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AGOSTINHO DE HIPONA (354-430)

Agostinho foi, provavelmente, o grande pensador cristão da Idade


Média. Por quase dois mil anos sua produção teológica tem
pautado os grandes debates do cristianismo e influenciado o
pensamento e cultura do Ocidente. Do ponto de vista católico,
Joseph Aloisius Ratzinger ratifica essa impressão, ao dizer:

“Agostinho deixou uma marca profunda na vida cultural do Ocidente


e de todo o mundo. Sua influência é vastíssima. (...) Raramente
uma civilização encontrou um espírito tão grande, com ideias e
formas que alimentariam gerações vindouras.”1 A Reforma
Protestante do século XVI, fundamental ao avivamento da fé e
espiritualidade cristã, até então adoecida mortalmente pelo desvio
teológico, corrupção e misticismo, deve a Agostinho o cerne de
suas principais proposições, particularmente em questões como o
pecado original, a graça de Deus, a salvação e a predestinação,
além do exemplo de seu vigoroso ministério pastoral. O teólogo
luterano Richard Balge, citando um colega, disse que: “Se
Agostinho de Hipona tivesse vivido no tempo da Reforma, ele teria
se juntado a Martinho Lutero”.2 O teólogo presbiteriano B. B.
Warfield, por sua vez, disse que “o sistema de doutrina ensinado
por Calvino é somente o agostinianismo, conforme se vê em todos
os demais reformadores. Pois, se a Reforma foi, do ponto de vista
espiritual, um grande avivamento da religião, do ponto de vista
teológico foi um grande reavivamento do agostinianismo”.3 E o
erudito batista Timothy George, ao falar da influência do
pensamento agostiniano na Reforma, disse que “a linha principal da
Reforma Protestante pode ser vista como uma aguda
agostinianização do cristianismo.”4

Os grandes representantes da Reforma do século XVI, Martinho


Lutero, João Calvino, Martin Bucer, Philip Melanchton e tantos
outros, encontraram na vigorosa teologia agostiniana fundamento
tanto para o rompimento com o status quo da igreja romana como
para afirmar a unidade do pensamento genuinamente cristão que
remonta aos ensinos dos Pais da Igreja e dos Apóstolos. À guisa de
ilustração, vejamos como o pensamento de Agostinho foi de grande
importância para alguns dos reformadores mais destacados:

Martinho Lutero era um monge agostiniano e derivou dessa escola


o tutano de sua própria teologia. A influência de Agostinho em
Lutero, aliás, parece haver perpassado todas as fases de sua vida
como teólogo. No prefácio da Theologia Germânica, obra do século
XV redescoberta por Lutero e republicada por ele em 1516, ele
reconhece o débito que tem com Agostinho, colocando seus
escritos próximos dos escritos da própria Escritura.

Em suas “conversas de mesa”, em 1532, Lutero disse: “No começo


de minha carreira, como professor de teologia, eu não
simplesmente lia Agostinho, mas devorava suas obras com
voracidade”.5 No prefácio de seus Escritos Latinos, de 1545 – um
ano antes de sua morte – Lutero faz referência à obra O Espírito e a
letra, de Agostinho, e diz que há muitas semelhanças em seu
entendimento sobre a justiça de Deus. Seu companheiro e colega
reformador, o teólogo Philip Melancthon, via Lutero, no contexto da
Reforma, como uma “voz intercambiável com a de Agostinho; uma
voz que renovava o ensino primitivo da igreja”.6

Com João Calvino não foi diferente. A influência da teologia


agostiniana também é bem evidente em toda sua carreira
teológica.7 Ele mesmo disse que “ficaria feliz em confessar toda sua
fé pelas palavras de Agostinho”8 e ainda fez uma famosa afirmação
de aprovação, ao dizer: Augustinus totus noster est, isto é, que
“Agostinho está do nosso lado”. O historiador Justo Gonzalez
lembra que na principal obra de Calvino, as Institutas, “se manifesta
um conhecimento profundo, não só das Escrituras, mas também de
antigos escritores cristãos, particularmente Agostinho”.9 Na última
edição das Institutas, de 1559, encontram-se mais de 400 citações
de textos de Agostinho. Calvino confiava mais na teologia de
Agostinho do que em sua exegese, como se vê em vários de seus
comentários bíblicos, particularmente seu comentário em Romanos,
no qual ele critica a abordagem alegórica que muitas vezes
Agostinha emprestava ao texto, mas, o fato é que esse eminente
pai da igreja é uma grande fonte de inspiração e influência da
produção teológica e pastoral de Calvino.

Martin Bucer, o reformador de Estrasburgo que teve papel vital na


busca de unidade entre os demais reformadores, também apoiou-se
em Agostinho para desenvolver muito de seu pensamento
teológico. Num certo ponto, ele disse que tem “grande reverencia
por Agostinho”.10 Em sua obra, Florilegium Patristicum, na qual
reúne citações dos Pais da Igreja, encontram-se várias referencias
às obras e pensamento de Agostinho. Também em sua obra sobre
teologia pastoral, Sobre o Verdadeiro Cuidado das Almas, Bucer faz
muitas referências ao trabalho pastoral e à teologia de Agostinho.
Em seu comentário à epístola de Paulo em Romanos, de 1536,
Bucer faz um grande esforço para aliar-se a Agostinho no
tratamento que este faz dos textos do Antigo e Novo Testamento e
até mesmo em suas noções sobre a justificação (declarada e
transmitida). Ainda que Bucer estivesse pronto para discordar de
Agostinho quando necessário, o fato é que ele viu em Agostinho
uma voz de consonância com o corpo da reforma e alinhou-se à
essa voz em algumas áreas vitais.

O período pós reforma também valeu-se do pensamento de


Agostinho – seja diretamente, ou indiretamente pela influência dos
próprios reformadores. Também as gerações sucessivas, todas elas
têm sido, como notou Ratzinger, alimentadas pelas ideias e
pensamentos deste gigante da fé. Ele é provavelmente o mais
qualificado representante da igreja primitiva e permanece como
uma das mentes mais importantes da história da fé cristã.

As Confissões
De tudo quanto Agostinho produziu, destaco aquela que muito
provavelmente foi a sua principal obra: As Confissões. Trata-se de
sua autobiografia, escrita em treze livros no curso de três anos,
entre os anos de 397 e 400. Há muito que se poderia falar sobre As
Confissões e seus benefícios e virtudes. Eruditos e literatas, tanto
da filosofia como da teologia, certamente já têm empreendido o
papel de analisar as muitas riquezas dessa obra e extrair o sumo de
seu rico conteúdo. Aqui queremos oferecer apenas um pequeno
vislumbre dessa que permanece como uma das mais importantes
obras literárias de todos os tempos.

Nela Agostinho empreende uma profunda investigação da própria


alma, da sua fé e de sua sincera busca por Deus. Ele abre seu
coração e, numa conversa dirigida a Deus, confessa seus pecados,
dramas, angústias d’alma, frustrações e também sua luta pela
verdade e sua luta com o próprio Deus.

Vemos, por exemplo, em As Confissões, uma verdadeira luta da


mente e a sublime busca pela verdade, a qual Agostinho reconhece
haver encontrado somente quando Jesus o encontrou:

Foi então que tuas perfeições invisíveis se manifestaram à minha inteligência por meio de
tuas obras. Mas não pude fixar nelas meu olhar; minha fraqueza se recobrou, e voltei a
meus hábitos, não levando comigo senão uma lembrança amorosa e, por assim dizer, o
desejo do perfume do alimento saboroso que eu ainda não podia comer11.
Buscava um meio que me desse força necessária para gozar de ti, e não a encontrei
enquanto não me abracei ao Mediador entre Deus e os homens, o homem Cristo Jesus,
que está sobre todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos, que chama e diz: Eu
sou o caminho, a verdade e a vida.12

Também vemos a luta da carne, a qual ele chama de luta com a


luxúria: “Admirava-me de já vos ter amor e de não amar um
fantasma em vez de Vós. Era arrebatado para vós pela vossa
beleza, e logo arrancado de vós pelo meu peso. Este peso eram os
hábitos da luxúria”.13 Sua luta contra as tentações sexuais ainda é
exemplificada pela famosa oração: “Senhor, dá-me a castidade e a
continência, mas ainda não”.14

Todavia, é preciso registrar, muitas vezes a culpa de Agostinho por


conta de sua concupiscência tem levado muitos a acusarem-no de
ter sido promíscuo. Mas talvez essa conclusão seja injusta, pois ele
mesmo registra somente um caso amoroso, com uma concubina,
mãe de seu filho Adeodato, mulher a quem muito amou, embora
nunca tenha se casado com ela.

Ele ainda conta como Deus o alcançou e salvou e como ele passou
a perceber a mão providente de Deus nas diversas fases de sua
vida, além de ter uma noção mais plena e gozosa da beleza de
Deus, depois de sua conversão. As Confissões também são uma
expressão de adoração e uma declaração de amor e devoção a
Deus e nela ele exalta a Deus louvando-o pela criação. Num certo
ponto, ele confessa:

Tarde te amei, Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro de mim,
e eu lá fora, a te procurar! Eu, disforme, me atirava à beleza das formas que criaste.
Estavas comigo, e eu não estava em ti. Retinham-me longe de ti aquilo que nem existiria
se não existisse em ti. Tu me chamaste, gritaste por mim, e venceste minha surdez.
Brilhaste, e teu esplendor afugentou minha cegueira. Exalaste teu perfume, respirei-o, e
suspiro por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tocaste-me, e o desejo de
tua paz me inflama.15

De tudo o mais, um aspecto muito sublime de suas Confissões, que


se alteia como um fator presente em toda narrativa, é a noção de
que é Deus quem vem ao encontro do homem para alcançá-lo e
salvá-lo.

Talvez a expressão que melhor exemplifica essa realidade na


experiência de Agostinho, seja a oração que ele repete algumas
vezes no curso de suas confissões: “Dai-me o que ordenais, e
ordenai-me o que quiserdes” (Da Quod Iubes et Iube Quod Vis).
Esta oração causou arrepio no grande rival de Agostinho, Pelágio,
que via nela uma afronta ao livre arbítrio do homem, o qual, Pelágio
cria, nascia reto e tinha em si mesmo a capacidade de obedecer ou
rejeitar a Deus.

Mas Agostinho entendeu – e essa oração assim o demonstra – que


somente a graça de Deus e o poder do Espírito, atuando no interior
do homem, é que pode levá-lo ao próprio Deus. É Deus quem dá
causa à fé, ao amor, à devoção e à obediência e é por isso que ele
pede: concede-me o que ordenais, isto é, capacita-me, Senhor,
para o que queres. Em outra obra sua, ele pergunta: “Que nos
ordena Deus em primeiro lugar, e com mais insistência, senão que
acreditemos nele? Ora, é precisamente esta graça que ele nos
concede”.16

Em Agostinho, particularmente, há muito que aprender – como


fizeram também nossos pais reformadores e toda tradição cristã
nesses últimos dezessete séculos.

E há muito o que ler de Agostinho. Dentre os Pais da Igreja, seus


escritos são os mais abundantes. A história de sua vida e sua obra
foram catalogados pelo cuidadoso trabalho de seu biografo e
contemporâneo Possídio, que escreveu a Vita Augustini e indexou
nela o Indiculos, que elencava e reproduzia suas principais obras.
São centenas de homilias e cartas ainda preservadas e várias obras
filosóficas e teológicas que, conforme coloca Ratzinger, “são de
importância fundamental, não só para o cristianismo, mas para a
formação de toda cultura ocidental”.17

Em seus escritos, temos um tesouro de sabedoria que pode fazer


muito bem ao povo de Deus, se lido com discernimento. É claro que
Agostinho teve os seus limites e cometeu seus equívocos. Mas
encontramos nele uma mente brilhante e um coração radiante, que
ardia por amor a Deus, como pouco se vê em nossos tempos.

Temos nele um esforço diligente para submeter todas as coisas à


revelação. Suas Confissões, aliás, são a grande prova disso. Foi
somente quando a Escritura falou que sua obstinada busca pela
verdade cessou. A partir desse ponto, ele passa a ser um estudioso
da verdade contida nas Escrituras.

Notas:
1 - Bento XVI. Os Padres da Igreja (Campinas, SP: Eclesiae, 2012)
p. 183-184
2 - Richard D. Balge, Martin Luther, Agostinian (artigo publicado em
http://www.wlsessays.net/files/BalgeAugustinian.pdf), acessado em
novembro de 2013.
3 - Benjamin Breckinridge Warfield, John Calvin: the man and his
work (The Methodist Review, Outubro de 1909).
4 - Timothy George. Teologia dos Reformadores (São Paulo, SP:
Edições Vida Nova, 2004), p.76.
5 - Martinho Lutero. Luther Works, LI, xviii.
6 - Peter Fraenkel, Testimonia Patrum: The Function of the Patristic
Argument in the Theology of Philip Melanchthon (Genebra: Droz,
1961), p. 32.
7 - Recomendo a leitura do artigo de S. J. Han: An Investigation into
Calvin’s use of
Augustine (http://www.ajol.info/index.php/actat/article/viewFile/5221
4/40840), Acessado em novembro de 2013.
8 - Paul Helm. Apud em N. R. Needham, The Triumph of
Grace (London: Grace Publication, 2000), p.8
9 - Justo Gonzalez, A Era dos Reformadores (São Paulo, SP:
Edições Vida Nova, 2004), p.112.
10 - Basil Hall, Martin Bucer: Reforming Church and Community, ed.
D. F. Wright (Cambridge, UK: Cambridge Press, 1996), p. 150.
11 - Agostinho, Confissões (São Paulo, SP: Editora Nova Cultural,
1999), p. 185.
12 - Ibidem, p. 192.
13 - Ibidem, p. 190.
14 - Ibidem, p. 214.
15 - Ibidem, p. 285.
16 - Agostinho. Confissões. Nota de J. Oliveira Santos, apud, De
Bono Perseverantiae:Quid vero nobis primitus et maxime Deus
iubet, nisi ut credamus in Eum? Et hoc ergo ipse dat (São Paulo,
SP: Nova Cultural, 1999), p. 286.
17 - Ratzinger, Padres da Igreja, p. 201.
18 - ibidem, p. 193.

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