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De General Câmara a Visconde de

Pelotas: um militar na política após


a Guerra do Paraguai*
From General Câmara to Visconde de Pelotas: a military man in
politics after the Paraguayan War
André Fertig
Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Professor do Departa-
mento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

RESUMO ABSTRACT

Este artigo possui como tema a ascensão po- This article has as its theme the political rise
lítica de José Antônio Correia da Câmara, o of José Antônio Correia da Câmara, General
General Câmara e Visconde de Pelotas, após Câmara and Visconde de Pelotas, after his
seu retorno da Guerra do Paraguai. Com tal return from the Paraguayan War. To this
finalidade, selecionamos três conjunturas de end, we selected three conjunctures of the
atuação do General: a primeira, logo após seu General’s activity: the first, shortly after his
retorno do Paraguai e a concessão de seu títu- return from Paraguay and the granting of his
lo de nobreza; a segunda, quando ele tornou- title of nobility; the second, when he became
-se liderança política importante na Província an important political leader in the Province of
do Rio Grande do Sul e, a terceira conjuntura, Rio Grande do Sul; and the third, when, in the
quando, no início da década de 1880, o Viscon- early 1880s, Visconde de Pelotas assumed, in
de de Pelotas exerceu, no Rio de Janeiro, as Rio de Janeiro, as senator and minister of war
funções de senador e ministro da Guerra do of the Empire of Brazil.
Império do Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Guerra do Paraguai; Impé- KEYWORDS: War of Paraguay; Empire of Brazil;


rio do Brasil; História Política Political History

José Antônio Correa da Câmara nasceu em Porto Alegre em 1824 e faleceu no Rio de Janei-
ro em 1893. Era filho do Comendador Antônio Fernandes de Lima e de D. Flora Correa da Câma-
ra, filha do 1o Barão e 1o Visconde de Pelotas, Tenente-General Patrício José Correa da Câmara.
Em 1851 casou com sua sobrinha, Maria Rita Fernandes Pinheiro, filha de José Feliciano Fer-
nandes Pinheiro (Visconde de São Leopoldo). De extensa carreira militar, Câmara foi legalista
na Farroupilha, quando participou no 3o Regimento de Cavalaria Ligeira e combateu também
na Campanha do Uruguai (1851-1852). Ele também atuou com destaque na Guerra do Paraguai,
quando esteve em campo de batalha desde a campanha no Uruguai em 1864 até a caçada final
a Solano López. Ao retornar do Paraguai, recebeu o Título de Visconde de Pelotas. A partir da dé-

*Artigo recebido em 17 de abril de 2020 e aprovado para publicação em 06 de maio de 2020.


Navigator: subsídios para a história marítima do Brasil. Rio de Janeiro, V. 16, no 31, p. 83-96 – 2020.
André Fertig

cada de 1870, além de ascender como lideran- uma escrita autobiográfica, uma escrita de
ça política na Província do Rio Grande do Sul, si, na qual o indivíduo, como sugere Teresa
ele assumiu cargos destacados na Corte como, Malatian, “assume uma posição reflexiva
senador do império e ministro da Guerra (Ga- em relação à sua história e ao mundo onde
binete Saraiva 1880-1881). Insere-se na turma se movimenta” (MALATIAN, 2009, p. 195).
de políticos do Rio Grande do Sul que, a partir E, mais ainda, defendemos que, através da
dos anos 1870, foram representativos da força análise das cartas do General Câmara, con-
do Partido Liberal na Província, como Gaspar seguimos compreender parte de sua trajetó-
Silveira Martins, Manuel Luís Osório, Anto- ria individual e sua historicidade, ou seja, ao
nio Eleutério de Camargo, Henrique d´Avila, longo de um período e compreendendo suas
Joaquim Pedro Salgado, Francisco Antunes transformações enquanto agente histórico
Maciel, entre outros.Compreendemos nossa (GOMES, 2004, p. 13).
investigação acerca do General Câmara como No que diz respeito aos objetivos desse
uma possibilidade de resgatar historicamente artigo, pretendemos caracterizar a atuação
a estreita relação entre poder e Forças Arma- de Câmara como um militar na política, da
das ao longo da história do Brasil. No Império defesa corporativa da instituição e também
do Brasil, apesar da existência de uma Força no quadro mais amplo da conjuntura de cri-
Armada de caráter civil – a Guarda Nacional, a se da monarquia do Brasil entre 1870-1889.
partir da segunda metade do século XIX –, os Ou seja, por intermédio das missivas, veri-
militares, mesmo com uma incipiente profis- ficar quais foram seus interlocutores mais
sionalização e institucionalização, passaram a frequentes na vida política pós-Guerra do
atuar na defesa de demandas tanto corporati- Paraguai, quais os temas tratados nas car-
vas, reivindicando participação na vida políti- tas e, se possível, caracterizar a natureza
ca, como também protagonizando debates da das relações pessoais e políticas estabele-
pauta política no contexto de crise da monar- cidas pelo General com os seus correspon-
quia (1870-1889). Tal ascensão dos militares na dentes. Como observa José Maria Imizcoz,
política nos leva a considerá-los como funda- “A descoberta dos laços que relacionavam
mentais na explicação da crise da monarquia as pessoas na vida econômica, social e po-
e como protagonistas do “golpe republicano” lítica tem dado uma nova centralidade ao
de 1889. Ou seja, desde então, os militares estudo das relações de família, parentesco,
passaram a ser, na história do Brasil, agentes amizade ou clientelismo como articulações
históricos imprescindíveis para a explicação de privilegiadas dos atores sociais e políticos
nossa história, principalmente se enfocarmos do Antigo Regime” (IMIZCOZ, 2001, p. 20).
a crise do Império do Brasil e a história política Nos inspiramos ainda em Norbert Elias, que
do Brasil republicano. afirma a importância de compreender cada
Quanto às inspirações teórico-metodoló- indivíduo a partir de suas relações sociais,
gica que orientam essa pesquisa, necessita- que cada pessoa, em uma posição única,
mos fazer algumas observações. As fontes estabelece laços específicos por diversas
primárias são, primordialmente, correspon- razões como, por exemplo, afeto, trabalho,
dências pessoais. Por intermédio delas con- entre outros (ELIAS, 1994, pp. 22-27).
seguimos abordar tanto a história pública Assim, nosso objetivo é entender a atu-
(política e militar) sob outra perspectiva ação de Câmara ao enviar e receber corres-
quanto a história da vida privada (como sen- pondências em um sistema político clien-
timentos, valores, experiências e preocupa- telista, no qual as práticas políticas não
ções pessoais são narrados na esfera do pri- distinguiam as esferas pública e privada,
vado). Além disso, consideramos as cartas e os indivíduos agiam preferencialmente

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a partir da lógica do interesse pessoal, por década de 1880, sua capacidade de ação po-
amizade, parentesco ou outra relação de lítica aumentou expressivamente, pois ele
afetividade, utilizando-se das correspondên- passou a ocupar cargos no governo impe-
cias como um canal para suas demandas e rial. Nosso entendimento é que José Antô-
troca de favores. Estabelecia-se, portanto, nio Correa da Câmara, ao aliar e fortalecer
uma relação diádica, como definiu Carl Lan- seus atributos militares, políticos e nobiliár-
dé, cuja ênfase era o sentimento de confian- quicos, conseguiu acumular um poder que
ça entre as duas partes (LANDÉ, 1977). o lançou a um novo patamar, tornando-se
Na tentativa de responder a essas ques- então um mediador político privilegiado en-
tões, selecionamos três conjunturas da atu- tre a Corte e a Província, ao conectar as lo-
ação do General Câmara. A primeira, logo calidades ao poder central, ouvindo e quase
após seu retorno do Paraguai e a concessão sempre satisfazendo as demandas daqueles
do título de Visconde de Pelotas; a segun- que possuíam condições de serem seus
da, a partir de 1872 e anos seguintes, com a interlocutores. Na perspectiva de uma his-
ascensão do Partido Liberal no Rio Grande tória social da política, também é possível
do Sul; e finalmente, a terceira, no início da caracterizar esses missivistas que se comu-
década de 1880, quando Câmara tornou-se nicavam com o general como pessoas que,
Ministro da Guerra e Senador do Império. cotidianamente, atuavam de maneira políti-
Como hipótese de investigação, compre- ca, pedindo favores, solicitando demandas,
endemos que o General Câmara, após 1870, criticando ou elogiando alguma questão do
já como significativa liderança política da contexto ou da pauta do momento, enfim,
Província sul rio-grandense, atuava como fazendo política. Neste sentido, vamos apre-
mediador político, estabelecendo uma es- sentar no quadro abaixo os mais frequentes
pécie de meio de campo das demandas dos interlocutores do General Câmara entre os
poderosos locais com a Corte e, a partir da anos 1869-1879:

Remetente Número de cartas Porcentagem


Manuel Luís Osório
84 27,9%
(Marquês do Herval)
José Maria da Silva Paranhos
41 13,9%
(Visconde do Rio Branco)
Gaspar Silveira Martins 28 9,3%
Luís Alves de Lima e Silva
7 2,4%
(Duque de Caxias)
Outros 139 46,5%

Total de cartas 299 100%

Observação: Os números são aproximados, pois correspondem às cartas do Fundo Documental General
Câmara, do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Como são fontes do século XIX, muitas
podem ter se perdido ou extraviado ao longo do tempo.

Em cartas recebidas por Câmara durante comprova isso, pois três dos principais cor-
a Guerra do Paraguai, alguns corresponden- respondentes ao final da guerra e na déca-
tes eram mais frequentes em razão do pa- da seguinte foram militares ilustres, como
pel militar de destaque que ele havia obtido Osório e Caxias, ou um político fundamental
nos últimos anos do conflito. A tabela acima na conjuntura final do conflito, no caso, Pa-

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ranhos. As cartas trocadas com o Ministro comprovada também, por exemplo, pelo con-
plenipotenciário no Paraguai, José Maria da vite que o Duque de Caxias fez, no dia 28 de
Silva Paranhos (Visconde do Rio Branco), outubro de 1870, para um jantar na sua casa,
tornam-se cada vez mais frequentes e ilus- quando o Duque salientou o convívio e o com-
tram a dimensão de importância da atuação panheirismo entre eles durante a guerra:
de Câmara na guerra. Em carta de 8 de no-
Espero que no domingo próximo 30
vembro de 1869, enviada de Assunção, Pa-
do corrente seja o dia que V. Exa.
ranhos fazia o seguinte comentário: “Creio destine para jantar comigo. Não
que a V. Exa. está reservada a glória de aca- pretendo convidar se não 3 dos
bar com López”1 (IHGRS, Fundo General Câ- nossos companheiros da última
mara, 08/11/1869). A maior proximidade de campanha que pertenceram ao
meu Quartel General a fim de po-
Câmara com Paranhos foi possível de ser
dermos em família nos recordar de
comprovada pela troca cada vez mais usual nossos passados trabalhos. A hora
de correspondências desde a guerra e que é a mesma que no campo, as 4 ho-
se manteve após o término do conflito. Do ras da tarde. Seu amigo e camara-
Rio de Janeiro, em 4 de abril de 1871, o Vis- da. Andaraí, 28 de outubro de 1870.
Duque de Caxias. (IHGRS, Fundo
conde do Rio Branco, que recém havia assu- General Câmara, 28/10/1870).
mido em março daquele ano a Presidência
do Conselho de Ministros do Império, cargo No convite acima de Caxias à Câmara
político mais importante do sistema político para um jantar, percebemos que as práticas
imperial, hierarquicamente inferior apenas sociais da política e da vida pessoal se con-
ao Poder Moderador de D. Pedro II, dizia o fundiam. Como observou Maria Fernanda
seguinte em correspondência à Câmara: Martins, “a vida social misturava-se à polí-
tica”, visto que esses homens – “com cren-
Ilmo e Exmo Senhor Visconde de
Pelotas, Recebi a carta de V. Exa de ças, objetivos e valores comuns” –, assim
14 do passado e com muito prazer como se encontravam em casas parlamen-
li esse testemunho de que sua ami- tares, universidades e ambientes formais
zade, que tanto aprecio, conserva a da política, também frequentavam saraus,
mesma animação e benevolência.
Recordo-me sempre da vida que bailes e jantares, entre outros eventos de
passamos no Paraguai e da perfei- uma sociabilidade de caráter mais privado,
ta inteligência e estímulo recíproco compartilhando relações de amizade, paren-
que servimos a nossa pátria. Aqui tesco e compadrio (MARTINS, 2007, p. 168).
me tem V. Exa em posição muito
mais espinhosa e que me tocou Esta elevação de status político de Câ-
quando já cansado de três anos de mara culmina também com a concessão do
trabalho continuo, mas Deus levará título de nobreza de 2o Visconde de Pelotas,
em conta as minhas intenções, e V.
Exa encontrará sempre em mim o um reconhecimento pelos seus serviços mi-
melhor homem. Com muita consi- litares prestados no Paraguai, afinal Câmara
deração assino-me De V. Exa afetu- esteve em ação nos campos de batalha des-
oso amigo e obediente servo Viscon- de a campanha no Uruguai em dezembro
de do Rio Branco. (IHGRS, Fundo
General Câmara, 04/04/1871). de 1864 até meses depois do conflito, pois
retornou somente em outubro de 1870 ao
Além da proximidade com o chefe de ga- Brasil. Como era usual no Brasil imperial e
binete do Império, Visconde do Rio Branco, conforme a Constituição de 1824, em troca
o pertencimento de Câmara às altas instân- de serviços prestados ao Estado, membros
cias de poder da Corte e sua ascensão política da elite recebiam títulos nobiliárquicos. O
logo após seu retorno do Paraguai pode ser título não era hereditário e conferia poder

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simbólico e efetivo ao seu portador, marcan- judiciário, abolição da escravidão. Ou seja,


do hierarquias sociais e, portanto, definindo eles buscavam reformar a monarquia com
posições em uma sociedade marcadamen- medidas de cunho liberal, como a recorrente
te de Corte, nos moldes do Antigo Regime. questão da defesa do federalismo.
Muitos militares que combateram no Pa- No Rio Grande do Sul, um dos reflexos da
raguai se nobilitaram. Da Província do Rio queda do Gabinete Zacarias, foi a reorganiza-
Grande do Sul, além de Câmara, podemos ção do Partido Conservador, com o ingresso de
citar, por exemplo, Vitorino José Carneiro muitos liberais-progressistas no partido. Como
Monteiro (Barão de São Borja), Vasco Alves afirma Helga Piccolo, a entrada desse grupo de
Pereira (Barão de Santana do Livramento), progressistas provocou “desavenças internas
João Nunes da Silva Tavares (Barão de Ita- que se traduziram na formação de dois “blo-
qui), Joaquim de Andrade Neves (Barão de cos” dentro do partido: os “lobos”, conservado-
Triunfo), entre outros que, em sua maioria, res “puros” e os “cordeiros”, ex-progressistas
receberam títulos em troca de serviços mili- (PICCOLO, 1991, p. 57). Essa divisão interna do
tares prestados ao Império do Brasil. Partido Conservador o enfraqueceu, aprofun-
Do ponto de vista do contexto político em dou-se mais ainda em razão da Lei do Ventre
meio a Guerra do Paraguai, devemos lembrar Livre (1871), aprovada no Gabinete conserva-
que as críticas e cisões políticas foram se in- dor de Rio Branco e que desagradou grande
tensificando no decorrer do conflito. Os con- parte dos conservadores, principalmente os
servadores e liberais históricos atacavam o denominados “lobos”. E, por outro lado, permi-
gabinete da Liga Progressista. O acirramento tiu que o Partido Liberal, que havia se reorga-
da crise aconteceu quando, em 1868, o Impe- nizado ao longo da década de 1860, num pro-
rador escolheu um conservador, Sales Torres cesso liderado por Manuel Luís Osório e Félix
Homem, para senador pelo Rio Grande do da Cunha, vencesse, em 1872, as eleições para
a Assembleia Provincial no Rio Grande do Sul,
Norte. O Presidente do Conselho de Ministros
tornando-se o partido hegemônico na provín-
do Império, Zacarias de Góis e Vasconcelos,
cia até o final do período monárquico.
apresentou a demissão do gabinete, aceita
por D. Pedro II, mas não sugeriu nome para a A vitória liberal nas eleições de 1872 foi
sua sucessão. Para surpresa, principalmente saudada pelos correligionários do Visconde
de uma Câmara majoritariamente liberal pro- de Pelotas em diversas cartas recebidas na-
gressista, D. Pedro II chamou para a chefia de queles meses logo após ao pleito. O ex-Presi-
gabinete um conservador ortodoxo, Joaquim dente da Província e naquele período senador
José Rodrigues Torres, o Visconde de Itaboraí, do Império, Antônio Fernandes Braga, no dia
oferecendo o poder a uma política “vencida 30 de setembro de 1872, escrevia o seguinte:
nas urnas”, segundo discurso de um dos prin-
Exmo Amigo Sr. Visconde de Pelotas,
cipais líderes progressistas, Nabuco de Araú- Tendo ido ao Rio de Janeiro em Agosto,
jo, que passou a questionar a legitimidade do (...) tive o prazer de encontrar a estima-
novo governo. O mais importante a se ressal- da carta de V. Exa. de 30 de Julho cujo
tar é que, a partir desta crise, reorganizou-se conteúdo aprecio muito e agradeço,
felicitando V. Exa pelo bom êxito
o sistema partidário. A partir da liderança de
que tiveram os seus esforços nas
Nabuco de Araújo, os progressistas se arti- eleições. [grifo nosso] Acabo de re-
cularam com os liberais históricos, formando ceber carta de nosso amigo Marquês
um novo Partido Liberal. Os liberais, em seus do Herval, dando-me os nomes da de-
discursos, defendiam maior descentralização putação liberal dessa Província, com a
qual será dignamente representada.
política, eleições diretas, extinção do Poder
Achava-me na Corte quando lá
Moderador e da Guarda Nacional, reforma do chegou a notícia pelo telégrafo do

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triunfo do partido liberal, e particu- O primeiro, a importância militar e política


larmente de V. Exa nessa Capital, adquirida pelo Visconde de Pelotas, pois tra-
[grifo nosso] a respeito do que ouvi e
tava-se de um liberal que havia sido chama-
vi o despeito de um Sr. Souza que se-
gundo mostrou, achasse contrariadís- do para ocupar um posto no ministério con-
simo, até nervoso com tal resultado. O servador. O segundo aspecto que inferimos
gabinete com que casualmente nos desse convite a Câmara, era a habilidade
encontramos obriga-me a calar o res- política que possuía José Maria da Silva Pa-
to. (...) Que V. Exa com sua apreciável
ranhos, o Visconde do Rio Branco, que con-
família gozem saúde, (...) Amigo muito
afeto e venerador (...). (IHGRS, Fundo seguia circular e obter apoio nos quadros
General Câmara, 30/09/1872). da oposição, demonstrando capacidade de
diálogo e negociação com os liberais.
Com este predomínio liberal houve a
emergência de lideranças políticas como No que diz respeito ao âmbito provin-
Manuel Luís Osório, Gaspar Silveira Martins, cial, talvez o expoente principal, naquele
Henrique D´Avila e o próprio Visconde de momento, entre os políticos liberais, tenha
Pelotas que, despontaram já nesses anos ini- sido Manuel Luís Osório. Se compreender-
ciais de 1870 na Província e, mais para o final mos a política em sentido amplo, para além
da década, com o Gabinete Liberal de 1878, dos personagens e canais da política insti-
assumiram cargos na Corte. A trajetória, por tucional, a atuação política do Marquês do
exemplo, do advogado de Jaguarão, Henri- Herval, principalmente na esfera paroquial,
que D´Avila, é ilustrativa da ascensão polí- ao realizar uma prática política cotidiana,
tica dos liberais rio-grandenses. Conforme enviando circulares e correspondências, es-
Amanda Both, D´Avila foi eleito deputado tabelecendo contatos pessoais, comprovam
provincial em 1863, se destacando ao longo sua relevância para os quadros do Partido
da mesma década na Assembleia Provincial, Liberal e para a sociedade rio-grandense.
ocupando inclusive em várias legislaturas Como foi possível perceber nas cartas en-
a mesa diretora. Em 1880, por indicação do viadas por ele ao General Câmara. Osório,
Visconde de Pelotas, tornou-se Presidente da conforme contabilizamos no quadro ante-
Província do Rio Grande do Sul. A partir de rior, entre 1869 e 1879, foi o mais frequente
1882 o bacharel de Jaguarão tornou-se sena- remetente de cartas à Câmara. Guilherme
dor e em 1883 assumiu o Ministério da Agri- Grundling, que pesquisou a relação pessoal
cultura (BOTH, 2018). Outra trajetória exem- e política entre Câmara e Osório através de
plar da ascensão liberal foi o bacharel Gaspar correspondências, identificou que a prática
Silveira Martins, que fez carreira em diversos de missivas entre eles vinha desde o pós-
cargos da burocracia imperial, desde Juiz -Guerra Farroupilha (GRUNDLING, 2019). In-
Municipal, Deputado Geral e Provincial, Se- ferimos que era assim que ele fazia política,
nador do Império, Conselheiro do Estado e muito mais do que atuando em cargos eleti-
Ministro da Fazenda (1878). Silveira Martins, vos ou burocráticos, para os quais, sabemos,
da mesma forma que Câmara e Osório, teve tinha resistência em assumir. Ilustramos sua
sua promoção política nas duas últimas dé- ação política em trecho da carta abaixo, que
cadas do Império do Brasil. comprovam sua acurada capacidade de aná-
No caso de Câmara, já após retornar do lise do contexto, suas articulações com ou-
Paraguai, ele poderia ter assumido cargo do tras lideranças como Gaspar Silveira Martins
poder central, visto que fora convidado para e Manuel Lucas de Oliveira, Henrique D´Avi-
ocupar a pasta da Guerra em outubro de la, Luís da Silva Flores, bem como sua preo-
1870 pelo Gabinete Rio Branco, mas acabou cupação com possíveis conflitos internos no
recusando. Tal fato evidencia dois aspectos. Partido Liberal no futuro próximo:

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(...) Tenho presente a sua de 7 de nizar Osório pela sua nomeação de Ministro
dezembro último. Vou escrever ao da Guerra em carta de 10 de janeiro de 1878:
Gaspar sobre o Lucas. Recebi a
nota da votação de Porto Alegre, Ex. Sr. Marques do Herval. Não é a V.
Rio Pardo e Cachoeira. O colégio Ex. a quem vou felicitar, mas ao país,
conservador de Bagé não fez elei- e sobretudo ao Exército, por vê-lo
ção, creio portanto que triunfará a nomeado Ministro dos Negócios da
chapa liberal. Vejo que nesse cir- Guerra. Para V. Ex, compreendo bem,
cuito está o partido sem direção, deve ser grande o sacrifício, não pelo
o que creio se poderá remediar que tem de árdua a missão, mas pe-
reunindo-se os eleitores da capital las contrariedades que há de sofrer.
Muitas vezes, no decorrer de seu alto
e as principais notabilidades do
cargo, e que partindo de cima deixam
partido e nomearem (...) um diretor
de externar melhor resultados. Que
ou chefe enquanto não chegar por
Deus lhe dê forças para levar ao fim
ali o Sr. Porto Alegre. (...) É muito o bem que pode fazer, são os desejos
possível que tenhamos uma as- de quem é com a maior consideração
sembleia provincial unânime e eu de V. Ex. Amigo e atencioso obrigado
e alguns amigos receamos discor- criado Visconde de Pelotas. (Carta de
dância pessoal entre os eleitos que José Antônio Corrêa da Câmara a Ma-
venha enfraquecer o partido, derro- noel Luís Osório. 10.01.1878, IHGB,
tá-lo mesmo para o futuro. Por essa Coleção General Osório - L.233ª, cita-
razão escrevi aos Srs. Ávila, Ribas da em GRUNDLING, 2019, p. 101).
e Flores pedindo-lhes todo o em-
penho com os deputados nossos Enquanto esteve à frente da pasta minis-
amigos, para que não haja entre terial da Guerra, durante o Gabinete Sinimbu
nós o que houve entre lobos e (05/01/1878 a 28/03/1880), cargo que ocupou
cordeiros, pois não há desculpa
até sua morte em outubro de 1879, Osório
para quem despreza a experiên-
continuou a trocar cartas com o General Câ-
cia, [grifo nosso] (...)”. (AHRS, Fun-
do General Câmara, 11/01/1873). mara e outros amigos da sua vida política e
dos campos de batalha. Ele, logo no segundo
A atuação de Osório na política paroquial mês de governo, já respondia afirmativamente
não quer dizer que ele não soubesse atuar às demandas enviadas pelo General Câmara:
na “grande política” de cargos e funções bu-
rocráticos do Estado imperial. Apesar de ter O seu recomendado Capitão Tei-
dito, segundo seu filho Fernando Luís Osório, xeira Junior foi empregado no
Arsenal, e o seu parente da Se-
que o “parlamento era para doutores e não
cretaria de Guerra mandou-me
para ele que o que sabia era de certo que não a sua carta [grifo nosso] (...). Não
sabia nada” (OSÓRIO, 1894, p. 646), o senhor pode fazer ideia do mal estado das
guerreiro e de estância Marquês do Herval, finanças do nosso país e da desor-
em 1877, depois de muita resistência, assu- dem que encontramos na adminis-
tração. Todos os nossos colegas
miu uma vaga no Senado. E, no ano seguinte,
dizem que acham as cousas pior
em fevereiro de 1878, dois líderes do Partido do que pensavam, e o desperdício
Liberal da província, Osório e Gaspar Silvei- criou interesses que nos criaram
ra Martins, assumiam cargos no ministério. adversários, além da dificulda-
Como salientou Jonas Vargas, “pela primeira de em satisfazer aos amigos que
querem substituir os desmama-
e única vez ao longo de toda a Monarquia, dois
dos. [grifo nosso] (...). (IHRS, Fundo
rio-grandenses eram alçados a um mesmo ga- General Câmara, 24/2/1878).
binete ministerial” (VARGAS, 2010, p. 18).
Tal acontecimento não passou desperce- Pelo trecho da mensagem acima, mesmo
bido por Câmara, que fez questão de parabe- que Osório tenha se queixado “da dificuldade

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em satisfazer aos amigos”, percebemos que minação e agilidade política, enviou um tele-
ele cumpria efetivamente seu papel como grama à Câmara informando a ocorrência e
mediador político entre a Corte e a província/ salientando que Câmara não deveria assumir
paróquia ao atender os pedidos do General a vice-presidência da província, pois isto po-
Câmara. Mesmo tendo sido muito mais um deria inviabilizar a sua candidatura ao Sena-
estancieiro e militar, o Marquês do Herval, do. No dia seguinte, em correspondência ao
no cargo de Ministro da Guerra, atuava como General Câmara, Osório determinava:
um típico mediador político, aquele indivíduo
Você deve fazer parte da lista sena-
que conseguia transpor os limites de atu-
torial com o Flores e o Martins. V.
ação da sua comunidade e ser responsável Exa me conhece e por isso não se
por realizar a conexão dos poderes regionais surpreenderá que eu lhe indique o
e locais ao poder central. Carl Landé, que en- Martins para candidato, depois de
fatizou a presença da afetividade na relação alguns carcóvos [sic] que seu gênio
diádica, em um contexto político clientelista, violento o tem feito ser dominado
pela adulação da nossa amável e
apontou as seguintes características:
juvenil assembleia provincial (salvo
(...) totalmente voluntária ou pode honrosas exceções) disciplinada
ser obrigatória apenas para um pelos ligueiros de nossa pátria –
de seus membros. Pode ser difu- Camargo e Florêncio. (IHGRS, Fun-
sa e vincular simplesmente uma do General Câmara, 27/07/1979)
promessa mútua de ajuda a cada
um, ou pode envolver obrigações Osório, mais adiante no texto, afirmava
claramente definidas para cada que permanecia no ministério para garan-
membro. Pode existir entre duas tir a união e continuidade do gabinete libe-
pessoas do mesmo status socioe- ral e concluía que uma parcela dos liberais
conômico ou entre pessoas de sta-
tus desigual. Pode ser de pequena rio-grandenses estavam perseguindo politi-
duração, manter-se durante toda camente seu filho Fernando Luis Osório ao
a vida e até ser legada de geração excluí-lo das eleições daquele ano. Tais con-
em geração pelos descendentes flitos internos no Partido Liberal, segundo
daqueles que criaram a relação
as explicações usuais da historiografia que
diádica original. O único elemento
essencial a essa definição é que a abordou o tema, teve origem, durante o Gabi-
relação deve ligar dois indivíduos nete Sinimbu, nos debates da reforma eleito-
entre si por um vínculo pessoal di- ral. Entre as medidas propostas pela reforma,
reto (LANDÉ, 1977, p. XIV).
aprovada, posteriormente, em 1881, como Lei
As correspondências enviadas pelo Saraiva, estavam o direito de elegibilidade
General Osório ao General Câmara, nos dos acatólicos, assunto que teria provocado
tempos de ministro da Guerra, comprovam a discórdia entre Gaspar Silveira Martins e
que o Marquês do Herval, mesmo na Corte, Manuel Luís Osório (ROSSATO, 2014, p. 123).
preocupava-se com a situação política na No decorrer desta crise interna do gabi-
província e interferia das decisões internas nete Sinimbu, que levou à saída de Gaspar
da agremiação. Além disso, a frequência Silveira Martins do ministério, foi possível
das cartas trocadas entre eles evidencia que comprovar o quanto Osório estava conecta-
Osório contava com Câmara para resolver do com as pautas da política da província e
as questões políticas na província, principal- como ele atuou, com agilidade e frequência
mente quanto a assuntos internos do Partido na questão, bem como destacou o General
Liberal. Quando o Senador Araújo Ribeiro Câmara para ser seu interlocutor e braço
faleceu, no mesmo dia 26 de julho de 1879, político no Rio Grande do Sul. Há uma se-
Osório, em atitude que comprova sua deter- quência de cartas de Osório sobre o tema.

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Navigator 31 De General Câmara a Visconde De Pelotas: um militar na política após a Guerra do Paraguai

Em 9 de julho de 1879, Osório comentava à Câmara o papel de pacificador dos liberais


com Câmara que Silveira Martins, Florêncio da província, alguém que teria a capacidade
Carlos de Abreu e Silva e Antônio Eleutério de unir os membros do partido. Também o
Camargo “atiraram-se na oposição contra o Deputado geral liberal Antônio Eleutério de
governo”. O mais interessante é que Osório Camargo, que estava na Corte, escrevia à
aliviava com Silveira Martins, afirmando que Câmara para comentar as dissenções inter-
tinha “expressões de benevolência” para nas no partido. Pelas palavras de Camargo,
com ele. Todavia, quanto aos outros dois co- confirmamos os limites das correspondên-
legas liberais, avaliava que eram “autores de cias como fonte histórica, algo inerente a
más consequências para o nosso partido”. qualquer testemunho, quando Camargo, em
Concluía a mensagem dizendo que sairia do determinado trecho, faz questão de dizer que
governo se a sua retirada desse “ganho de falaria pessoalmente com Câmara sobre o
causa aos acatólicos”. Enquanto ele não es- conflito entre Osório e Silveira Martins, pois
tivesse convencido disso, ficaria no Gabine- havia “cousas que não se podem, nem se de-
te Sinimbu, inspirado “nos interesses reais vem dizer em telegramas e cartas”:
e sérios do país e do meu partido” (IHGRS,
Fundo General Câmara, 09/07/1879). Infeliz partido o nosso. Vejo tudo um
horrível desmantê-lo (sic), estamos
Em 24 de agosto de 1879, Osório informa- desnorteados e não se confia em
va que Gaspar Silveira Martins iria à provín- mais nada. Para coroar a obra o Mar-
cia “com ânimo para acabar com a discórdia tins saiu do ministério e ficou o Ge-
do partido”. As palavras do General indica- neral Osório! Ei de dar a V. Exa as ra-
zões porque ficou o General Osório;
vam – ou pelo menos era o que ele desejava
não o faço hoje porque há cousas
sugerir – que o conflito era muito mais entre que não se podem, nem se devem
os liberais rio-grandenses do que entre ele dizer em telegramas e cartas. [grifo
e Silveira Martins, pois finalizava a missiva nosso] Por hoje posso apenas dizer
que o próprio Fernando declarou-me
dizendo o seguinte: “Estimarei que ele re-
que havia pedido, como filho, que
sista ao mal gênio dos que a promoveram, e seu pai continuasse! (IHGRS, Fundo
que com negra calúnia projetaram desacre- General Câmara, 23/02/1879).
ditar-me” (IHGRS, Fundo General Câmara,
24/08/1879). Uma semana depois, em 1o de Ou seja, ao longo da década de 1870, a
setembro de 1879, Osório voltava ao mesmo maior expressão política dos liberais rio-
tema afirmando que estava “de acordo em fa- -grandenses fez com que houvesse, cada
zer parar a discórdia no Partido Liberal, ideia vez mais, uma aproximação e um diálogo
que tem também o Gaspar, segundo me dis- entre políticos da Corte e lideranças liberais
se”. E complementava o Marquês: da Província. Além de conterrâneos, como
os colegas de farda e partido, Antônio Eleu-
Devo porém dizer-lhe: que a oposi-
tério de Camargo e Manuel Luís Osório, ou-
ção que por ai se tem feito ao go-
verno não tem razão de ser, e pode tros políticos experientes, como João Vieira
comprometer o nosso empenho se Lins Cansansão Sinimbu, se correspondiam
continuar; V. Exa melhor apreciará com frequência com o Visconde de Pelotas
as causas e resolverá com seu cos- e o reconhecia como liderança política. Da
tumado tino (IHGRS, Fundo Gene-
ral Câmara, 01/09/1879). Corte, em 28 de novembro de 1876, Sinimbu
saudava Pelotas pela vitória liberal nas elei-
Neste trecho acima, além da promessa de ções daquele ano: “Ilmo e Exmo Sr. Viscon-
Osório em terminar com os atritos com Sil- de de Pelotas, Lendo no coração de V. Exa
veira Martins, percebemos que ele atribuía os (...) sentimentos, cada qual mais nobre, o

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André Fertig

triunfo do partido, e o orgulho do Rio-Gran- ção da Câmara. Sua Majestade ainda


dense, por ver desafrontados os brios de sua foi velhaca, chamando o Visconde
do Abaeté para organizar Ministério,
honrosa Província, (...)” (IHGRS, Fundo Ge-
pois ele bem sabia que o Limpo está
neral Câmara, 03/11/1876). sujo – quero dizer que o homem já foi
Jonas Vargas observou essa maior re- homem (...) (IHGRS, Fundo General
presentatividade da elite rio-grandense no Câmara, 11/03/1880).
poder central nas décadas finais do Império:
Além da crítica ao bacharel mineiro An-
O papel significativo dos rio-gran- tônio Paulino Limpo de Abreu (Visconde de
denses no Paraguai e o seu crescen- Abaeté), um dos mais ilustres saquaremas
te recrutamento para os gabinetes
e “Estadistas do Império”, para usarmos ex-
possibilitaram um melhor acesso
aos diversos recursos materiais e pressão de Joaquim Nabuco, já que Limpo
simbólicos que emanavam do mun- de Abreu ocupara diversos cargos durante
do da Corte. Em consequência disso, o Império, fora juiz, ministro, chefe do Gabi-
as elites da província conquistaram nete de 1859, conselheiro de Estado (1848-
muitos dos tão cobiçados cargos
1883) e um dos mais longevos senadores
na burocracia, vários títulos nobiliár-
quicos, diversos contratos públicos, (1847-1883), Mendes Totta informava ainda
além de uma rede social de maior que Saraiva iria assumir a chefia do gabi-
importância. Portanto, ao comporem nete e que corriam “em todos os círculos”
a elite política central, estes homens,
que Câmara seria o ministro da Guerra. A ex-
que já eram bastante conhecidos e
respeitados na sua província, viram pectativa de Mendes Totta se confirmou em
as suas clientelas crescerem cada 28 de março de 1880, quando José Antonio
vez mais. A sua capacidade de fazer Saraiva passou a chefiar o gabinete imperial
e encaminhar pedidos e conceder e Câmara tornou-se senador e ministro. Ao
favores aumentou muito o seu po-
chegar ao Senado, nomeado por Carta Im-
der e prestígio social. Neste sentido,
dentro do mundo da política, os mi- perial de 31 de março de 1880, e uma pasta
nistros, os senadores e os deputados ministerial, cargo que ocupou de 5 de abril
gerais ocupavam um papel central do mesmo ano até 15 de maio de 1881, o
(VARGAS, 2010, pp. 20-21). General Câmara alavancou sua capacidade
Compor a elite política central foi o que de atuação e mediação política. Como ob-
fez o General Câmara ou Visconde de Pelo- servou José Maria Imizcoz, uma das carac-
tas, a partir de 1880, quando chegou ao Rio terísticas principais do mediador político é
de Janeiro para ser ministro da Guerra do Im- transitar por diferentes núcleos sociais e es-
pério no Gabinete Saraiva. Já uns dias antes tabelecer a conexão entre os interesses lo-
dele ser nomeado para o Senado e o Ministé- cais e nacionais. Assim como havia ocorrido
rio, João Antônio Mendes Totta, que também com o General Osório, era exatamente essa
havia sido cônsul do Brasil no Paraguai, atu- a expectativa agora na Corte em relação à
alizava a situação política na Corte, agrade- Câmara, já que, ao ocupar postos chave do
cia uma carta de recomendação que Câmara sistema político, ele aumentava significati-
havia enviado a Silveira Martins e antecipava vamente sua capacidade de atuação como
as mudanças no gabinete imperial: mediador político. Nos dias seguintes às
duas nomeações, chegavam correspondên-
Como V Exa saberá, o Rei obrigou o cias parabenizando-o pelos novos cargos na
V Sinimbu a deixar a chefança (sic), Corte. Na formalidade que a ocasião exigia,
e asseveram pessoas importantes
João Francisco Vieira Braga, Visconde de
que as causas principais são: a esco-
lha de V Exa e do Conselheiro Gaspar Piratini, de Pelotas, também em nome da
para o Senado e a projetada dissolu- Viscondessa, saudava assim:

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Congratulo-me como devo com V. Sul, cargo que ocupou de 19 de abril de 1880
Exa por havê-lo sua Majestade O até 4 de março de 1881, são representativas
Imperador, meu Augusto Amo, mui
da cultura política clientelística em que es-
acertadamente, escolhido Senador,
devido à seu mérito pessoal, e reco- tava inserida a prática das missivas. Desde
nhecidos serviços, sendo-me tam- a postura humilde de Ávila, que se colocava
bém satisfatório ser-lhe confiada a como um “desconhecido” fora do Rio Grande
direção dos Negócios da Guerra, ta- do Sul, passando pelo papel de mediador da
refa espinhosa mas que é forçoso de-
sempenhar a bem da Nação (IHGRS, demanda do Coronel Mariante, com a suges-
Fundo General Câmara, 05/04/1880). tão que o mesmo recebesse também alguma
homenagem, e finalizando com o agradeci-
Os pedidos de favores através das cartas mento por um favor obtido, a promoção do
a partir de então se multiplicaram. Eram cole- cadete Pereira, se comparando a um pai que
gas de farda, correligionários do Partido Libe-
agradeceria ao benfeitor de seu filho. A men-
ral, parentes e amigos que passaram a enviar
sagem, portanto, exemplifica bem esse novo
as mais diversas demandas. As mais frequen-
patamar alcançado pelo Visconde de Pelotas
tes missivas recebidas a partir da década de
de mediador político na Corte imperial.
1880 relacionavam-se a solicitação de postos
no governo imperial. As pessoas pediam, por O filho de Osório, Fernando Luís Osório,
exemplo, empregos, nomeações ou promo- depois da morte de seu pai, passou a ser um
ções de amigos ou afilhados. Seu parceiro po- frequente remetente de cartas à Câmara e
lítico de longa data, o bacharel Henrique D´Á- continuou a tratar de um dos assuntos mais
vila, escrevia a seguinte mensagem ao agora caros a seu pai, os atritos entre os liberais
senador e ministro da Guerra: rio-grandenses. Em uma longa mensagem
de 25 de novembro de 1880, Fernando Luís
Porto Alegre, 11 de setembro de
se queixava do Presidente da Província D´A-
1880. Sem aspirações na política,
desconhecido fora dessa provín- vila pela abstenções dos eleitores na recente
cia, só tenho apoio em que me eleição para deputados provinciais. Todavia,
honra o Governo, a pessoa de V. o alvo principal das críticas era mesmo Gas-
E. [grifo nosso] O Coronel Mariante par Silveira Martins, considerado o elemen-
pede ao governo a sua exoneração to da discórdia, que estaria dando “amostra
do comando superior, e eu informo
de seu caráter richoso (sic), de sua vontade
seu requerimento do modo pelo
qual verá nos papeis que vão junto de tudo deprimir e amesquinhar em provei-
a este. (...) Penso que nessa ocasião to próprio”, conforme palavras de Fernan-
em que o governo deve galardoar do Luís Osório. Seguia a carta dizendo que
o velho servidor da pátria e do Par- Silveira Martins “abusava da amizade”, era
tido Liberal com algum título ou “desleal e hipócrita” entre outros adjetivos
condecoração, e se assim pensar
mencionados, recomendava que Câmara
V. E. [grifo nosso] rogo-lhe que pro-
mova esse ato de justiça que muito escolhesse um presidente de Província para
satisfará ao nosso velho amigo e o Rio Grande “mais conciliador” e observa-
companheiro. Agradeço a promo- va o seguinte: Não se esqueça V. Exa do que
ção do Cadete Pereira, com o reco- esse fingido amigo dizia, referindo-se de
nhecimento de um pai que se diri- longe a meu pai que era o seu protetor: ‒ é
ge ao benfeitor ou protetor de seu preciso acabar com o domínio da espada no
filho [grifo nosso] (IHGRS, Fundo
General Câmara, 11/09/1880). Rio Grande do Sul”. No final da mensagem,
ele atribuía à Câmara, assim como seu pai e
As palavras de D´Ávila, naquele momen- outros já haviam feito, a tarefa de conciliar os
to Presidente da Província do Rio Grande do liberais: “Que gloriosa tarefa está reservada

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André Fertig

a V. Exa, Sr. Visconde, a de promover a conci- ra seria uma espécie de ponte para se che-
liação, a harmonia nas fileiras liberais!” (IHR- gar a outra autoridade do governo imperial;
GS, Fundo General Câmara, 25/11/1880). Esse Esse foi o proceder de Ramiro Barcelos
comentário de Fernando Luís Osório parece que, por intermédio de seu tio Hilário José
indicar que, mesmo a elite rio-grandense, de Barcelos, fez chegar à Câmara sua carta
constituída nesses Oitocentos principalmen- escrita em Porto Alegre no dia 28 de maio de
te pela junção de militares e advogados, bas- 1880. Na mensagem, o Doutor Barcelos, que
ta lembrar os personagens aqui destacados naquele momento ainda pertencia as filei-
– Câmara e Osório (militares), Gaspar Silvei- ras liberais, mas que mais adiante se torna-
ra Martins e Henrique d´Ávila (bacharéis) – ria uma importante liderança do movimento
sofriam as fortes tensões que, nestes anos republicano no Rio Grande do Sul e, a partir
finais da Monarquia, passaram a existir entre de 1884, ativo redator do jornal A Federação”,
os de “farda” e os de “casaca”. do Partido Republicano Rio-grandense, atu-
Enquanto exerceu o cargo de ministro da alizava as informações sobre a vitória dos
Guerra, Câmara recebia correspondências liberais nas eleições na Província. Entre-
das mais diversas autoridades políticas, por tanto, a missiva possuía um objetivo maior,
exemplo, do Imperador D. Pedro II, que re- que era pedir ao Visconde de Pelotas que
meteu algumas cartas tratando de assuntos intercedesse junto ao Ministro dos Negó-
como o pedido de créditos suplementares cios Estrangeiros para que este garantisse
para a pasta da Guerra, o que o monarca in- “os interesses nacionais no Rio da Prata” na
deferiu, ou recomendando à Câmara, em 8 questão dos súditos brasileiros que haviam
de maio de 1880, que se fizesse para Caxias tido prejuízos de guerra e eram credores do
as mesmas honras fúnebres que haviam Governo Oriental (Uruguai) (IHGRS, Fundo
dado a Osório (IHGRS, Fundo General Câ- General Câmara, 28/05/1880).
mara, 08/05/1880). Porém, mais usual eram Até mesmo autoridades religiosas inter-
as correspondências de seus colegas de pelavam Câmara para solicitar favores para
gabinete, de presidentes de província, sena- terceiros. O Bispo de Cuiabá, que assinava a
dores, deputados gerais, correligionários do carta apenas como “Dom Carlos” e dizia que
Partido Liberal, parentes e amigos. Grande não conhecia pessoalmente Câmara, pedia
parte delas possuía um objetivo comum: a transferência do Capitão do 8o Batalhão de
eram pedidos de favores que chegavam ao Infantaria, Antônio de Castro e Silva, para o
ministro da Guerra. Como foram muitas Corpo de Estado-Maior de 2a Classe (IHGRS,
mensagens enviadas ao longo de seu tem- Fundo General Câmara, 30/09/1880).
po de ministro da Guerra, vou citar algumas Outros frequentes interlocutores de Câ-
que considero representativas: mara eram seus correligionários liberais,
O militar e Deputado Provincial Joaquim como Martim Francisco Ribeiro de Andrada
Pedro Salgado, liderança liberal importan- Filho, da segunda geração da família An-
te no Rio Grande do Sul, agradecia a sua drada, irmão de José Bonifácio (o moço) e
nomeação para Comandante Superior da de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, que
Guarda Nacional de Porto Alegre e afirma- esteve à frente de significativas instâncias
va que se esforçaria para “não deixar mal os de poder como deputado provincial e geral
meus distintos chefes e amigos que assim o pela Província de São Paulo, ministro dos
quiseram” (IHGRS, Fundo General Câmara, Negócios Estrangeiros (1886), ministro da
04/12/1880). Em muitas situações, alguém Justiça (1866-1868), conselheiro de Estado
da província pedia que Câmara atuasse em (1879-1886). Em carta de 24 de dezembro de
seu favor ou de seus recomendados. Câma- 1880, Martim Francisco solicitava um pedido

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de promoção a alferes de um afilhado seu. -grandense na última conjuntura do Império


Ilustramos essa correspondência abaixo, do Brasil. Objetivamos mostrar que, a partir
pois ela é representativa da maioria dos pe- da ascensão, principalmente, de políticos
didos de favores enviados à Câmara no seu liberais à Corte do Rio de Janeiro, houve, a
tempo de ministro da Guerra: partir da década de 1870, uma maior repre-
sentatividade política do Rio Grande do Sul
Tomo a liberdade de interceder pe-
nas instâncias de poder central do Império
rante V. Exa. em favor do 2o Cadete
Manoel Lúcio dos Santos Lima, do do Brasil. Tal fenômeno – aqui analisado
1o Batalhão de Infantaria. Este moço pelos estudo de caso do General Câmara –
é pobre, tem mãe e uma irmã soltei- incrementou a capacidade de ação, a efeti-
ra, que carecem de seu auxilio para
vação de relações pessoais e o atendimento
isso; é ele bom filho e merecedor de
toda a proteção de V. Exa. (...) para o de demandas de favores em outro patamar,
meu afilhado que está na proposta com a promoção de um canal de mediação
desejo a promoção a alferes. [grifo política entre o poder central e o provincial/
nosso] Muito prazer terei eu se for local. A trajetória de ascensão política de
atendido o meu pedido e em ser de-
vedor de V. Exa. de mais um valioso Câmara, aqui abordada a partir de suas re-
obséquio (...) (IHGRS, Fundo General lações estabelecidas, nos fez compreender
Câmara, 24/12/1880). também as modificações que uma pessoa
sofre ao longo do tempo. Consideramos
Para concluir, espero que tenhamos de-
imprescindível analisar as relações sociais
monstrado a potencialidade heurística das
construídas pelo sujeito como possibilidade
correspondência para a produção do conhe-
de explicar a sua historicidade, ou seja, suas
cimento histórico. Como afirmou José Maria
transformações no tempo, o que Norbert
Imizcoz, a informação que contém uma cor-
Elias conceituou como fenômeno reticular,
respondência é de grande riqueza qualitati-
a capacidade “de as pessoas mudarem em
va, pois mostra como as relações entre as
relação umas às outras e através de sua re-
pessoas “funcionam realmente na prática”
lação mútua, de se estarem continuamente
enquanto interações efetivas, não apenas
moldando e remoldando em relação umas
relações nominais. Conforme Imizcoz:
às outras” (ELIAS, 1994, p. 29).
Se observa el capital relacional y su Além disso, mesmo que preliminarmen-
uso, las funciones de mediación, el te, procuramos demonstrar alguns cami-
desarrollo de la acción, la movilizaci-
ón de los actores implicados en ella, nhos usuais da comunicação administrativa
la transmisión de la información, los entre as autoridades do governo imperial
intercambios de bienes y servicios, com os poderes provinciais e locais. Ao des-
la circulación de favores, el poder de tacar o General Câmara, o Visconde de Pe-
influencia efectivo, las conexiones
lotas, desejamos ainda compreender uma
con las instituciones, etc. Las cartas
revelan también el significado que los transformação histórica significativa ocor-
propios actores dan a sus relaciones, rida na conjuntura pós-Guerra do Paraguai,
su “economía moral”. Expresan los que foi o expressivo ingresso de militares
valores, normas o ideas con las que na vida política, processo matriz da milita-
éstos actúan y se relacionan entre si
(IMÍZCOZ, 2011). rização da política, elemento central se qui-
sermos explicar a história política do Brasil
Na perspectiva da história política, desde então.
nosso intuito foi enfocar – por intermédio
de José Antônio Correa da Câmara - como
atuavam alguns personagens da política rio-

95
André Fertig

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NOTAS
1
A ortografia das fontes foi atualizada.

96

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