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Mauá, um homem de seu tempo ou um empresário neoliberal?

André Fertig1

O filme “Mauá, o Imperador e o Rei” é uma produção brasileira de 1999 dirigida

por Sérgio Resende, que também foi o diretor de outros filmes com temáticas oriundas

da história como, por exemplo, Lamarca (1994), Guerra de Canudos (1997) e Zuzu

Angel (2007). Trata-se de um filme que enfoca a trajetória de um dos mais ilustres

personagens da história do Brasil Império, Irineu Evangelista de Souza (1813-1889)

que, em 1854 tornou-se Barão de Mauá e na década de 1870 alcançou o título nobre de

Visconde. Esta nobre titulação já nos sinaliza para um homem que não foi tão apartado

assim do poder imperial, pelo contrário, cresceu também muito devido a suas relações

muito próximas com as esferas de governo.

A película recupera a trajetória de Mauá, sua infância no Rio Grande do Sul, sua

ida a capital do Império para trabalhar como caixeiro do comerciante português Antonio

José Pereira de Almeida, seu tempo de formação intelectual e experiência como

funcionário e mais tarde sócio do negociante inglês Richard Carruthers. Em um teor

obsessivamente didático, que gera certo artificialismo na atuação dos atores em diversos

momentos, o filme pretende inserir o personagem Mauá no contexto das transformações

sociais e econômicas pelas quais o Brasil passava na segunda metade do século XIX.

No plano geral, as transformações estavam relacionadas ao processo de internalização

do capitalismo deste lado do Atlântico e, neste processo, sabemos que o papel da

Inglaterra foi fundamental. Coube a ela, desde o seu patrocínio da vinda da família real

portuguesa em 1808 e, principalmente, a partir dos tratados diplomáticos e comerciais

aprovados em 1810, um papel determinante no desenvolvimento do capitalismo no

1
Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS e professor do
Departamento de História da UFSM.
2

Brasil. Inseridos na “Era do Impérios”, termo cunhado pelo historiador inglês Eric

Hobsbawm, o principal Império, o britânico, investiu capitais e dominou o comércio

exterior no Brasil dos oitocentos. Se em relação ao trafico externo de escravos o

Império do Brasil não se subordinou totalmente à potência britânica, empurrando ao

máximo a questão até 1850, o mesmo não se pode dizer em relação ao projeto de

sociedade urbana e industrial que se pretendia alcançar. Como afirmam Lucia Pereira

das Neves e Humberto Machado, os capitais ingleses investidos no Brasil

correspondiam a cerca de 45% do total aplicado na América Latina e a Inglaterra

exercia um “verdadeiro monopólio sobre o comércio externo brasileiro e demais

atividades produtivas até a Primeira Guerra Mundial, quando começou a ser superada

pelos Estados Unidos”.2 Assim sendo, podemos inferir também que a aproximação de

Irineu Evangelista de Souza a um negociante inglês colaborou muito para a sua

ascensão social. Sem excluir os méritos de Mauá, que preparou-se inclusive

teoricamente nas princípios liberais e soube, muitas vezes, jogar com o que hoje

chamaríamos “mercado” para acumular e reproduzir o seu capital, sua ligação com a

firma inglesa Carruthers alavancou e potencializou a carreira de Mauá, inclusive

proporcionando a sua ida a Inglaterra para conhecer as indústrias britânicas, suas

máquinas e seu sistema de trabalho – o que o filme nos apresenta bem – além de

fornecer, muitas vezes, parte do capital necessário a seus empreendimentos. Ou seja, o

sucesso de Mauá muito se deveu a está íntima articulação com o capital inglês.

Na película, Mauá é abordado inserido neste processo de transformações

capitalistas que aconteciam no Brasil da segunda metade do século XIX. Todavia, a

crítica que podemos fazer a obra de Sérgio Rezende é que ela reforça o mito de Mauá

como o grande empreendedor capitalista que, inspirado no ideário liberal e no

2
NEVES, Lúcia Pereira das e MACHADO, Humberto. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999, p. 307.
3

capitalismo inglês, seguiu uma trajetória lógica e sem contradições, passando de

comerciante a industrial como se estas fossem etapas supostamente sucessivas de sua

trajetória pessoal. Com esta abordagem o filme idealiza um personagem já muitas vezes

romantizado pelos manuais didáticos tradicionais de história do Brasil e pela própria

escrita da história. Análises historiográficas das décadas de 1940 e 1960, fundamentadas

teoricamente no nacional-desenvolvimentismo, como a de Celso Furtado, bem como no

marxismo, como os textos de Caio Prado Junior, além de biografias como a de Jorge

Caldeira (1995), além de outras obras, contribuíram inestimavelmente para a construção

de um mitológico Mauá, um homem supostamente “a frente de seu tempo”, que buscava

a todo custo e “apesar do Império e do Imperador” ser um empreendedor capitalista, um

empresário a serviço das transformações burguesas e com “visão de futuro”, visto que,

como disse o seu sócio Sr. Carruthers no filme, “nós os britânicos somos o futuro”.

O filme de Rezende estabelece uma contradição entre as idéias liberais e a

tradição aristocrática, conservadora, que não existia na sociedade brasileira do século

XIX e que, conforme a historiografia recente, também não estava presente nas ações e

nas idéias de Mauá, que sabia muito bem compatibilizar, por exemplo, liberalismo e

escravidão. Com pertinência afirmou Alfredo Bosi que escravidão e liberalismo

representavam, no Brasil do século XIX, uma falsa contradição, visto que, na defesa de

seus interesses, as elites nativas advogavam e articulavam com eficiência as idéias

liberais a escravidão, pois a defesa da propriedade privada e do livre comércio

significava, como bem caracterizou Bosi, também a defesa da propriedade e do

comércio de cativos. Segundo o mesmo autor “nada haveria de excêntrico, deslocado ou

postiço nos políticos brasileiros que, usando o termo liberalismo, legitimaram o

cativeiro”, já que liberal significava essencialmente, garantir as liberdades conquistadas

em 1808, de produzir, vender e comprar – inclusive escravos.3


3
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.201-202.
4

Mauá foi um bom exemplo desta convivência entre liberalismo e escravidão,

pois em seu estaleiro Ponta de Areia, adquirida em 1846, após a liquidação da firma

Carruthers, há evidências empíricas que, além de operários, era empregada mão-de-obra

escrava. Segundo o historiador carioca Carlos Gabriel Guimarães, nos dois únicos

relatórios da empresa encontrados, referentes aos anos 1854 e 1855, há “a presença de

um grande contingente de escravos envolvidos no trabalho, pertencentes ao próprio

estaleiro ou ´negros de ganho´, cativos alugados cujo pagamento em parte era repassado

a seus senhores”.4 Além disso, Irineu Evangelista fez riqueza, como era usual no Brasil

dos oitocentos, através da atividade do tráfico negreiro, pois a firma Carruthers tinha

estreita relação com tal comércio e com muitos negociantes de cativos. Esta atividade,

como sabemos, era altamente rentável e, portanto, atraía muitas firmas inglesas, mesmo

após o Bill Aberden, que concedia à marinha britânica a prerrogativa de apresar os

navios negreiros, inclusive aqueles situados em águas do Império do Brasil. Ou seja, a

presença de escravos nas atividades de Mauá desmente a sua imagem de abolicionista,

construída por parcela da historiografia e apresentada também pelo filme aqui

comentado.

Neste sentido, a produção de Sérgio Rezende se distancia da história e acaba

sendo muito mais uma representação de sua época, a década de 1990, em que as idéias

liberais voltaram com força à cena política brasileira e foram encaradas, por muitos,

como a única solução para os problemas do Brasil no final do milênio. Assim, o filme

apresenta uma espécie de empresário empreendedor, defensor do trabalho, da livre

iniciativa em oposição a um Estado conservador, atrasado, aristocrático e que somente

atrapalha seus planos. Como fizemos questão de salientar, não havia contradição entre

Irineu Evangelista de Souza e o Império. Além de ser próximo da Corte, pelos títulos

4
GUIMARÃES, Carlos Gabriel. Mauá por trás do mito. Revista de História da Biblioteca Nacional.
Rio de Janeiro, Ano 1, n. 4, out/2005, p. 74.
5

de nobreza obtidos, Mauá também participou de projeto do Estado imperial, como, por

exemplo, quando foi membro da comissão que organizou o Código Comercial de 1850,

ao lado de importantes “estadistas” como Eusébio de Queiroz, José Clemente Pereira,

José Thomas Nabuco de Araújo, entre outros. Ou seja, ele circulava e era próximo dos

grandes políticos do Império. A proximidade ao poder também garantiu a Irineu

Evangelista a concessão de serviços públicos na cidade do Rio de Janeiro, como foi o

caso da iluminação pública e da canalização do rio Maracanã, além de muitos

empréstimos, indicando alguém que esteve, senão sempre, pelo menos com bastante

freqüência, em sintonia de interesses com os membros do governo imperial e inclusive

com o próprio Imperador.

Precisamos enfatizar, por conseguinte, a importância de, ao estudarmos o

passado, buscarmos a relação deste passado em foco com o presente do historiador ou,

no caso do cinema, da produção da película. A semelhança de uma produção

historiográfica, um filme com temática histórica também produz uma representação do

passado, na qual, muitas vezes, além de discutirmos este passado enfocado, devemos

refletir acerca do presente em que foi produzida a obra cinematográfica e de sua

interpretação do passado. Com pertinência afirma o historiador José Carlos Reis sobre

esta relação entre passado e presente na produção do conhecimento histórico:

“Não há um passado fixo, idêntico, a ser esgotado pela história. (...) O


presente exige a reinterpretação do passado para se representar, se
localizar e projetar o eu futuro. Cada presente seleciona um passado
que deseja e lhe interessa conhecer. A história é necessariamente
escrita e reescrita a partir das posições do presente, lugar da
problemática da pesquisa e do sujeito que a realiza”.5

Portanto, estabelecer uma oposição entre Mauá e o Estado imperial reflete muito

mais o tempo da produção do filme, os tempos neoliberais do Brasil da década de 1990,

do que, propriamente, da sociedade brasileira do século XIX, aquela em que Mauá

5
REIS, José Carlos. As identidades do Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p.9
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viveu e na qual foi, como devemos compreendê-lo, um homem de seu tempo, inclusive

nas suas contradições.

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