual seria acusado por seus adversários de ser um defensor excessivo da
liberdade humana. Em 1604, Jansênio conheceu um discípulo de Janson,
Jean-Ambroise Duvergier de Hauranne (1543-1681), e entre os dois nasceu
uma grande amizade.
Em 1605 Jansênio e Jean-Ambroise Duvergier, principais expoentes do
jansenismo, (MARTINA, 2003, p. 201) se transferiram para Paris e ali
assistiram às lições do galicanista Edmond Richer, iniciando a conceber a ideia
de estudar o Cristianismo primitivo para lhe restituir aquele lugar de honra que,
segundo eles, havia sido usurpado pela escolástica medieval. Por doze anos
estudaram a patrística, em particular Santo Agostinho, antes em Paris e, depois
de 1611, em Campiprat (Cantipré), onde Duvergier habitava, protegido pelo
bispo de Bayonne, diocese francesa dos Pirineus, que o nomeou cônego da
catedral. O primeiro passou a se ocupar da reconstrução e da direção do
Colégio de Santa Pulquéria de Louvain, no qual, dois anos mais tarde, se
tornará doutor em teologia, iniciando a ensinar na universidade local. Foi assim
que, em 1631, Saint Cyran compôs a obra De hierarchia Ecclesiastica,
altamente polêmica, onde exaltou o poder dos párocos e dos bispos, enquanto
contestava o papel que os jesuítas tinham na vida da Igreja. Este escrito e
muitos outros saídos da sua pena, foram agrupados numa obra de quatro
volumes intitulada Petrus Aurelius, que, ao serem publicados entre 1632 e
1635, tornaram seu autor uma figura contestada e expoente de acesa
polêmica, o que lhe rendeu numerosos adversários.
Antes de morrer, Jansênio deixou a obra iniciada Augustinus, um
trabalho de 22 anos de pesquisa, a Reginaldo Lameo, seu capelão, mas, no
testamento que redigira e também no final do Augustinus, declarou que
submetia a referida composição ao juízo da Santa Sé. Nesse sentido, suas
palavras eram claras: “Eu sinto que dificilmente se poderá encontrar alguma
coisa a ser mudada. Mas, se a Sé Romana desejará mudar alguma coisa, eu
sou filho obediente, e a esta Igreja, na qual sempre vivi até este leito de morte,
sou obediente”. Não aconteceu assim, porque, em que pese as precauções de
Jansênio, a notícia da obra que tinha escrito se espalhou. Santo Agostinho era
chamado por ele de “Pater Patrum”, “doctor doctorum”, “primus post scriptores
canonicos”, “inter omnes vere solidus”, “subtilis”, “irrefragabilis”, “angelicus”,
“seraphicus”, “excellentissimus et ineffabiliter mirabilis”.
O centro da doutrina jansenista da graça e do livre arbítrio era dado pela
absoluta distinção entre o estado precedente ao pecado da origem, no qual
Adão era livre, em sentido próprio, de pecar, tendo somente a graça suficiente,
e o estado sucessivo ao pecado original, em que o homem não pode não
pecar, sendo intrinsecamente corrupto. Apenas a graça eficaz pode tolher o
homem decaído deste estado (duplex delectio).
A humanidade seria uma massa damnata. Esta concepção seria
desenvolvida em seguida, dando origem ao jansenismo “clássico”, que teve,
portanto, uma tripla paternidade: as fórmulas teológicas de Jansênio, os
“enriquecimentos” aportados pelo abade de Saint Cyran – importante
disseminador do jansenismo na França (REALE, 1986, p. 593) – e outros
tantos de Antoine Arnauld, doutor da Sorbonne.
Além da doutrina da graça, da liberdade e da predestinação, o
jansenismo se caracterizou pela importância dada à intimidade da fé e à rígida
disciplina moral e penitencial, que se referia ao cristianismo dos primeiros
séculos (REALE, 1986, p. 593).
. Antoine Arnauld (1612-1694), irmão mais novo de Madre Angélique,
com as suas Apologias para Jansênio, conseguiu fazer a polêmica ficar sempre
mais acesa. Paralelamente, desde 1638, Jean Duvergier de Hauranne tinha
tomado a iniciativa de reunir nas proximidades da abadia de Port-Royal –
importante centro de disseminação jansenista – certo número de homens para
viver no isolamento, na oração e no trabalho. E, seu número crescia sempre:
de 10 que eram em 1647, se tornaram 25 em 1652, e novos sequazes
continuavam a chegar. Os “solitários” organizaram as petites écoles (pequenas
escolas) para educar os jovens dos arredores, onde se ministrava uma ótima
instrução. Necessário recordar que, quando isso aconteceu, a direção dos
“solitários” tinha sido mudada, exatamente em 1638, porque o Cardeal
Richelieu mandara prender Saint-Cyran, encerrando-o na fortaleza de
Vincennes, devido à oposição que ele fazia ao seu governo.
Teve um papel fundamental o talento e a cultura de Antoine Arnauld que,
em 1643, fez publicar o livro De la fréquente Communion (colocado no Index
em 1647) que lhe permitiu de atingir um vasto público e difundir ainda mais os
ideais do movimento a que pertencia. O livro em questão, fiel à concepção
rigorista da graça e da penitência dos jansenistas, além de combater a
comunhão frequente recomendada pelos jesuítas, circundava a absolvição
penitencial e a recepção da partícula sacra de tais advertências, condições e
precauções, que desencoraja os fiéis a fazê-lo. De outra feita, porém, a citada
publicação circundou Arnauld de inimigos, forçando-o a se esconder e, por
mais de vinte anos, ele não ousou aparecer em público em Paris.
As reações a uma doutrina que excluía a universal redenção de Cristo,
limitava a liberdade humana, comprometia o livre arbítrio e, no campo prático,
se traduzia num rigorismo moral acentuado, não se fez esperar.
Em Louvain, os padres da Companhia de Jesus, em 21 de março de
1641 declararam nos seus colégios que as ideias contidas no Augustinus
renovavam os erros de Calvino e Baio, anulando consequentemente a
liberdade humana e reduzindo a redenção somente aos eleitos.
Publicada desobedecendo aos decretos que tinham proibido de tratar
dito argumento e por conter “muitas proposições condenadas anteriormente”,
as quais eram defendidas “com grande escândalo dos católicos e desprezo
pela autoridade da Sé Apostólica”, a In eminenti foi expedida ao Núncio de
Colônia, Fábio Chigi e a outros núncios, e nesse meio tempo, a Sorbonne tinha
terminado de examinar o volumoso Augustinus. Depois, durante a assembleia
do clero de 1650, quase 80 bispos colocaram a própria assinatura numa carta
ao Papa, pedindo sua intervenção em relação às cinco proposições da
Sorbonne. Daí, Papa Inocêncio X, por meio da bula Cum occasione, datada de
31 de maio de 1653 e afixada em Roma no dia 9 de junho seguinte, tornou
público que não aprovava de nenhum modo as outras opiniões contidas no livro
de Jansênio, fazendo publicar as cinco proposições que considerava errôneas
sobre a graça. Ou seja, eles admitiam o caráter herético das cinco proposições
consideradas em si mesmas (a questão de direito), porém, argumentavam que
tais proposições não correspondiam ao pensamento de Jansênio (a questão de
fato).
Vale dizer: as cinco proposições condenadas pelo Papa o eram
justamente, a causa das suas fortes características calvinistas, mas aquilo não
correspondia ao verdadeiro pensamento de Jansênio, que no seu livro expunha
a genuína doutrina de Santo Agostinho, tal como era apresentada pela Igreja.
A defesa dos jansenistas não convenceu e, em 9 de março de 1654, 38
bispos se reuniram no Louvre e nomearam uma comissão formada por 8
membros para examinar as 5 proposições citadas.
Diante disso, 130 doutores da Sorbonne, com o apoio dos jesuítas, em
1º de fevereiro de 1656, decretaram que, se dentro de 15 dias, Antoine Arnauld
não tivesse renegado os argumentos teológicos dissidentes contidos nos seus
escritos e subscrito a carta de censura, seria degradado do seu doutorado e
excluído do corpo da universidade.
Ele se negou a fazê-lo e, junto de outros 70 doutores igualmente
recalcitrantes, foi expulso da Sorbonne em 14 de janeiro de 1656. Pouco
depois, Papa Alexandre VII decidiu de encerrar a questão e, com a Bula Ad
sacram Beati Sedem de 1656, esclareceu que as cinco proposições tinham
sido realmente verificadas no Augustinus e condenadas no sentido dado pelo
autor.
Naquela abadia ela se tornará uma verdadeira protagonista, até morrer
em 4 de outubro de 1661. Quanto a Blaise, depois da perda do pai, falecido em
24 de setembro de 1651, seu fervor religioso diminuiu, para ser retomado em
seguida na noite de uma segunda- feira, 23 de novembro de 1654, ocasião em
que teve uma espécie de visão mística.
Foram ao todo 18 as cartas trocadas entre dois personagens fictícios
(Luís Montalto e um amigo na província, isto é, distante de Paris e dos
ambientes – principalmente aqueles da Sorbonne – mostrados como pano de
fundo das questões teológicas e morais debatidas no texto), em que o célebre
filósofo deu uma memorável
As Provinciais foram publicadas em Colônia no ano de 1657 e, naquele
mesmo ano, mais exatamente, em 18 de outubro, colocadas no Index. De
qualquer modo, Pascal, identificando a Companhia de Jesus com o laxismo,
conseguiu lançar sobre a ordem fundada por Santo Inácio um descrédito que
não seria nunca completamente cancelado.
Contemporaneamente, em 1655 tinha sido coroado um novo Papa,
Alexandre VII, convicto anti-jansenista, enquanto que na França, sob o impulso
de Pedro de Marca, uma assembleia do clero reunida durante o verão daquele
mesmo 1656, estabeleceu que era inseparável o fato do direito e que a Igreja
era infalível tanto num quanto noutro.
Também as religiosas de Port-Royal tiveram de assinar o Formulário,
mas elas, sem exame do documento e sem conhecerem a fundo a questão
(nenhuma tinha lido o Augustinus ou possuía uma formação teológica
profunda), baseando-se na ambígua distinção “do direito e do fato”, que dito
Formulário tinha precisamente o objetivo de eliminar, não o fizeram.
Alexandre VII decidiu assim de emanar em 6 de fevereiro de 1665 uma
segunda bula, a Regiminis apostolici, que não só confirmava a condenação de
Jansênio como ordenava que o referido Formulário fosse assinado. Todavia, o
caso se cruzou com outra problemática particularmente sentida na França,
aquela do galicanismo, motivo pelo qual, a assembleia do clero francês se
mostrou relutante em aplicar as decisões do Papa.
Madre Angelique Arnauld morreu em 6 de agosto de 1661, mas a
resistência prosseguiu com suas irmãs, sobretudo Angelique Arnauld d’Andilly,
dita Madre Angelique de Saint Jean (1624-1684).463As monjas de Paris
aceitaram de assinar o módulo em 1665, mas as de Des champs persistiram na
obstinação e o Arcebispo teve de puni-las com o interdito do seu mosteiro em
1664.464 Em 1668, sob o pontificado do Papa Clemente IX, se chegou a um
acordo e foi estabelecida a “paz clementina” ou paix de l’Eglise, selada com um
Breve de 19 de janeiro de 1669, que permitiu uma trégua de dez anos. Em 3 de
agosto daquele ano, Port Royal perdeu sua grande protetora, a duquesa de
Longueville, morta em 15 de abril de 1679. Porém, seu pior problema era a
nova influência que o jansenismo tinha conquistado e o mal-estar que isso
causava no rei.
Esse comportamento ficou evidente no início de 1701, quando foi
publicado um artificioso opúsculo anônimo intitulado Le cas de la coscienza
(“Um caso de consciência”), que suscitava o problema da liceidade do
silentium obsequiosum.
O argumento a ser avaliado era o seguinte: um eclesiástico, de nome
não citado, mas que se sabia tratar de Louis Périer, sobrinho de Blaise Pascal,
se encontrou atormentado no leito de morte, e confessou de ter assinado o
Formulário com a restrição que rejeitava as cinco proposições condenadas
como jansenistas pelo Papa Inocêncio XII, por não ter claro que elas
estivessem efetivamente contidas no Augustinus de Jansênio.
Portanto, o pároco Fréhel quis uma resposta: é lícito dar uma absolvição
a um penitente que declara de não poder ir além de um silêncio respeitoso?
Quarenta doutores da Sorbonne, entre eles Ellies Du Pin, Nicolas Petitpied,
Bourret, Sarrasin e Natalis Alexander, analisaram o opúsculo, e a resposta,
redigida por Petitpied, conhecido jansenista, apesar da desaprovação de
Bossuet, foi afirmativa, dado que o caso não era nem novo nem extraordinário,
e o parecer do penitente não fora condenado pela Igreja.
O pedido foi aceito e em 16 de julho de 1705 foi publicada a Constituição
Apostólica Vineam Domini Sabaoth, rejeitando a teoria do silêncio obsequioso,
considerada um artifício capcioso, e reivindicando para a Igreja romana o
direito de condenar as doutrinas e os homens que as defendiam: “Nós, com
esta Nossa constituição que terá vigor perpétuo, decretamos e ordenamos, em
força da mesma autoridade apostólica que, como o silêncio de obséquio não se
satisfaz com efeito à obediência que é devida às constituições apostólicas em
precedência reportadas; mas que o sentido condenado nas cinco proposições
antes ditas do livro de Jansênio, como mostrado do que aquelas palavras
significam, deve ser rejeitado e condenado como herético por todos os fiéis
cristãos, não só com a boca mas também com o coração; e que não se pode
de modo lícito subscrever a referida fórmula com nenhuma outra intenção,
sentimento ou convicção, ao ponto que aqueles que em modo diverso ou
contrário, pelo que concerne todas estas coisas e cada uma particularmente,
terão pensado, tido como firme ou pregado, ensinado ou sustentado com a
palavra e com o escrito, sejam absolutamente submetidos, como
transgressores das constituições apostólicas citadas acima, a todas as
censuras e penas, e a cada uma singularmente”.
Foi assim que, na assembleia geral do clero de 1705, os participantes
decidiram de aceitá-lo, mas junto foi expressa a convicção que os decretos dos
papas eram obrigatórios para a Igreja universal somente se fossem
reconhecidos e aceitados pelos bispos. Clemente XI, em 31 de agosto de 1706,
se dirigiu então com um breve ao Cardeal-Arcebispo de Paris, Louis-Antoine de
Noailles (1651-1729), reprovando os bispos franceses pela “usurpação da
plenitude do poder que Deus deu exclusivamente à cátedra de São Pedro”, e
pedindo-lhes de retratar a declaração que tinham acrescentado à Constituição
Vineam Domini.
O envelhecido Luís XIV não suportava mais as querelles que um
pequeno grupo de freiras provocavam e assim, em 26 de outubro de 1709, o
Conselho de Estado da França emitiu uma sentença ordenando a dispersão
das religiosas de Port-Royal des Champs.
Três dias depois, às 7h30 da manhão, o tenente geral da polícia, Marc-
René d'Argenson, acompanhado de três policiais e mais trezentos arqueiros
chegou ao mosteiro, recolheu a documentação claustral e levou-as embora.
Em 1710 a inteira construção foi arrasada, e, no ano seguinte, os restos
mortais das irmãs foram inumados no cemitério anexo, desenterrados e
dispersos. Luís XIV pediu em seguida ao Pontífice, com uma carta de 16 de
novembro de 1711, uma bula de condenação do livro do oratoriano Pasquier
Quesnel (1634-1718), que, depois da morte de Antoine Arnauld e Nicole em
1680, tinha assumido a direção do movimento jansenista.
Na sua obra composta por três volumes, intitulada Abregé de la morale
de l'Evangele, publicada em 1687, Quesnel repropunha conhecidas teorias
jansenistas, repetindo tais ideias num outro escrito editado em Colônia,
Alemanha, naquele mesmo ano, com o título de Tradition de l'Eglise romaine
sur la prédestination des saints et sur la grâce efficace.
Quesnel era realmente provocador, dado que, em 1693, reformulou as
doutrinas centrais do jansenismo, apresentando-as no Nouveau Testament en
français avec des réflexions morales, em termos que pareceram colocar em
dúvida a autoridade última da hierarquia eclesiástica em matéria de fé.
Não causa estupor que em 1702 ele tenha sido preso e obrigado a se
refugiar nos Países Baixos. Era necessário dar uma resposta decidida às
teorias do renovado jansenismo que se alastravam, motivo que levou Clemente
XI a instituir uma comissão.
A Igreja local ficou privada do ministério episcopal e como consequência,
aos 23 de abril de 1723, por sua própria iniciativa, sem autorização de Roma,
nomeou um arcebispo próprio na pessoa do vigário geral, Cornélio Steenoven.
No século XIX a comunidade cismática rejeitará o dogma da Imaculada
Conceição, e protestará quando a situação dos católicos será normalizada na
Holanda – onde havia ocorrido uma importante ruptura com Roma que, embora
circunstancial, permanece até hoje (MARTINA, 2003, p. 215) – com a
restauração da hierarquia local em 4 de março de 1853.
Em 17 de junho de 1858, a revista Civiltà Cattolica, publicando as
estatísticas religiosas da Holanda, informava que numa população total de
3.285.901 habitantes, os católicos eram 1.224.198 e os membros da
comunidade jansenista, 5.427.477 No limiar do terceiro milênio eles estavam
reduzidos a cerca de 12.000 fiéis esparsos em 30 comunidades. Nos estados
católicos da Alemanha as ideias jansenistas nunca tiveram importância, mas no
império dos Habsburgos, conseguiram certa penetração.
Em Portugal as teorias jansenistas, com seu pouco caso em relação à
autoridade do Papa, se tornaram providenciais aos interesses do rígido
regalismo imposto pelo primeiro ministro Marquês de Pombal (1699-1782).
As influências jansenistas emergiram ainda entre certos setores do clero
napolitano que aderiram à efêmera república partenopéia de orientação
patriótica-jacobina, estabelecendo-se em Nápoles em 1799.
Além disso, houve outro bispo, Dom Luigi Tosi (1763-1845), nomeado
ordinário de Pavia em 1823, ex-aluno de Pietro Tamburini no tempo em que
estudou na universidade da supracitada cidade, que se distinguiu como um
“jansenista moderado”.
Junto a ele atuava o abade genovês Eustachio Degola (1761-1826), que
teve muitas relações com a França e que depois se tornaria assistente
espiritual da primeira esposa do escritor milanês Alessandro Manzoni (1785-
1873), a calvinista de Genebra, Enrichetta Blondel, com quem Manzoni se
casara em 1808.
Enrichetta, aos 22 de maio de 1810, fez pública abjuração do calvinismo
na igreja de San Severin, para abraçar definitivamente a fé católica. O abade
Degola preparou para os dois cônjuges uma lista de leituras devotas, nas quais
a percentual de escritores jansenistas franceses era muito elevada.
As mencionadas manifestações jansenistas, mesmo se cultivadas em
cenáculos restritos, reapareceram no século XIX, deixando traços mais ou
menos profundos em insignes personagens da literatura e da política.
Isso explica porque foi possível encontrar jansenistas mesmo entre
algumas figuras do Risorgimento italiano, dois dos quais passaram em seguida
ao protestantismo: o florentino Salvatore Ferretti (1817- 1874) e Camillo Mapei
(1809-1853).
Outro particular a ser considerado é que, apesar da maçonaria negar a
inspiração da Bíblia, a Revelação e outras verdades centrais da fé cristã, quase
todos os cultos reformados italianos, inclusos os valdenses, aceitavam com
aparente tranquilidade os “irmãos maçons”. De qualquer modo, as ideias de
Jansênio envolveram também outros conhecidos personagens da história da
Itália, entre os quais Giuseppe Mazzini (1805-1872).
Isso, segundo muitos estudiosos, teria marcado sua moral política e
reforçado nele a tendência a ver a soberania popular superior à hierarquia
eclesiástica e o Concílio, não o Papa, no vértice da Igreja. O mesmo se diga do
turinense Camillo Benso, conde de Cavour (1810-1861), cuja família mantinha
estreitas relações com o cenáculo jansenista piemontês.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MARTINA, Giacomo. História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do


absolutismo. São Paulo: Loyola, 2003.
MELO, Amarildo José. O jansenismo no Brasil. Aparecida: Santuário, 2014.
REALE, Giovanni. História da Filosofia: do Humanismo a Kant. São Paulo:
Paulus, 1986
VIEIRA, Dilermando Ramos. História da Igreja na idade moderna. São Paulo,
2020.

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